domingo, 4 de outubro de 2015

MUDAR O MODO DE PENSAR DA ESQUERDA OU DA DIREITA

POR QUE É TÃO DIFÍCIL MUDAR O MODO DE PENSAR DA ESQUERDA OU DA DIREITA

Publicado originalmente no Facebook em 24 de outubro de 2014

Fonte: https://www.facebook.com/notes/augusto-de-franco/por-que-%C3%A9-t%C3%A3o-dif%C3%ADcil-mudar-o-modo-de-pensar-da-esquerda-ou-da-direita/940315659333966


 

O modo de pensar não depende de um modelo mental (no sentido de uma impossível mente individual). O modo de pensar depende da rede de relacionamentos em que uma pessoa está emaranhada. Depende das circularidades inerentes às conversações recorrentes nos clusters em que uma pessoa está situada.

Este é, precisamente, o caso da chamada esquerda (e também o da chamada direita: na verdade é a mesma coisa, uma só existe em função da outra, são um par enantiodronômico, cada oposto existindo em função do oposto). Trata-se do mesmo programa.

Por isso tenho afirmado que, do ponto de vista das redes e da democracia, esquerda e direita são a mesma coisa.

Uma vez configurado um ambiente hierárquico com base em uma narrativa assimilada e reproduzida pelos seus membros, ele criará uma carapaça para não se dissolver no fluxo interativo da convivência social. Para que isso aconteça, o conteúdo da narrativa não é tão importante quanto o seu modo-de-ver ou o seu esquema de interpretação da realidade. O esquema interpretativo é crucial porque ele funciona como um programa executável. Ele ensejará conversações que mantêm as mesmas circularidades inerentes e, com isso, conservará uma cultura, transmitindo comportamentos.

Vamos examinar então o exemplo da cultura da chamada esquerda. Toda vez que o esquema interpretativo segundo o qual a realidade pode ser sempre cindida em dois lados - o lado dos explorados, oprimidos e dominados x o lado dos exploradores, opressores e dominadores - e que isso seria capaz de explicar toda e qualquer situação de injustiça ou iniquidade social, é inventada a esquerda. Não importa se é a mesma esquerda originária, cujas raízes são buscadas na Assembléia da Revolução Francesa ou nas facções do Partido Operário Social-Democrata Russo. A esquerda é inventada toda vez que uma rede social roda esse programa. Por isso se diz que a esquerda inventou a esquerda e, pelo mesmo movimento, a direita (sem a qual se desconstitui a ideia de esquerda). Isso só foi possível porque um esquema interpretativo se reproduziu e não um conteúdo específico, um conhecimento sobre as causas da injustiça ou da desigualdade social baseado em ideias sobre a exploração, a opressão e a dominação.

O programa é resiliente e tem autonomia em relação aos fatos e acontecimentos. Não importa muito se as experiências de condução de sociedades por governos, regimes ou Estados dirigidos por atores que se reivindicam de esquerda tenham sido bem sucedidas ou mal sucedidas. A esquerda vai renascer sempre, enquanto tal esquema interpretativo estiver rodando. E com isso renascerá também, por contraposição, uma direita levada, por enantiodromia, a adotar um esquema interpretativo semelhante. 

As narrativas apenas descreverão, para cada pólo da contraposição, as razões a posteriori (e legitimatórias) da divisão. Assim, a esquerda dirá, sobre si mesma, que está preocupada com a igualdade e com os direitos coletivos e que a direita está preocupada com a liberdade de explorar, oprimir e dominar e com a conservação de um status quo que permite que alguns tenham mais direitos do que outros. E a direita retrucará que a liberdade de iniciativa dos indivíduos é a condição fundamental para a emancipação de todos et coetera. Ao fazer isso, a direita já caiu na armadilha da esquerda. Ao tentar contrapor sua narrativa à narrativa da esquerda, a direita já aceitou que compõe um pólo de um bipolo; ou seja, já está usando o mesmo esquema interpretativo da esquerda e já está admitindo a divisão do mundo em lados como método válido de interpretação. 

A esquerda jamais pode ser desconstituída pela direita. Se houver direita, haverá esquerda. 

As pessoas que são conservadoras porque querem preservar ou manter culturas particulares, são apenas conservadoras, não são de direita. Mas toda cultura é conservadora - ou seja, tem que conservar parâmetros de adaptação e padrões de organização ou, em outras palavras, trajetórias de fluxos e modos de fluição - do contrário não subsistiria (ou não se prorrogaria o ambiente em que se realiza tal cultura). Assim, temos conservadores na chamada esquerda e na chamada direita.

A esquerda é conservadora no que tange à manutenção de padrões de organização (hierárquicos) e de modos de regulação (autocráticos): sempre deve haver quem manda e quem obedece, quem dirige e quem é dirigido, quem lidera e quem é liderado e os dilemas da ação coletiva, quando não resolvidos pelo comando centralizado, devem ser regulados por procedimentos que produzem artificialmente escassez (como a votação e a construção administrada de consenso) aumentando a verticalização do ambiente social ou a centralização da rede. Ora, não há nada mais conservador do que isso. E, no entanto, a narrativa da esquerda descreve tal comportamento como revolucionário, pois a disciplina e a obediência seriam atitudes necessárias para a vitória contra a direita, para dar coesão e operacionalidade a um contingente de combatentes na guerra do bem (a esquerda) contra o mal (a direita). Com isso a narrativa da esquerda ressignifica o que é reacionário como revolucionário. Se a esquerda não fosse conservadora nesses temas não existiria como tal.

O mesmo se pode dizer da direita, quando reproduz tal esquema; ou melhor, quando se deixa constituir como tal (como direita em contraposição à esquerda). As pessoas não percebem isso porque estão presas aos conteúdos de suas narrativas. Mas, como vimos, o conteúdo pouco importa. O que importa de fato é o esquema de interpretação, o programa, ou melhor, a programação.

Essa programação, entretanto, depende da configuração do ambiente, da sua estrutura e da sua dinâmica, do corpo e do seu metabolismo. Ela está no firmware da rede. Por isso que, do ponto de vista das redes e da democracia, esquerda e direita são a mesma coisa na medida em que adotam padrões de organização hierárquicos e modos de regulação autocráticos. É é também por isso que, ainda que queiram fazer discursos diferentes (em geral opostos), ambas replicam, com seu comportamento, a mesma cultura conservadora característica da civilização patriarcal em que vivemos.

Impregnadas dessa cultura patriarcal (e do seu emocionar próprio) as pessoas - tanto de esquerda quanto de direita - acham que o mundo social só pode ser interpretado por meio de um conjunto de crenças básicas de referência, que tomam por verdades evidentes por si mesmas, axiomas que não carecem de corroboração. Exemplos dessas crenças são as de que: 

# O ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo

# As pessoas sempre fazem escolhas tentando maximizar a satisfação de seus próprios interesses materiais (ao fim e ao cabo egotistas)

# Sem líderes destacados não é possível mobilizar e organizar a ação coletiva

# Nada pode funcionar sem um mínimo de hierarquia.

Os parâmetros básicos são esses (expostos acima). Vejam que tanto a esquerda quanto a direita acreditam nessas sentenças. As narrativas, depois, vão divergir. Assim a esquerda acreditará (entre muitas outras coisas, apenas para dar alguns exemplos) que:

=> A superestrutura da sociedade (a política, a cultura etc.) é determinada em última instância pela sua infraestrutura econômica.

=> Existem classes sociais (grupos sociais estáveis relativamente homogêneos) cujos interesses distintivos são formados em razão de sua posição no processo de produção, na divisão social do trabalho ou no processo de acumulação ampliada do capital e que determinam (que tais classes travem) uma luta permanente entre si.

=> A luta de classes é o motor da história.

=> Existe uma História (assim mesmo, com H maiúsculo) e ela tem leis (que podem ser conhecidas por quem tem a teoria e o método corretos de interpretação da realidade).

=> O Estado - quando nas mãos certas, quer dizer, das vanguardas que têm o método correto de interpretação da História - é o grande agente transformador da sociedade e a ele compete educar as massas para produzir o Homem Novo e transitar para uma sociedade sem classes (num reino da liberdade e da abundância).

=> Quem não defende que o Estado tenha tal papel é liberal, liberal-conservador ou neoliberal.

=> Não pode haver liberdade sem igualdade (e, portanto, sem que o Estado tenha sido posto a serviço de conquistar cidadania plena e universal, a liberdade não passa de liberdade dos mais iguais de explorar, oprimir e dominar os menos iguais).

É claro que tudo isso remete novamente à bipolarização originária que constitui a esquerda, pois:

[ ] Quem confere mais importância à liberdade do que a igualdade é liberal (liberal-conservador ou de direita).

[ ] Quem não é de esquerda é de direita (ou pode ser utilizado como inocente útil pela direita); ou, quem não é socialista é neoliberal (ou serve de algum modo aos objetivos do capitalismo).

Fecha-se assim o círculo ou completa-se a rotina em looping que faz parte do kernel do sistema operacional onde pode rodar tal programa.

Enquanto tal programa estiver rodando (não propriamente na cabeça, mas na rede: no emaranhado de relacionamentos em que uma pessoa está imersa) é quase inútil tentar convencer essa pessoa a adotar outros pontos de vista. Se não houver mudança nos fluxos interativos dentro desse emaranhado, nada feito.

Em geral movimentos capazes de operar essas mudanças dependem da eclosão de fenômenos interativos da própria rede. Por exemplo, um único swarming é capaz de operar mais mudanças do que um milhão de tentativas discursivas de mostrar que tal ou qual posição é mais justa ou melhor. Qualquer discurso será anulado por um contra-discurso, o que significa que o programa se recupera quando a contraposição bipolar que o constitui se instala. Assim, uma pessoa que esteve presente em Woodstock, ou na queda do Muro de Berlin, ou no Largo da Batata em 17 de junho de 2013, fica mais vulnerável à interação fortuita (e, portanto, à mudança) do que participando de inumeráveis debates de salão ou conversas no Facebook

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