quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Jean Rouch - [Material Textual para debate em CineClube]

 



---------- Forwarded message ---------
De: Caetano Correa 
Date: qui., 11 de nov. de 2021 às 19:48
Subject: 2021-11-11 - [Jean Rouch] - (material textual) - [último CineClube LCD-UERJ]


Jean Rouch
- [Material Textual] -
(2021-11 --- último CineClube LCD-UERJ)


[16:28, 08/11/2021] JCDC:
EU UM NEGRO (Moi, Un Noir) - Jean Rouch
Também disponível aqui:
[16:46, 08/11/2021] JCDC:
O Cinema de Jean Rouch

Gênero: Documentário 
País de Origem: França
Idioma: Francês 
Duração: 10 minutos ~ 1h 20 minutos
Tamanho: 27 Mb ~ 700 Mb

Sinopse: Inspirado por Dziga Vertov (1896-1954) e Robert Flaherty (1884-1951), especialmente em Nanook (1922), e em colaboração de Damouré Zika, Lam Ibrahima Dia e Tallou Mouzourane, o realizador utiliza o recurso do cinema-direto de modo próprio, preferindo considerá-lo um cinema-verdade: a matéria fílmica não seria um simples objeto a ser registrado. Os seus filmes deixam ver o compromisso com o contexto e as condições do ambiente, a fluência cotidiana da fala, dos gestos e do comportamento, além da relação estabelecida entre os que filmam e aqueles que são filmados, que passam a contribuir com a função crítica pós-montagem, composição dos argumentos e roteiros, num processo de produção de caráter marcadamente dialógico. Sua proposta é explicitar a relação entre o cineasta e as pessoas filmadas (sujeitos da mise-en-scène), defendendo que o etnólogo-cineasta também deva ser por elas afetado. Tais balizas levam à proposição de uma linguagem cinematográfica na qual o roteiro prévio deixa de ser determinante, o que irá ecoar nos cineastas da nouvelle vague, assim como parte do método, no Brasil, através de Eduardo Coutinho.  

Trabalhos disponíveis na pasta:

la circoncision (1949);
initiation à la danse des possédés (1949);
les magiciens de wanzerbé (1949);
les maîtres fous (1955);
mammy water (1955);
moi, un noir (1958);
funerailles au ghana (1960);
jaguar (1967);
les tambours d'avant (1971);
makwayela (1977)

download direto: 




Jean Rouch (1917-2004), matemático e engenheiro de formação, atuou entre a antropologia e o cinema, campos, para ele, inseparáveis. Sua obra e pensamento encontram repercussão nos dois domínios, sendo que sua extensa produção de filmes etnográficos - mais de 120 filmes, a maioria produzida na África ocidental -  se sobrepõe, do ponto de vista dos rebatimentos posteriores, aos seus escritos.

Seu primeiro contato com a África data de 1941, quando esteve no Níger como engenheiro, interessando-se pela etnografia e pelo uso da imagem. De volta à França inicia um doutorado em antropologia sob a orientação de Marcel Griaule (1898-1956), que culmina com as teses “Contribution à l’histoire des Songhay” (tese complementar, 1953) e “La religion et la magie Songhay”, (tese principal, 1960).  Ligado ao CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) em 1947, realiza pesquisas sistemáticas sobre os Songhay, importante grupo étnico do Mali e do Níger, produzindo imagens que se converteriam em seu primeiro filme Au pays des mages noirs (1947), com a colaboração do parceiro Damouré Zika (1923-2009). Paralelamente à pesquisas etnográficas, atua no campo cinematográfico, criando, em 1952, o Comité du Film Ethnographique, no Musée de l’Homme, em Paris, ao lado de Henri Langlois (1914-1977), Enrico Fulchignoni (1913-1988), Marcel Griaule (1898-1956), André Leroi-Gourhan (1911-1986) e Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Sem abandonar as pesquisas africanistas, dedica-se à questão da imigração e da colonização na região da Costa do Ouro (atual Gana) e, em 1957, volta-se para a Costa do Marfim, interessado em problemas como migrações e profetismo. Entre as décadas de 1960 e 1970, diversifica suas investigações, escrevendo artigos e realizando filmes a respeito de temas como religião, possessão e ritual; caça e pesca; arqueologia; etnomusicologia e dança. Produziu ainda reflexões sobre narrativas rituais e tradições orais; mitologia; ritos funerários e conhecimentos medicinais, sem esquecer as  técnicas de gravação e cinematográficas, que praticou e sobre as quais pensou.

No campo da produção fílmica, inspirado por Dziga Vertov (1896-1954) utiliza o recurso do cinema-direto de modo próprio, preferindo considerá-lo um cinema-verdade, recusando tratar a matéria fílmica como simples objeto. Sua proposta é explicitar a relação entre o cineasta e as pessoas filmadas (sujeitos da mise-en-scène), defendendo que o etnólogo-cineasta seja por elas afetado, em uma experiência que denominou cine-transe. Os seus filmes deixam ver o compromisso com o contexto e com as condições do ambiente; a fluência cotidiana da fala, dos gestos e do comportamento, além da relação estabelecida, através do olhar e da escuta, entre os corpos que filmam e aqueles que são filmados. Tais balizas levam à proposição de uma linguagem cinematográfica na qual o roteiro prévio deixa de ser determinante, o que irá ecoar nos cineastas da chamada nouvelle vague francesa, dos anos 1960. Ao seu modo de filmar relacional e pouco roteirizado - refletido e aprimorado ao longo de sua vida, em função da crítica pós-montagem, da formação da equipe técnica, da atuação partilhada com as personagens e da composição dos argumentos e roteiros - soma-se um processo de produção de caráter marcadamente dialógico. Influenciado por Robert Flaherty (1884-1951), especialmente por Nanook of the North (1922), Rouch decide compartilhar as imagens filmadas com seus interlocutores, experimentando novas formas de colaboração. Em Bataille sur le grand fleuve (1951), por exemplo, assume o papel de um etnólogo-cineasta-narrador; os nativos filmados, por sua vez, opinam a respeito das filmagens já editadas e de seus resultados. Inspirado pelas possibilidades de ampliação desses diálogos, o autor desenvolve a proposta de uma antropologia compartilhada, amparada na transformação radical das relações entre antropólogo e nativos, filmadores e filmados, que as equipes formadas em conjunto com os africanos-interlocutores (tanto para a escolha dos temas quanto para a realização das imagens) evidenciam. Não tardou para que Rouch encontrasse como parceiros os nigerenses Damouré Zika (1923-2009), Lam Ibrahima Dia e Tallou Mouzourane. Juntos, realizam Jaguar (1954-67), Moi, un Noir (1957-58), Petit à Petit 1968-70) e Cocorico! Monsieur Poulet (1974), submetendo a experiência cinematográfica e etnográfica a um processo criativo, frequentemente designado por etnoficção. Tais experimentos permitem afirmar que a obra de Jean Rouch não é apenas um conjunto de olhares sobre diversos grupos africanos, incluindo também olhares africanos sobre si mesmos, uns sobre os outros e sobre a sociedade ocidental.

No contexto dos movimentos de maio de 1968, com a colaboração Enrico Fulchignoni (1913-1988), então diretor da Cinemateca Francesa, Claudine de France e Colette Piault, Rouch cria, no Departamento de Ciências Sociais, o que viria a ser o curso de cinema etnográfico e documentário da Universidade Paris X – Nanterre, hoje Paris Ouest. Essa formação, que se torna modelar, tem como objetivo central oferecer ao etnógrafo o recurso do cinema como método de pesquisa e reflexão antropológica. Em 1977, Rouch é convidado a organizar, com Jacques d’Arthuys (1894-1943), uma oficina de cinema para alunos do Instituto Nacional de Cinema de Moçambique, no interior da qual realizam o curta-metragem Makwayela (1977). A partir dessa experiência são criados os Ateliers Varan (1981), com a finalidade de formar cineastas em países sem uma produção cinematográfica consolidada, levando os recursos a grupos étnicos e sociais com pouco acesso a técnicas e meios de produção do cinema. São incontáveis os prêmios e títulos recebidos por Rouch, isso sem esquecer os desdobramentos de sua extensa obra cinematográfica que termina por infletir nas formas de fazer etnografia, sinal da conexão íntima entre cinema e antropologia, em todo o seu percurso.

ESTRELA DA COSTA, Ana Carolina. 2016. "Jean Rouch".
In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia.
Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/autor/jean-rouch> ISSN: 2676-038X (online)



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https://www.olhardecinema.com.br/derivas-da-ficcao-notas-sobre-o-cinema-de-jean-rouch/

DERIVAS DA FICÇÃO: NOTAS SOBRE O CINEMA DE JEAN ROUCH
Jean-André Fieschi*

 [Este texto consiste em um excerto (págs. 28 a 31) do artigo homônimo publicado no catálogo “Jean Rouch: Retrospectivas e Colóquios no Brasil” (2009) vinculado à mostra realizada pela produtora Balafon em 2009/2010. Agradecemos a Mateus Araújo Silva, tradutor do original em francês, além de organizador da mostra e do catálogo, por nos autorizar a publicação aqui. O artigo completo está disponível em: www.fafich.ufmg.br/devires/index.php/Devires/issue/view/12]

Rouch (…) será um dos grandes prospectores do cinema contemporâneo. Ao contrário de uma prática jornalística mistificada, à la Leacock, de pseudo não intervenção, ele trabalhará sobre processos, interações, numa invenção recíproca entre matéria e método, filme e discurso. O mundo nunca se dá tal e qual a inocência de uma película, a virgindade de um olhar. E, aliás, qual mundo? Poderíamos dizer, para simplificar, que o deslocamento do cinema de Rouch se efetua cada vez mais claramente na direção do imaginário. É bem verdade que este já estava inscrito e realizado desde os primeiros filmes sobre ritos. Mas pouco a pouco ele vai ficando diversamente delimitado, desvelado, cada vez mais tributário de um sistema de representação mais mediado que o do simples registro, inscrevendo a parte de fabulação própria a todo sistema de representação (de um indivíduo num grupo étnico, social, ou do próprio grupo), sem esquecer a parte, apagada e central, do observador que a recolhe (filtrando-a, desenvolvendo-a, dando-lhe forma), e dos meios técnicos que a encaminham até seu acabamento espetacular, produto de depósitos sucessivos pertencentes a diversos sistemas (sistema social e cultural em que se efetua sua recepção, sistema cultural e técnico em que se efetua sua transmissão). O cinema de Rouch é esse receptáculo de uma rede particularmente complexa de translações e deslocamentos que nos permite compreender de outro modo, em seus efeitos mais produtivos, a frase de Lévi-Strauss citada há pouco, sobre o exílio assumido do etnólogo: “Ele nunca mais, em parte alguma, se sentirá em casa”. Esta é mesmo a única acepção em que se pode entender a designação de Rouch como cineasta exótico. Exótico, é bem verdade, mas só por seu flanco africano?

Eu, um negro (1957-8) coloca claramente a questão desse descentramento, isto é, a questão do “quem fala?”. O filme que se auto-intitula dessa forma? O autor exibindo ironicamente a diferença de seu estatuto? Um de seus personagens? Seja como for, dessa vez é um monólogo que se dá a ver ou a escutar. Mais precisamente: um tecido de monólogos se unindo em uma única via feita de uma soma de diferenças. Os personagens: reais (eles existem, podemos encontrá-los, em Abidjan por exemplo, Abidjan das lagunas). Desdobrados, também, por trás das figuras míticas que eles mesmos elegeram, como Dorothy Lamour ou, desdobramento de segundo grau fundindo ator, personagem e função, Eddie Constantine / Lemmie Caution / agente federal americano. Ou ainda: Ray Sugar Robinson.

O que Rouch filma então, e em primeiro lugar, não são mais as condutas, ou os sonhos, ou os discursos subjetivos, mas a mistura indissociável que os liga um ao outro. O desejo do cineasta é dedicar-se ao desejo de seus personagens, organizando-o. De segui-los passo a passo, na linhagem, se quisermos, do projeto fundamental neo-realista (zavattiniano), mas rente à palavra deles (ao que ela revela) pelo menos tanto quanto à sua conduta. Encarnando seus fracassos, suas utopias, suas fomes. A guerra da Indochina contada (imitada) por um, os navios designados pelo outro, no porto, quando ele afirma ter viajado em todos os mares e conquistado todas as mulheres, o monólogo do galã na saída da missa, a briga provocada com o italiano: momentos inesquecíveis em que se inscreve o vestígio dos filmes vistos pelos personagens, das histórias em quadrinhos lidas por eles, das narrativas que eles ouviram e que, com uma distância e um fascínio inimitáveis, eles restituem num novo relato, feixe de relatos estratificados alhures e diferentemente, desenvolvendo um espaço lúdico que o cineasta inventa e provoca ao mesmo tempo, e do qual se apropria. Toda distância entre improvisação e premeditação parece aqui abolida, como se (mas o “como se” deve ser fortemente sublinhado), de agora em diante, fosse possível uma transparência entre espaço mental e espaço representado. Ao preço, parece, de uma cumplicidade, de um espírito de clã (entre autor e personagens), ou mesmo de um certo gosto da burla e da mistificação que são signos de uma infância preservada e retomada. Este ponto é capital, tanto pelo que ensina do desejo de Rouch quanto pelo que revela da inflexão rumo à criação coletiva (esses personagens logo se tornarão técnicos tanto quanto atores, quase “profissionais”, seríamos tentados a dizer se o termo não fizesse sorrir nesse contexto). Criação coletiva, improvisação, espontaneidade, cumplicidade: talvez sejam esses os meios privilegiados pelos quais Rouch, de observador de ritos, cruzou a linha para se tornar, a seu modo, criador de ritos.

Eu, um negro é seguramente um ponto de inflexão, no cinema de Rouch e no cinema em geral. Dizendo mais, certamente, sobre Treichville e seus habitantes do que muitas constatações de aparência mais “objetiva”. Dizendo mais, e sobretudo, de modo diferente. Nos Mestres loucos, os próprios membros da seita criavam a mise en scène de seu delírio coletivo em que, vestidos com trajes imaginários de personagens emblemáticos da colonização (o governador, o general, o cabo, o condutor de locomotiva), davam diretamente o espetáculo de um imaginário em ato: uma representação “selvagem” e “regrada”. A partir de Eu, um negro, é toda uma função nova da câmera que se estabelece: não mais simples aparelho de registro, mas agora agente provocador, estimulante, deflagrador de situações, conflitos, itinerários que, sem ela, jamais aconteceriam ou, em todo caso, jamais daquela forma. Não se trata mais de fazer “como se” a câmera não estivesse ali, mas de transformar seu papel afirmando sua presença, sua função, transformando um obstáculo técnico num pretexto para o desvelamento de coisas novas e surpreendentes. Trata-se de criar, pelo ato mesmo de filmar, uma concepção completamente nova do acontecimento fílmico. Diante da câmera de Rouch, que os precede ou os segue, os habitantes de Treichville interpretam primeiro o que eles mesmos escolhem mostrar de si mesmos. Depois, vendo-se na tela, comentam sua atuação, a duplicam ou a deslocam. Um objeto cultural complexo nasce assim dessas operações sucessivas, pelas quais se abre uma via praticamente inexplorada, um cinema da aventura, tanto a do material quanto a de sua descoberta.

(Tradução: Mateus Araújo Silva)

Sobre o autor: Jean-André Fieschi (1942-2009) foi cineasta, crítico e professor de origem francesa.

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O INSUSTENTÁVEL OLHAR DO FILME ETNOGRÁFICO
Mahomed Bamba**

[Este texto consiste em um excerto (págs. 99 a 101) do artigo de título “Jean Rouch: cineasta africanista?” publicado na revista DEVIRES – Cinema e Humanidades, v.6, n.1, p. 92, de jan/jun 2009. Agradecemos aos editores da revista por nos autorizarem a publicação aqui, em especial a Mateus Araújo Silva enquanto organizador do dossiê temático Jean Rouch. Este artigo completo assim como os dois números da revista dedicados ao cinema de Rouch estão disponíveis em: www.fafich.ufmg.br/devires/index.php/Devires/issue/view/12]

O que filmes como Kenya (1961), de Richard Leacock, The boy Kumasena (1952), de Sean Graham, Afrique 50 (1950), de Roger Vautrier, e a obra de Jean Rouch têm em comum? Todos têm a marca indelével da estética do cinema etnográfico. Ilustram, cada qual à sua maneira, os três eixos da problemática da alteridade, tal como definida por Todorov (A conquista da América, 2003) sobre a relação de Las Casas com os índios. São filmes feitos por cineastas ocidentais, com paixão e, às vezes, com um senso de engajamento político, sobre um continente e seus costumes. São filmes sobre a descolonização. No entanto, todos carregam o problema da condescendência no olhar. Esse sentimento é reforçado ainda mais quando se pensa que trazem representações pitorescas de lugares onde o direito de olhar para sua própria realidade continuava sendo, para os nativos, um objeto de conquista. Sem contar o fato de que muitos desses filmes eram obras encomendadas. As mesmas críticas feitas ao africanismo, na sua versão antropológica, encontram eco nas dúvidas e na perplexidade que despertam os filmes etnográficos em que a prepotência de entender melhor os africanos se mistura com a ambição de explicar a África a um público ocidental. Nessa lógica, o africanismo de qualquer etnólogo-cineasta passa a ser assimilado à busca de exotismo que subjaz à dominação colonial. Embora os documentários de Jean Rouch sobre a África dos anos 50-60 não compartilhassem a lógica e a ideologia do discurso colonial, a reminiscência do contexto histórico do qual esses filmes emanam continua problematizando sua leitura.

A partir daqui convém se perguntar se as imagens produzidas por Jean Rouch sobre a África expressam uma vontade de superação ou um gesto de prolongamento do velho eurocentrismo na representação do Outro. Até que ponto se pode acusar seus filmes etnográficos de terem confiscado aos africanos a capacidade de se reinventarem e, consequentemente, de terem anulado a possibilidade da auto-representação? Diferentemente de outros cineastas-etnólogos, Jean Rouch conseguiu, ao seu modo, escapar dessa armadilha. Pelo menos, conseguiu minorar as suspeições colonialistas por opções estilísticas que revolucionaram e consagraram toda a sua arte do documentário etnográfico. Como se sabe, Rouch chega em Níger em 1940 – como uma espécie de Lawrence da Arábia – como simples funcionário da administração colonial. Mas, rapidamente, ele troca a sua função de engenheiro pelo papel de etnólogo atento aos hábitos culturais e sociais locais. Realiza seus primeiros documentários que se distinguem nitidamente da linha do cinema colonial dominante naquele período. Mesmo assim, são filmes etnográficos, e como tais levantam a incontornável questão das distorções e conotações políticas ligadas àquilo que Robert Stam chama de “fardo da representação” do Outro, do diferente (STAM; SHOAHT, 2006). Mas, vista de outro ângulo, a filmografia do etnólogo francês permite considerações interessantes sobre o que é rotulado hoje como “controle das minorias sobre a representação”. Jean Rouch levou até as últimas consequências a estética do cinema direto nas suas investigações etnográficas sobre as sociedades francesas e africanas. Se ele pode ser legitimamente considerado como pioneiro no recurso a dispositivos de filmagem e de narrativa que libertam o Outro do peso da representação, é porque em muitos de seus filmes observa-se um protagonismo ativo do ser africano. A aparente espontaneidade, fingida ou natural, parece devolver aos atores negros uma certa expressão da subjetividade que rompe com a sua passividade nos demais filmes coloniais. Jaguar e Eu, um negro são construídos como percursos. No primeiro filme citado, há uma viagem, uma travessia de um país ao outro, a transição de uma cultura africana à outra (a do Níger e da Costa do Ouro) protagonizada por três personagens. No segundo filme, trata-se de uma deambulação fortemente marcada pela subjetividade de um único indivíduo no interior de uma mesma cidade. Nesses deslocamentos, é como se o sujeito africano estivesse protagonizando sua história. É como se os protagonistas levassem o filme aonde bem quisessem. A câmera participativa se contenta em segui-los nas suas trajetórias. Em Jaguar, o êxodo se transforma rapidamente num grande pretexto para os três personagens lançarem um olhar etnográfico sobre a realidade circundante, sobre os povos, as mulheres e hábitos culturais que encontram na sua peregrinação para a Costa do Ouro. Antes dos três personagens se transformarem em objeto de curiosidade para uma plateia europeia, Jean Rouch toma a liberdade de situá-los numa inédita relação de alteridade com outros hábitos culturais que eles vão encontrando no caminho. Entre estranhamento e fascínio, eles produzem discursos, fazem comentários de cunho valorativo. Além das fortunas materiais que trazem desse eldorado africano, o que parece importar são as narrativas, as histórias que terão de contar aos seus conterrâneos. Com a opção de deixar os seus personagens se expressarem livremente sobre as imagens registradas, é como se Rouch quisesse mostrar que os negros africanos não são todos “iguais” (como ainda se pensa na Europa).

Se muitos definem o cinema de Rouch como uma “etnoficção”, é por causa da mistura de dois tipos de subjetividade na realização de seus documentários: a do cineasta (com controle sobre aquilo que filma) e a do sujeito filmado (livre, até certo ponto, para interagir na representação). Essa restituição do estatuto de sujeito pleno ao homem africano foi objeto de várias teses e comentários. Embora essa opção estilística e ética já estivesse presente nos trabalhos de outros documentaristas, nos documentários de Rouch o protagonismo do homem negro filmado pelo homem branco ganha uma nova ressonância e relevância. Cria uma cisão entre filmes feitos sobre a África (em que os homens fazem apenas parte do ambiente) e filmes “feitos na África”, nos quais se conta com a participação ativa e consciente dos próprios africanos. Para Guy Gauthier, não há dúvida de que a técnica do cinema direto (defendida por Rouch) trouxe, na maioria dos documentários, “um aprofundamento do momento vivenciado, uma possibilidade de transferir a palavra aos atores da história, que não são os atores do filme” (GAUTHIER, 1995: 145). O recurso à voz, a do próprio documentarista e a dos atores da história, acabou sendo uma marca registrada nos filmes de Rouch sobre a África. A voz do homem africano ecoa atrás e através das imagens registradas pelo homem branco a ponto de ser uma narrativa em paralelo. Se os documentários de Jean Rouch podem ser classificados e comparados como aquilo que Gauthier chama de “filmes-de-vida”, é por causa da “qualidade de escuta de seus personagens-vetores, cuja fala é rica e prenhe de experiência”.

**Sobre o autor: Natural de Costa do Marfim, Mahomed Bamba (1966-2015) foi professor na Faculdade de Comunicação (FACOM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisador de cinema e audiovisual com foco nos cinemas africanos e da diáspora.

REFERÊNCIAS
GAUTHIER, Guy. Le Documentaire: un autre cinéma. Paris: Armand Colin, 1995.
STAM, Robert; SHOHAT, Ella. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 


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O legado realista de Jean Rouch
17/06/2010
Maria Betânia Monteiro


Se os irmãos Lumière foram considerados os criadores do cinema, o francês Jean Rouch foi quem deu à luz aos cineastas do mundo inteiro, ensinando como registrar a realidade através de um método de documentação original, desenvolvido ao longo de sua vida. O trabalho de Rouch era tão consistente e inusitado, que sua visita ao Brasil, na década de 1960, foi motivo suficiente para influenciar a obra de Glauber Rocha, Cacá Diegues e outros nomes que figuraram no chamado Cinema Novo. O método de documentação de Jean tornou-se um divisor de águas para o cinema e para a antropologia. Jean Rouch morreu em 2004 e deixou pouco mais de cem documentários, que no Brasil são praticamente inéditos. Apenas oito deles podem ser encontrados no país. E é justamente pela dificuldade de acesso aos filmes, que a Mostra Jean Rouch vem criando uma enorme expectativa nas cidades por onde passa. A mostra tem a finalidade de divulgar o trabalho do “antropólogo do cinema” a partir de uma retrospectiva de curtas e longas do documentarista francês.

“A pirâmide humana” é psicodrama experimentalDepois de ir a Belém, Salvador, Porto Alegre e João Pessoa é a vez de Natal receber nesta segunda-feira, no auditório do Sebrae, os 37 vídeos que compõe a mostra. Os temas dos filmes geralmente são polêmicos e revelam por exemplo, os rituais de circuncisão e a mitologia em países da África.

Patrocinada pelo Fundo Nacional de Cultura e realizada pela Balafon, a mostra é parceira local do Núcleo de Antropologia Visual – Naves (UFRN), Cineclube Natal e Zoon. A curadoria ficou por conta do doutor em filosofia pela Universidade de Paris I (Sorbonne) e UFRMG  Mateus Araújo Silva, que é um estudioso das cinematografias de Jean Rouch e Glauber Rocha.

Segundo Mateus, a seleção foi feita atendendo o aspecto estético e o conceitual. “Procurarei por um lado, expor as obras que representam as diversas facetas de Jean Rouch, e por outro, as obras mais bonitas. Mas muita coisa boa ficou de fora”, disse Mateus de Minas Gerais, em entrevista por telefone ao VIVER.

O curador estará em Natal nesta segunda-feira para participar da abertura do evento às 20h15, no auditório do Sebrae. Na ocasião ele vai falar sobre as interseções nas obras de Jean Rouch e Glauber Rocha. Antes da palestra, a partir das 15h serão exibidos cinco filmes, que compõe o Programa número um, chamado “Tateios iniciais e invenção de um estilo na África Negra”. Às 19h entra em cena uma sessão especial dos filmes “Tourou et Biti – les tambours d’avant” (1971) e  “Le Dama d’Ambara – enchanter La mort” (1974). Os 37 filmes foram divididos em 17 programas e terão exibição única, em três sessões: 15h, 17h e 20h. A mostra fica em cartaz no Sebrae até o sábado (26). A programação completa está no http://www.balafon.org.br/.

Segundo a doutora em antropologia, Lisabete Coradini, coordenadora do Navis, o cineasta e antropólogo francês Jean Rouch apresentou ao ocidente, um novo método de registro da realidade. Ao contrário do que era feito na Europa desde a década de 1940, quando a fotografia e o vídeo construíam uma imagem distorcida das manifestações sociais, Jean Rouch foi capaz de subverter o olhar colonialista direcionado aos grupos étnicos africanos e dar a eles a possibilidade de versar sobre suas próprias práticas.

Antes de Jean Rouch, quando um antropólogo saia para conhecer outra cultura, incluía em sua bagagem a máquina fotográfica.  Segundo Lisabete, a máquina era usada sem que antes o pesquisador questionasse sobre a sua utilização.

Desta forma, as fotos que eram feitas se transformavam em formas documentais da passagem do antropólogo por determinadas comunidades. “Os pesquisadores se valiam desses registros como prova de terem conhecido um ‘povo estranho’. Tratavam-se apenas de documentos ilustrativos”, disse a antropóloga.

Diferente deles, Jean Rouch se relacionava com o sujeito de sua pesquisa e através dos filmes, promovia um diálogo. De posse de informações científicas no campo da antropologia, já que era doutor no assunto, ele ia às comunidades e chegando lá ouvia o que os próprios habitantes falavam a respeito de sua cultura.

A partir deste relato, ele construía os seus documentários e depois de prontos exibia para o grupo pesquisado. Nesta hora era promovido um debate, que poderia inclusive interferir na finalização do filme.

Lisabete relata que Jean Rouch certa vez filmou a caçada a um hipopótamo e na edição, acrescentou uma trilha sonora. Quando o pesquisador exibiu o filme aos personagens reais da caçada, eles lembraram a Rouch que aquela música não caberia ali, já que uma caçada precisa ser silenciosa. Lisabete cita uma frase de Rouch, que define bem o seu trabalho: “eu faço os filmes primeiro para os africanos, segundo para os meus amigos e terceiro para a academia”. A partir dos filmes de Rouch, foi construído um novo método de trabalho, galgado na criação, divulgação e negociação.

Bate-papo

Mateus Araújo » curador da Mostra Jean Rouch


Morando na França há vários anos, Mateus Araújo está no Brasil para realização da Mostra Jean Rouch. Ele falou ao Viver sobre a importância do evento no Brasil.

No Brasil já foram exibidos filmes de Jean Rouch?


Nesta amplitude, nunca. Trata-se de uma chance rara.

Quem perder esta mostra vai demorar a ter acesso aos filmes de Rouch.

Quer dizer que depois da mostra, não há a possibilidade de rever estes filmes?


A maioria dos filmes nunca foi projetada no Brasil. Aqui encontramos cerca de oito filmes e ainda sim, são de difícil acesso.

Por que é importante prestigiar a exibição?


É importante por se tratar da obra do cineasta etnográfico mais importante da história.



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Página sobre a Mostra e Colóquios realizados em 2009 no site da Balafon:







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Clipping com reportagens e textos sobre a mostra:


2009-JeanRouch-Balafon-Jornal_Globo_CAPA-2ndC.jpg




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2009-JeanRouch-Balafon-Jornal_Globo_Consuelo-Lins.jpg



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2009-JeanRouch-Balafon-Jornal_Globo_Moreira-Salles.jpg






Jean Rouch gostava de citar Henri Langlois (1914-1977) – um dos fundadores da Cinemateca francesa –, para quem “cineastas nunca morrem, pois toda vez que seus filmes são projetados, eles revivem”.

Difícil acreditar nisso. O próprio Rouch foi vítima de um prosaico desastre de automóvel, no Niger, em 2004, aos 86 anos. Cineasta e etnógrafo, realizara mais de cem filmes, em sessenta anos de carreira iniciada em 1943. O emblemático título do seu último filme, lançado em 2002, é “O sonho mais forte que a morte”.

Em 2006, quase três anos depois de ele ter morrido, os Dogon da vila de Tyogou, no Mali, realizaram uma cerimônia fúnebre para Rouch, honra raramente prestada a forasteiros por esse povo da África ocidental. Para o evento, com duração de três dias, um manequim empalhado representando Rouch, vestido como era hábito dele – camisa azul e calça cáqui – foi fincado no terraço em cima de uma casa, enquanto embaixo, na praça, uma vaca era sacrificada e dançarinos atuavam usando máscaras kanaga. O manequim foi levado em um caixão para ser enterrado na encosta das escarpas de Bandiagara e a adorada câmera Aaton de Rouch espatifada, dando fim simbólico à vida produtiva dele.

Antes de morrer, porém, assegurando de certa forma sua permanência nas escarpas de Bandiagara, Rouch providenciou para que fosse filmado o próximo ciclo do Sigui – ato coletivo em desafio à mortalidade, com duração de 7 anos, que ocorre a cada 60 anos,  e que voltará a transcorrer entre 2027 e 2033. O próprio Rouch, que filmou as cerimônias de 1967 a 1973,  acreditava que o cinema etnográfico é um empreendimento da mesma natureza do Sigui, um desafio à mortalidade. Assim, indicou seus sucessores e, num texto de 1997, escreveu: “será só em 2027 que ‘nós’ poderemos escrever um verdadeiro comentário sobre esse rito fundamental!”

Um documentário sobre a cerimônia fúnebre dedicada a Jean Rouch foi realizado por Bernd Mosblech: “Eu sou um africano branco: adeus a Jean Rouch”, produzido pela SWR/Arte, e lançado em 2008, na Alemanha.

Essa referência e a descrição da cerimônia fúnebre, estão no livro “The Adventure of the Real – Jean Rouch and the Craft of Ethnographic Cinema” (“A Aventura do real – Jean Rouch e a tarefa do cinema etnográfico”), de Paul Henley, editado em 2009 pela The Chicago University Press. De leitura obrigatória para os interessados no assunto, é uma lição para os franceses que, até o momento, não produziram nada comparável. Muito bem pesquisado e escrito, é um marco definitivo na bibliografia rouchiana.

Além de outras preciosidades, o Sigui filmado por Jean Rouch nas escarpas de Bandiagara, no Mali, de 1967 a 1973, pode ser visto na versão sintética, com 120’ de duração, incluida na caixa de quatro DVDs, lançada este ano, na França, pela Éditions Montparnasse, com o título geral de “Jean Rouch Une Aventure Africaine”. A coletânea inclui também um filme de Luc de Heusch, antropólogo e cineasta, e 3 filmes raros de Marcel Griaule, controvertido mestre de Rouch.

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Duas publicações recentes, editadas na França, oferecem novos acessos à obra de Jean Rouch.

Em 2009, Jean-Paul Colleyn – documentarista e antropólogo, especialista no Mali –, além de escrever a introdução, “Clés pour Jean Rouch” (“Chaves para Jean Rouch”), reuniu textos do próprio Rouch, em edição do “Cahiers du Cinéma” e do Institut national de l’audiovisuel – INA, com o título “Jean Rouch Cinéma et Anthropologie” ( “Jean Rouch Cinema e Antropologia” ). Dividido em três partes, a primeira é biográfica, seguida da que trata de cinema e da última sobre antropologia. Como pósfácio, reproduz o prefácio de Marc Henri Piault, “Regards croisés, regards partagés” ( “Olhares cruzados, olhares partilhados” ), publicado originalmente no livro do próprio Jean Rouch, “Les Hommes et les dieux du fleuve, Essai ethnographique sur les populations Songhay du Moyen Niger, 1941-1983” (“Os Homens e os deuses do rio, Ensaio de etnografia sobre os povos Songhay do médio Niger, 1941-1983”) 1941-1983, Paris: Artcom, 1997.

Esses textos, alguns dificeis de encontrar, formam excelente introdução ao pensamento de Rouch no período que vai de 1968 a 1995.

Em abril deste ano, o Arquivo francês de filmes do Centro Nacional de Cinematografia – CNC editou um catálogo fartamente ilustrado, inventariando 157 filmes de Rouch identificados até o momento, “Découvrir les films de Jean Rouch – collecte d’archives, inventaire et partage” (“Descobrir os filmes de Jean Rouch – coleta de arquivos, inventário e partilha”).

Apresentado como “um guia que dará chaves ao público para se apropriar dessa obra proteiforme, ainda em grande parte desconhecida”, reúne textos de vários autores, descrevendo diferentes aspectos do trabalho ainda em curso, que tem em vista a “salvaguarda, restauração e difusão do imenso trabalho de Rouch”, nas palavras de sua colaboradora François Foucault.

No Brasil, depois da publicação do valioso livro de Marco Antonio Gonçalves, em 2008, “O real imaginado Etnografia, Cinema e Surrealismo em Jean Rouch” ( Rio: Topbooks ), surge o catálogo da retrospectiva e colóquio dedicados a Jean Rouch, em 2009, editado pela Associação Balafon, de Belo Horizonte. Embora tenha ficado pronto com atraso e, até onde consegui saber, não esteja à venda, é uma contribuição significativa aos estudos rouchianos, tanto pela qualidade dos textos, alguns raros em qualquer língua, quanto pelas ilustrações.

Concebidos e com curadoria de Mateus Araújo Silva e Andrea Paganini, a retrospectiva e o colóquio, realizados no Rio, São Paulo, Belo Horizonte e Brasília, foram oportunidade única de conhecer parte expressiva da obra de Jean Rouch, tendo sido exibidos 76 dos seus filmes, e 14 relacionados a ele.

A morte do crítico Jean-André Fieschi, vítima de um infarto quando iniciava sua intervenção no colóquio em São Paulo, fez pairar sobre o evento a sombra da nossa transitoriedade. Além de ter vindo ao encontro do ceticismo daqueles que duvidam da perenidade dos cineastas, contrariando a sempre citada frase de Henri Langlois, que Jean Rouch gostava de repetir: “cineastas nunca morrem etc.”


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terça-feira, 8 de junho de 2021

Cultura, CulturaS - Gilberto Gil

 


  

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Diversidade

Gilberto Gil

I

A cultura não é uma estrutura definida e cristalizada, mas um processo, um fluxo contraditório. A cultura é sinônimo de transformação, de invenção, de fazer e refazer, de ação e reação, uma teia contínua de significados e significantes que nos envolve a todos, e que será sempre maior do que nós, por sua extensão e sua capacidade de nos abrigar, surpreender, iluminar e — por que não? — identificar. 

As culturas são como rios, como disse o antropólogo Marshall Sahlins, pois não se pode mergulhar duas vezes nas mesmas águas, porque elas estão sempre mudando. Então, culturas se criam, alteram-se e se resignificam, ou seja, se reinventam. E quanto maior for o grau de partilha, mais democrática, criativa e tolerante será nossa sociedade. E assim se afirma a noção de diversidade.

Neste sentido, é normal que, num dado momento do seu desenvolvimento, uma sociedade seja levada a abandonar ou a modificar esta ou aquela forma tradicional de sua cultura, à medida em que esta não responde mais às aspirações que deveria satisfazer. Não fazer esta modificação seria levar a cultura à esclerose e ao imobilismo e, portanto, condená-la a uma inevitável decadência. O que se designa pelo termo de identidade cultural é, assim, o produto de um incessante vai e vem entre dois pólos: a resistência e a adaptação. 

E essa diversidade de idéias, pontos de vistas, estilos de abordagem e formas de argumentação, é que vai plasmando a nova ou as novas identidades que a vida concreta propõe, ela mesma, em seu cotidiano. É o que se passa aqui nestes encontros, a afirmação da diversidade intelectual que necessariamente deve haver para que uma esfera pública aconteça no dia de hoje. O maior resultado é tornar visível e audível uma série de vozes e discursos que não apenas os chancelados pelos cursos universitários ou pelos cadernos culturais da mídia, mas que podem trazer uma grande vitalidade a esses meios que se tornaram, por inúmeras razões, lugares especializados ou restritivos. 

O que temos aqui é uma proliferação de enunciados e lugares de enunciação. Mais do que reconhecer a existência de muitas vozes é necessário gerar as condições para que elas tomem da palavra e se valham do sentido que querem verbalizar, isso pela sua própria iniciativa e risco, sem precisar pedir permissão ou ter que se adequar a formatos e espaços determinados, linguagens ou modalidades de expressão.

No mundo de hoje já não basta apenas o reconhecimento, como há anos atrás se reivindicava; não é só o lugar de legitimação em que um indivíduo ou um povo passa a existir de forma consentida e que é objeto da tolerância dos demais. Precisamos construir também os lugares em que esses sujeitos fazem-se e tornam-se sujeitos. Tenho a certeza que o modo mais pleno de auto-afirmação que há é aquele que faculta a palavra, a capacidade de um sujeito anunciar e enunciar o seu lugar e sentido. Nossa sociedade e nossas lideranças políticas passam agora a ter um texto, a Convenção da Diversidade da UNESCO, que pode tornar-se um forte aliado na afirmação de seus lugares de valor e de construção de “mundos possíveis” para si. Ele pode ser a carta constitucional de um novo mundo, onde todos os possíveis sejam lugares de presença cultural. Vejo que essa Convenção pode ser também um momento de reflexão comum que antevê e projeta os desafios de nossa afirmação cultural no mundo Global, sem que isso se submeta aos fechamentos decisórios da Organização Mundial do Comércio ou outras quaisquer agencias de interesses consolidados. 

A democracia está hoje disponível pela legalidade e pelo consumo, mas ela não é suficiente para garantir a todos o seu gozo e uso fruto da liberdade. Nossa pauta intelectual é, também, uma provocação no plano conceitual e político sobre os mecanismos restritivos de propriedade intelectual e de direito autoral que precisam ser revistos. Hoje, sabemos que o trabalho intelectual, os saberes tradicionais, a criação artística e a científica são os vetores que dinamizam a nova economia capitalista — uma esfera de produção que foi enormemente revolucionada pelas tecnologias. Parte daquilo que se resolveu denominar de o “silêncio dos intelectuais” é também resultante da inclusão precipitada das novas gerações no mundo do trabalho imaterial, um engajamento de novo tipo que faz o potencial de inovação ser uma força produtiva apropriável e altamente rentável em seus modos de agregação de valor aos “produtos”. “Produtos” que se tornam cada vez mais “serviços”. Hoje as mercadorias deixaram suas feições tradicionais de objetos que figuram nas prateleiras de super-mercados e se tornaram dispositivos software. Essa pauta econômica é algo que torna o intelectual, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da sua própria investigação, de um modo paradoxal e que demanda novas energias críticas e posicionamentos sociais, novas mobilidades e capacidades de interação pública.

Laymert Garcia dos Santos nos diz da necessidade de um olhar para o mundo de hoje que se faça com novos olhos. Olhares tanto agudos na decifração dos enigmas do presente, quanto visionários na prospecção de cenários e futuros. No mundo da tecnologia e da imaterialidade, a política passou a ser uma possibilidade de deslocamento semântico do que é inscrito pelas próprias palavras em nossas vidas cotidianas. Há linguagens e enunciados que foram e vão se afirmando cegamente contra os valores humanos, sem que nos déssemos a devida conta. Volto a insistir, no mundo de hoje já não basta apenas o reconhecimento, como há anos atrás se reivindicava. Precisamos construir também os lugares em que esses sujeitos fazem-se e tornam-se sujeitos. Tenho a certeza que o modo mais pleno de auto-afirmação que há é aquele que faculta a palavra, a capacidade de um sujeito anunciar e enunciar o seu lugar e sentido. Hoje estamos diante da ratificação do tratado da diversidade em nosso País e diante uma grande assembléia das nações que são signatárias desse instrumento jurídico para decidir sobre os seus rumos. Volto a afirmar que nossa sociedade e nossas lideranças políticas passam agora a ter um texto que pode tornar-se um forte aliado na afirmação de seus lugares de valor e de construção de “mundos possíveis” para si.

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Sergio Amadeu, com quem passamos a compartilhar, daqui em diante, o pensamento agudo e desafiador sobre a nova realidade, nos lembra que a convenção da Unesco reconheceu a necessidade de adotar medidas para proteger a diversidade das expressões culturais e enfatizou também a relação estratégica entre cultura e desenvolvimento sustentável. As manifestações e as expressões livres e libertadoras da cultura digital constituem recursos indispensáveis e essenciais para assegurar a diversidade geral das expressões culturais de nossas sociedades. 

Reunindo ciência e cultura, antes separadas pela dinâmica das sociedades industriais, centrada na digitalização crescente de toda a produção simbólica da humanidade, forjada na relação ambivalente entre o espaço e o ciberespaço, na alta velocidade das redes informacionais, no ideal de interatividade e de liberdade recombinante, nas práticas de simulação, na obra inacabada e em inteligências coletivas, a cultura digital é uma realidade de uma mudança de era. Como toda mudança, seu sentido está em disputa, sua aparência caótica não pode esconder seu sistema, mas seus processos, cada vez mais auto-organizados e emergentes, horizontalizados, formados como descontinuídades articuladas, podem ser assumidos pelas comunidades locais, em seu caminho de virtualização, para ampliar sua fala, seus costumes e seus interesses. 

A cultura digital é a cultura da contemporaneidade. Como lembrei em 2004, em uma aula magna na USP, "cultura digital é um conceito novo. Parte da idéia de que a revolução das tecnologias digitais é, em essência, cultural. O que está implicado aqui é que o uso de tecnologia digital muda os comportamentos. O uso pleno da Internet e do software livre cria fantásticas possibilidades de democratizar os acessos à informação e ao conhecimento, maximizar os potenciais dos bens e serviços culturais, amplificar os valores que formam o nosso repertório comum e, portanto, a nossa cultura, e potencializar também a produção cultural, criando inclusive novas formas de arte." Esas minhas palvras poderiam ser traduzidas pela expressão “diversidade cultural”.

CIBERCULTURA E AS REDES 

A maior construção da cultura digital é a Internet que "nasceu da improvável intersecção da big science, da pesquisa militar e da cultura libertária." (CASTELLS) Deixando evidente que desde o início, "o remix é a verdadeira natureza do digital" (GIBSON). O digital é a meta-linguagem da cultura pós-industrial que avança no interior das redes informacionais e para fora delas, do ciberespaço para a atualização em novas sociabilidades. Por isso, a cultura digital é também a cibercultura e representa o novo estágio da cultura de rede. 

A cibercultura então pode ser compreendida como "a forma sociocultural que emerge da relação simbiótica entre a sociedade, a cultura e as novas tecnologias de base micro-eletrônica que surgiram com a convergência das telecomunicações com a informática na década de 70." (LEMOS) Ela também é "o movimento histórico, a conexão dialética, entre sujeito humano e suas expressões tecnológicas, através da qual transformamos o mundo e, assim, o nosso próprio modo de ser interior e material em dada direção (cibernética)". (RÜDIGER). 

A Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (Convenção da Diversidade) definiu que "expressões culturais são aquelas que resultam da criatividade de indivíduos, grupos e sociedades e que possuem conteúdo cultural". 

Todos os nove objetivos da Convenção da Diversidade, relatados a seguir, têm relação direta com o desenvolvimento atual da cultura digital. São objetivos definidos pela Convenção:

a) proteger e promover a diversidade das expressões culturais; 

b) criar condições para que as culturas floresçam e interajam livremente em benefício mútuo; 

c) encorajar o diálogo entre culturas a fim de assegurar intercâmbios culturais mais amplos e equilibrados no mundo em favor do respeito intercultural e de uma cultura da paz; 

d) fomentar a interculturalidade de forma a desenvolver a interação cultural, no espírito de construir pontes entre os povos; 

e) promover o respeito pela diversidade das expressões culturais e a conscientização de seu valor nos planos local, nacional e internacional; 

f) reafirmar a importância do vínculo entre cultura e desenvolvimento para todos os países, especialmente para países em desenvolvimento, e encorajar as ações empreendidas no plano nacional e internacional para que se reconheça o autêntico valor desse vínculo; 

g) reconhecer a natureza específica das atividades, bens e serviços culturais enquanto portadores de identidades, valores e significados; 

h) reafirmar o direito soberano dos Estados de conservar, adotar e implementar as políticas e medidas que considerem apropriadas para a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais em seu território; 

i)fortalecer a cooperação e a solidariedade internacionais em um espírito de parceria visando, especialmente, o aprimoramento das capacidades dos países em desenvolvimento de protegerem e de promoverem a diversidade das expressões culturais. 

A DIVERSIDADE, FUNDAMENTO DA CIBERCULTURA 

Uma das principais hipóteses de Pierre Lévy é que a cibercultura expressa o surgimento de um novo universal, diferente das formas culturais que vieram antes dele, já que ele se constrói sobre a indeterminação de um sentido global qualquer. Ou seja, a cibercultura abriga pequenas totalidades, "mas sem nenhuma pretenção ao universal". Podemos dizer que seu fundamento é a própria diversidade. Uma diversidade em contínua construção. 

Entre as maiores expressões do ativismo cibercultural está o movimento conhecido como Metareciclagem. Avesso a qualquer totalização, o Metareciclagem constrói vínculos entre tecnologia e arte sem modelos predeterminados, de modo distribuído, sem imposições. Outro exemplo é o Estúdio Livre que trabalha um conceito de ambiente colaborativo, em constante desenvolvimento, que busca formar espaços reais e virtuais que estimulem e permitam a produção, a distribuição e o desenvolvimento de mídias livres. Todas as ferramentas deste ambiente são baseadas nos conceitos de software livre, conhecimento livre e apropriação tecnológica pelas comunidades de usuários. 

Segundo a Convenção da Unesco, "diversidade cultural refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados." 

A expansão da cultura digital confunde-se com a expansão da Internet. 

Mas a Internet foi construída sob forte influência da cultura hacker e, por isso, guarda seus traços, nos quais devemos destacar a liberdade de criação e a idéia de compartilhamento. Este espírito aberto permitiu construir o maior repositório de informações que a humanidade jamais viu. A cultura hacker gerou uma rede das redes e não uma rede única, uma rede absoluta. A diversidade dentro da colaboração foi e é um enorme feito dos arquitetos da Internet. Mas a Internet ganhou importância econômica e política e agora está sob constante ataque. Grupos e corporações gigantescas do mundo industrial querem conter a expansão da rede como um espaço de liberdade para o conhecimento e para a criação e recombinação digital da cultura. As tecnologias da informação são ambíguas. Servem ao controle e à liberdade, ao aberto e ao opaco. A cibercultura se realiza dentro deste terreno em disputa. De um lado, as operadoras de telecom querendo controlar a voz sobre IP, de outro o movimento Save the Internet, articulando a defesa da neutralidade dos protocolos da rede. As indústrias do entretenimento querendo impor o DRM e organizações como a Eletronic Frontier Foundation lutando pela liberdade de expressão e pelos inalienáveis direitos humanos na rede. Defender a diversidade cultural na rede passa pela defesa de uma cidadania digital, transnacional, e baseada na garantia dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. 

DIVERSIDADE É RECOMBINANTE 

O coletivo de mídia tática Critical Art Ensemble tem trabalhado desde o final do século XX com sua crítica profunda aos limites à criatividade impostos pelo sistema. Se Vannevar Bush havia nos alertado de que as nossas mentes pensam por associação, não seria estranho supor que nossa cultura realiza-se também por conexão, por constantes recombinações. De modo suficientemente claro, no texto Distúrbio Eletrônico, o Critical Art Emsemble conclama: "Deixemos que as noções românticas de originalidade, genialidade e autoria permaneçam, mas como elementos para a produção cultural sem nenhum privilégio especial acima dos outros elementos igualmente úteis. Está na hora de usarmos a metodologia da recombinação para melhor enfrentarmos a tecnologia do nosso tempo." 

A diversidade depende da liberdade dos fluxos e a criatividade precisa estar desimpedida para adotar todo o potencial da interatividade que é o devir da hipertextualidade e está presente em toda a expansão da web. Uma web que caminha cada vez mais para constituir-se de múltiplas práticas colaborativas. Alex Primo, ao analisar o aspecto relacional das interações na Web 2.0, esclareceu que "a interação social é caracterizada não apenas pelas mensagens trocadas (o conteúdo) e pelos interagentes que se encontram em um dado contexto (geográfico, social, político,temporal), mas também pelo relacionamento que existe entre eles. Portanto, para estudar um processo de comunicação em uma interação social não basta olhar para um lado (eu) e para o outro (tu, por exemplo). É preciso atentar para o "entre": o relacionamento. Trata-se de uma construção coletiva, inventada pelos interagentes durante o processo, não podendo ser manipulado unilateralmente nem previsto ou determinado". 

O relacionamento recombinante é conflituoso e seu sentido é imprevisível, pois a linkagem aberta ou a co-linkagem garante a liberdade e a infinita disputa de caminhos e trilhas. Mas isso é vital para a diversidade. O princípio da Convenção da Unesco de igual dignidade e respeito por todas as culturas precisa incorporar o mesmo tratamento para as culturas recombinantes, para as ciberculturas. Nunca é demais lembrar das idéias de George P. Landow, um dos grandes estudiosos do hipertexto: "Las concepciones de autoría guardam uma estrecha relación com la forma de tecnología de la información que prevalece em un momento dado, y, cuando esta cambia o comparte su dominio com otra, también se modifican, para bien y para mal, las interpretaciones culturales de autoria." 

O ACESSO ASSEGURA A POSSIBILIDADE DE DIGITALIZAÇÃO DAS EXPRESSÕES CULTURAIS 

Alejandro Piscitelli argumenta que a "Internet fue el primer medio masivo de la historia que permitió uma horizontalización de las comunicaciones, uma simetria casi perfecta entre producción y recepción, alterando em forma indeleble la ecologia de los medios." Este enorme feito democratizante não conseguiu ainda reverter as tendências concentradoras que se ampliam com as assimetrias sócio-econômicas. Javier Bustamante Donas, ao discutir a relação entre a cibercultura e a ecologia da comunicação, afirmou que "el acceso a Internet y su uso como vehículo de transmisión de ideas y de comunicación personal va sin duda a establecer nuevos criterios de diferenciación social entre los ciudadanos de la nueva cibercultura. Individuos, empresas, colectivos sociales que no tengan acceso por razones económicas, técnicas o de rechazo psicológico, se encontrarán en una posición precaria a la hora de definir su presente y su futuro." 

Não podemos privar as comunidades locais, tradicionais ou não, bem como os artistas e produtores culturais da possibilidade de migração de sua produção simbólica para o interior da redes, para o ciberespaço. Para assegurar que a expressão das idéias e manifestações artísticas possam ganhar formatos digitais e, também, para garantir que os grupos e indivíduos possam criar, inovar e re-criar peças e obras a partir do próprio ciberespaço, são necessárias ações públicas de garantia de acesso universal à rede mundial de computadores. Sem inclusão digital de todos os segmentos da sociedade, a cibercultura não estará contemplando plenamente a diversidade de visões, de expressões, de comportamentos e perspectivas. 

Bem alertou-nos Javier Bustamante que "sin una pluralidad de fuentes no se puede hablar de libertad de pensamiento, conciencia o religión. Sin acceso a medios de alcance internacional no tiene sentido hablar de libertad de opinión y de difusión de las mismas sin limitación de fronteras". Por isso, a cultura da diversidade digital é ampliada pelas práticas de compartilhamento de conhecimento, de tecnologias abertas, de expansão de telecentros, de oficinas de metareciclagem, de pontos de cultura. Essas iniciativas precisam ser amplificadas, uma vez que executam o princípio do acesso eqüitativo presente na Declaração da Unesco: "O acesso eqüitativo a uma rica e diversificada gama de expressões culturais provenientes de todo o mundo e o acesso das culturas aos meios de expressão e de difusão constituem importantes elementos para a valorização da diversidade cultural e o incentivo ao entendimento mútuo". 

Quanto maior a inclusão digital da sociedade, maiores serão as possibilidades da diversidade cultural. Quanto maior a liberdade para as práticas colaborativas na rede, wikis, softwares livres, ações P2P, blogs, espectro aberto, mais extensa será sua inteligência coletiva criativa. 

REALIDADES ALTERNATIVAS, SIMULAÇÕES E MÚLTIPLAS IDENTIDADES 

A cultura digital envolve a simulação, as realidades virtuais e as realidades alternativas. Ciborgues não são somente metáforas, como nos ensinou Donna Haraway. A crise das identidades que ocorria já nas sociedades industriais evoluiu para um cotidiano pendular entre identidades ausentes e anonimato, de um lado, e múltiplas identidades, de outro. 

Jogos em rede envolvem milhões de pessoas, avatares se enfrentam e se articulam em um cenário virtual onde também estão inseridas as diversas comunidades virtuais de relacionamento, e que criam caminhos de mão dupla virtual-atual e presencial-ciberespacial.

Nesse cenário, de ausentes e múltiplos, de choque de sociabilidades, é que também devemos enfatizar o papel das identidades únicas e das identidades étnicas. A riqueza da diversidade dependerá do fortalecimento de diversos elementos constitutivos das identidades coletivas que compõem uma cultura. A Convenção da Unesco recordou "que a diversidade lingüística constitui elemento fundamental da diversidade cultural". Então, a diversidade digital exige a produção de conteúdo em diversas línguas e dialetos em sites, portais, na blogosfera, na videosfera e nos ambientes de realidade alternativa. 

A LIBERDADE DOS FLUXOS, DO CONHECIMENTO E DA CRIAÇÃO 

Eugenio Trivinho nos alertou que "ao mesmo tempo que a miniaturização das tecnologias comunicacionais permite o maior poder de movimentação nas cidades reais, materiais, gera também um maior efeito de ilusão de liberdade. Para evitar confusão: um contexto histórico que confere mobilidade corporal assistida pela potência da comunicação à distância nem por isso concede maior liberdade aos indivíduos, ou uma liberdade genuína, isenta de constrangimentos, coações e controles". (112-113) No cenário da cibercultura, a liberdade exige arquiteturas abertas aos fluxos de conhecimento. Nunca foi tão possível compartilhar conhecimento quanto na era das redes informacionais. 

Nunca foi tão rápido, barato e fácil trocar informações. Os economistas da informação sabem que o principal insumo da informação é a própria informação. A matéria-prima do conhecimento é a própria informação codificada ou conhecimento. A informação não possuí as restrições limitadoras dos bens materiais. Informações, desconhecem a escassez e o desgaste no uso. Podem ser usadas de modo ilimitado e reproduzidas a custo zero. 

Exatamente estas características inerentes aos bens informacionais, ou seja, as informações é que são combatidas pelos gigantes da era industrial. Buscam realizar uma cruzada pelo enrijecimento das leis de propriedade das idéias, por criminalizar o compartilhamento de idéias, de algoritmos e de criações artísticas. Invadem centros acadêmicos à procura de cópias xerox de livros e retrocedem na interpretação do uso justo do conhecimento. 

Esses guerreiros da propriedade privada das idéias, esquecem que, ao contrário dos bens materiais, o conhecimento cresce quando é compartilhado. Provavelmente desconsideram a brilhante explicação de George Bernard Shaw, dramaturgo e crítico literário irlandês: "Se você tem uma maçã e eu tenho uma maçã e trocarmos estas maçãs, então eu e você teremos ainda apenas uma maçã. Mas se eu tenho uma idéia e você tem uma idéia, e trocarmos nossas idéias, então cada um de nós terá duas idéias".

A cibercultura para avançar precisa derrubar as barreiras da liberdade de conhecimento. As redes não podem ser malhas de uma "informática da dominação", termo bem cunhado por Donna Haraway. A biotecnologia não deveria construir seu caminho baseando-se na modelo de negócios dos alimentos transgênicos, que buscam controlar, por meio de patentes, o conhecimento sobre as formas de reprodução da vida. A opacidade dos códigos (softwares, protocolos e padrões) é grave. Como bem alertou-nos o jurista Lawrence Lessig, "no ciberespaço o código é a lei". 

Lessig ao analisar como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a cultura e controlar a criatividade, escreveu que a "oportunidade para criar e transformar está enfraquecida em um mundo no qual a criação depende de permissão judicial, e a criatividade precisa sempre consultar um advogado." (183) Para evitar uma anemia cultural generalizada promovida pelas tentativas de controlar privadamente o conhecimento e a cultura é que crescem mobilizações como o Creative Commons, um movimento de licenciamento que busca reequilibrar o cenário de propriedade intelectual, dando maior espaço às características básicas da cultura digital, entre elas a recombinação, o sampling, a liberdade de cópia. 

A ECONOMIA DA CIBERCULTURA É BASEADA NO RELACIONAMENTO E NÃO NA PROPRIEDADE 

John Perry Barlow, letrista, músico, ciberativista, autor do Manifesto de Independência do Ciberespaço, fundador da Eletronic Frontier Foundation, escreveu os princípios da economia de uma cultura digital, de uma cibercultura. Barlow captou a tendência de a economia se basear cada vez mais em serviços. Nela, o valor da propriedade perde força diante dos valores do relacionamento. 

Ele escreveu que "a maioria de nós vive hoje graças à inteligência, produzindo 'verbos', isto é, idéias, em vez de 'substantivos', como automóveis e torradeiras. (...) Médicos, arquitetos, executivos, consultores, advogados: todos sobrevivem economicamente sem serem 'proprietários' de seu conhecimento [...] É um consolo saber que a espécie humana conseguiu produzir um trabalho criativo decente durante os 5.000 anos que precederam 1710, quando o Estatuto de Anne, a primeira lei moderna de direitos autorais, foi aprovada pelo Parlamento Britânico. Sófocles, Dante, da Vinci, Botticelli, Michelangelo, Shakespeare, Newton, Cervantes, Bach – todos encontraram motivos para sair da cama pela manhã, sem esperar pela propriedade das obras que criaram". 

Sua conclusão é empiricamente consistente: "Mesmo durante o auge do direito autoral, conseguimos algo bastante útil de Benoit Mandelbrot, Vint Cerf, Tim Benners-Lee, Marc Andreessen e Linus Torvalds. Nenhum deles fez seu trabalho pensando nos royalties. E há ainda aqueles grandes músicos dos últimos cinqüenta anos que continuaram fazendo música mesmo depois de descobrir que as empresas fonográficas ficavam com todo o dinheiro [...] relacionamento, junto com serviço, é o centro daquilo que suporta todo tipo de "trabalhador moderno do conhecimento". 

Na economia digital colaborar é mais eficiente que simplesmente competir. Um número crescente de empresas está percebendo as enormes vantagens das práticas colaborativas para a inovação e a manutenção de seus negócios. As redes informacionais viabilizam novas práticas sociais e de geração de riquezas que eram difíceis e até impossíveis de se implementar na chamada era industrial. 

O professor de direito da Universidade de Yale, Yochai Benkler, no livro The Wealth of Network, disponível na web, demonstrou que uma série de mudanças nas tecnologias, na organização econômica e na produção social estão criando novas oportunidades e possibilidades de produzir informação, conhecimento e cultura. Essas mudanças, segundo Benkler, estão ampliando o papel da produção não-proprietária e colaborativa, realizada por indivíduos isolados e por esforços cooperativos de milhares de pessoas. É o caso, por exemplo, do desenvolvimento de software livre, uma típica criação da cultura digital. 

O modelo de desenvolvimento e uso de software livre se baseia na colaboração. Programas de computador extremamente complexos são criados e mantidos por comunidades de interessados. Um dos seus maiores exemplos, o GNU/Linux, é um sistema operacional livre, mantido por aproximadamente 150 mil pessoas espalhadas pelo planeta. Como todo e qualquer software, o GNU/Linux precisa ser atualizado constantemente para acompanhar a evolução dos computadores e demais softwares. Antes que uma nova versão do GNU/Linux seja considerada estável, ela é testada e corrigida por uma comunidade gigantesca de apoiadores. As chances de ter suas falhas mais rapidamente encontradas e superadas é bem maior do que no modelo proprietário e fechado. A qualidade das versões está diretamente vinculada à quantidade da inteligência coletiva agregada na rede mundial de computadores. Sem dúvida, a coordenação do processo é o elemento mais sensível e complexo das práticas colaborativas em rede. 

O que cada colaborador doa, em tempo de trabalho, para o desenvolvimento do GNU/Linux é bem menor do que obtém de retorno. Essa lógica levou ao antigo Big Blue, a IBM, e outras grandes corporações a apostarem no desenvolvimento colaborativo. Apache é um dos maiores sucessos mundiais do software livre. Ele serve para hospedar páginas da web e está presente em mais de dois terços dos servidores web do planeta. Imbatível. Obteve esta posição sem gastar um centavo em propaganda. Nunca precisou, ele é desenvolvido colaborativamente e sua estabilidade é incomparavelmente superior ao do concorrente proprietário.

CULTURA DIGITAL, CIBERESPAÇO: AS FRONTEIRAS COM OS ESTADOS-NAÇÃO 

A Internet carrega e conecta os fluxos da cultura digital, transitando pelas diversas infra-estruturas dos países controlados por Estados nacionais. Todavia, a rede é transnacional. Construída sob forte influência da cultura hacker para ser livre, conectada por protocolos de comunicação que buscam manter liberadas as vias de compartilhamento de dados e interação de informações. A internet é o corpo do ciberespaço. 

Mas os tempos de globalização, de auge das tentativas de desmonte geral do que é público, de prevalência do privado, de expansão do consumismo totalitário, do desrespeito ao local e às culturas tradicionais, gerou fortes reações, algumas de reprodução em larga escala da intolerância. Reforçou-se o cenário de ambivalências. Estados Nacionais poderosos e megacorporações tentam criar condições para controlar os fluxos das redes, a Internet. Totalitários de plantão reúnem argumentos para interferir nos protocolos, na independência de cada uma das camadas que compõem a rede, para vigiar os pacotes de informação, para manter ditaduras ou níveis de lucratividade. Tanto faz! 

O ciberespaço precisa ser livre. O acesso precisa ser livre. A navegação precisa ser livre. A governança da Internet é também a governança do ciberespaço. Ela não pode representar um retrocesso nas liberdades conquistadas, do contrário, teremos ataques à criatividade, ao compartilhamento de informações, à diversidade de manifestações e expressões da cultura digital. A defesa da diversidade digital passa pela defesa de um modelo de governança da rede que seja multistakeholder, que garanta o peso devido às organizações da sociedade civil mundial de interesse público, que assegure uma cidadania digital global, que mantenha as liberdades fundamentais do homem. 

O importante princípio da soberania nacional inserido na Convenção da Unesco não pode ser usado para anular o princípio da abertura e do equilíbrio, segundo o qual "ao adotarem medidas para favorecer a diversidade das expressões culturais, os Estados buscarão promover, de modo apropriado, a abertura a outras culturas do mundo e garantir que tais medidas estejam em conformidade com os objetivos perseguidos pela presente Convenção".¨ 

A CULTURA DIGITAL NA PERSPECTIVA DA DIVERSIDADE. OS PARAMETROS PARA POLÍTICAS PÚBLICAS ADEQUADAS? 

É necessário estruturar políticas públicas que incentivem a cultura digital. 

Os fundos de tecnologia e telecomunicação devem assegurar linhas especiais de pesquisa e de produção de tecno-arte, de tecnologias abertas e livres. Devem estudar formas jurídicas adequadas para o financiamento de projetos de coletivos tecnológicos, tais como para as comunidades de software livre, de meta-reciclagem, de midia-ativismo e cibercultura, bem como, os coletivos de conexão cooperativa. 

É preciso assegurar que as comunidades tenham recursos para portar seus conteúdos para a rede informacional. Daí a importância decisiva dos estúdios livres de cibercultura. 

É fundamental construir uma política de convergência digital para o que é comum, para a sociedade civil, para digitalizar as rádios e TVs comunitárias, para garantir experimentos comunitários de conexão aberta. 

É importante incentivar a expansão das cidades digitais. 

É vital garantir que sejam expandidas as faixas de frequência do espectro radioelétrico para uso comum. A sociedade precisa discutir o destino das faixas de freqüência que estão sendo utilizadas atualmente pelas emissoras de TV para transmissão analógica. Quando a implantação da TV digital estiver completa, estas faixas poderão ser transformadas em espectro aberto, em via de uso comum, com o uso de rádios transmissores, receptores inteligentes e outras tecnologias digitais. 

É preciso incentivar a produção de conteúdos digitais para a mobilidade, para o cenário de realidades alternativas, jogos em rede e digitalização crescente do broadcasting, bem como, para a expansão das webTVs distribuídas.É preciso incentivar o crescimento do domínio público, bem como, garantir a liberdade para o conhecimento e a cultura. 

COMO GARANTIR A EXPANSÃO DA PESQUISA DA CIBERCULTURA. 

Como Ministro da Cultura, na aula inaugural que dei na USP, no dia 10 de agosto de 2004, afirmei que "é hora de a pesquisa científica acerca da cultura conquistar novos vôos, ganhar maior consistência, rigor e autonomia. 

É preciso pensar a universidade também como um 'locus' da cultura, seja das expressões artísticas, seja da difusão, ou reflexão, ou da preservação." Nesse sentido, é preciso pensar propostas que garantam a ampliação da pesquisa da cultura digital. 

É preciso articular mais pesquisas básicas e experimentais, multidisciplinares, que ampliem a compreensão das tecnologias de informação e comunicação em um contexto de redes e da cultura digital. 

É preciso criar nós e articulações mais freqüentes entre os vários atores e pesquisadores de cibercultura.É preciso incentivar redes de pesquisa da cultura digital. 

É preciso criar encontros, desconferências, festivais, prêmios e incentivos à pesquisa da cibercultura e sua relação múltipla com diversos contextos. 

LIBERDADE PARA O CONHECIMENTO E A CRIAÇÃO 

A cultura digital é a cultura que trabalha com a plena criatividade. Não está limitada ao ideal romântico de originalidade exclusiva, espalha-se pela idéia de recombinação, de remixagem, de fusão, de derivação, de destruição de todos os entraves à criação, de obra contínua, ilimitada, fundamentalmente aberta. Trata da novidade e da reconfiguração. Cultiva a colaboração e o compartilhamento tal como o antigo ideal científico. A ciência pouco avançaria se não fosse ela própria cumulativa e recombinante. A cultura digital é a aproximação da ciência e da cultura, mediada pelas tecnologias informacionais. 

A liberdade para o conhecimento, a transparência para os códigos que intermedeiam a comunicação humana, a criação sem entraves, a superação da mercantilização totalitária da cultura, as possibilidades simuladoras e emancipadoras do ciberespaço são fundamentos que devemos defender se quisermos um mundo de riqueza da diversidade.