domingo, 10 de julho de 2016

Filosofia Francesa Contemporânea no Brasil

Filosofia Francesa Contemporânea no Brasil


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Meus links por onde já venho pensando esses eixos
(há uns 10 anos... rsrs)

brainstormtche.blogspot.com.br/2014/04/os-tropicos-utopicos-tomando-posse-da.html



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Filósofos Franceses no Brasil: um depoimento

Renato Janine Ribeiro 


"(...)em 1968, o panorama da filosofia brasileira era em larga medida tomista ou eclético. Faculdades de teologia e seus ex-alunos dividiam a cena filosófica com pessoas de formação erudita mas eclética, nem sempre capazes de uma leitura científica e rigorosa dos textos fundamentais da área. Provavelmente as duas grandes exceções a esse quadro estavam na USP e na UFRGS. Nesta última, lecionavam – entre outros – o veterano professor Ernani Fiori e os jovens Gerd Bornheim e Ernildo Stein."

"Os professores franceses cumpriram um papel importante, talvez em dois planos. O primeiro foi o da formação técnica de alunos capacitados a lidar com textos difíceis. O segundo foi o de uma idéia ou ideal de intelectual, que exige dele a presença na cena pública, numa ágora que faz deles cidadãos em contato com sua sociedade. Não é fortuito que eu tenha aludido à III República. Esta ainda constitui um marco para todos aqueles que pensam a educação articulando-a com a cidadania. Sim, ela levou a abusos."

"Hoje, queremos uma educação mais multicultural, mais livre. Mas a idéia de cidadania que a III República fomentou teve e tem ainda um papel fundamental para quem pensa a educação por um viés progressista. Da mesma forma, o legado francês na filosofia brasileira continua tendo sua importância." 


No começo da década de 1930, criam-se as duas primeiras universidades brasileiras, a saber, a Universidade do Brasil, em 1931 (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro) e, em 1934, a Universidade de São Paulo, esta última mantida por esse Estado da Federação. Já havia, no Brasil, instituições de ensino superior, a começar pelas duas Faculdades de Direito instaladas em 1827, a de São Paulo – incorporada em 1934 na USP – e a de Olinda, depois transferida para o Recife e que hoje pertence à Universidade Federal de Pernambuco. Mas é apenas depois de 1930 que elas se articulam em estruturas universitárias. 

O projeto da USP teve por espinha dorsal a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – que mais tarde, em 1969-70, seria cindida em oito institutos diferentes. A idéia era dar, a uma série de faculdades de forte vocação profissional, que formavam advogados, engenheiros, médicos, dentistas e agrônomos, um contrapeso e uma fundamentação na pesquisa científica. Uma faculdade que mesclaria as ciências exatas, as biológicas e as humanas, tendo em comum o foco na pesquisa, assim conferiria à USP o seu sentido de universidade. Para tanto, foram convidados professores europeus; no caso da Filosofia, franceses. 

Assim foi que, durante quase quarenta anos, o departamento de filosofia da USP teve professores franceses, pagos pelo menos em parte pelo governo da França e que ministravam parte pelo menos de seus cursos em sua língua nativa, isso na graduação. Entre eles, estiveram nomes de destaque, como Gilles-Gaston Granger, Claude Lefort e Gérard Lebrun, este último o mais presente na história da USP, porque nela lecionou, intermitentemente, dos anos 60 aos 90. 

Quando ingressei, como aluno, no departamento de filosofia da USP, em 1968, o panorama da filosofia brasileira era em larga medida tomista ou eclético. Faculdades de teologia e seus ex-alunos dividiam a cena filosófica com pessoas de formação erudita mas eclética, nem sempre capazes de uma leitura científica e rigorosa dos textos fundamentais da área. Provavelmente as duas grandes exceções a esse quadro estavam na USP e na UFRGS. Nesta última, lecionavam – entre outros – o veterano professor Ernani Fiori e os jovens Gerd Bornheim e Ernildo Stein. 

No caso da USP, pode-se dizer que a formação – em larga medida, francesa – se assentava num trinômio. A filosofia ali ensinada era rigorosa, republicana e talvez de esquerda. O rigor se devia a mestres franceses, como Martial Guéroult e Victor Goldschmidt, que haviam formado seus alunos brasileiros segundo regras que, mais tarde, viriam a ser  chamadas de estruturalistas. Um clássico era o Descartes selon l'ordre des raisons, de Guéroult, que efetuava uma leitura rigorosamente interna do texto e mostrava como viável uma abordagem científica da filosofia. Daí que lêssemos os clássicos e, bem pouco, os seus comentadores. Esse procedimento teve uma grande vantagem, porque treinou bem os alunos. Teve também uma desvantagem, porque deixou os alunos e futuros professores pouco dispostos a lerem-se uns aos outros: buscava-se, sempre, o clássico. 

O caráter republicano era tipicamente o da III República Francesa, com seus valores de educação universal, de laicidade do Estado e de incorporação das massas na cidadania. Recusando o tomismo dominante no pensamento filosófico brasileiro, os nossos leigos firmavam uma idéia de Estado e de república que os forçava a tomadas de posição – que, estas, remetem ao terceiro ponto: eram ou não de esquerda os especialistas em filosofia na USP? 

Este ponto foi muito delicado. O departamento de filosofia foi o primeiro na USP, e talvez o primeiro no Brasil, a atribuir – em 1968 – sua direção a um colegiado paritário de professores e alunos, sendo logo seguido pela congregação da Faculdade de Filosofia como um todo. Essa iniciativa não se deu sem problemas. Poucos meses depois, a violência da ditadura expulsava da rua Maria Antonia, no centro da cidade, a Faculdade – ou os poucos cursos dela que ali eram ministrados, ou sejam, os de filosofia, ciências sociais, letras e psicologia. Além disso, houve uma sucessão de conflitos internos entre partidários e adversários da paridade e, finalmente, quando a ditadura se agravou, em dezembro daquele ano, o exílio de quase um terço dos docentes do departamento, somando-se a essa perda a cassação dos dois professores mais titulados do curso, em abril de 1969. 

A participação dos professores franceses foi muito ativa em todo este contexto. Na verdade, porém, ela deve ser dividida em pelo menos dois tempos. Na década de 1930, quando os jovens Roger Bastide e Claude Lévi-Strauss lecionavam ciências sociais na USP, em filosofia se destacava Jean Maugüé, que ao contrário deles não chegaria a deixar renome no Brasil nem na França. Maugüé é hoje conhecido sobretudo graças ao empenho de Gilda e Antonio Candido de Mello e Souza, que foram seus alunos e reconheceram o papel que ele desempenhou em sua formação. O professor Maugüé convidava seus estudantes a uma imersão na cultura. Viam filmes, peças de teatro, liam romances e os comentavam com o professor. Não é demais insistir: essa etapa, vital para a formação de uma geração extremamente criativa e que a partir do momento em que criou a revista Clima se destacou no país, foi ignorada por muito tempo.  

Foi ignorada porque uma segunda etapa a apagou. Essa etapa foi a da formação mais científica a que acima me referi. Novos professores franceses vieram, que tinham convicção mais estrita do que é a filosofia, e que formaram seus alunos nessa direção. Vários desses docentes tiveram atuação relevante na vida cultural paulista. Infelizmente, naquela época o país era bem menos integrado do que é hoje, e seu papel muitas vezes se confinava no Estado. Mas há que destacar a participação de Michel Debrun, que lecionaria até o fim da vida na Unicamp, e de Gérard Lebrun, na Revista Brasiliense e nas discussões políticas prévias ao golpe de Estado de 1964; o impacto da visita de Sartre e Simone de Beauvoir ao Brasil, inclusive com sua conferência na cidade de Araraquara, onde foram ciceroneados pelos jovens professores Fernando Henrique Cardoso e Ruth Cardoso; a atuação de Danielle Ancier (hoje, Rancière) e de Jean Galard, mais tarde diretor do serviço cultural do Museu do Louvre, no apoio a estudantes perseguidos, em 1969; e muitos outros. Como as aulas eram freqüentemente ministradas em francês, a ligação com os professores franceses era próxima. Talvez o seu apogeu se tenha dado em 1966, quando o jovem professor Michel Foucault ministrou um curso sobre o assunto do livro que publicaria no ano seguinte – As palavras e as coisas. Dessa época, data a sua definição do curso da USP como um “bom departamento francês de ultramar”, que seria o título (sem o bom) de um livro de Paulo Arantes, publicado em 1994. Curiosamente, ou não, o livro será crítico à dependência que se teve em relação a França; curiosamente, também, um livro que critica a USP será lido (ou não-lido) no resto do Brasil como se fosse uma obra de apologia a essa universidade, o que seguramente não é. 

A partir da década de 1970, porém, o vínculo que descrevi foi diminuindo. O governo francês mantinha duas cadeiras de filosofia na USP; reduziu-as a uma só e ainda a fez itinerar, localizando-a por um tempo em Campinas, antes de extingui-la. Além disso, a filosofia francesa, a partir dos nouveaux philosophes, que se destacam em meados dos anos 70, perde parte de sua projeção, embora, evidentemente, o respeito por Deleuze, Derrida e Foucault se mantenha. Finalmente, e mais importante, pela mesma época começam a povoar os departamentos de filosofia do Brasil afora pesquisadores que tinham ido fazer seus doutorados no exterior, não só na França mas também na Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos. O Brasil da filosofia passa a ir bem mais longe do que São Paulo, Porto Alegre e Paris. 



Qual o balanço que se pode fazer desse itinerário? 

Como aqui se propõe apenas um depoimento, permito-me evocar uma lembrança, que analisei em livro recente. Em meados de 1968, o lingüista Roman Jakobson veio dar um curso na USP. As salas da faculdade de Filosofia se revelaram insuficientes para acolher o enorme público que desejava ouvi-lo. O diretor da Aliança Francesa ofereceu então o teatro de sua escola, a cerca de quinhentos metros da Faculdade. Assim foi que, enquanto a ditadura se ensombrecia, quando já eram proibidas passeatas de protesto, centenas de pessoas seguiram o lingüista e seus anfitriões pelas ruas Dr. Vilanova, Major Sertório e General Jardim. Ali estava o triângulo da cultura, que se tornava um triângulo da resistência cultural, unindo a Faculdade, a Aliança e o Teatro de Arena, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri. Em meses, a Faculdade seria expulsa de seus locais e os líderes do Teatro de Arena seriam forçados ao exílio. Em anos, a língua francesa perderia parte significativa de seu papel na cultura brasileira, e por isso mesmo, embora em menor grau, também em nossa filosofia. 

Mas seria um enorme equívoco retirar, deste balanço, a sensação de um fracasso. Os professores franceses cumpriram um papel importante, talvez em dois planos. O primeiro foi o da formação técnica de alunos capacitados a lidar com textos difíceis. O segundo foi o de uma idéia ou ideal de intelectual, que exige dele a presença na cena pública, numa ágora que faz deles cidadãos em contato com sua sociedade. Não é fortuito que eu tenha aludido à III República. Esta ainda constitui um marco para todos aqueles que pensam a educação articulando-a com a cidadania. Sim, ela levou a abusos. Conhece-se a história do ministro da Educação Nacional que, numa reunião do Conselho de Ministros em fins do século XIX, diz a seus colegas, olhando seu relógio que marca nove horas da manhã: “En ce moment, tous les élèves de France font leur dictée”. Sabe-se que os africanos aprendiam a cantar “Nos ancêtres les Gaulois”, o que é risível. 

Hoje, queremos uma educação mais multicultural, mais livre. Mas a idéia de cidadania que a III República fomentou teve e tem ainda um papel fundamental para quem pensa a educação por um viés progressista. Da mesma forma, o legado francês na filosofia brasileira continua tendo sua importância. 




REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS: 

Arantes, Paulo. O departamento francês de ultramar. São Paulo, Paz e Terra, 1994. 

Guéroult, Martial. Descartes selon l'ordre des raisons. Paris, Aubier, 1953. 

Ribeiro, Renato Janine. “O sentido filosófico desta discussão”, in O afeto autoritário – televisão, ética e democracia, São Paulo, Ateliê Editorial, 2005. 

Ribeiro, Renato Janine. “Erros e desafios da filosofia no Brasil”, in A universidade e a vida atual – Fellini não via filmes, Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2003. 

Sartre, Jean-Paul. Sartre no Brasil: a conferência de Araraquara, com tradução e notas de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo, Paz e Terra, 1986.




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O ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO E A INFLUÊNCIA DO MODELO FRANCÊS.

Martha Abrahão Saad Lucchesi


RESUMO O objetivo geral deste trabalho é demonstrar a influência do ensino superior francês na gênese e desenvolvimento deste grau de ensino no Brasil.A primeira universidade brasileira a ser efetivamente institucionalizada no Brasil foi a Universidade de São Paulo, fundada em 25 de janeiro de1934, integrando faculdades autônomas já existentes e criando a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. O objetivo específico desta pesquisa é estudar a história das instituições municipais de ensino superior do Estado de São Paulo, que caracterizaram a educação urbana e a interiorização, ao longo da segunda metade do século XX. Na década de 1950, surgem os Institutos Municipais de Ensino Superior do Estado de São Paulo, como parte da política de expansão da educação superior. Parte-se da pesquisa teórica que utiliza o método histórico e o método comparativo. Como técnicas de coleta de dados foram empregadas a pesquisa bibliográfica, documental e ainda, coleta de dados empíricos. A análise evidenciou que, o ensino superior brasileiro foi influenciado pelo modelo francês, a partir de escolas isoladas, mais tarde algumas foram agrupadas em universidades.  




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A maioria das revoluções que conhecemos acabaram reproduzindo exatamente aquilo que elas combatiam. a dissidência não é um modelo de tomada radical do poder. significa inscrever-se no interior de um sistema, tomar partido, sem jamais acreditar que se pode revolucioná-lo completamente. assim foi maio de 68… que ainda não terminou. maio de 68 desestabilizou as categorias  clássicas da política, quebrou os paradigmas, pulverizou o niilismo e continua a fazê-lo ainda hoje. foi uma revolução que não causou mortes; foi política, mas não queria tomar o poder. foucault, deleuze e derrida, os filósofos rebeldes, nos ajudam a re-pensar a política do pós-maio de 68, cada um à sua maneira. eles propõem a política da felicidade e do intolerável como alternativa à política clássica do medo e da esperança. 




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Três franceses e uma alemã - CCBB RJ 2009

http://culturabancodobrasil.com.br/portal/tres-franceses-e-uma-alema/

Roland Barthes, Jean-Paul Sartre, Gilles Deleuze e Hannah Arendt são homenageados e debatidos em série de encontros que reúne intelectuais e escritores do Brasil, da França e da Alemanha.
A proposta é pensar a contribuição dos quatro para questões atuais ligadas a política, leitura, educação, ecologia e arte. O evento fornecerá diploma da PUC Rio.
“Como um intelectual nos ajuda a lidar com a gravidade do desastre educacional, do desastre ecológico e da miséria? Que instrumentos oferece para contestar abusos de poder, incentivar a leitura ou entender o papel da arte e o que é cultura?As perguntas vão além: por que o tempo, para o intelectual, não tem a pressa do mercado? Quem vive do pensar tem de ir à rua, se envolver na política, atuar concretamente sobre a realidade?”
Curadoria: Clarisse Fukelman e Gustavo Chataignier.
Duração: 120min

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Flyer 3FR CCBB (OK)

Biografias – OS TRÊS FRANCESES E A ALEMÃ:
GILLES DELEUZE (1925-1995)
Michel Foucault, amigo e interlocutor de Gilles Deleuze, escreveu que “um dia, o século será deleuzeano” – ou seja, uma referência incontornável, “pairando por sobre nossas cabeças”, completou.
Deleuze tem seu nome associado à filosofia da diferença, desde que concluiu o doutorado com a tese “Diferença e Repetição” (1968), seminal para toda a sua obra. Ali discute diferentes formas do conhecimento, campo não exclusivo da filosofia, e questiona a lógica cientifica de base representativa. Responsável por um conjunto de conceitos que pautou o pensamento do século vinte – intensidade, multiplicidade, fluxo e virtualidade – evitou tanto a armadilha do culto ao niilismo e à melancolia, quanto a euforia ou complacência ao enfrentar questões relacionadas ao contemporâneo.
A Filosofia, enquanto criação de pensamento que se vale de conceitos, deve ser potência criadora comprometida com as experiências de vida em sua diversidade e jogos de força. Reservou à arte um campo de investigação com base no conceito de “percepto”, definido, por ele próprio, em entrevista a Claire Parnet: “Há os conceitos, que são a invenção da Filosofia, e há o que podemos chamar de perceptos. Os perceptos fazem parte do mundo da arte. O que são os perceptos? O artista é uma pessoa que cria perceptos. Por que usar esta palavra estranha em vez de percepção? Porque perceptos não são percepções. O que é que busca um homem de Letras, um escritor ou um romancista? Acho que ele quer poder construir conjuntos de percepções e sensações que vão além daqueles que as sentem. O percepto é isso. É um conjunto de sensações e percepções que vai além daquele que a sente”.
Todos somos corpos, e corpos se encontram: a noção de “encontro”, atualização de Espinosa, proporciona as paixões humanas, em um sentido para além da moral – quer sejam elas “felizes” ou “tristes”. Espera-se, com esse colóquio, que o público se conjugue com o pensamento deleuzeano de modo que desfrute de bons e duradouros encontros.

JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980)
A famosa frase de Sartre “o inferno são os outros” parece premonitória quando se avalia o ofuscamento da figura do filósofo nos dias atuais, apesar da sua importância histórica nos campos da política, filosofia, literatura e dramaturgia. Este (relativo) ocaso pode advir da confluência de fatores diversos: descompasso entre a revolução, o pensamento político e a proposta estético-literária e política; rejeição simultânea de tradicionalistas que o consideravam demasiado à esquerda e, também, dos engajados de 68; finalmente, o surgimento da perspectiva estruturalista. O fato é que seu “O existencialismo é um humanismo” permanece best-seller. À época de seu centenário, um fórum do jornal francês Libération indicou que os jovens consideram que o maior legado foi a luta pelas próprias ideias.
Agitador intelectual (ao lado de Malraux), conseguiu mobilizações de vulto para as causas em que acreditava. Há quem o considere o emblema do intelectual cem por cento engajado no período da guerra fria, colocando inteligência e escrita à serviço da esquerda e, ao mesmo tempo, agitando mobilizações e greves em fábricas, ao lado de militantes do partido – com os quais flanava nas “manifs”, como dizem os parisienses.
Ele ocupou-se também do imaginário e da leitura. Seu livro “As palavras” fala de sua formação como leitor, mas em um mergulho pessoal tão intenso que tem um alcance bem mais amplo. Leandro Konder em 1989 afirmou que “ele irá reaparecer de maneira significativa daqui para a frente, embora seja arriscado prever o nível de aproveitamento de suas ideias no futuro.”
A trajetória de Sartre é exemplar. Não se limita a expressões como “marxista“ ou ainda “diretor de consciência” de uma geração. Ele é o retrato de uma época difícil.

ROLAND BARTHES (1915-1980)
Semiólogo, escritor, crítico literário, teatral e cultural, teórico da fotografia, professor na EHESS – Paris e do Collège de France, exercitou em sua escrita diferentes modalidades de gênero e reinventou o ensaio nos anos 50. Sagaz observador da cultura e arte francesas, caracterizou-se pela originalidade em todos os movimentos de que participou, indo da semiologia estrutural ao pós-estruturalismo, assumindo uma escrita com nítidas marcas pessoais. O conjunto de sua obra é de uma atualidade teórica fecunda e demonstra uma vocação para o pensamento sempre em processo, versando sobre diferentes temas, métodos e campos do saber: marxismo, linguística, existencialismo, estruturalismo, semiologia, psicanálise, comunicação, sociologia, epistemologia, formalismo, fenomenologia, biografismo. Abraçou temas diversos como a leitura, a literatura, a moda, o cinema, o teatro, a gastronomia, os mitos, a pintura, a mídia, a publicidade, a fotografia etc, além de se dedicar a artistas e pensadores a que admirava ou que o instigavam, como Michelet e Robbe-Grillet.
Dentre os conceitos que mudaram paradigmas na interpretação estão os de studium e punctum (para a fotografia), texto legível e texto “escrevível”, escritura, prazer do texto, bem como recriou usos de conceitos como o de código, a que deu toda uma nova perspectiva em sua leitura de Balzac. Provou na prática que era possível realizar o que ele defendia: uma crítica atuante e renovada, no lugar da crítica “regular”, “cosmética”.

HANNAH ARENDT (1906-1975)
Jornalista, professora universitária de origem judaica nascida na Alemanha, mas exilada durante o nazismo, não queria ser rotulada como filósofa, preferindo que sua obra fosse considerada como de teoria política. Entretanto, há fundamentação para os que a veem como filósofa – ela não só desenvolveu um pensamento próprio, como abordagens originais de Sócrates e Platão a Heidegger e Jaspers, passando por Montesquieu e Santo Agostinho. Hoje em dia, qualquer análise sobre violência e totalitarismo pede a releitura de seu pensamento fundador.
Assim como os outros nomes incluídos nesse ciclo, Arendt transita pela literatura, história, política e filosofia. Ao analisar a obra do romancista austríaco Hermann Broch, a pensadora atribui a mesma “força constrangedora” da ciência à literatura, conferindo-lhe dignidade e precisão explicativas. Tal constatação é encontrada, inversamente, na prática filosófica da própria filósofa. Em “Homens em tempos sombrios”, Shakespeare é chamado ao proscênio. Ao meditar sobre a atualização da tradição mediante urgências presentes, Arendt refere-se a “A tempestade”, nas palavras de Próspero: no fundo do mar, o tempo transforma ossos de desaparecidos em corais; olhos, em pérolas. Em tal “transformação marinha”, nos assopra o bardo, “nada desaparece”, mas, antes, é recriado. O procedimento literário assim bloqueia tentativas totalitárias (e, por que não, de totalização), permitindo que “a narrativa revele o sentido, sem o erro de defini-lo” de forma estanque e eterna.

PROGRAMAÇÃO
9 de setembro (4ªf), 18h30
O que pode o pensamento: sujeito e juízos de valor
O tema da ação em Arendt instiga a reflexão sobre as condições internas do pensamento, e suas conexões com a ação, o tempo e o juízo. Sartre, na radicalidade de suas posições e propostas, nos leva a pensar a atualidade. Ele fez do existencialismo (filosófico, literário e político) uma filosofia inovadora e ativa, mesmo tendo raízes em Kierkegaard e Heidegger e apesar de críticas a seus pressupostos subjetivistas.
Com: Renato Lessa e Danilo Marcondes
Mediação: Clarisse Fukelman e Gustavo Chataignier

14 de setembro (2ªf), 18h30
A rua, a casa e o gabinete: escritas de vida e modos de ação do intelectual
Considerando as relações entre teoria e prática e o pensamento de um intelectual à luz de sua biografia, Sartre revela os efeitos da leitura e da ação na formação do indivíduo. Barthes revela um entendimento particular sobre engajamento, discurso de autoridade e força da literatura. A percepção de cada um sobre modos de conectar ação e palavra iluminam o contemporâneo.
Com: Tiphaine Samoyault e Jacques Leenhardt
Mediação: Clarisse Fukelman

16 de setembro (4ªf), 18h30
Relações educadoras e práticas políticas
Tomando Deleuze professor, filósofo, educador do pensamento e pensador da educação, indaga-se o que ele nos ensina para pensar e praticar relações educadoras, nos dias de hoje. Por outro lado, Arendt encaminha o debate sobre autonomia do sujeito e princípios libertários, a partir de processos da prática política, em contraposição à violência e à força do poder econômico.
Com: Walter Kohan e Marion Brephol
Mediação: Gustavo Chataignier

21 de setembro (2ªf), 18h30
Alteridade, imagem, arte e imaginação
Na filosofia, psicanálise, antropologia, política ou nas artes, Deleuze privilegia a abertura para a multiplicidade, para energias diferenciais, e repudia formas estanques. Barthes, ao criar modos próprios para pensar os processos de subjetivação, a arte e a escritura, e a imagem e a imaginação, constrói novos e ampliados sentidos sobre vida, arte e cultura, inscritas no agir contemporâneo.
Com: Roberto Corrêa dos Santos e João Camillo Penna
Mediação: Tânia Rivera

23 de setembro (4ªf), 18h30
Política, ação e experiências narrativas
Arendt dá subsídios para dimensionar politicamente crises do mundo contemporâneo, o totalitarismo e a faculdade de julgar. Seu modo de pensar repercute em seu modo de escrever e sua teoria da ação pode ter como aliadas formas literárias. Deleuze aposta no pensamento como reinvenção; ressalta o espaço literário como laboratório de experiências, acionando memória, imaginação e o apagamento do eu no fluxo do real.
Com: Eduardo Jardim e Karl Eric Schollhammer
Mediação: Filipe Ceppas

24 de setembro (5ªf), 18h30
Admirável mundo novo: instrumentalização e pensamento nômade
Arendt critica certos usos das ciências, em sintonia com suas idéias sobre juízo político, poder, violência, memória e sujeito legislador. Deleuze e Guattari iluminam o fenômeno recente de ocupações das cidades, pouco apreensível pelas ciências sociais e políticas tradicionais ou pelo campo da arte strictu sensu. O pensar nômade ou anti-totalitário de Arendt e Deleuze se abre à afirmação ativa, avessa à instrumentalização do cotidiano.
Com: Wolfgang Heuer e Barbara Peccei Szaniecki
Mediação: Adriana Braga

Dia 28 de setembro (2ªf), 18h30
Modos de escrita: da linha ao labirinto
Ao praticar diferentes tipos de escrita e ao entender leitura como escritura e vice-versa Barthes subverte as barreiras entre escrita e crítica e provoca o “rumor da língua”. Deleuze revela a estreita ligação entre a filosofia e a literatura. Ele ajuda-nos a compreender tendências poéticas modernas e a produção escrita de autores contemporâneos.
Com: Christian Prigent e Ana Maria Amorim
Mediação: Ítalo Moriconi



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Os Mil Nomes de Gaia

Esse mundo já era

Numa sexta-feira de agosto, foram abertas as inscrições para Os Mil Nomes de Gaia, colóquio que reuniria no Rio de Janeiro pensadores de vários países que vêm refletindo sobre a mudança do clima e a crise ambiental global. Atraído pelas estrelas acadêmicas de primeira grandeza, o público esgotou em cerca de uma hora e meia os ingressos para cada um dos cinco dias de programação.
A reportagem é de Bernardo Estevespublicada pela revista Piauí, 10-10-2014.
Realizado na terceira semana de setembro, na Casa de Rui Barbosa, em Botafogo, o evento também teve transmissão pela web. Foi concebido pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional da UFRJ, pela filósofaDéborah Danowski, da PUC do Rio, e pelo antropólogo francês Bruno Latour, do Instituto de Estudos Políticos deParis, ou Sciences-Po.
Na semana do colóquio, a NOAA, agência federal americana que monitora os oceanos e a atmosfera, anunciou que atemperatura média da superfície do planeta registrada em agosto foi a mais alta para esse mês desde 1880, quando as medições começaram a ser feitas de modo sistemático. A continuar nesse ritmo, 2014 pode se tornar o ano mais quente já documentado, na contramão da suposta estagnação do aquecimento global alardeada pelos céticos do clima.
aquecimento da Terra, a faceta mais falada da crise ambiental, integra um quadro de ameaças não menos perturbadoras, como a acidificação dos oceanos ou a perda acelerada da biodiversidade e da cobertura vegetal, todos eles processos interligados. A riqueza de detalhes com que a catástrofe vem sendo descrita contrasta com a inércia de governos, empresas e sociedades civis – um relatório divulgado em setembro mostrou que em 2013 as emissões de gases do efeito estufa aumentaram 2,3% em relação ao ano anterior.

No ano 2000, o biólogo americano Eugene Stoermer e o químico holandês Paul Crutzen, prêmio Nobel em 1995, propuseram que se alterasse a linha do tempo com que os cientistas medem os éons, épocas e períodos geológicos, de modo a refletir as transformações no planeta causadas pelas atividades do homem. Segundo eles, as marcas da ação humana continuarão visíveis por milênios, gravadas nas camadas geológicas da Terra. Paleontólogos de um futuro longínquo – ou mesmo de outra civilização, caso a nossa venha a ser dizimada – provavelmente saberão identificar a alteração brusca na composição da atmosfera e as demais mudanças ambientais que provocamos, por meio dos fósseis de incontáveis espécies extintas, rejeitos radioativos, toneladas de plástico e outros rastros da nossa passagem devastadora pelo globo.
A essa época em que nossa espécie se tornou uma força geológica, Stoermer e Crutzen sugeriram dar o nomeAntropoceno. Numa aula recente, Viveiros de Castro explicou que o conceito marca um colapso de escalas – a história do planeta e a da espécie humana, antes nas mãos de disciplinas distintas, agora se confundem. “O capitalismo passa a ser um episódio da paleontologia.”
Desde que foi proposto, o termo Antropoceno vem sendo apropriado por especialistas de várias disciplinas. No entanto, aUnião Internacional de Ciências Geológicas, guardiã da escala do tempo, ainda não o adotou oficialmente. A ideia esteve na pauta do último congresso da entidade, em 2012, quando uma comissão discutiu se o sinal da presença humana nas camadas geológicas é forte e distinto o bastante para justificar a formalização de uma nova época. Discussão inconclusiva, decisão adiada para o congresso de 2016: até lá, continuamos vivendo no Holoceno, iniciado há 12 mil anos, ao final da última glaciação.
Não há consenso sobre quando teria começado o AntropocenoCrutzen vê sua origem na invenção da máquina a vapor em 1784, marco da Revolução Industrial, mas há quem prefira situá-la no início da agricultura, na era dos grandes descobrimentos ou no início da era nuclear – cada recorte com suas implicações políticas. O nome da nova época também é motivo de discórdia. Ao atribuir a transformação planetária ao anthropos, o termo Antropoceno joga a culpa sobre toda a espécie, embora uns sejam mais responsáveis do que outros. O sociólogo Jason Moore propôs o nome Capitaloceno, enfatizando o modo de produção responsável pelas mudanças globais. “Essa opção focaliza as causas mais que as consequências, mas perde de vista o fato de que é possível sair do capitalismo, mas não do Antropoceno”, ponderouViveiros de Castro. “Quando o capitalismo acabar, o planeta vai continuar registrando, por muito tempo, os efeitos daRevolução Industrial e da emissão de gás carbônico.”

O dia da palestra de Bruno Latour – o nome de maior projeção dentre os convidados do colóquio – foi o primeiro a ter as entradas esgotadas. Nascido na Borgonha há 67 anos, Latour se formou em filosofia e atuou como sociólogo e antropólogo das ciências. Nas últimas quatro décadas, tem proposto uma nova forma de enxergar a produção do conhecimento científico, rejeitando noções como o excepcionalismo humano ou o dualismo entre natureza e sociedade, e entre sujeito e objeto. Conquistou uma legião de seguidores em várias disciplinas, mas também alguns críticos. No ano passado, recebeu o prêmio Holberg, citado em seu currículo como “o equivalente mais próximo do Nobel para as humanidades e ciências sociais”. Criado em 2003 pelo governo norueguês, o prêmio já foi concedido a nomes como Jürgen Habermas e Manuel Castells.
Latour usa óculos de armação grossa e tem os cabelos pretos repartidos de lado, contrastando com o grisalho das fartas sobrancelhas e do cavanhaque. Durante um almoço na semana do evento, ele contou que seu interesse pela crise ecológica começou nos anos 90, quando orientou doutorados sobre controvérsias ambientais, fez um estudo para o Ministério do Meio Ambiente e escreveu Políticas da Natureza. “Mas foi por volta de 2005 que passei a me interessar por Gaia, incorporando o termo como figura da atualidade.”
O químico James Lovelock se inspirou em Gaia – deusa mãe da mitologia grega que personifica a Terra – para batizar a hipótese que descreve o planeta como um sistema complexo autorregulável, com comportamento semelhante ao de um organismo vivo. Sua proposta, formulada nos anos 70, projetou a imagem de Gaia, que fez sucesso na cultura pop e entre alguns cientistas, mas nem todos compraram a ideia. Junto com outros colegas, Latour vem redefinindo o conceito em livros, artigos e conferências. Na abertura do colóquio, o francês alertou para o risco de um pensamento holístico que despreze a multiplicidade de Gaia. “Se a tratarmos como uma totalidade, ela será apenas uma possibilidade de recarregar as formas de modernismo que se esgotaram justamente por causa da crise ecológica.”
Em suas últimas publicações e conferências, Latour tem mostrado como a crise ambiental é marcada por um novo tipo de controvérsia, cuja resolução já não pode ser arbitrada pela ciência. “É fácil entender por que as pessoas não correm para depositar confiança nos resultados dos cientistas”, considerou o francês. “Eles anunciam fatos que estão tão bem estabelecidos quanto os fatos mais bem estabelecidos da história das ciências, mas pedem que você mude sua vida.”
Para Latour, a crise põe em xeque as distinções tradicionais entre fatos e valores, forjadas num mundo em que a ciência cuida dos objetos, e a política, dos sujeitos. Mas não há como fazer ciência desinteressada no mundo de Gaia. Latour notou que afirmar que a água ferve a 100 graus centígrados é uma coisa; constatar que a concentração atmosférica de gás carbônico chegou a 400 partes por milhão, como aconteceu em 2013, é outra bem distinta. “Nenhum climatologista pode ouvir essa frase e passar a outro tópico”, ele lembrou. “A constatação soa como uma sirene ensurdecedora.”
E, no caso dele próprio, a gravidade de suas reflexões não o impele à ação? “Sempre desconfiei dos intelectuais engajados”, respondeu Latour, que acredita ser mais útil fazendo o que faz – dando aula, mobilizando estudantes e propondo a discussão pública do tema. E, desde 2010, fazendo teatro, que lhe oferece um meio mais flexível para intervir no debate sobre a mudança climática. Seu projeto Gaïa Global Circus já deu origem a duas peças, uma das quais coescrita por ele próprio. Do Rio, o francês embarcou para Nova York, onde armaria o Circo de Gaia na semana em que a cidade recebeu aCúpula do Clima da Onu e a Marcha do Povo pelo Clima, a maior manifestação já feita em torno da causa, com 300 mil pessoas.
Latour condenou o desdém de alguns colegas pelo tema ambiental. “Na França e no Brasil, a questão continua a despertar um sorriso nos intelectuais que, uma vez que leram Foucault e Deleuze e foram vagamente de esquerda, pensam já ter feito seu trabalho para o resto da existência”, disse o francês. “Chamo a isso de quietismo ambiental. No fundo, creio que eles estejam mais próximos dos céticos.”

A ideia de reunir pensadores que refletem sobre a crise ambiental surgiu em 2012, na casa de Eduardo Viveiros de Castroe Déborah Danowski em Teresópolis, numa conversa com Bruno Latour e sua mulher, Chloé. O antropólogo brasileiro pretendia estimular um debate que ainda é tímido entre seus colegas. “No Brasil, é muito pequena a reflexão das ciências humanas e sociais sobre as mudanças climáticas”, disse. “Essa discussão está pegando fogo no mundo todo, mas a ficha não caiu aqui.”
Ao lado de DéborahViveiros de Castro tem tratado do tema em suas intervenções públicas, seja em conferências, seja nas redes sociais. Na semana do colóquio, lançaram Há Mundo por Vir? Ensaio Sobre os Medos e os Fins – um livro queLatour recomenda ler “como se toma uma ducha gelada”, para nos prepararmos para o pior.
Na abertura do colóquio, o antropólogo brasileiro lamentou que o tema do aquecimento global estivesse ausente da imprensa e da agenda eleitoral. Assinalou também uma coincidência irônica: na mesma semana, o Rio de Janeiro sediava outro evento internacional, a Rio Oil & Gas 2014, uma feira da indústria petrolífera que tinha entre os patrocinadores Petrobras,ShellTotalStatoilExxonMobil e outros gigantes do setor que mais emite gases-estufa. O evento recebeu dezenas de milhares de participantes em seus quatro dias, inclusive o vice-presidente Michel Temer, em campanha para a reeleição. “É eloquente o fato de estarmos dividindo o espaço do Rio de Janeiro com os grandes responsáveis por boa parte da crise climática mundial”, disse Viveiros de Castro.
Em sua conferência, sublinhou a importância de o aquecimento global ser discutido pelas humanidades. “Sabemos muito bem o que está acontecendo e quem é o responsável, o que não sabemos é o que fazer e como, e isso está inteiramente fora das competências dos cientistas do clima”, disse. Viveiros de Castro ironizou a proposta que o biólogo americanoEdward Wilson fizera semanas antes, de reservar metade do planeta para os organismos não humanos. “Ele não diz exatamente onde vai ficar essa metade, e nem em qual metade ficarão os Estados Unidos”, disse, arrancando risos. “É a típica ideia de jerico de um cientista natural americano. Por isso nós, cientistas antinaturais, precisamos entrar no jogo.”
O time escalado para o colóquio contou sobretudo com filósofos, historiadores e cientistas sociais, mas também incluiu pesquisadores das ciências naturais, como o físico Alexandre Costa, professor da Universidade Estadual do Ceará e editor do blog O que Você Faria Se Soubesse o que Eu Sei?
Costa disse que não estava ali para dar boas notícias. Projetou slides que ilustravam o ritmo inaudito do aquecimento do sistema climático, o crescimento da forçante radiativa e o risco da emissão na atmosfera de uma quantidade assombrosa de metano estocada no permafrost ártico. “A besta climática está acordando”, resumiu.
Quando o microfone foi aberto ao público, uma senhora se disse bouleversée, em sintonia com o espírito algo francófilo que permeava o encontro. Sua ficha acabara de cair. “Estou extremamente chocada. Queria fazer uma pergunta ao Alexandre e a todos que detêm esse tipo de conhecimento: Você tem filhos? Como consegue dormir e ser feliz todos os dias?” Costasacou da mala duas caixas de remédio e agitou-as no ar: “Como eu consigo levar adiante?”, perguntou à plateia. “Jogando dopado!”
Numa conversa no dia seguinte, o físico afirmou que gostaria de provocar reações como aquela em todo mundo. Mas, além da preocupação, ele deseja mobilização. “Uma década atrás precisávamos da esperança das pessoas; hoje queremos o desespero.”

Outro nome estrelado do colóquio foi a belga Isabelle Stengers, uma química convertida em filósofa da ciência que é autora ou coautora de mais de vinte livros e professora da Universidade Livre de Bruxelas desde 1997. Em 2009, lançou No Tempo das Catástrofes: Resistir à Barbárie que Vem Aí, uma reflexão sobre a crise ecológica sem edição em português. Propôs ali a imagem da “intrusão de Gaia” para caracterizar a irrupção irreversível do planeta no primeiro plano de nossas vidas, chamando a atenção dos colegas para o conceito de Lovelock.
Nascida em 1949, Stengers é uma senhora de olhar vivo e fala envolvente. Numa entrevista no último dia do colóquio, ela falou sobre a situação inédita com que se deparam as ciências naturais. “Os cientistas do clima precisam de apoio. Eles devem desconfiar de seus aliados tradicionais – as empresas e o Estado –, que podem se apropriar completamente do problema com consequências catastróficas.” Para a pensadora belga, o momento é de cooperação. “As ciências humanas podem lhes dar a imaginação que a sua formação não lhes deu sobre as consequências que não lhes são familiares”, afirmou. “Se eles puderem povoar sua imaginação, talvez fiquem menos vulneráveis.”
Escalada para a conferência de encerramento, Stengers fez um balanço das discussões travadas durante a semana. Em tom grave, observou que no futuro talvez sejamos confrontados por questionamentos similares aos dos jovens alemães nascidos no pós-guerra, quando descobriram os horrores do Holocausto“Vocês sabiam, e o que fizeram?” Ela se disse hesitante entre o pesadelo e a vergonha. “Daqui a trinta ou quarenta anos seremos a geração mais odiada.” 

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/536151-esse-mundo-ja-era