terça-feira, 31 de julho de 2012

Músicas na Justiça: a letra no banco dos réus


Músicas na Justiça: a letra no banco dos réus
Gisele Mascarelli Salgado


Resumo: Este ensaio pretende estudar como a justiça brasileira tem lidado com a difícil tarefa de conciliar a proteção aos direitos humanos fundamentais e o direito de liberdade de expressão, a partir de algumas letras de música que foram discutidas no judiciário brasileiro.

Palavras-chave: Música, Direito como instituição imaginária social, Castoriadis,

Sumário: Introdução, 1. Censura, ditadura e liberdade de expressão, 2. Liberdade de expressão e direito de mudar as normas legais, 3. Música, Direito e racismo: 88 Heil Hitler - discussão sobre a divulgação de idéias nazistas, 4. Música, Direito e proteção da criança e adolescente: E porque não? - discussão sobre a conduta pedófila, 5. Música, Direito e racismo: Veja os cabelos dela - discussão sobre os direitos da mulher negra, 6. Música, Direito e violência: Um tapinha não dói – discussão sobre o direito de não violência contra a mulher, 7. Música, Direito e criminalidade: Bonde do 157- discussão sobre a apologia ao crime, 8. Música, Direito e drogas: Legalize já- discussão sobre a legalização da maconha, 9. O judiciário tutelando os valores sociais, Considerações Finais, Bibliografia

Introdução

Centenas de músicas foram parar no banco dos réus no judiciário brasileiro nas últimas décadas, em especial por causa da censura sob letras de músicas de cunho político no período áureo da ditadura militar brasileira. O direito de expressar o pensamento sem censura prévia foi conseguido por meio de muita luta. A Constituição Federal de 1988 fez questão de ressaltar como um dos direitos fundamentais a liberdade de expressão, tornando jurídico o lema utilizado contra a censura na ditadura militar, de que “É proibido proibir”.

Porém, a liberdade de expressão acabou sendo relativizada pelo judiciário, que começou a criar parâmetros para a liberdade de expressão. Diante da grande onda dos direitos humanos das minorias, começou-se combater, via judiciário, uma série de condutas discriminatórias, e esses direitos passaram a entravar em choque com o direito da liberdade de expressão. O que o judiciário entendeu como razoável foi privilegiar os direitos humanos quando esses entrassem em choque com o direito de expressão. Assim, a expressão de idéias nazistas foi condenada e proibida, pois se entendeu que o direito à não discriminação, o direito de minorias étnicas e principalmente o direito à vida, deveria prevalecer[1]. A discussão sobre o conteúdo de letras de música tomou novos rumos nos anos pós-ditadura, pois a proibição estatal que levava à censura era dada não por uma diferença de idéias políticas entre os letristas e o governo, mas sim por uma busca por proteção dos direitos humanos.

As letras de música são uma expressão cultural que é particularmente difícil de estabelecer parâmetros para censura, mesmo quando essa censura visa uma causa socialmente relevante. Em primeiro lugar, as letras são expressão do compositor, que pode tomar um personagem a fala. Logo, a letra não é necessariamente a opinião daquele que a escreve. O compositor ao falar como uma personagem pode atuar como uma mulher, um criminoso, um homofóbico, um racista, etc.. Assim, Chico Buarque escreve como uma mulher, contando as desventuras de seu guri, que pratica diversos crimes. Esse recurso é tão utilizado nas letras de música, como em toda a literatura e dificilmente alguém na sua melhor consciência diria que Shakespeare, Rubem Fonseca, Ágata Christie dentre outros tantos, se confundem ou mesmo defendem o que fazem seus personagens.

Em segundo lugar, as letras como textos podem ser interpretadas de diversas maneiras. Um texto altamente censurável por defender uma idéia não querida socialmente pode ser interpretado de maneira irônica ou cômica e se tornar uma crítica a mesma idéia. Esse é o caso tratado pelo famoso musical “Primavera para Hitler”, que tem como título original “The Producers”. A interpretação a ser dada a partir de um texto dificilmente é formalizada em escrito juntamente com o texto.

Em terceiro lugar, o texto de uma letra de música não tem uma relação direta com a verdade, é uma obra de ficção. Desse modo, as letras podem retratar situações exageradas e distorcidas, casos inverossímeis, pois não há comprometimento com a verdade. Se a verdade fosse necessária para as obras poéticas seria necessário algumas centenas de letristas sofredores de amor, outras centenas com vidas miseráveis e outros tantos com vidas invejáveis. A verdade é um dos pressupostos para a existência da ciência, mas não é para as atividades da poiesis. Exigir que os contos, romances e letras de música sejam verossímeis ou verdadeiras não é razoável.

Em quarto lugar, é difícil o judiciário poder estabelecer uma censura efetiva sobre letras de músicas proibidas, frente aos novos meios de comunicação como a internet. Esse meio de comunicação permite a veiculação e difusão de todo tipo de informação, sendo muito difícil se detectar a autoria quando esta não está explicita, dificultando a punição de condutas criminosas. O controle da produção musical por empresas facilitava sobremaneira a possibilidade de censura.

A censura no pós-ditadura tem de lidar com todos esse componentes de uma letra de música, que vai muito além do binômio existir ou não uma crítica ao governo estabelecido. Há algumas letras de músicas brasileiras que recentemente foram questionadas quanto à sua censura ou proibição, que tinham forte cunho de crítica política. Dentre elas está a “300 picaretas” de Herbert Vianna do grupo Paralamas do Sucesso, que colocava em dúvida a lisura de deputados e senadores brasileiros e “Vossa Excelência” do grupo Titãs, que trata da corrupção na política brasileira. Esses grupos estão consolidados de rock brasileiro e ganharam respeito do público por sua postura e letras críticas. As discussões sobre a proibição dessas músicas não seguiram para o judiciário, havendo um consenso que proibi-las seria voltar a impossibilidade de crítica política sem sanção.

Outro é o caso de letras de música que não lidam com questões aparentemente políticas. Ainda há muita dificuldade de proibir ou censurar letras de música que retratam violação aos chamados “direitos de minoria”. O judiciário brasileiro tenta tutelar direitos que envolvem um conflito de direitos (direitos humanos e direito à liberdade de expressão), porém a dificuldade não está na escolha. A discussão que geralmente se faz entre os profissionais de direito é sobre a questão da escolha e da existência de parâmetros para os magistrados. Não há como se apontar outro motivo para a escolha, que não uma opção política. O nome dessa postura de defender os direitos humanos em detrimento das posturas comumente utilizadas na sociedade é “politicamente correto”, evidenciando que a escolha é política.

Entende-se que a dificuldade não está na escolha política, mas sim no próprio caráter da obra de arte. A arte, que aqui se dá na criação da letra e sua interpretação na música, não pode ser regrada legislativamente, nem pelo judiciário, sob pena de restrição à criação, mesmo quando esta implique em um certo desconforto social. A arte permite todas as transgressões que a fala social não permite.

Essa discussão está presente na sociedade moderna que tem colocado em inclusive em questão algumas cantigas de roda e canções de ninar. Segundo os defensores dos direitos humanos, como as músicas são cantadas por crianças, seria necessário a modificação de algumas letras, para preservar os direitos humanos[2]. Outros defendem que se trata de um exagero do “politicamente correto”, uma vez que as músicas fazem parte de toda uma tradição cultural brasileira. A busca por alteração de letras de música que ofendem os direitos humanos está nas músicas infantis e também nas músicas produzidas ao público adulto.

Nem todas as letras de música são questionadas quanto à sua compatibilidade ao respeito aos direitos humanos, evidenciando-se uma seleção que não é isenta de pré-conceitos. Músicas populares como o pagode, o axé e o funk tem sido repetidamente questionadas a respeito de suas letras e suas danças. Essas músicas passaram a difundidas nos veículos de comunicação de massa a partir da década de 80. Se o samba foi incorporado como um patrimônio nacional brasileiro, com dançarinos executando passos sensuais e com pouca roupa, o mesmo não se deu com outros ritmos populares. O Rap (abreviatura de rhythm and poetry) dificilmente é questionado por suas letras, provavelmente por seu caráter de denúncia/protesto, pela pouca inserção na grande mídia e por dificilmente estar associado à danças sensuais.

Abaixo, selecionou-se sete letras de músicas que levaram há seis processos judiciais. Dentre esses seis processos há decisões das mais diferentes: umas que afirmam os direitos humanos em detrimento da liberdade de expressão, outras que fazem o contrário, outras que descaracterizam o suposto crime e outras ainda que não há discussão da letra pela desistência da ação. Em todos esses casos o que salta aos olhos é a verdadeira ginástica com base na língua que os magistrados fazem para descaracterizar uma ofensa aos direitos humanos.

Essas discussões judiciárias sobre letras de música apontam para um direito que vai além do direito que está nos códigos, e para a dificuldade do magistrado lidar com uma sociedade de posições tão diferentes. A não assimilação de posturas ‘politicamente corretas’, segundo alguns magistrados, decorre muito mais do desconhecimento e ignorância do que a contrariedade a essa posição. Algumas sentenças caem em outras armadilhas, para ‘desculpar’ os escritores das letras de terem cometidos ofensas a direitos humanos. Uma dessas armadilhas é considerar a música como de “mau gosto” e assim sendo não deve ser levada em grande consideração, mesmo quando ofende direitos humanos. As músicas de ‘mau gosto’ foram censuradas igualmente durante o período da ditadura militar, sob alegação que feriam os bons costumes. O gosto é da esfera do belo, da estética e não da justiça. O judiciário não pode sob o argumento de serem de mau gosto proibir letras de música, pois isso seria extrapolar sua competência, que não é para julgar o belo.

As letras de música discutidas nessas decisões judiciais estão longe de ter temas tranqüilos: racismo, pedofilia, violência contra a mulher, incitação ao crime e legalização da maconha. Todos estes temas levam a debates inflamados, apaixonados e cheios de argumentos prós e contras. Porém, todos os temas se encontram pacificados no judiciário e claramente dispostos na legislação brasileira. O racismo é condenado, bem como a pedofilia, a violência contra a mulher, a incitação ao crime e o uso de drogas. Isso aponta para o fato dessas questões ainda não estarem consolidadas na sociedade e para a dificuldade que é julgar, uma vez que o magistrado não se porta como uma máquina de fazer sentenças, que adéqua os fatos às normas.

O objetivo desse artigo é verificar como são articuladas as construções das sentenças dos magistrados para esses temas polêmicos, por meio de análise de sentenças em que são discutidas letras de música produzidas no Brasil do fim dos anos 90 e início dos 2000[3].

1. Censura, ditadura e liberdade de expressão

A luta pela liberdade de expressão durante a ditadura militar brasileira dos anos 70 deixou como legado uma legislação protetiva à liberdade de expressão, mesmo quando essa venha a ser contrária às posições dominantes. Diversos compositores e cantores foram censurados e proibidos de expor suas canções. O auge da repressão da ditadura militar não coincidiu com o auge da censura nas letras de música, que data dos finais da década de 70[4]. Porém, a censura à arte ainda é uma das grandes preocupações atuais. Quando o Estado busca intervir em qualquer forma de arte censurando-a, há uma grande clamor social. Censura à arte tornou-se algo indissociável do estabelecimento de um governo ditatorial. A Constituição Federal de 1988 deixa claro que a liberdade de expressão é um direito fundamental da pessoa.

A censura na ditadura militar ganhou força em atuar na não proliferação de idéias não queridas pelo governo de então, que englobavam desde a não expressão de oposição até idéias que fossem contra valores nacionalistas, que ferissem a moral e os costumes, que não respeitassem os valores tradicionais da família, entre muitos outros[5]. Não eram apenas as conhecidas “músicas de protesto” que foram censuradas, mas qualquer música que fizesse ou deixasse entender que fez referência a valores contrários ao que os censores entendiam como corretos.

As letras de música começaram a ser grande alvo da censura também porque a indústria fonográfica no Brasil nessa época cresceu exponencialmente, conjuntamente com a popularização da tecnologia para reprodução das músicas. As letras de música que atingiam ao grande público necessitavam passar pelos órgãos da censura. Isso era facilitado pelo fato de que todo o processo de divulgação das músicas estava concentrado na mão de grandes gravadoras de discos.

Os próprios compositores tiveram uma reação à censura, modificando suas letras para que essas não tivessem restrições apontadas pela censura. Surgiram com isso letras muito elaboradas, que buscavam no duplo sentido a possibilidade de expressão de uma idéia proibida sem que fossem censuradas. Não raro os censores não tinham a mesma formação educacional ou a capacidade de entendimento das letras, o que ocasionava letras censuradas, simplesmente por um parco entendimento do censor do assunto tratado. O cargo de censor era exercido por um funcionário público que prestava um concurso e obedecia a uma ‘cartilha’ que deveria ser observada[6]. É importante ressaltar que existiam órgãos censores e havia um especializado em diversos e espetáculos que cuidada especialmente das letras de música. Não se tratava de uma censura feita pelo judiciário e isso ocasionava uma série de complicações, uma vez que não era respeitado nem ao menos o direito de defesa.

Ao censor também cabia o papel de alterar a letra para “aprimorar o gosto”, fazendo às vezes de crítico de arte. Esse papel é apontado por Maika Lois Carocha, no trabalho a censura musical durante o regime militar (1964-1985), nas seguintes palavras:

“O veto também era apresentado como instrumento para aprimorar o gosto, elevar o nível cultural e o padrão moral do povo brasileiro. Composições eram vetadas por serem inadequadas, ofensivas e até mesmo por conterem erros gramaticais e serem consideradas de péssima qualidade musical”[7].

Essa questão do gosto não irá desaparecer, como se poderá ver a seguir, mesmo nas decisões judiciais da década de 90 e início dos anos 2000. Os magistrados atentam para o direito constitucional da liberdade de expressão, porém não deixam de ter uma atitude de censura ao dizerem abertamente em suas decisões que as letras são de mau gosto. O gosto é sempre algo determinado por alguém ou por parcela da sociedade, que irá estabelecer àquilo que é de bom gosto ou não, o que é belo e o que não é. O gosto é estabelecido, não é algo ‘natural’.

Ao dizer que algo é de mau gosto, diz-se que não tem o gosto estabelecido como bom e inferioriza-se esse outro que não é aquele gosto padronizado. Essa inferiorização que busca a exclusão e o extermínio do outro, é muito semelhante ao mecanismo do racismo. A inferiorização de um gosto ao mesmo tempo em que rebaixa o gosto e as pessoas que estão ligadas a ele, valoriza o gosto padronizado como bom e as pessoas que o adotam. Muitas vezes ter “gosto apurado” não é apenas uma questão de escolha estética, mas também de possibilidade de consumo de bens caros, uma vez que geralmente o bom gosto é ligado na sociedade moderna àquilo que é raro, é caro e é luxuoso. Mesmo a cultura e a educação podem ser entendidas como bens de consumo e como tal, não acessíveis a todos da mesma forma, gerando inferiorização e discriminação.

2. Liberdade de expressão e direito de mudar as normas legais

A liberdade de expressão é um dos direitos garantidos constitucionalmente como direitos fundamentais. A Constituição Federal de 1988 positiva a liberdade de expressão, garantindo em diversas atividades a livre manifestação do pensamento. Esse direito é tão importante, que foi também expresso no artigo 220 da comunicação social. Esse direito é garantido também na Declaração Universal dos Direitos Humanos, elevando a liberdade de expressão como um direito humano.

“CF-88 Art. 5°, IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

CF-88 Art. 220 - A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a. informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. §1° - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5°, IV, V, X, XIII e XIV;§2° - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística

DUDH art. XIX "Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras".

A liberdade de expressão não é restrita a nenhum condicionamento na legislação brasileira atual, porém como nenhum direito a liberdade de expressão é absoluta. Assim, é possível em uma situação específica a relativização desse direito diante de um direito ainda maior. Essa relativização é sempre difícil de ser realizada e somente pode ocorrer em análise pelo judiciário de um caso específico. Limitar um direito tão fundamental é sempre complicado, pois corre-se o risco do estabelecimento de uma censura. Deve-se lembrar que o direito de liberdade de expressão não foi suprimido durante a ditadura militar, mas limitada por padrões como a manutenção da ordem pública e dos bons costumes.

A liberdade de expressão por vezes esbarra nas leis brasileiras, que acabam por limitá-la, uma vez que não se pode tudo fazer e tudo falar, sem conseqüências. As leis estabelecem um balizamento dos comportamentos, indicando comportamentos não queridos. Essa limitação não é entendida como uma restrição à liberdade de expressão. Porém, há casos em que a previsão legal conflita com a liberdade de expressão, como no caso de apologia ao crime e no respeito aos direitos de crianças, adolescentes, mulheres, negros, dentre outros sujeitos de direito. Há uma vontade do homem em alterar a sociedade e também as leis, que só é possível quando essas são contestadas. Muitas letras de música são expressão da vontade do homem de alterar as leis de sua sociedade e não raro essas letras afrontam o direito estabelecido. Garantir os direitos da sociedade atual e ao mesmo tempo propiciar um espaço de diálogo para garantir a evolução do direito é um dilema difícil do direito moderno positivado.

3. Música, Direito e racismo: 88 Heil Hitler[8] - discussão sobre a divulgação de idéias nazistas

A divulgação de idéias racistas ligado aos ideais nazistas não é muito comum no Brasil. Esse tipo de racismo não é direcionado a um tipo de “minoria” específica, mas sim à diversos povos e pessoas. Os ideais nazistas buscavam exaltar a superioridade da raça branca, inferiorizando todas as demais. Amparado por uma cientificidade a Alemanha depois da primeira guerra mundial abraçou idéias como a eugenia e o anti-semitismo.

O racismo é um assunto encarado por diversos filósofos, entre eles Cornelius Castoriadis, que entende que o racismo é do homem e por isso é difícil a sua extinção. Para o filósofo as sociedades se formaram inferiorizando os outros povos para valorizar as pessoas que faziam parte dessa sociedade. As instituições imaginárias sociais são criadas sob o signo do ódio ao outro, que é entendido como inferior. Assim, diz o filósofo grego:

“Na minha opinião, a idéia central é a seguinte: o racismo participa de alguma coisa muito mais universal do que aceitamos admitir habitualmente. O racismo é uma transformação ou de um descendente especialmente violento e exacerbado (arrisco-me até mesmo a dizer: uma especificação monstruosa) de uma característica empiricamente quase universal das sociedades humanas. Trata-se, em primeiro lugar, da aparente capacidade de se constituir como si mesmo, sem excluir o outro; em seguida, da aparente incapacidade de excluir o outro sem desvalorizá-lo, chegando, finalmente a odiá-lo”[9].

O racismo é diferente e mais grave do que a discriminação, uma vez que com o racismo, a pessoa que o pratica não visa apenas inferiorizar o outro, mas imputar características ruins a esse outro. Castoriadis entende que o racismo é nefasto, pois ele não quer a mudança daquilo que o outro tem de negativo para sua incorporação, mas quer o extermínio do outro. “O racismo, entretanto, não quer a conversão dos outros, ele quer a sua morte”[10]. Por pregar que pessoas deveriam ser mortas ou não existir simplesmente por ser o que são, é que não se pode admitir esse tipo de conduta.

A letra da música da banda Zunzir de autoria de Alexandro Fraga Carneiro, foi discutida na apelação crime nº 70012571659 da 5º Câmara criminal na comarca de Porto Alegre. A banda Zunzir, segundo a decisão da apelação, se reunia para uma série de atos de divulgação de idéias nazistas, discriminação, ofensa, chegando mesmo à agressão. A letra da música é apenas um dos itens das práticas discriminatórias da banda, que incluía: panfletagem de idéias nazistas em folhetos e na internet deixando claro o ódio à negros e homossexuais, agressões com bastão de beisebol, utilização de suástica e saudações nazistas. Foram acusados pelo crime de racismo em concurso de pessoas (art. 20, § 1º da Lei 7716/89 modificado pela Lei nº 9.459/97, na forma do art. 29, “caput”, do Código Penal) cinco pessoas e os três integrantes da banda, sendo que sete deles aceitaram a proposta de suspensão condicional do processo.

O vocalista da banda e compositor da letra da música não aceita a suspensão, preferindo seguir com a defesa, que não foi aceita e o compositor foi condenado ao crime de racismo e a pena restritiva de liberdade prevista foi depois transformada em duas restritivas de direito e multa. Nas razões recursais o compositor da letra da música refuta os atos violentos e de divulgação de idéias nazistas e afirma que a letra da música buscava saudar o nacionalismo de Hitler, não havendo com isso o dolo específico necessário para configurar a conduta prevista na Lei n° 7.716/89. Analisando os autos do processo os magistrados entenderam que deveriam manter a decisão.

Este caso teve grande repercussão pela condenação de um dos integrantes da banda, que se recusou a aceitar a suspensão do processo alegando que não praticou crime de nazismo na letra da música e nas outras ações citadas no processo. Os jornais e a grande mídia noticiaram a sentença como uma grande vitória contra as impunidades, porém somente houve condenação para uma pessoa. A sociedade entende que esses crimes não podem mais se repetir, devido sua violência em querer aniquilar o outro, que não é considerado pelo racista como um igual. Porém, idéias racistas surgem a todo o momento nas sociedades modernas e nem uma ínfima parte delas transforma-se em ações penais com condenação. Há uma imensa dificuldade da sociedade (e não só a brasileira) de lidar com a questão do racismo e diante disso, o legislativo proíbe e o judiciário segue tentando equacionar leis repressoras e práticas sociais permissivas ao racismo.

Apesar das leis que proíbem o racismo terem se tornado ao longo do tempo mais duras, uma vez que aumentaram as condutas e também as penas, isso não significou em uma condenação maior aos criminosos. As leis processuais permitem uma série de substituições das penas, tornando a pena prevista para o crime de racismo muito mais abranda, gerando na população uma sensação de impunidade. O clamor popular de penas mais duras é efetivado pelo legislativo alterando as leis, porém o judiciário não podendo estabelecer a pena de liberdade a todos, muitas vezes por impossibilidade física e econômica, tira da própria legislação processual instrumentos para abrandar as penas inicialmente previstas.

4. Música, Direito e proteção da criança e adolescente: E porque não?[11] - discussão sobre a conduta pedófila

A pedofilia é um dos novos tabus da modernidade. Em um mundo em que as regras são feitas e refeitas e que parece que tudo é permitido, a pedofilia não é aceita em nenhuma hipótese em nenhuma circunstância e seu combate virou política estatal. As crianças e adolescentes são bens preciosos em um mundo em que as pessoas, nos grandes centros urbanos, têm cada vez menos filhos. Os pais investem cada vez mais tempo, afetos e dinheiro em seus filhos e procuram protegê-los de todos os males. Considera-se como um desses males, a exposição precoce ao sexo e em última instância está o sexo ou situação de sexo entre um adulto e uma criança. Entende-se que a criança e o adolescente na pedofilia são envolvidos, seduzidos para uma situação de sexo por um adulto, sendo a pior das vítimas, pois é vulnerável e não tem compreensão completa de seus atos ou conseqüências. Isso realmente se tornou verdade na sociedade moderna, porém nem sempre a pedofilia foi vista como um mal e foi até incentivada. Há uma série de suposições e construções conceituais nessas afirmações acima, que em outras épocas e locais ocorreram de outra maneira. Essas construções foram parar na legislação, no Brasil estão especialmente no Estatuto da Criança e do Adolescente.

A letra da música “E porque não?” da dupla Balde ou Bidê, coloca em questão exatamente esse novo tabu moderno. A letra tem a fala de um adulto que declara a um terceiro sua atração por uma menina, que é sua parente próxima, ainda em idade escolar, portanto menor. A letra leva a crer que o adulto pretende que a menina “entre na dele”, possivelmente indicando que ela ceda a sua paixão/atração. A letra não faz qualquer referência a um amor romântico, mas faz referência a um amor carnal. Outras tantas músicas fizeram referência aos amores entre adultos e adolescentes, mas não foram objeto de censura pela justiça, possivelmente por retratarem a situação romanticamente, como é o caso da letra “Menina” de Paulinho Nogueira.

O judiciário brasileiro decide sobre o destino da letra da banda de Porto Alegre na decisão do Agravo de instrumento n. 70013141262, que afirma ao analisar a letra que é: “Inegável que a letra da música E por que não??, da banda Bidê ou Balde, materializa apologia ao incesto e à pedofilia”. A decisão estipula uma multa como sanção e proíbe a sua veiculação. Trata-se de uma postura do judiciário que está de acordo com a proteção do ECA que protege a criança, e entende que a letra da música é prejudicial ao divulgar um comportamento não querido. É importante lembrar que no Brasil não possui uma tipificação na legislação penal para o incesto e para a pedofilia, que pode até serem moralmente reprovadas, mas não são tidas como crimes. Está em discussão ainda um projeto de lei para tipificar como crime hediondo a prostituição e exploração de adolescentes e crianças (Projeto lei 5658/09), mas o crime ainda é nomeado de exploração e não pedofilia. Não se pode prender ninguém por ser incestuoso ou pedófilo, nesses termos, pois a legislação penal não prevê esses crimes. Poderia-se falar nesse caso em abuso de menores e outros crimes contra crianças, mas não foram essas as palavras da decisão e requer-se dos membros do judiciário maior precisão técnica, uma vez que conhecem o Direito.

A repulsa do comportamento descrito na letra como não foi colocada como um crime é tida como de mau gosto: “Com efeito, é inegável que a letra da música “E por que não?” ultrapassou os limites do mau gosto, estimulando e banalizando a violência sexual contra crianças, incentivando o incesto e à pedofilia”. Não é de estranhar que a justificativa vá para o campo do gosto, uma vez que não há crime para incesto e pedofilia no Brasil. O gosto aqui pode indicar a questão moral, que parece ser ao magistrado muito mais relevante do que a questão jurídica.

O voto do presidente nesse acórdão reforça as idéias do magistrado relator, indicando a reprovabilidade desta letra e aproveitando para reprovar outras letras com conteúdo tido por ele como pornográfico. A letra pode ser reprovável moralmente, mas não há crime e de acordo com a doutrina penal brasileira não pode punir alguém por ser, mas sim por fazer. É interessante não haver fundamentação em uma doutrina jurídica, mas sim em opiniões de educadores e psicólogos que falam das conseqüências nefastas da pedofilia e do incesto. Assim diz o magistrado:

“É preciso, ainda, atentar que a letra musical em exame, apesar de não ser ostensivamente pornográfica, é mais grave do que isso, pois contém uma clara sugestão de que a pedofilia e o incesto são comportamentos perfeitamente aceitáveis (E por que não?), quando sabemos todos que se trata de uma manifestação doentia de personalidade (tecnicamente uma ‘perversão’), que causa em suas vítimas profundos e indeléveis traumas, que carregarão por toda a vida”.

Semelhante é o posicionamento do outro magistrado, que concorda com o magistrado relator e com o presidente a respeito da reprobabilidade da letra. O terceiro magistrado a se manifestar no acórdão também fala da questão do ‘mau gosto’ da letra. Ao repetir os versos da letra o magistrado os interrompe na metade, para tecer o seguinte comentário, retomando a letra em seguida: “E evidenciam um desejo anormal, doentio e repugnante do letrista e daqueles que cantam essa música, sugerindo pedofilia”.

Este magistrado faz uma relação de outras letras que segundo ele também são reprováveis: Mc Serginho: Vai Serginho. Tati Quebra Barraco: Espanhola. Mc's Vina E Fandangos: Festa da Paula. Bonde do Tigrão: Caçador De Tchutchuquinha. Menor do Chapa: Bonde dos 12 Mola. Menor do Chapa: Do Boldinho.Tati Quebra Barraco: Abre As Pernas, Mete a Língua.Tati Quebra Barraco: Ardendo Assopra. Furacão 2000: Punheta Arretada. Furacão 2000: Quer Bolete?. Planet Hemp: Queimando Tudo. Mc Frank: Pra Gatinhas. Assim diz o magistrado:

“Não é apenas essa música que choca, até por que ela apenas mostra o sentimento de um pedófilo e de um pai que nutre uma atração doentia pela filha. Peço vênia para lembrar os colegas outros exemplos de péssimo gosto, que tocam nas rádios e em programas de televisão, nos mais diversos horários, e estão gravados em CDs à disposição do público consumidor”.

A questão do gosto é muito presente no voto desse magistrado, que se desculpa por não apresentar as letras das músicas citadas, dizendo que o fez: “dada a situação de constrangimento que provocam a qualquer pessoa de mediana sensibilidade”. Das dez letras citadas pelo magistrado como pornográficas e de mau-gosto, nove delas são do estilo funk carioca ‘proibidão’. Segundo Marcos Joel dos Santos que realizou uma pesquisa em psicologia social, a certos tipos de produção musical são na verdade uma forma velada ou contida da discriminação ao negro (e aqui também poderia-se falar de uma discriminação as classes mais pobres e suas formas de expressão)[12]. A discussão sobre a qualidade dessas composições não deixa de ser uma discussão sobre a inferioridade da música produzida por pobres e negros.

Outra questão que parece muito preocupar o magistrado relator é a impossibilidade de se extirpar do mundo a letra e a música, pelos meios jurídicos conhecidos. A preocupação se dá devido a divulgação pela internet, que é uma rede anárquica de informações, dificilmente censurada. Na impossibilidade da extirpação, como quer o Ministério Público, e também parece querer o magistrado, este último dá a seguinte decisão:

“A solução, ao meu ver, está em reconhecer, expressa e judicialmente, que a letra da música indicada efetivamente tem conteúdo que estimula e banaliza a violência sexual contra crianças, ao incesto e à pedofilia, objetivando minimizar seus efeitos, com imposição, a partir daí, de penalização que reverta em benefício do público alvo atingido”.

Com essa decisão a música não foi totalmente proibida, pois pode ser veiculada em rádios, mas deve ser avisado sobre o seu conteúdo. Nos shows da banda a música também pode ser executada, porém deve-se para isso pagar uma multa. A decisão também coloca como sanção para que o CD da banda possa ser vendido, a arrecadação da multa de 20% do valor da faixa, que será revertido para um fundo de proteção à criança. Esta decisão que irá condenar a gravadora a uma pena de multa e que entende que o grupo musical incorreu em condutas de incentivo à pedofilia e ao incesto, não tem uma fundamentação forte na legislação, mas sim nas condutas morais entendidas como corretas na sociedade brasileira atual.

O abuso de crianças para vantagem sexual própria ou para exploração comercial por um adulto é algo, que é efetivamente não querido pela sociedade moderna. Porém, há de se ter cautela com a relação entre crianças/adolescentes e adultos. É preciso notar que nem toda relação criança adulto é sexual. Não se deve permitir os abusos sexuais, mas é preciso não entrar no terreno da “neurose protetiva”[13].

5. Música, Direito e racismo: Veja os cabelos dela[14] - discussão sobre os direitos da mulher negra

 A discussão da letra da música “Veja os cabelos dela” de autoria do compositor e cantor Tiririca, a respeito da existência do crime de racismo foi feita na Apelação Cível n. 16893/2002 - 33a Vara Cível da capital do Rio de Janeiro. Quem ingressa com a ação são duas ONGs: CEAP (Centro de articulação das populações marginalizadas) e Criola (ONG de promoção e defesa dos direitos das mulheres negras), entendendo que a letra da música é ofensiva as mulheres e em especial à mulher negra. Ocorre no âmbito penal a decisão que absolve Tiririca do crime de racismo, pois entende que ele não teve uma conduta racista, uma vez que era necessário o dolo específico para caracterizar a conduta prevista na Lei n° 7.716/89. A letra poderia indicar casos de crimes como injúria, difamação, calúnia, que recebem um tratamento menos gravoso do que o crime de racismo, que é considerado inclusive como inafiançável e imprescritível. A decisão da apelação entende que é possível uma condenação na esfera civil e condena a gravadora, com base no artigo 1°, IV, da Lei n°7.347/85, que não necessita do dolo, por não ter atentado ao conteúdo da música de cunho racista.

Porém, tal decisão somente foi possível com a apelação, uma vez que o magistrado de primeiro grau entendeu que não havia dano, pois não se tratava de racismo. A decisão do magistrado de segundo grau recompõe a discussão do primeiro grau ao reformular a decisão e permite perceber que a descaracterização do racismo somente ocorreu por uma argumentação, que não era propriamente jurídica. A decisão de primeiro grau buscava na palavra “nega” utilizada na música, mostra que a letra não se referia à mulher negra, uma vez que “nega” é um ‘apelido carinhoso’ que poderia ser utilizado inclusive para mulheres brancas. A descaracterização do crime não leva em conta outros termos da letra da música.

O magistrado de segundo grau enfrenta o tema de um modo mais complexo, entendendo que há sim na letra da música uma postura racista e de desvalorização da mulher negra. A decisão reconhece que Tiririca não foi condenado por crime de racismo, pois falta um elemento fundamental que é o dolo, que aos olhos do juiz penal, não ficou provado. Tiririca diz que a música foi feita em homenagem a sua mulher e não teve intenção de ofender ninguém. O magistrado que decide a apelação dá entender que a descaracterização da conduta de racismo ocorreu na esfera penal, muito mais devido à pessoa do Tiririca, do que a conduta propriamente dita. Assim diz:

“A absolvição do autor da música e dos executivos da Ré na Ação Penal pelo crime de "praticar, induzir ou incitar, pêlos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional.", apenado pelo artigo 20, da Lei n° 7.716, de 05/01/89, com a redação dada pela Lei n° 8.081, de 21/09/90, não constitui óbice à procedência do pedido formulado na Ação Civil Pública, porque, conforme constou do Acórdão proferido pela 2ª Câmara Criminal (fls. 616), a sentença absolutória foi confirmada por entenderem os julgadores que a figura típica imputada aos acusados só é punível a título de dolo específico, que consideraram não estar presente diante da personalidade simplória do cantor "Tiririca", que declarou ter se inspirado na sua própria mulher, sem o objetivo de ofender quem quer que seja.”

Se o “palhaço Tiririca” interpretado por Francisco Everardo Oliveira Silva foi absolvido do crime de racismo, o mesmo não se deu com a gravadora tida como responsável pelo conteúdo da letra de música de seus artistas. Com essa solução conseguiu-se a condenação da gravadora e a afirmação que ocorreu algum tipo de desrespeito aos direitos da mulher negra.

A apelação civil e a decisão penal dão decisões diferentes para a mesma letra de música, porém a diferença parece estar na pessoa que recebe a pena. Sancionar um palhaço inculto e de origens pobres por crime de racismo não é nada confortável ao judiciário brasileiro. Receber a absolvição do crime de racismo e ver a gravadora ser condenada pela letra da música, também deve ser difícil para Tiririca, uma vez que fica evidente a condição de pessoa incapaz ou menos capaz, que não sabia o que estava fazendo, apontada pelas decisões judiciais. Tiririca de vilão por crime de racismo é colocado na posição de vítima social e inferiorizado. Isso não desculpa o desrespeito aos direitos da mulher negra presente em sua composição, porém a vitimização[15] de Tiririca é tão terrível quanto à vitimização que muitos querem fazer dos negros e seus descendentes.

Ao julgar, os magistrados acabam olhando para àquele que está sendo acusado do crime, ou seja, o sujeito do crime importa tanto quanto o próprio crime. Isso vai contra grande parte da teoria do direito, que busca a igualdade perante a lei de todos e o foco na conduta e não na pessoa do criminoso. Se essa postura do judiciário algumas vezes não leva pessoas ricas e influentes à cadeia (conforme muitos costumam apontar ao falar da postura do judiciário brasileiro) , também não leva para lá, pessoas como Tiririca.

6. Música, Direito e violência: Um tapinha não dói – discussão sobre o direito de não violência contra a mulher

A ação civil pública n. 2003.71.00.001233-0/RS teve como objeto de discussão duas letras de música de grande repercussão nacional. A primeira delas é a letra ‘Tapa na cara[16]’ de MC Naldinho e Bella Furacão e a segunda é ‘Um tapinha não dói[17]’ do grupo Pagodart. A ação foi interposta pelo Ministério Público Federal e da ONG Themis - Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, que visava respaldar os direitos das mulheres e impedir a banalização da violência. As letras foram analisadas separadamente na decisão e tiveram dois finais diferentes.

Antes da análise das letras das músicas o magistrado faz uma longa explanação do direito da dignidade da pessoa humana e sobre o direito de liberdade de expressão, que é tido como um direito não absoluto. A decisão faz menção a diversas letras de músicas em que não prevaleceu o total direito de liberdade de expressão, como: “Veja os cabelos dela” de Tiririca, discutido na apelação cível nº 16893/2000 a 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, “88 Heil Hitlher” da banda Zunzir, discutido na apelação crime nº 70012571659 a 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e “E porque não?” do grupo Bidê ou Balde discutido na apelação crime nº 70012571659, a 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. O magistrado pretende dar legitimidade da sua decisão, elencando outras decisões em que eram discutidas letras de músicas e o direito de liberdade de expressão e o dos direitos humanos.

A letra “Tapa na cara” não foi considerada como ofensiva aos direitos da mulher pelo judiciário, uma vez que se entendeu que a vontade da mulher em receber um tapa na cara descaracteriza a questão de violência da mulher para a questão de sadomasoquismo, que não é punida pela legislação brasileira. É nesse sentido que se posiciona a decisão do magistrado:

“Ora, a letra musical questionada apenas relata um encontro amoroso entre um homem e uma mulher, que implora ao parceiro para que lhe dê tapas durante o ato sexual. O compositor, por meio da obra musical, apenas relatou a existência de formas variadas de prazer, cuja realidade, ainda que de gosto questionável, não deve ser ignorada pelo Direito. De forma alguma, portanto, a música discrimina e/ou incentiva a violência contra a mulher, limitando-se a demonstrar artisticamente a existência do masoquismo como manifestação do prazer feminino.
Não se trata, portanto, de incentivar a violência, mas apenas de respeitar as diferenças e a intimidade de cada ser que, a partir de seu próprio juízo de valor, pode optar pela forma de amor que melhor lhe aprouver. Nessa esfera da intimidade, é vedada a quem quer que seja, Estado ou particular, a intromissão sem consentimento”.

O sadomasoquismo é entendido, pelo magistrado, como uma conduta de “mau gosto”, porém não é algo a ser punido pelo Estado, uma vez que não há crime. A questão da vontade tem um condão muito mais forte para o magistrado, do que o que a doutrina costuma dar. Isso porque a vontade não descaracteriza totalmente a existência de um crime, mesmo quando esse tem o consentimento da vítima, como nos casos e eutanásia, por exemplo. A existência da vontade somente não vai levar a ação, que para esses crimes é uma ação privada subsidiária da pública, ou seja, requer que a manifestação da vítima para que ocorra o processo. Não seria absurdo pensar que na esfera privada a violência não fosse permitida pelo Estado, como há projetos de leis visando impedir a violência em crianças cometidas por seus pais, mesmo em situação de disciplina. A questão parece ser muito mais complicada do que tem sido encarada pelos juristas, pois o dogma da não intromissão do Estado na esfera privada há muito tempo não pode ser defendido sem problemas.

O magistrado nesse caso não deixa de manifestar seu julgamento sobre o gosto, que está na esfera da estética. Aqui o que é colocado em dúvida pelo magistrado não é o gosto na música, mas sim o gosto para o sadomasoquismo, que é tido como prática “de gosto questionável”. O magistrado vem a revelar uma opinião pessoal e para algo que não é absolutamente colocado como objeto da ação, nem pelas partes, nem mesmo pelo próprio Judiciário.

 Interessante ressaltar a diferença de posturas do Ministério público que entra com a ação, que vê nas duas letras um estímulo à violência contra a mulher, que é protegida pela Convenção de Belém do Pará (Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher) e a postura da gravadora que entende que a música é “manifestação cultural das classes menos favorecidas”. A justificativa da parte para descaracterizar a violência contra a mulher toma os rumos de uma posição elitista, ao entender que situações de violência somente ou predominantemente ocorrem entre pobres.

 A discussão judicial do tema é palco também para expressar e registrar diferentes posicionamentos sociais, deixando claro muitos pré-conceitos que a princípio não fazem parte da discussão jurídica. O judiciário é um palco importante da fala, especialmente daqueles que dificilmente conseguem expor suas opiniões e idéias no âmbito da esfera pública. A fala da gravadora estabelece uma divisão forte entre a discussão de direitos humanos e o acesso e participação da classe mais pobre a essas discussões. A impressão dada por essa fala é que os direitos humanos não é “coisa para pobre”.

A segunda letra de música analisada “Um tapinha não dói” foi considerada pelo magistrado como uma letra que há ofensa aos direitos da mulher. Muito semelhante à primeira letra analisada, a segunda parece aos olhos do magistrado ser diversa, pois não há o elemento da vontade. A vontade descaracterizou o tapa descrito na primeira letra de uma conduta de violência para uma conduta de sadomasoquismo, que não tem crime próprio. Na segunda letra, como a mulher não permitiu a conduta criminosa, não há de se falar, segundo o magistrado, de sadomasoquismo, mas de violência. Assim diz o magistrado:

“Nessa música, de forma distinta da letra anteriormente analisada, inexiste o exercício de liberdade de escolha por parte da mulher, pois não há o consentimento da figura feminina. O interlocutor, homem ou mulher, não se sabe, afirma categoricamente que vai dar "um tapinha", porque "um tapinha não dói". Não há o pedido da mulher em relação a uma postura agressiva de seu companheiro ou companheira, de modo que a agressão resulta de decisão unilateral”.

A segunda letra foi considerada pelo magistrado como desrespeitosa ao direito da mulher e sofreu sanções, enquanto que a primeira não sofreu, pois foi levado em consideração como fator preponderante a questão da vontade. Porém, se analisada as danças as quais as letras se referiam, a primeira é muito mais ofensiva do que a segunda, e as duas tem conotação sexual e de condutas sadomasoquistas. A primeira letra se refere ao tapa na cara, ao qual a dança correspondente é a simulação do tapa na cara de um outro dançarino, que é feita de maneira contínua, com violência, lembrando um espancamento. A segunda letra fala que um ‘tapinha não dói’ e a dança correspondente apresenta a dançarina(o) dando um leve tapa na sua própria nádega.

Essas músicas têm uma coreografia que é feita pelos grupos e imitada em seus gestos pelo público, seja nos bailes ou mesmo em programas de televisão. A dança nesse tipo de música não se encontra dissociado da letra, pois não há a apresentação de um sem outro. A dança não é um elemento que pode ser desconsiderado na ‘axé-music’ e também no funk. A chamada “axé music” incorpora dança, letra e música, tão presente nos ritmos que o gerou como a roda de samba e os cantos do candomblé[18].

O magistrado ao desconsiderar a dança, acabou por condenar a letra de “o tapinha não dói” e não a letra de “tapa na cara”, que por sua dança é muito mais ofensiva, pois o sadomasoquismo identificado pelo magistrado é levado a uma representação de um espancamento[19]. A questão da dança não passou despercebida pelo magistrado para julgar a questão da letra, mesmo quando afirma que a segunda letra remete a uma situação de dança:

“Esta canção descreve o incentivo, de uma figura supostamente masculina, à determinada dança a ser executada por uma mulher, denominada "glamurosa". A partir de certo momento, a letra afirma que o incentivador da dança (figura desconhecida) vai aplicar "um tapinha" porque "um tapinha não dói".

A decisão consegue um dos objetivos que é a penalização na forma de multa de uma grande gravadora, que conseguiu com a divulgação de CDs e shows de uma banda, uma quantia considerável de dividendos. Essa decisão levou a uma discussão pública a respeito do conteúdo das letras de música veiculadas na grande mídia, em especial na televisão, principalmente no que diz respeito a seu consumo por crianças e adolescentes. Porém, não se pode negar que a decisão tem mais laço em uma análise da letra somente, do que no contexto que a música era cantada e a discussão jurídica fica prejudicada.

Essas e outras decisões judiciais levam ao questionamento do direito, como somente um sistema de normas que devem ter o conteúdo manipulado e analisado pelo magistrado no caso concreto. Há uma série de elementos que leva a entender que o Direito judicial rompe com a idéia do direito como um sistema de normas, se aproximando muito mais de um Direito como instituição imaginária social.

Essas não foram as únicas letras a serem discutidas, como letras que não respeitam os direitos das mulheres, porém a letra ‘um tapinha não dói’ foi emblemática pois sua discussão judicial culminou em uma sentença condenando a prática. A música “Bomba no Cabaré” da banda Mastruz com Leite foi objeto de muita discussão em órgãos de proteção a mulher do Estado de ONGs, mas a denúncia não teve os mesmos frutos. Há centenas de letras de música que, nos mesmos moldes, ofendem os direitos da mulher, mas não levam à ações judiciais.

Percebe-se com isso um grande lapso entre o direito que está consolidado no papel e as práticas da sociedade brasileira marcadas por séculos de inferiorização e desvalorização da mulher. Se alguns segmentos da sociedade absorvem esses novos direitos, outros segmentos têm mais dificuldade de incorporá-los. O direito não pode ser esfera de imposição de direitos, que se não foram incorporados. Se o que se busca é a ampliação dos direitos da mulher a esfera é a da discussão no espaço público, da política.

7. Música, Direito e criminalidade: Bonde do 157[20]- discussão sobre a apologia ao crime

A letra da música foi discutida no habeas corpus n. 89244 de 2006, oriundo do Rio de Janeiro, que teve a decisão do ministro Marco Aurélio. A decisão do habeas corpus entende que não houve coação do judiciário ao levar adiante a ação penal contra o Mc Frank (Frank Batista Ramos) sobre o crime previsto no artigo 287 do Código penal como apologia ao crime. O ministro entende que a ação já se encontra em estado avançado e que há indícios para que a ação prossiga que é dado pela letra da música.

 A defesa apresentada pelo advogado do cantor e que foi narrada pelo ministro no habeas corpus, entende que não há razão para a ação penal, uma vez que: a) não houve louvação ou enaltecimento do comportamento criminoso, mas apenas narração; b) Mc Frank apenas cantou a música, não fez a letra da música, pois recebeu esta em um papel e cantou; c) há outras músicas que falam de condutas delituosas e que levaram seus cantores a responder por crime de apologia ao crime. O ministro elenca as músicas citadas pela defesa, que alega constrangimento ilegal:

“Aludem a precedentes sobre a matéria, mencionando músicas de outros autores e cantores em que há referência a prática delituosa – Pivete, de Chico Buarque e Francis Hime; Meu gol de placa, de Latino; Matei o presidente, de Gabriel o Pensador; Malandragem dá um tempo, de Bezerra da Silva, interpretada pelo Barão Vermelho; Folha de bananeira, de Armandinho ; Preconceito de cor, de Bezerra da Silva, e Minha embaixada chegou, de Assis Valente”.

Todas as letras escolhidas como precedentes pela defesa, tem em comum não serem funks cariocas. Existe uma centena músicas que poderiam ser agregadas a essa lista para darem respaldo à defesa. Porém, é muito provável que quase todas as letras de música que tivessem referência à um fato criminoso e fossem funks cariocas, seriam encaradas pelo judiciário como apologia ao crime. O ministro não tece maiores considerações sobre a música, porém não deixa de registrar no habeas corpus que ela pertence ao “ritmo funk”. Ser funk é algo que parece ser importante para o caso, uma vez que esse fato foi registrado. Um outro tipo de música como MPB, samba, pagode, dificilmente seria registrado do mesmo modo.

A ligação do funk carioca com a população pobre e com criminosos é algo que levou durante muito tempo o Estado a encarar o funk como “assunto de polícia” e não como manifestação musical popular brasileira. Dos diversos gêneros do funk, o que tem mais relação com a apologia ao crime são os funks do estilo “proibidão”. Esse tipo de funk se dividem em: funks com letras erotizadas e os que tratam de crimes e violência. Estes funks “proibidão” não tocam nas rádios, mas estão presentes nos bailes e também circulam na internet. Muitas vezes esses funks são ‘modificados’ pelos próprios funkeiros para poderem tocar nas rádios, retirando-se os palavrões ou situações de apologia ao crime. Esse tipo de funk surgiu a pouco tempo na história do funk, mas tem causado muita polêmica, em especial com o judiciário.

A história do funk desde seu começo na década de 70, até a popularização dos bailes na década de 80 e a transformação em produto nacional no fim da década de 90, é hoje contada por historiadores e antropólogos, que entendem os bailes funks como manifestações culturais. A luta pelos próprios organizadores dos bailes, DJs, Mcs para a não proibição, gerou uma série de discussões e um movimento político, que modificou diversas leis que proibiam o funk.

Denis Martins em seu trabalho inovador “Direito e cultura popular: o batidão do funk carioca no ordenamento jurídico”, aponta a evolução legislativa sobre o funk. A primeira manifestação legislativa foi a de proibir a realização de bailes funks, dada pelo projeto de lei estadual projeto de lei 1.075/99, que tinha como uma das justificativas de seu autor que: “a incitação à violência é o empurrão inicial para que esses jovens se transformem em futuros bandidos”. Seguiu-se a lei estadual do Rio de Janeiro n. 1.392/2000, que também proibia os bailes devido a ilícitos e à violência. A lei nº 3410, de 29 de maio de 2000, permitia o baile, porém deixava como condição ter detector de metais na porta, a presença de policiais militares na porta e a necessidade de autorização da autoridade policial para a realização. O artigo 6 dessa lei expressava a proibição de músicas que fizessem apologia ao crime. Em uma legislação estadual de 2004 (Lei 4264) o funk volta a ser encarado como atividade cultural e há o projeto de lei 834 de 2006 que visa aumentar as políticas públicas relacionadas ao funk[21].

 O autor comenta sobre a relação do direito com o funk, tratando da questão da apologia e incitação ao crime. Denis Martins destaca que diversos cantores responderam ações penais por apologia ao crime, entre eles está o “Rap das armas”, que ficou conhecido nacionalmente ao entrar na trilha sonora do filme “Tropa de elite”. A questão parece longe de poder ser resolvida somente sob a ótica do Direito, pois as letras expressam o cotidiano das pessoas que freqüentam o baile funk. Assim, diz Martins sobre a relação de apologia às drogas e o baile funk:

“Freqüentes, também, são as alegações de que o funk prestaria suporte ideológico ao tráfico de drogas. Em verdade, seleciona-se uma pequena – e clandestina – parte da produção musical do funk e se a apresenta como representativa do total, convenientemente esquecendo os “funks de denúncia”, de conteúdo social justamente oposto, e as músicas sem conteúdo ideológico, que são a maioria – de conteúdo bem-humorado e pornográfico. Quanto a esta parcela clandestina, parece lícito supor que, em suas versões mais inocentes, pretendem apenas lidar com naturalidade com um dado fático do cotidiano dos moradores de áreas pobres. Longe de constituírem apologia ao crime, retratam a realidade da favela, dos morros e comunidades. Não significam adesão ao tráfico; muitas das vezes, seus compositores sequer sabem explicar o que os motivou a assim se expressar: se a pura diversão, o “gosto do proibido”, a vontade de desenvolver uma boa relação com a comunidade e os poderes locais etc. Todas estas possíveis justificativas passam a segundo plano quando se constata que, para muitos MCs, as circunstâncias de criminalidade e pobreza que lhes cercam lhes são tão naturais e onipresentes que estes não as diferenciam a priori, ontologicamente, dos demais elementos estruturantes de suas canções. A um habitante de áreas pobres, pareceria estranho raciocinar em termos de não poder mencionar livremente o tráfico, a violência policial e a ausência do poder público ao retratar sua comunidade”[22].

Encarar os habitantes dos morros, favelas e subúrbios como agentes do crime é uma prática que data de séculos no Brasil. Se no século XIX os perseguidos eram os sambistas e suas rodas de samba pode-se dizer que no final do século XX foram os funkeiros. Entendidos como criminosos frente ao poder judiciário, os funkeiros foram acusados de crime por retratar sua realidade. Fica evidente que a ‘lógica das regras do morro’ não são iguais à “lógica do direito” que é praticada nas cidades, como bem apontou Boaventura Souza Santos em seu estudo sobre o direito nas favelas brasileiras: o Direito de Pasárgada.

8. Música, Direito e drogas: Legalize já[23]- discussão sobre a legalização da maconha

Esta é a única decisão analisada aqui em que não há uma discussão judicial sobre a letra da música, porém a letra é discutida de forma indireta na postura do grupo musical em relação à legalização da maconha no Brasil. As autoridades estatais entenderam que o grupo fazia apologia as drogas, pois se posicionada abertamente diante da legalização da maconha, nas letras de suas músicas e também emitia esse posicionamento nos shows. O próprio nome da banda faz menção à maconha, ‘hemp’, deixando claro seu posicionamento quanto a não criminalização do “uso social ou recreativo”[24] da maconha.

A música mais difundida pela banda Planet Hemp e que se tornou música símbolo da luta pela legalização e descriminalização da maconha foi a música “Legalize já”. Outras letras de música brasileiras tratam da temática da maconha, porém nenhuma delas, nem seus músicos ou compositores tinham sido apontados como criminosos. Entre essas músicas encontra-se: “Malandragem dá um tempo” de Bezerra da Silva, “A feira” do grupo O Rappa e “Cachimbo da Paz” de Gabriel o pensador. Porém, a explícita posição contra a criminalização da maconha, a linguagem rude, com palavrões e a não simpatia a policia e às leis estatais repressivas, parecem ter levado à discussão por parte dos órgãos públicos sobre a proibição de suas músicas e shows.

A banda Planet Hemp foi diversas vezes impedida de fazer shows pelo Brasil, tendo seus integrantes enviados à delegacia por policiais que entendiam que a explicitação da banda a favor o uso da maconha em suas letras cantadas em shows era conduta tida como apologia ao crime. Devido às várias detenções os integrantes da banda, por meio de seu advogado, requisitaram um habeas corpus preventivo para poderem realizar shows pelo Brasil[25]. Os integrantes da banda alegavam o direito de poder expressar suas idéias, garantido no art. 5 da Constituição, entendendo que as letras de música do grupo são expressões artísticas e como tais não podem ser objeto desse tipo de censura. A postura do grupo teve um impacto grande na sociedade brasileira, em especial pela repercussão das prisões dos integrantes da banda , que eram a todo o momento noticiadas pela mídia.

A discussão sobre a legalização da maconha cresceu nos últimos anos na sociedade brasileira. Há defensores da legalização defendendo que o consumo da maconha não deva ser considerado como um crime. A rotulação de alguns produtos como droga e sua proibição ou restrição estatal mudou muito ao longo dos séculos. Produtos antes considerados maléficos e que tinham seu uso restrito, foram liberados com o tempo, devido à diferentes políticas dos poderes públicos. O chocolate, a cachaça e o fumo já foram produtos que o consumo foi proibido no Brasil. O álcool e o tabaco não tem seu uso criminalizado, mas há diversas políticas públicas alertando para seus efeitos nocivos. Discute-se sobre os malefícios sociais e individuais (no corpo e mente de cada pessoa) de diversos tipos de produtos e drogas (incluindo as legais, ilegais, os medicamentos, etc.).

Há um movimento na sociedade civil que defende a não criminalização do uso da maconha. Algumas bandas de reage e rock dão força a esse movimento pregando a não criminalização da maconha em suas letras. Há uma linha tênue entre defender idéias e atitudes novas, com base no direito de livre expressão do pensamento e defender a legalização de um comportamento que é tido pela legislação brasileira como proibido, qual seja, se utilizar de drogas. A divisão é impossível de ser traçada e definir qual lado a pessoa está somente pode ser feito, levando-se em conta o sujeito (indivíduo pró-liberação ou o Estado). Nesse caso é possível ver a força de um movimento social que está ganhando força, que vem discutir e colocar em dúvida a eficácia e a necessidade de uma lei para criminalizar o consumo da maconha.

Devido a essas pressões públicas é possível o crime não ser aplicado para um caso específico. Nesse caso, existe a lei que pune a apologia às drogas, previsto no Código Penal brasileiro no artigo 287, ocorreu o fato da defesa pública da utilização e da necessidade de legalização da maconha, mas o judiciário não entendeu a conduta como um crime. Isso contraria quase tudo que um estudante de direito aprendeu na faculdade. É um caso de não utilização da legislação estatal pelo próprio Estado. Não se trata de desuso da lei, pois a apologia às drogas ainda é tida como um crime e é utilizada para outros casos, como na proibição em alguns estados da “Marcha da maconha”[26] e a expulsão de pessoas que defendem a legalização da maconha de redes de relacionamento na internet. Porém, no caso específico da defesa da legalização da maconha feita por meio de letras de músicas pela banda Planet Hemp, isso não aconteceu. A liberdade de expressão por meio da arte parece ter um peso maior socialmente.

Considerações Finais

Há uma dificuldade crescente entre se tutelar direitos que tem grande importância social, como é o caso dos direitos humanos e do direito de liberdade de expressão em uma sociedade com valores plurais. O judiciário tem um papel fundamental na análise caso a caso para a decisão de quais valores prevalecem. Enfrentam na análise de letras de que tenham referência à pobreza, drogas, criminalidade e erotização um grande dilema e na falta de solução legal, decidem segundo os valores das pessoas pertencentes ao judiciário. A liberdade de expressão tem prevalecido, porém há casos em que isso não ocorre e não há fundamentação legal para essa escolha. A posição do judiciário nesses julgados aponta para algo diferente do direito positivado que entra como fator principal quando os magistrados vão proferir suas sentenças. Aponta-se assim para uma concepção de direito como instituição imaginária social, em que o simbólico também é dimensão a ser estudada.



Bibliografia
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Notas:
[1] Em especial destaca-se aqui o caso Ellwanger descrito no livro: A internacionalização dos direitos humanos de Celso Lafer.
[2] Algumas canções tem sido modificadas por escolas infantis visando sua adequação ao ECA e a LDB,. Foram identificados desrespeito aos direitos humanos nas letras de: Boi da cara preta, Nana-nem, Atirei o pau no gato, Samba-Lelê, O cravo brigou com a rosa, dentre outras. Ver: LOPES, Maria Graciete Carramate e PAULINO, Roseli A. Fígaro. Discurso e formação de valores nas canções de ninar e de roda.
[3]  Algumas dessas músicas e sentenças são comentadas no blog  ‘Direitos Fundamentais’ do juiz George Lima, com foco no Direito Constitucional, diferente do adotado nesse ensaio, que é de Filosofia do Direito.  http://direitosfundamentais.net/category/musica/
[4] CAROCHA, Maika Lois. Censura musical durante o regime militar (1964-1985). p,211.
[5] Há muitas letras de música censuradas que hoje são conhecidas na sua forma censurada. Algumas letras originais e as alterações estabelecidas por censores estão disponíveis no site www.censuramusical.com.br
[6] Essa ‘cartilha’ é o edital de formação de técnicos em censura que está disponível no site www.censuramusical.com.br
[7] CAROCHA, Maika Lois. Censura musical durante o regime militar (1964-1985). p,207.
[8] Soberano guerreiro, com seus punhos de aço/ Tentou livrar o mundo da sinistra irmandade/ O triunfo da vontade guiou o império/ E a serpente destilou em seu veneno mistérios/ 88 heil hitler, 88 heil hitler, 88 heil hitler (duas vezes)/ A ferro e fogo suportou as mentiras sionistas/ Condenado pelo mundo a pagar sem razão/ O nobre fuhrer foi calado e seu império vencido/ Perdeu-se um grande herói. Jamais será esquecido/ 88 heil hitler, 88 heil hitler, 88 heil hitler (duas vezes)
[9] CASTORIADIS, Cornelius. Reflexões sobre o racismo. In: Encruzilhadas do labirinto III. p. 31-32
[10] CASTORIADIS, Cornelius. Reflexões sobre o racismo. In: Encruzilhadas do labirinto III. p. 36
[11] Eu estou amando a minha menina/ E como eu adoro suas pernas fininhas/ Eu estou cantando pra minha menina/ Pra ver se eu convenço ela a entrar na minha/ E por que não?/ Teu sangue é igual ao meu, igual ao meu/ Teu nome foi eu quem deu/ Te conheço desde que nasceu/ E por que não?/ Eu estou adorando/ Ver minha menina/ Com algumas colegas/ Dela da escolinha/ Eu estou apaixonado/ Pela minha menina/ O jeito que ela fala, olha/ O jeito que ela caminha.
[12] SANTOS, Marcos Joel dos. Estereótipos, preconceitos, axé-music e pagode.  P, 26.
[13] Discute-se a história do Lobo mau e da Chapeuzinho estimula condutas pedófilas e deve ser evitada. O mesmo ocorre com a letra de música carnavalesca que se referia a essa história, denominada “Lobo mau” do grupo “O Back”, que lida com o duplo sentido, porém esse não é explicito na letra.
[14] Alô gente, aqui quem fala é Tiririca/ Eu também estou na onda do axé music/ Quero vê os meus colegas tudo dançando)/ Veja veja veja veja veja os cabelos dela (4x)/ Parece bom-bril, de ariá panela/ Parece bom-bril, de ariá panela/ Quando ela passa, me chama atenção/ Mas os seus cabelos, não tem jeito não/ A sua caatinga quase me desmaiou/ Olha eu não aguento, é grande o seu fedor/ Veja veja veja veja veja os cabelos dela (4x)/ Parece bom-bril, de ariá panela/ Parece bom-bril, de ariá panela/Eu já mandei, ela se lavar/ Mas ela teimô, e não quis me escutar/ Essa nega fede, fede de lascar/ Bicha fedorenta, fede mais que gambá
[15] Entende-se aqui por vitimização a postura que a sociedade moderna de encarar pessoas de grupos que foram vítimas de preconceitos e discriminações, como eternas vítimas sociais, inferiorizando-as e não destacando sua força. A vitimização pode provocar inclusive condutas nefastas por parte das pessoas que são encaradas como vítimas, que passam a tirar proveito de situações devido a sua rotulação como vitima.
[16] "Se ela me pedir...o que vou fazer.../ Meu deus me ajude em mulher não vou bater/ Mas ela me pede todo dia toda hora quando a gente faz amor/ Pedi o quê?/ Se ela me pedir...o que vou fazer.../ Meu deus me ajude em mulher não vou bater/ Mas ela me pede todo dia toda hora quando a gente faaaazamooooor/ Tá tá tapa na cara, tapa na cara/ Tapa na cara, tapa na cara/ Tapa na cara mamãe, tapa na cara/ Na cara mamãe/Se você quiser, ai eu vou te dar/ Vem com Pagode Art, venha requebrar/ Joga a mão pra cima e bate na palma da mão/Quero ver é balançaaaaaaar /E dig dig ai ai ai ai ai ai/ E dig dig ai ai ai ai ai ai/E dig dig ai ai ai ai ai ai/ E dig dig ai ai ai ai ai ai/ E vem vem vem vem vem eu vou te dar ma ma ma mãe/ Eu vou te dar ma ma ma mãe/ Eu vou te dar, te dar te dar/ E vem vem vem vem vem eu vou te dar ma ma ma mãe/ Eu vou te dar ma ma ma mãe/ Eu vou te dar, te dar te dar/ Tá tá tapa na cara, tapa na cara/ Tapa na cara, tapa na cara/ Tapa na cara mamãe, tapa na cara/ Na cara mamãe/ Com amor, com amor/ Se você quiser, ai eu vou te dar/ Vem com Pagode Art, venha requebrar/ Joga a mão pra cima e bate na palma da mão/Quero ver é balançaaaaaaaaar/ E dig dig ai ai ai ai ai ai/ E dig dig ai ai ai ai ai ai / E dig dig ai ai ai ai ai ai/ E dig dig ai ai ai ai ai ai/ E vem vem vem vem vem eu vou te dar ma ma ma mãe/ Eu vou te dar ma ma ma mãe/ Eu vou te dar, te dar te dar/ E vem vem vem vem vem eu vou te dar ma ma ma mãe/ Eu vou te dar ma ma ma mãe/ Eu vou te dar, te dar te dar/ Tá tá tapa na cara, tapa na cara/ Tapa na cara, tapa na cara/ Tapa na cara mamãe, tapa na cara/ Na cara mamãe".
[17] Vai glamurosa/ Cruze os braços no ombrinho/Lança ele pra frente/ E desce bem devagarinho/ Dá uma quebradinha/ E sobe devagar/ Se te bota maluquinha/ Um tapinha eu vou te dar porque:/Dói, um tapinha não dói, um tapinha não dói/ Um tapinha não dói/ Só um tapinha.
[18] ALVES, Luciana Gomes. Danças maliciosas: construindo a feminilidade na infância. Anais do XVI Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte e III Congresso Internacional de Ciências do Esporte Salvador – Bahia – Brasil 20 a 25 de setembro de 2009
[19] A dança maliciosa é um dos aspectos que chama grande atenção dos magistrados, em especial àqueles que são do juizado da criança e de adolescente. Destaca-se dentre as decisões sobre a dança a portaria do magistrado da comarca de Santo Estevão na Bahia (Portaria n.22 de 2009), que limita a entrada de crianças e adolescentes no show do grupo de funk ‘O troco’, que tem como música principal a “Todo enfiado”, que segundo o magistrado, tem “coreografia erótica”
[20] Não se mexe, não se mexe: Na Chatuba é 157/ Não tira a mão do volante/ Não me olha e não se mexe/ É o Bonde da Chatuba / Do artigo 157/ Vai, desce do carro,/ Olha pro chão, não se move/ Me dá seu importado/ que o seguro te devolve/ Se liga na minha letra/ Olha nós aí de novo/ É o Bonde da Chatuba/ Só menor periculoso. / Audi, Civic, Honda, / Citröen e o Corolla/ Mas se tentar fugir/ Pá! Pum!/ Tirão na bola/ Na Chatuba é 157. Aê, parado, ninguém se mexe.../ Nosso bonde é preparado,/ Mano, puta que pariu/ Terror da Linha Amarela/ E da Avenida Brasil/  Nosso bonde é preparado/ Não tô de sacanagem/ Um monte de homem-bomba / No estilo Osama Bin Laden.
[21] Informações colhidas no levantamento de Denis Martins, no trabalho “Direito e cultura popular: o batidão do funk carioca no ordenamento jurídico”, em especial no capítulo 4, p.83-121.
[22] MARTINS, Denis. Direito e cultura popular: o batidão do funk carioca e o ordenamento jurídico. P, 74-75
[23] Digo foda-se as leis e todas regras/ Eu não me agrego a nenhuma delas/ Me chamam de marginal só por fumar minha erva/ Porque isso tanto os interessa/ Já está provado cientificamente/ O verdadeiro poder , que ela age sobre a mente/ Querem nos limitar de ir mais além/ É muito fácil criticar sem se informar/ Se informe antes de falar e legalize ganja/ (Refrão) Legalize já, legalize já/ Porque uma erva natural não pode te prejudicar/ O álcool mata bancado pelo código penal/ Onde quem fuma maconha é que é marginal/ E por que não legalizar ? e por que não legalizar ?/ Estão ganhando dinheiro e vendo o povo se matar/ Tendo que viver escondido no submundo/ Tratado como pilantra, safado, vagabundo/ Só por fumar uma erva fumada em todo mundo/ É mais que seguro proibir que é um absurdo/ Aí provoca um tráfico que te mata em um segundo/ A polícia de um lado e o usuário do outro/ Eles vivem numa boa e o povo no esgoto/ E se diga não às drogas, mas saiba o que está dizendo/ Eles põe campanha na tevê e por trás vão te fudendo/ Este é o planet hemp alertando pro chegado/ Pra você tomar cuidado com os porcos fardados/ Não falo por falar eu procuro me informar/ É por isso que eu digo legalize ganja/ São dez mil anos de uso/ sem se quer uma morte/ Se me chamar de otário/ fala se  fode.
[24] Essa terminologia é utilizada pelos sociólogos para diferenciar do uso medicinal, do uso em rituais de algumas sociedades ou mesmo do uso industrial da maconha (cânhamo)
[25] A decisão sobre esse Habeas corpus encontra-se inclusive no site da banda, como documento da luta por sua liberdade de expressão e legalização da maconha. Na decisão não foi discutido a letra, nem a questão da legalização. HC - Habeas Corpus Num. Processo: 2002002008413-2
[26] Movimento de mobilização popular na forma de uma ONG denominado “Coletivo Marcha da Maconha Brasil” que ficou conhecido como “Marcha da maconha”, que previu uma passeada pacífica para legalização da maconha no Brasil



Informações Sobre o Autor
Gisele Mascarelli Salgado
Pós-doutoranda em Filosofia do Direito, bolsista Fapesp

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Chomsky e as 10 Estratégias de Manipulação Midiática

Chomskye as10 Estratégias de Manipulação Midiática






1- A ESTRATÉGIA DA DISTRAÇÃO.

O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundações de contínuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir ao público de interessar-se pelos conhecimentos essenciais, na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. "Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os outros animais (citação do texto 'Armas silenciosas para guerras tranqüilas')".

2- CRIAR PROBLEMAS, DEPOIS OFERECER SOLUÇÕES.

Este método também é chamado "problema-reação-solução". Cria-se um problema, uma "situação" prevista para causar certa reação no público, a fim de que este seja o mandante das medidas que se deseja fazer aceitar. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou se intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público seja o mandante de leis de segurança e políticas em prejuízo da liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para fazer aceitar como um mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos.

3- A ESTRATÉGIA DA GRADAÇÃO.

Para fazer com que se aceite uma medida inaceitável, bastaaplicá-la gradativamente, a conta-gotas, por anos consecutivos. É dessa maneira que condições socioeconômicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990: Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que já não asseguram ingressos decentes, tantas mudanças que haveriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma só vez.

4- A ESTRATÉGIA DO DEFERIDO.

Outra maneira de se fazer aceitar uma decisão impopular é a de apresentá-la como sendo "dolorosa e necessária", obtendo a aceitação pública, no momento, para uma aplicação futura.É mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrifício imediato. Primeiro, porque o esforço não é empregado imediatamente. Em seguida, porque o público, a massa, tem sempre a tendência a esperar ingenuamente que "tudo irá melhorar amanhã" e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Isto dá mais tempo ao público para acostumar-se com a idéia de mudança e de aceitá-la com resignação quando chegue o momento.

5- DIRIGIR-SE AO PÚBLICO COMO CRIANÇAS DE BAIXA IDADE.

A maioria da publicidade dirigida ao grande público utiliza discurso, argumentos, personagens e entonação particularmente infantis, muitas vezes próximos à debilidade, como se o espectador fosse um menino de baixa idade ou um deficiente mental. Quanto mais se intente buscar enganar ao espectador, mais se tende a adotar um tom infantilizante. Por quê? "Se você se dirige a uma pessoa como se ela tivesse a idade de 12 anos ou menos, então, em razão da sugestionabilidade, ela tenderá, com certa probabilidade, a uma resposta ou reação também desprovida de um sentido crítico como a de uma pessoa de 12 anos ou menos de idade (ver "Armas silenciosas para guerras tranqüilas")".

6- UTILIZAR O ASPECTO EMOCIONAL MUITO MAIS DO QUE A REFLEXÃO.

Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto circuito na análise racional, e por fim ao sentido critico dos indivíduos. Além do mais, a utilização do registro emocional permite abrir a porta de acesso ao inconsciente para implantar ou enxertar idéias, desejos, medos e temores, compulsões, ou induzir comportamentos...

7- MANTER O PÚBLICO NA IGNORÂNCIA E NA MEDIOCRIDADE.

Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão. "A qualidade da educação dada às classes sociais inferiores deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que paira entre as classes inferiores às classes sociais superiores seja e permaneça impossíveis para o alcance das classes inferiores (ver 'Armas silenciosas para guerras tranqüilas')".

8- ESTIMULAR O PÚBLICO A SER COMPLACENTE NA MEDIOCRIDADE.

Promover ao público a achar que é moda o fato de ser estúpido, vulgar e inculto...

9- REFORÇAR A REVOLTA PELA AUTOCULPABILIDADE.

Fazer o indivíduo acreditar que é somente ele o culpado pela sua própria desgraça, por causa da insuficiência de sua inteligência, de suas capacidades, ou de seus esforços. Assim, ao invés de rebelar-se contra o sistema econômico, o individuo se auto-desvalida e culpa-se, o que gera um estado depressivo do qual um dos seus efeitos é a inibição da sua ação. E, sem ação, não há revolução!

10- CONHECER MELHOR OS INDIVÍDUOS DO QUE ELES MESMOS SE CONHECEM.

No transcorrer dos últimos 50 anos, os avanços acelerados da ciência têm gerado crescente brecha entre os conhecimentos do público e aquelas possuídas e utilizadas pelas elites dominantes. Graças à biologia, à neurobiologia e à psicologia aplicada, o "sistema" tem desfrutado de um conhecimento avançado do ser humano, tanto de forma física como psicologicamente. O sistema tem conseguido conhecer melhor o indivíduo comum do que ele mesmo conhece a si mesmo. Isto significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um controle maior e um grande poder sobre os indivíduos do que os indivíduos a si mesmos.From: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10151912389860296&set=a.483935025295.383084.483035515295&type=1&relevant_count=1

quinta-feira, 19 de julho de 2012

"Aula sobre Refrigerantes"

'Aula sobre refrigerantes'



Na verdade, a fórmula 'secreta' da Coca-Cola se desvenda em 18 segundos em qualquer espectrômetro-ótico, e basicamente até os cachorros a conhecem. Só que não dá para fabricar igual, a não ser que você tenha uns 10 bilhões de dólares para brigar com a Coca-Cola na justiça, porque eles vão cair matando.

A fórmula da Pepsi tem uma diferença básica da Coca-Cola e é proposital exatamente para evitar processo judicial. Não é diferente porque não conseguiram fazer igual não, é de propósito, mas próximo o suficiente para atrair o consumidor da Coca-Cola que quer um gostinho diferente com menos sal e açúcar.

Entre outras coisas, fui eu quem teve que aprender tudo sobre refrigerante gaseificado para produzir o guaraná Golly aqui (nos EUA), que usa o concentrado Brahma. Está no mercado até hoje, mas falhou terrivelmente em estratégia promocional e vende só para o mercado local, tudo isso devido à cabeça dura de alguns diretores.

Tive que aprender química, entender tudo sobre componentes de refrigerantes, conservantes, sais, ácidos, cafeína, enlatamento, produção de label de lata, permissões, aprovações e muito etc. e tal. Montei um mini-laboratório de análise de produto, equipamento até para analisar quantidade de sólidos, etc. Até desenvolvi programas para PC para cálculo da fórmula com base nos volumes e tipo de envasamento (plástico ou alumínio), pois isso muda os valores e o sabor. Tivemos até equipe de competição em stock-car.

Tire a imensa quantidade de sal que a Coca-Cola usa (50mg de sódio na lata) e voc ê verá que a Coca-Cola fica igualzinha a qualquer outro refrigerante sem-vergonha e porcaria, adocicado e enjoado. É exatamente o Cloreto de Sódio em exagero (que eles dizem ser 'very low sodium') que refresca e ao mesmo tempo dá sede em dobro, pedindo outro refrigerante, e não enjoa porque o tal sal mata literalmente a sensibilidade ao doce, que também tem de montão: 39 gramas de 'açúcar' (sacarose).

É ridículo, dos 350 gramas de produto líquido, mais de 10% é açúcar. Imagine numa lata de Coca-Cola, mais de 1 centímetro e meio da lata é açúcar puro... Isso dá aproximadamente umas 3 colheres de sopa CHEIAS DE AÇÚCAR POR LATA!...

- Fórmula da Coca-Cola?...

Simples: Concentrado de Açúcar queimado - Caramelo - para dar cor escura e gosto; ácido ortofosfórico (azedinho); sacarose - açúcar (HFCS - High Fructose Corn Syrup - açúcar líquido da frutose do milho); extrato da folha da planta COCA (África e Índia) e poucos outros aromatizantes naturais de outras plantas, cafeína, e conservante que pode ser Benzoato de Sódio ou Benzoato de Potássio, Dióxido de carbono de montão para fritar a língua quando você a toma e junto com o sal dar a sensação de refrigeração.

O uso de ácido ortofosfórico e não o ácido cítrico como todos os outros usam, é para dar a sensação de dentes e boca limpa ao beber, o fosfórico literalmente frita tudo e em quantidade pode até causar decapamento do esmalte dos dentes, coisa que o cítrico ataca com muito menor violência, pois o artofosfórico 'chupa' todo o cálcio do organismo, podendo causar até osteoporose, sem contar o comprometimento na formação dos ossos e dentes das crianças em idade de formação óssea, dos 2 aos 14 anos. Tente comprar ácido fosfórico para ver as mil recomendações de segurança e manuseio (queima o cristalino do olho, queima a pele, etc.).

Só como informação geral, é proibid o usar ácido fosfórico em qualquer outro refrigerante, só a Coca-Cola tem permissão... (claro, se tirar, a Coca-Cola ficará com gosto de sabão).

O extrato da coca e outras folhas quase não mudam nada no sabor, é mais efeito cosmético e mercadológico, assim como o guaraná, você não sente o gosto dele, nem cheiro, (o verdadeiro guaraná tem gosto amargo) ele está lá até porque legalmente tem que estar (questão de registro comercial), mas se tirar você nem nota diferença no gosto.

O gosto é dado basicamente pelas quantidades diferentes de açúcar, açúcar queimado, sais, ácidos e conservantes. Tem uma empresa química aqui em Bartow, sul de Orlando. Já visitei os caras inúmeras vezes e eles basicamente produzem aromatizantes e essências para sucos. Sais concentrados e essências o dia inteiro, caminhão atrás de caminhão! Eles produzem isso para fábricas de sorvete, refrigerantes, sucos, enlatados, até comida colorida e arom atizada.

Visitando a fábrica, pedi para ver o depósito de concentrados das frutas, que deveria ser imenso, cheio de reservatórios imensos de laranja, abacaxi, morango, e tantos outros (comentei). O sujeito olhou para mim, deu uma risadinha e me levou para visitar os depósitos imensos de corantes e mais de 50 tipos de componentes químicos. O refrigerante de laranja, o que menos tem é laranja; morango, até os gominhos que ficam em suspensão são feitos de goma (uma liga química que envolve um semipolímero). Abacaxi é um festival de ácidos e mais goma. Essência para sorvete de Abacate? Usam até peróxido de hidrogênio (água oxigenada) para dar aquela sensação de arrasto espumoso no céu da boca ao comer, típico do abacate.

O segundo refrigerante mais vendido aqui nos Estados Unidos é o Dr. Pepper, o mais antigo de todos, mais antigo que a própria Coca-Cola. Esse refrigerante era vendido obviamente sem refrigeração e sem gaseificaç ão em mil oitocentos e pedrada, em garrafinhas com rolha como medicamento, nas carroças ambulantes que você vê em filmes do velho oeste americano. Além de tirar dor de barriga e unha encravada, também tirava mancha de ferrugem de cortina, além de ajudar a renovar a graxa dos eixos das carroças. Para quem não sabe, Dr. Pepper tem um sabor horrível, e é muito fácil de experimentar em casa: pegue GELOL spray, aquele que você usa quando leva um chute na canela, e dê um bom spray na boca! Esse é o gosto do tal famoso Dr.Pepper que vende muito por aqui.

- Refrigerante DIET

Quer saber a quantidade de lixo que tem em refrigerante diet? Não uso nem para desentupir a pia, porque tenho pena da tubulação de pvc... Olha, só para abrir os olhos dos cegos: os produtos adocicantes diet têm vida muito curta. O aspartame, por exemplo, após 3 semanas de molhado passa a ter gosto de pano velho sujo.

Para evitar isso, soma-se uma infinidade de outros químicos, um para esticar a vida do aspartame, outro para dar buffer (arredondar) o gosto do segundo químico, outro para neutralizar a cor dos dois químicos juntos que deixam o líquido turvo, outro para manter o terceiro químico em suspensão, senão o fundo do refrigerante fica escuro, outro para evitar cristalização do aspartame, outro para realçar, dar 'edge' no ácido cítrico ou fosfórico que acaba sofrendo pela influência dos 4 produtos químicos iniciais, e assim vai... A lista é enorme.

Depois de toda essa minha experiência com produção e estudo de refrigerantes, posso afirmar: Sabe qual é o melhor refrigerante? Água filtrada, de preferência duplamente filtrada, laranja ou limão espremido e gelo... Mais nada !!! Nem açúcar, nem sal.

Prof. Dr. Carlos Alexandre FettFaculdade de Educação Física da UFMT Mestrado da Nutrição da UFMT Laboratório de Aptidão Física e Metabolismo - 3615 8836 Consultoria em Performance Humana e Estética

**O QUE ACONTECE QUANDO VOCÊ ACABA DE BEBER UMA LATA DE REFRIGERANTE**
Primeiros 10 minutos:10 colheres de chá de açúcar batem no seu corpo, 100% do recomendado diariamente. Você não vomita imediatamente pelo doce extremo, porque o ácido fosfórico corta o gosto.
20 minutos:O nível de açúcar em seu sangue estoura, forçando um jorro de insulina. O fígado responde transformando todo o açúcar que recebe em gordura (É muito para este momento em particular).
40 mpurra cálcio, magnésio e zinco para o intestino grosso, aumentando o metabolismo. As altas doses de açúcar e outros adoçantes aumentam a excreção de cálcio na urina, ou seja, está urinando seus ossos, uma das causas das OSTEOPOROSE.
60 minutos:
As propriedades diuréticas da cafeína entram em ação.a tudo que estava no refrigerante, mas não sem antes ter posto para fora, junto, coisas das quais farão falta ao seu organismo.


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quarta-feira, 11 de julho de 2012

O USO E A CONTEMPLAÇÃO por OCTAVIO PAZ

O USO E A CONTEMPLAÇÃO
por OCTAVIO PAZ
trad. ALEXANDRE BANDEIRA


Neste que é um de seus mais respeitados ensaios, inédito em português, o escritor mexicano Octavio Paz posiciona o artesanato no centro de uma balança que pesa a beleza e a utilidade, a arte e a tecnologia.
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FIRME, DE PÉ. Tão firme que não parece ter sido posto: é como se tivesse brotado ali mesmo. Ocre, da cor de mel queimado. A cor de um sol há mil anos enterrado, descoberto apenas ontem. Listras verdes e laranja percorrem o seu corpo ainda cálido. Círculos, padrões ornamentais: vestígios esparsos de um alfabeto perdido? A barriga de uma mulher prenhe, o pescoço de um pássaro.

Se taparmos e destaparmos sua boca com a palma de nossa mão, ouviremos como resposta um murmúrio grave, o som de água em ebulição, erguendo-se do seu fundo; se batermos em suas laterais com nossos dedos, emitirá uma risada aguda, como moedas de prata caindo sobre uma pedra. Poliglota, conhece a linguagem do barro e dos minerais, do ar que corre por entre as paredes de um cânion, de lavadeiras esfregando roupa no rio, de céus tempestuosos, da chuva. Um pote de argila cozida: não o coloque numa vitrine, ao lado de objetos raros e preciosos. Pareceria fora do lugar. Sua beleza está relacionada ao líquido que ele contém e à sede que deve saciar. Sua beleza é corpórea: eu posso vê-lo, tocá-lo, sentir o seu cheiro, ouvi-lo. Se estiver vazio, deve ser enchido; se estiver cheio, deve ser esvaziado. Eu o tomo pela alça como a uma mulher pelo braço, ergo-o e derramo numa bacia o leite ou o pulque – líquidos lunares que abrem e fecham as portas da aurora e da escuridão, da vigília e do sono.

Uma jarra de vidro, uma cesta de palha, um vestido rústico de musselina, uma bandeja de madeira: objetos belos, não apesar de sua utilidade, mas por causa dela. Sua beleza lhes é inerente, como o perfume ou a cor das flores. É inseparável de sua função: são coisas belas porque são coisas úteis. O artesanato pertence a um mundo anterior à distinção entre o útil e o belo. Tal distinção é mais recente do que se imagina. Muitos dos artefatos que chegaram até nossos museus e coleções particulares pertenciam a um mundo no qual a beleza não era um valor isolado e autônomo.

A sociedade era dividida em dois grandes domínios: o profano e o sagrado. Em ambos, a beleza era uma qualidade subordinada: no domínio do profano, subordinada à utilidade do objeto em questão, e no domínio do sagrado, ao seu poder mágico. Um utensílio, um talismã, um símbolo: a beleza era a aura em torno do objeto, resultante – quase sempre involuntariamente – da relação secreta entre sua forma e seu significado. Forma: o modo como uma coisa é fabricada; significado: o propósito para o qual é fabricada.

Hoje todos esses objetos, inevitavelmente arrancados de seu contexto histórico, de sua função específica, de seu significado original, postos à nossa frente em suas vitrines, parecem-nos divindades enigmáticas, exigem nossa adoração. Sua transferência da catedral, do palácio, da tenda do nômade, da alcova de uma cortesã ou da caverna de uma bruxa para o museu foi uma transmutação mágico-religiosa. Objetos tornaram-se ícones. Essa idolatria começou na Renascença, e do século 17 em diante tornou-se uma das religiões do Ocidente (a outra sendo a política). Há muito tempo, no auge do período barroco, Soror Juana Inés de la Cruz cunhou uma frase espirituosa, fazendo troça da estética enquanto admiração supersticiosa: “A mão de uma mulher é branca e bela porque feita de carne e osso, e não de mármore ou prata; eu a estimo não porque seja esplendorosa, mas porque seu aperto é firme”.

A religião da arte, como a religião da política, brotou das ruínas do cristianismo. A arte herdou da religião que a precedera o poder de consagrar as coisas e dotá-las de uma espécie de eternidade: os museus são nossos locais de adoração, e os objetos neles exibidos estão à margem da história. A política – ou, para ser mais preciso, a revolução –, por sua vez, apoderou-se de outra função religiosa: a de mudar o homem e a sociedade. A arte tornou-se um ato de heroísmo espiritual; a revolução, a construção de uma igreja universal. A missão do artista era transformar o objeto; a do líder revolucionário era transformar a natureza humana. Picasso e Stalin. O processo foi de mão dupla: na esfera da política, idéias foram convertidas em ideologias, e ideologias em idolatrias; obras de arte, por outro lado, tornaram-se ídolos, e estes ídolos foram transformados em idéias. Contemplamos as obras de arte com a mesma reverente admiração – embora com menores recompensas espirituais – que o sábio da Antiguidade dedicava ao céu estrelado: como corpos celestes, essas pinturas e esculturas são idéias puras. A religião da arte é um neoplatonismo que não ousa confessar o nome – isso quando não é uma guerra santa declarada contra hereges e infiéis. A história da arte moderna pode ser dividida em duas correntes: a contemplativa e a combativa. Escolas como o cubismo e o expressionismo abstrato pertencem à primeira; movimentos como o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo, à segunda. Místicos e cruzados.


Antes da revolução estética, o valor das obras de arte apontava para outro valor: a interconexão entre beleza e significado. Objetos artísticos eram coisas, que eram formas perceptíveis, que por sua vez eram signos. O significado de uma obra era múltiplo, mas todas as interpretações trilhavam o mesmo caminho de significação, segundo o qual o propósito e a existência fundiam-se numa raiz indissolúvel: a divindade. Qual a transposição moderna? Para nós, o objeto artístico é uma realidade autônoma, auto-suficiente, e seu significado último não se encontra além, mas dentro dele, em si e por si mesmo. É um significado à margem do significado: não se refere ao que não lhe esteja contido. Como a divindade cristã, as pinturas de Jackson Pollock não querem dizer nada: elas são.

Nas modernas obras de arte, o significado se apaga diante da pura emanação do ser. O ato de ver é transformado num processo intelectual que é também um rito mágico: ver é compreender, e compreender é participar do sacramento da comunhão. E além da divindade e dos fiéis, temos os teólogos: críticos de arte. Suas elaboradas interpretações não são menos herméticas que as da escolástica medieval ou dos pensadores bizantinos, embora sejam debatidas com bem menos rigor. As questões a que Orígenes, Albertus Magnus, Abelardo e Santo Tomás de Aquino dedicavam suas mais sérias reflexões reaparecem nas picuinhas de nossos críticos de arte, mas agora sob fantasias extravagantes ou reduzidas a meras obviedades. A comparação vai ainda mais longe: na religião da arte, não encontramos apenas as divindades com seus atributos e os teólogos que os decifram, mas também os mártires. No século 20 testemunhamos o Estado soviético perseguir poetas e artistas tão impiedosamente como os dominicanos extirparam a heresia albigense no século 13.

Não surpreende que a exaltação e a santificação da obra de arte tenham conduzido a revoltas e profanações periódicas. O fetiche é arrancado do seu altar, é coberto de tinta, ganha orelhas e rabo de burro e é assim exibido pelas ruas, é arrastado na lama, perfurado para se provar que o seu interior é apenas serragem, que não é nada nem ninguém e não tem significado algum – e em seguida é devolvido ao trono. O dadaísta Richard Huelsenbeck chegou a exclamar, num momento de irritação: “A arte deveria receber uma bela surra”. Ele tinha razão – exceto pelo fato de que os hematomas no corpo do objeto dadaísta seriam como medalhas no peito de generais: elas simplesmente elevariam a sua respeitabilidade. Nossos museus estão a ponto de estourar com tantas antiobras de arte e obras de antiarte. A religião da arte foi, afinal, mais astuta que a romana: ela assimilou cada dissidência que apareceu.

Eu não nego que contemplar três sardinhas num prato ou um triângulo e um retângulo possam nos enriquecer o espírito; eu apenas afirmo que a repetição desse ato logo se degenera num ritual entediante. Justamente por essa razão os futuristas, confrontados com o neoplatonismo dos cubistas, estimularam uma volta à arte de mensagem. A reação dos futuristas era saudável, mas ingênua. Bem mais perspicazes, os surrealistas também insistiam que a obra de arte deveria dizer alguma coisa, mas como perceberam que seria bobagem reduzir a obra ao seu conteúdo ou mensagem, lançaram mão de um conceito que Freud havia transformado em moeda corrente: a do conteúdo latente. O que a obra de arte diz não está no seu conteúdo manifesto, mas antes naquilo que ela diz sem realmente dizer: o que está por trás das formas, das cores, das palavras. Essa era a maneira de afrouxar o nó teológico que unia ser e significar sem desatá-lo por completo, de modo a preservar, o máximo possível, a relação ambígua entre os dois termos.

O mais radical dos vanguardistas foi Marcel Duchamp: a obra de arte é recebida pelos sentidos, mas seu verdadeiro objetivo está além. Não é uma coisa: é um leque de signos que, à medida que abre e fecha, revela e esconde o seu significado, alternadamente. A obra de arte é um sinal inteligente emitido para a frente e para trás, entre significado e não-significado. O perigo dessa abordagem – um perigo que Duchamp nem sempre conseguiu evitar – é que ela pode conduzir longe demais na direção errada, ficando o artista com o conceito e sem o objeto, com o achado e sem a coisa. Este, o destino que se abateu sobre os imitadores de Duchamp. Aliás, freqüentemente eles não ficam nem com o objeto, nem com o conceito. Não deveria ser preciso repetir aqui que a arte não é um conceito: arte é um objeto dos sentidos. Especulações em torno de um pseudoconceito conseguem ser ainda mais entediantes que a contemplação de uma natureza-morta. Por isso a moderna religião da arte está sempre voltando para si mesma sem jamais encontrar o caminho para a salvação: ela permanece indo de um lado para o outro, da negação do significado em favor do objeto, à negação do objeto em favor do significado.


A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL foi o outro lado da moeda da revolução artística. A produção cada vez maior de objetos cada vez mais perfeitos, idênticos, foi o contraponto exato da consagração da obra de arte como um objeto único. Enquanto nossos museus ficavam abarrotados de objetos artísticos, nossas casas se encheram de utensílios engenhosos. Ferramentas precisas, obedientes, mudas e anônimas. Mas seria errado chamá-los de feias. Nos primórdios da Revolução Industrial, as considerações estéticas representavam papel quase insignificante na produção de objetos úteis. Ou melhor, essas considerações produziam resultados bem diferentes do que os fabricantes esperavam.

É a sobreposição responsável pela feiúra de muitos objetos criados na pré-história do desenho industrial (uma feiúra que tinha um certo charme): o elemento “artístico”, na maioria das vezes tomado emprestado da arte acadêmica do momento, era simplesmente “adicionado” ao objeto.

Os resultados nem sempre são desagradáveis. Muitos desses objetos – estou pensando particularmente naqueles da era vitoriana e naqueles com um chamado “estilo moderno” – pertencem à mesma família das sereias e esfinges. Uma família regida pelo que podemos chamar de estética da incongruência. No geral, a evolução do objeto industrializado para uso diário seguiu a evolução dos estilos artísticos. Era quase sempre um empréstimo – algumas vezes uma caricatura, algumas vezes uma cópia bastante feliz – da tendência artística mais em voga no momento. Daí que o desenho industrial chegava irremediavelmente atrasado, imitando estilos artísticos somente depois de eles terem perdido seu frescor original e estivessem em via de se tornar clichês estéticos.

O design moderno tomou outros caminhos – seus próprios – na busca por um acordo entre utilidade e estética. Às vezes é um acordo bem-sucedido, mas o resultado tem sido paradoxal. O ideal estético da arte funcional é aumentar a utilidade do objeto na mesma proporção em que reduz a sua materialidade. A simplificação das formas e da maneira como funcionam se torna a fórmula: a eficiência máxima deve ser atingida com um mínimo de presença. Uma estética afeita ao campo da matemática, onde a elegância de uma equação depende da simplicidade de sua formulação e da inevitabilidade de sua solução. O ideal do design moderno é a invisibilidade: quanto menos visível forem os objetos funcionais, mais belos serão. Trata-se de uma adaptação curiosa dos contos de fadas e lendas árabes para um mundo governado pela ciência e pela noção de utilidade e eficiência: o designer sonha objetos que, como um jinni (N.R.: na mitologia islâmica, um demônio ou espírito, como o gênio da lâmpada de Aladim), sejam servos mudos e intangíveis. Precisamente o oposto do artesanato: uma presença física que nos chega pelos sentidos e na qual o princípio da máxima utilidade é violado continuamente em favor da tradição, da imaginação, e até mesmo de puro capricho. A beleza do desenho industrial é conceitual por natureza: se ele expressa alguma coisa, essa coisa é a precisão de uma fórmula. É o signo de uma função. Sua racionalidade o condiciona a uma e somente uma alternativa: ou um objeto funciona ou não funciona. No segundo caso, deve ser jogado na cesta de lixo. Mas não é só a utilidade que torna o artesanato tão cativante. Ele vive em contato íntimo com nossos sentidos, e é por isso que é tão difícil abandoná-lo. Seria como expulsar de casa um velho amigo.

Chega um momento, porém, em que o objeto industrializado finalmente se torna uma presença de valor artístico: quando perde sua utilidade. Ele é então transformado em símbolo, emblema. A locomotiva cantada por Whitman é uma máquina que parou de correr e de transportar passageiros ou cargas: é um monumento imóvel à velocidade. Os discípulos de Whitman – Valéry Larbaud e os futuristas italianos – deixaram-se extasiar com a beleza das locomotivas e dos trilhos precisamente no momento em que outros meios de transporte – o avião, o automóvel – começaram a substituir os trens. As locomotivas desses poetas são o equivalente às ruínas falsas do século 18: elas complementam a paisagem. O culto ao mecânico é a adoração da natureza virada de ponta-cabeça: a utilidade se tornando beleza inútil, um órgão sem função. Com as ruínas, a história se torna novamente uma parte integrante da natureza, seja quando contemplamos as paredes de pedra destruídas em Nínive ou o cemitério de locomotivas na Pensilvânia.

Esse afeto por máquinas e geringonças que caíram em desuso não é apenas mais uma prova da incurável nostalgia do homem. Ele também revela o ponto em que a sensibilidade moderna se mostra obtusa: somos incapazes de relacionar beleza e utilidade. Dois obstáculos se colocam no nosso caminho: a religião da arte nos proíbe de considerar belo o útil; o culto à utilidade nos leva a perceber a beleza não como uma presença, mas como uma função. Esta bem pode ser a razão pela qual a tecnologia tem sido extremamente pobre como fonte de mitos: a aviação é a realização de um sonho milenar de todas as sociedades, mas nem por isso conseguiu criar figuras comparáveis a Ícaro ou a Faetonte.

O objeto industrializado tende a desaparecer como forma e a se tornar indistinto de sua função. Sua existência é seu significado e seu significado é ser útil. É o extremo oposto da obra de arte. Já o artesanato é o meio-termo entre esses dois pólos: suas formas não são governadas pelo princípio da eficiência, mas pelo do prazer, que é sempre dispendioso, e que não prescreve regra alguma. O objeto industrializado não dá espaço ao supérfluo; o artesanato entrega-se ao prazer da decoração. Sua predileção pelos ornamentos viola o princípio da eficiência. Os padrões decorativos do artesanato geralmente não têm função nenhuma; daí por que são eliminados impiedosamente pelo designer industrial. A persistência e a proliferação de motivos puramente decorativos no artesanato nos revelam uma zona intermediária entre utilidade e contemplação estética. No trabalho do artesão, há um constante movimento pendular entre utilidade e beleza. Esse intercâmbio contínuo tem um nome: prazer. As coisas são prazerosas porque são úteis e belas. A conjunção aditiva define o artesanato, assim como a conjunção alternativa define a arte e a tecnologia: utilidade ou beleza. O artesanato satisfaz uma necessidade não menos imperativa que a fome ou a sede: a necessidade de se encantar com as coisas que vemos e tocamos, quaisquer que sejam seus usos diários.
Essa necessidade não pode ser reduzida ao ideal matemático que rege o desenho industrial, ou aos rituais ortodoxos da religião da arte. O prazer que o artesanato nos dá é uma dupla transgressão: contra o culto à utilidade e contra o culto à arte.

Uma vez que é feita por mãos humanas, a peça de artesanato preserva as impressões digitais – reais ou metafóricas – do artesão que a criou. Essas impressões não são a assinatura do artista; elas não são um nome. Nem são uma marca registrada. Antes, são um signo: a cicatriz quase invisível que denota a irmandade original dos homens, e sua separação. Além de ser feito por mãos humanas, o artesanato também é feito para mãos humanas: não apenas podemos vê-lo, mas tocá-lo com nossos dedos. Nós vemos a obra de arte, mas não a tocamos. O tabu religioso que nos proíbe de encostar nas imagens dos santos no altar – “Queimará as mãos aquele que tocar no Santo Tabernáculo”, nos diziam quando éramos crianças – também se aplica a pinturas e esculturas. Nossa relação com o objeto industrializado é funcional; com a obra de arte, semi-religiosa; com a peça de artesanato, corpórea. A última, na verdade, não é nem uma relação, mas um contato. A natureza transpessoal do artesanato está expressa, direta e imediatamente, na sensação: o corpo é participação. Sentir é, antes de tudo, ter consciência de algo ou de alguém além de si mesmo. Mais ainda: é sentir com alguém. Para ser capaz de sentir a si mesmo, o corpo procura por outro corpo. Nós sentimos por meio dos outros. Os laços físicos, corporais que nos amarram a outros são tão fortes quanto os laços legais, econômicos e religiosos. O objeto feito à mão é um signo que expressa a sociedade humana de uma forma própria: não como ferramenta (tecnologia), não como símbolo (arte, religião), mas como uma forma de vida física e simbiótica.

A jarra de água ou de vinho no centro da mesa é um ponto de confluência, um pequeno sol que faz de todos reunidos um só. Mas essa jarra que serve para saciar a sede de todos também pode ser transformada num vaso de flores pela minha esposa. Sua sensibilidade e fantasia pessoais podem redirecionar o objeto de sua função usual e mudar o seu significado: não é mais um recipiente usado para conter um líquido, mas para exibir um cravo. Esse redirecionamento e essa mudança conectam o objeto à outra região da sensibilidade humana: a imaginação. Essa imaginação é social: o cravo na jarra é também um sol metafórico compartilhado por todos. Nas festas e celebrações, a radiação social do objeto é ainda mais intensa e abrangente. Numa festa a coletividade exerce a comunhão por meio de objetos ritualísticos, que quase invariavelmente são feitos à mão. Se as festas existem para compartilhar um tempo primordial – a coletividade literalmente partilha entre seus membros, como o pão abençoado, as datas a serem comemoradas –, o artesanato é um tipo de festa do objeto: ele transforma o utensílio do dia-a-dia em um signo de participação.
EM TEMPOS IDOS, o artista ansiava tornar-se como seus mestres, ser merecedor deles por meio da cuidadosa imitação. O artista moderno quer ser diferente, e sua homenagem à tradição toma a forma da negação. Se ele busca uma tradição, ele vai procurar em algum lugar fora do Ocidente, na arte de povos primitivos ou de outras civilizações. Porque são negações da tradição ocidental, a qualidade arcaica do artesanato primitivo ou a antiguidade dos objetos maias ou sumérios são, paradoxalmente, formas de novidade. A estética da mudança constante exige que cada trabalho seja novo e totalmente diferente daqueles que o precederam; a novidade implica a negação da tradição mais próxima. A tradição é, assim, convertida em uma série de cortes bruscos. A busca frenética pela mudança também governa a produção industrial, ainda que por razões diferentes: cada novo objeto, resultante de um novo processo, retira do mercado o objeto imediatamente anterior. A história do artesanato, entretanto, não é uma sucessão de novas invenções ou de novos e únicos (ou supostamente únicos) objetos. A bem da verdade, o artesanato nem tem história, se considerarmos história uma série ininterrupta de mudanças. Não há cortes bruscos mas sim continuidade, entre passado e presente. O artista moderno deseja conquistar a eternidade, e o designer, conquistar o futuro; o artesão deixa-se conquistar pelo tempo. Tradicional sem ser histórico, intimamente ligado ao passado, mas não datado, o objeto feito à mão refuta as miragens da história e as ilusões de futuro. O artesão não busca vencer o tempo, mas participar de sua corrente. Por meio de repetições, que vêm na forma de variações imperceptíveis mas genuínas, seus trabalhos se tornam parte de uma tradição perene. E ao fazê-lo, eles existem por muito mais tempo que o objeto da “última moda”.

O desenho industrial tende a ser impessoal. Ele é subserviente à tirania da função, e sua beleza reside nessa subserviência. Mas somente na geometria a beleza funcional pode se realizar completamente, e somente nesse universo verdade e beleza são uma coisa só; nas artes propriamente ditas, a beleza nasce de uma necessária violação das normas. A beleza – ou melhor: a arte – é uma violação da funcionalidade. A soma dessas transgressões constitui o que chamamos de estilo. Se fosse seguir seus princípios lógicos até o limite, o ideal do designer seria a ausência de qualquer estilo: formas reduzidas às suas funções; do mesmo modo que, para o artista, cada nova obra representaria o começo e um fim de um estilo próprio. (Talvez tenha sido este o objetivo que Mallarmé e Joyce determinaram para si mesmos.) A única dificuldade é que nenhuma obra de arte é seu próprio começo e seu próprio fim. Cada uma exprime uma linguagem ao mesmo tempo pessoal e coletiva: um estilo, uma maneira.

Os estilos são reflexos de experiências comunitárias, e toda verdadeira obra de arte é ao mesmo tempo uma fuga e uma confirmação de um estilo do seu próprio tempo e lugar. Ao violar esse estilo, a obra realiza todas as suas potencialidades. O artesanato, mais uma vez, se localiza bem no meio desses dois pólos: como o desenho industrial, ele é anônimo; como a obra de arte, tem um estilo. Comparado ao desenho industrial, porém, o artesanato é anônimo, mas não impessoal; comparado à obra de arte, ele enfatiza a natureza coletiva do estilo e demonstra para todos que o eu orgulhoso do artista é na verdade um nós.



A TECNOLOGIA É INTERNACIONAL. Suas realizações, seus métodos e seus produtos são os mesmos em qualquer canto do mundo. Ao suprimir as particularidades e peculiaridades nacionais e regionais, ela empobreceu o mundo. Tendo se espalhado de uma ponta à outra da Terra, a tecnologia se tornou o agente mais poderoso da entropia histórica. Suas conseqüências negativas podem ser resumidas em uma frase sucinta: ela impõe uniformidade sem promover unidade. Ela nivela as diferenças entre culturas e estilos nacionais distintos, mas não consegue erradicar as rivalidades e os ódios entre povos e estados. Após transformar rivais em gêmeos idênticos, ela fornece as mesmas armas para ambos. O que é pior, o perigo da tecnologia não está apenas no poder destrutivo de muitas de suas invenções, mas no fato de que ela constitui uma ameaça grave à própria essência do processo histórico. Ao eliminar a diversidade de sociedades e culturas, elimina a própria história. A maravilhosa variedade de diferentes sociedades é a verdadeira origem da história: encontros e conjunções de grupos e culturas dessemelhantes, com técnicas e idéias muito divergentes. O processo histórico é sem dúvida análogo ao fenômeno que os geneticistas chamam de inbreeding e outbreeding, e os antropólogos, de endogamia e exogamia. As grandes civilizações do mundo foram sínteses de culturas diferentes e diametralmente opostas. Quando uma civilização não se expõe à ameaça e ao estímulo de outra – como foi o caso na América pré-colombiana no século 16 –, ela está fadada a ver o tempo passar enquanto fica andando em círculos. A experiência do Outro é o segredo da mudança. E da vida.

A tecnologia moderna trouxe transformações numerosas e profundas. Todas elas, porém, tiveram o mesmo fim e o mesmo interesse: a eliminação do Outro.
Ao deixar soltos todos os impulsos destrutivos dos seres humanos e reduzir a humanidade à uniformidade, ela aumentou as forças que levam à extinção do homem. O artesanato, pelo contrário, nem mesmo é nacional: é local. Indiferente às fronteiras e aos sistemas de governo, ele sobreviveu a repúblicas e impérios: a arte de fazer potes de barro, cestas de palha e os instrumentos musicais representados nos afrescos de Bonampak sobreviveu aos altos sacerdotes maias, aos guerreiros astecas, aos monges espanhóis, aos presidentes mexicanos. Essas artes também sobreviverão aos turistas americanos.
Os artesãos não têm pátria: suas verdadeiras raízes estão nas suas vilas nativas – ou mesmo em um único quarteirão, ou em suas famílias. Os artesãos nos defendem da uniformidade artificial da tecnologia e da improdutividade da geometria: ao preservar as diferenças, eles preservam a fertilidade da história.

O artesão não se define em termos de nacionalidade ou de religião. Ele não é fiel a uma idéia, nem mesmo a uma imagem, mas a uma disciplina prática: seu trabalho. Sua oficina é um microcosmo social governado por suas próprias leis especiais. Seu dia de trabalho não é ditado rigidamente por um relógio de ponto, mas por um ritmo que tem mais a ver com o corpo e sua sensibilidade do que com as necessidades abstratas de produção. Enquanto trabalha, ele pode conversar com outras pessoas e até desatar a cantar. Seu chefe não é um executivo invisível, mas um homem de muita idade que ele tomou como mestre, quase sempre um parente, ou pelo menos um vizinho. É revelador notar que, apesar de sua natureza marcadamente coletiva, a oficina de um artesão nunca serviu de modelo para nenhuma das grandes utopias do Ocidente. Da Cidade do Sol, de Tommaso Campanella, passando pelos falanstérios de Charles Fourier, até as coletividades comunistas da era industrial, o protótipo do que seria o homem social perfeito nunca foi o artesão, mas o padre-sábio, o jardineiro-filósofo, o trabalhador universal, nos quais a práxis diária e o conhecimento científico estejam associados. Naturalmente não quero afirmar que a oficina de um artesão seja a imagem da perfeição. Mas acredito que, justamente por causa de suas imperfeições, ela pode indicar uma forma de humanizar nossa sociedade: suas imperfeições são dos homens, e não do sistema. Devido ao seu tamanho físico e ao número de pessoas que a constituem, uma comunidade de artesãos privilegia as formas democráticas de vida em conjunto; sua organização é hierárquica mas não autoritária, tal hierarquia sendo baseada não em poderes, mas em níveis de habilidade: mestres de ofício, artesãos, aprendizes; e o trabalho final dá espaço para o divertimento e para a criatividade. Não bastasse ter nos dado uma lição em sensibilidade e no uso livre da imaginação, o artesanato também nos ensina sobre organização social.

Até poucos anos atrás, era comum pensar que o artesanato estava fadado a desaparecer, substituído pela produção industrial. Hoje, todavia, é justamente o contrário que está acontecendo: artefatos feitos à mão estão agora desempenhando um papel considerável no mercado mundial. Peças do Afeganistão e do Sudão estão sendo vendidas nas mesmas lojas que os mais recentes produtos dos estúdios de design de fábricas italianas e japonesas.