domingo, 29 de junho de 2014

ANTROPOLOGIA HIPERDIALÉTICA & PIERRE CLASTRES

PIERRE CLASTRES E SUA RELAÇÃO COM A
ANTROPOLOGIA HIPERDIALÉTICA

http://www.hcte.ufrj.br/downloads/sh/sh4/trabalhos/Cynthia%20PIERRE.pdf

Cynthia E. F. Thomas
Mestranda HCTE/UFRJ
cynthiathomasbr@gmail.com




A antropologia hiperdialética, conceito inovador proferido por Mércio Pereira Gomes, tem
por objetivo revolucionar esta linha da ciência social. Baseado em conceitos lógicos da filosofia,
estrutura todos os ramos antropológicos e os expõe. O intuito deste trabalho é relacionar a obra de
Pierre Clastres, antropólogo francês estruturalista com a lógica clássica aristotélica. Para isso, é
necessário revisitar as quatro lógicas conhecidas, apresentar a lógica hiperdialética, analisar os
ramos antropológicos e por fim, buscar na obra de Clastres sua relação com a referida lógica,
verificando a sua interseção com a filosofia hiperdialética.
Existem quatro tipos de lógicas da filosofia ocidental, amplamente conhecidas. São estas a
lógica da identidade, da diferença, a dialética e a clássica aristotélica (ou diferença). Estas quatro
lógicas foram trabalhadas pelo filósofo Luiz Sergio Coelho de Sampaio como uma base estruturada
para definir a quinta lógica, a lógica hiperdialética, que se caracteriza por subsumir todas as outras
quatro e adicionar uma nova diferença. A todas estas lógicas podemos relacionar dimensões do ser
para compreender o fenômeno humano e as veremos a seguir.
 A primeira lógica é a lógica da identidade (I), a do Ser-em-si, que pode ser atribuída ao
filósofo Parmênides, por seu pensamento estrito ao princípio da identidade, no qual todo objeto é
idêntico a si mesmo. Em suas palavras, “Os únicos caminhos da investigação em que se pode
pensar: um, o caminho que é e não pode não ser, é a via da Persuasão, pois acompanha a Verdade; o
outro, que não é e é forçoso que não seja, esse digo-te, é um caminho totalmente impensável. Pois
não poderás conhecer o que não é, nem declará-lo.” Ao princípio da identidade, podemos relacionar
a dimensão do fenômeno humano como autoidentidade, em que o Ser não reconhece aquilo que é
diferente de si.
Já na lógica da diferença (D), podemos relacionar o filósofo Heráclito e seu pensamento de
“Tu não podes descer duas vezes no mesmo rio, porque novas águas correm sempre sobre ti”. Aqui,
claramente identificamos que este pensamento é o oposto do apresentado na lógica da identidade.

“A lógica da diferença representa tanto a permanente continuidade do Ser quanto sua
inconsistência, mutabilidade e ainda ser caráter paradoxal.” (Mércio, p.19)
Platão pode ser considerado o primeiro pensador da lógica dialética (I/D), pois a fim de
superar o dilema grego do Ser e o não-Ser, das lógicas anteriores, fundamentados pelos pré-
socráticos Parmênides e Heráclito, fez uma síntese dos dois pensamentos, resultando na dialética.
Segundo Hegel, a dialética governa a mudança consistente e direcionada, a transformação do Ser,
por assim dizer, do próprio pensamento, e por isso é possível relacionarmos o conceito histórico
nesta dimensão.
A lógica sistêmica ou clássica (D/2), gerada por Aristóteles e amplamente difundida na
sociedade moderna, define a sistematicidade do Ser. É a lógica que não admite inconsistências,
paradoxos e indeterminações. Para Aristóteles, havia 4 causas para a existência das coisas: material,
eficiente, formal e final: a causa material indica aquilo do que a coisa é feita; a eficiente, aquilo que
dá origem ao processo de que a coisa surge; a formal é a coisa em si; e a finalidade é aquilo para o
qual a coisa é feita.
Esta lógica rege a ciência em geral, principalmente a matemática e a física. “Em suma, a
lógica sistêmica abriga em si as três lógicas anteriores, o que significa que ela leva em conta a coisa
em si e sua temporalidade (I), sua alteridade e espacialidade (D), seu conceito e sua historicidade
(I/D), e, por fim, seu caráter sistêmico (D/2).
Acima de todas as lógicas, coloca-se a lógica hiperdialética (I/D/2) concebida por Sampaio.
Em sua obra, ele indica que esta rege todas as demais, dando-lhes sentido de integração e
transcendência. É uma lógica com caráter utópico e revolucionário, pois infere que pode ser a chave
para a solução de problemas normalmente considerados insolúveis. Uma lógica que contém todas as
outras lógicas. É um trabalho genuíno que pode ser pesquisado no livro “A Lógica Ressuscitada” do
referido autor.
Com o estudo da filosofia hiperdialética e discussões com Sampaio, o antropólogo Mércio
Gomes vem sugerindo a revolução da Antropologia com o conceito de Antropologia Hiperdialética.
Uma nova linha de pesquisa que visa integrar todos os ramos antropológicos relacionados às quatro
lógicas bases, utilizando a lógica hiperdialética para a criação deste novo ramo antropológico.
A Antropologia, a saber, é uma ciência social que visa a estudar o ser humano e
humanidade. É a ciência da cultura. Relativamente nova quando caracterizada como “pensamento
formal e com características científicas” (Mercio, pg.42), pois os pré-socráticos já se questionavam a respeito das relações sociais e o seu impacto no comportamento humano. Mesmo sendo ficção,
podemos considerar o livro Utopia, de Thomas Morus (1478-1535), um marco inicial da
antropologia formal.
Dos quatro grandes ramos da antropologia centrados no fenômeno humano, o particularismo
histórico, o funcionalismo estrutural, o evolucionismo sociocultural e o estruturalismo, vamos focar
neste ultimo, no qual está inserido o trabalho do antropólogo francês Pierre Clastres. Antes disso,
faz-se necessário uma identificação geral dos demais ramos para caracterizar com mais clareza o
estruturalismo.
O evolucionismo, baseado no trabalho de Darwin, utiliza as sociedades primitivas como
fonte de comparação, colocando as sociedades civilizadas como superiores. Surge daí o termo
etnocentrismo. Neste ramo, podemos identificar a mudança cíclica como fator central e por isso
relacionar a lógica dialética ao próprio. Hegel e Marx, posteriores a Platão, conceituaram a dialética
inserindo um caráter histórico e totalitário, com um início bem demarcado por Lewis Henry
Morgan, que baseava seus estudos no progresso e evolução das formas sociais.
Na Escola sociológica francesa – comumente chamada de funcionalismo estrutural –, Émile
Durkheim inicia e trabalha a visão do inconsciente coletivo agindo sobre os indivíduos conscientes,
daí claramente conseguimos fazer a relação deste ramo antropológico com a lógica da diferença,
que se define pela dimensão do inconsciente.
Contemporaneamente a Durkheim, Franz Boas está inserido no ramo do particularismo
cultural, em que defende que “A cultura é o que é, transparentemente, e não há nada fora dela que a
possa explicar.” (Mercio, p.52). O fenômeno humano, portanto, pode ser declarado uma entidade
autoidentificada. A lógica da identidade é então a relação direta do particularismo cultural.
O estruturalismo, ramo fundamentado por Claude Lévi-Strauss já no século XX, centraliza
seu debate na idéia da existência de regras que estruturam a cultura e assume que estas regras
constroem pares de oposição para organizar o sentido. Ao termos regras estruturando a cultura,
automaticamente remetemos ao conceito de sistema, e analogamente, à lógica sistêmica.
Pierre Clastres, também estruturalista, em seu livro “A sociedade contra o estado”, comenta
diversos textos analisando principalmente a questão do poder nas sociedades indígenas e como
relacionar poder versus Estado. Acaba sendo um documento de antropologia política já que
baseando-se nas sociedades primitivas, verifica o poder de sua chefia e poder é o direito de agir, de
decidir, de mandar Em 10 capítulos, que podem ser lidos separadamente, critica e analisa diferentes textos e acaba estruturando todo o seu raciocínio filosófico para abarcar no último capítulo, homônimo do livro, onde conclui seu trabalho investigativo sobre o poder nas sociedades primitivas em
comparação com o poder e o Estado nas sociedades civilizadas.


(...)

Poder e palavra estão intrinsecamente ligados, Clastres considera que o homem de poder é sempre não somente o homem que fala, mas a única fonte de palavra legítima. Porem, nas sociedades sem Estado, as tribos indígenas tratam deste assunto diferentemente. Nestas sociedades a palavra é o dever do poder, ou seja, as sociedades indígenas exigem que o homem destinado a ser chefe prove seu domínio sobre as palavras. Um chefe silencioso não é mais um chefe.

Estas sociedades primitivas sabem por natureza que a violência é a essência do poder. E a
forma de ter o chefe somente no movimento da palavra, garante que ele está no extremo oposto da
violência, pois a sociedade é o lugar real do poder. Portanto, com o dever da palavra do chefe, tem-se a garantia que proíbe que o homem de palavra se torne o homem de poder.

O Arco e o Cesto - PIERRE CLASTRES

                                                                
PIERRE CLASTRES nasce em Paris, em 1934. Realiza seus estudos de filosofia na Sorbonne, formando-se em 1957. Durante os anos de licenciatura começa a interessar-se pelos estudos etnológicos, seguindo os cursos de Lévi-Strauss no Collège de France a partir de 1960. Em 1963, acompanhado de sua mulher, Hélène Clastres (autora de A Terra sem Mal, 1975), vive sua primeira experiência de campo entre os Guayaki no Paraguai, onde permanece cerca de um ano. Em 1965, defende sua tese de doutorado La Vie sociale d'une tribu nômade: les Indiens Guayaki du Paraguay, na Sorbonne, e leciona no antigo Departamento de Ciências Sociais da USP, em São Paulo. Nos anos seguintes, volta à América do Sul para pesquisas mais curtas: entre os Guarani, em 1965 e 1966, e entre os Chulupi, em 1966 e 1968, experiências no Chaco paraguaio que resultaram na maior parte dos escritos reunidos em A sociedade contra o Estado [1974] e nos livros A fala sagrada [1974] e Mythologie des Indiens Chulupi [1992]- Nos anos 70, Clastres volta ao campo. Viaja à Amazônia venezuelana, de 1970 a 1971, entre os Yanomami, e visita os Guarani do Estado de São Paulo, em 1974. Seus estudos nesse período são postumamente publicados no volume Arqueologia da violência —pesquisas em antropologia política [1980]. Na França, paralelamente à investigação empírica, é diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS, Paris) e membro do Laboratoire d'Anthropologie Sociale do Collège de France. Clastres morre em um acidente de carro em 1977.

Abaixo, um de seus textos clássicos, editado na compilação "Sociedade contra o Estado", lançado primeiramente pela editora Brasiliense, e atualmente relançado pela editora Cosac & Naify 
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Quase sem transição, a noite conquistou a floresta, e a massa das grandes árvores parece estar mais próxima. Com a escuridão instala-se também o silêncio; pássaros e macacos calaram – se e só se escutam as seis notas desesperadas do urutau. E, como por acordo tácito com o recolhimento geral em que se dispõem os seres e as coisas, nenhum barulho surge mais desse espaço furtivamente habitado onde acampa um pequeno grupo de homens. Lá, um bando de índios guaiaquis acampa. Animado de quando em quando por um sopro de vento, o reflexo avermelhado de cinco ou seis fogos familiares tira da sombra o círculo vago dos abrigos de folha de palmeira, cada um dos quais, frágil e passageira morada dos nômades, protege o repouso de uma família. As conversas murmuradas que se seguiram à refeição cessaram pouco a pouco; as mulheres, abraçando ainda seus filhos encolhidos, dormem. Poder-se-ia julgar também estarem adormecidos os homens que, sentados junto ao fogo montam uma grande muda e rigorosamente imóvel. Entretanto eles não dormem, e seu olhar pensativo, preso às trevas próximas, mostra uma espera sonhadora Pois os homens se preparam para cantar, e essa noite, como por vezes nessa hora propícia, vão entoar, cada um por si, o canto dos caçadores : sua meditação prepara o acordo sutil de uma alma e de um instante com as palavras que vão dizê-lo, uma voz logo se eleva, quase imperceptível a princípio, brotando do interior, murmúrio prudente que nada traz ainda da busca paciente de um tom e de um discurso exatos. Mas ela sobe pouco a pouco, o cantor torna-se seguro de si e, subitamente, seu canto jorra, esplendoroso, livre e tenso. Estimulada, uma segunda voz se une à primeira, depois uma outra; elas trazem palavras precoces, como respostas a questões que elas precederiam sempre. Agora todos os homens cantam. Estão sempre imóveis, o olhar um pouco mais perdido; cantam todos juntos, mas cada um canta seu próprio canto. Eles são senhores da noite e cada um pretende ser senhor de si. 
Mas precipitados, ardentes e graves, as palavras dos caçadores aché se cruzam, à sua revelia, em um diálogo que elas queriam esquecer.
Uma oposição muito clara organiza e domina a vida quotidiana dos guaiaqui: aquela dos homens e das mulheres cujas atividades respectivas, marcadas fortemente pela divisão sexual das tarefas, constituem dois campos nitidamente separados e, como aliás em todos os lugares, complementares. Mas, diferentemente da maioria das outras sociedades indígenas, os guaiaqui não conhecem forma de trabalho em que participem ao mesmo tempo os homens e as mulheres. A agricultura, por exemplo alterna tanto atividades masculinas como femininas, já que, se em geral as mulheres se dedicam a semear, a limpar os campos de cultivo e a colher os legumes e cereais, são os homens que se encarregam de preparar o lugar das plantações derrubando as árvores e queimando a vegetação seca. Mas se os papéis são bem distintos e nunca se misturam, nem por isso deixam de assegurar em comum o início e o sucesso de uma operação tão importante como a agricultura. Ora, nada disso ocorre com os guaiaqui. Nômades que tudo ignoram da arte de plantar, sua economia apóia-se exclusivamente na exploração dos recursos naturais que a floresta oferece. Estes se distribuem sob duas rubricas principais : produtos de caça e produtos da coleta, esta última compreendendo sobretudo o mel, as larvas e o cerne da palmeira pindo. Poderíamos pensar que a procura dessas duas classes de alimento se conformaria ao modelo muito difundido na América do Sul segundo o qual os homens caçam, o que é natural, deixando para as mulheres o cuidado de coletar. Na realidade, as coisas se passam de maneira muito diferente, uma vez que, entre os guaiaqui os homens caçam e também coletam . Não que, mais atentos que outros ao lazer de suas esposas, quisessem dispensá-las das tarefas que normalmente lhes caberiam; mas, de fato, os produtos da coleta são obtidos à custa de operações penosas que as mulheres dificilmente realizariam: localização das colméias, extração do mel, derrubada das árvores etc. Trata-se então de um tipo de coleta que concerne bem mais às atividades masculinas. Ou, em outros termos, a coleta conhecida alhures na América e que consiste na obtenção de bagas, frutas, raízes, insetos etc. é quase inexistente entre os guaiaqui, pois na floresta por eles ocupada não são abundantes os recursos desse gênero. Então, se as mulheres praticamente não coletam, é porque nela quase nada existe para ser coletado. 
Conseqüentemente, como as possibilidades econômicas dos guaiaqui estão culturalmente reduzidas pela ausência de agricultura e naturalmente reduzidas pela relativa raridade dos alimentos vegetais, a tarefa cada dia recomeçada de procurar alimentação para o grupo incumbe essencialmente aos homens. Isso não significa que as mulheres não participam da vida material da comunidade. Além de lhes caber a função, decisiva para os nômades, do transporte dos bens familiares, as esposas dos caçadores fabricam cestos, potes, cordas para os arcos; elas cozinham, cuidam das crianças etc. Longe, então, de serem ociosas, elas dedicam inteiramente o tempo de que dispõem a execução de todos esses trabalhos necessários. Mas não deixa de ser verdade que no plano fundamental da ‘’produção‘’ de alimentos o papel de fato menor desempenhado pelas mulheres deixa aos homens o absorvente e prestigioso monopólio. Ou, mais precisamente, a diferença entre homens e mulheres ao nível da vida econômica surge como a oposição de um grupo de produtores e de um grupo de consumidores. 
O pensamento guaiaqui, como veremos, exprime claramente a natureza dessa oposição que, por estar situada na própria raiz da vida social da tribo, comanda a economia de sua existência quotidiana e confere sentido a todo um conjunto de atitudes na qual se liga a trama das relações sociais. O espaço dos caçadores nômades não se pode repartir segundo as mesmas linhas que o dos agricultores sedentários. Dividido por estes em espaço da cultura, constituído pela aldeia e pelos campos de cultivo, e em espaço da natureza ocupado pela floresta circundante, ele se estrutura em círculos concêntricos. Para os guaiaqui, ao contrário, o espaço é constantemente homogêneo, reduzido a pura extensão onde é abolida, ao que parece, a diferença da natureza e da cultura. Mas, na realidade, a oposição já salientada no plano da vida material fornece igualmente o princípio de uma dicotomia do espaço que, por ser mais disfarçada do que em sociedades de outro nível cultural, nem por isso é menos pertinente. Existe ente os guaiaqui um espaço masculino e um espaço feminino, respectivamente definidos pela floresta onde os homens caçam e pelo acampamento onde reinam as mulheres. Sem dúvida as paradas são muito provisórias : elas raramente duram mais de três dias. Mas são o lugar de repouso onde se consome a alimentação preparada pelas mulheres, ao passo que a floresta é o lugar de movimentação especialmente destinado às incursões dos homens em busca da caça. Não poderíamos, evidentemente, tirar desse fato a conclusão de que as mulheres são menos nômades que seus esposos. Mas, por causa do tipo de economia em que está apoiada a existência da tribo, os verdadeiros senhores da floresta são os caçadores: eles efetivamente a cercam, pois são obrigados a explorá-la com minúcia para explorar sistematicamente todos os seus recursos. Espaço do perigo, do risco, da aventura sempre renovada para os homens, para as mulheres, a floresta é, ao contrário, espaço percorrido entre duas etapas, travessia monótona e fatigante, simples extensão neutra. No pólo oposto, o acampamento oferece ao caçador a tranqüilidade do repouso e a ocasião de fazer trabalhos rotineiros, enquanto é para as mulheres o lugar onde se realizam suas atividades específicas e se desenrola uma vida familiar que elas controlam amplamente. A floresta e o acampamento encontram-se assim dotados de signos contrários conforme se trata de homens ou de mulheres. O espaço, poder-se-ia dizer, da ‘’banalidade quotidiana‘’ é a floresta para as mulheres, o acampamento para os homens: para estes, a existência só se torna autêntica quando a realizam como caçadores, quer dizer, na floresta, e para as mulheres quando, deixando de ser meios de transporte, elas podem viver no acampamento como esposas e como mães. 
Podemos então medir o valor e o alcance da oposição sócio–econômica entre homens e mulheres porque ela estrutura o tempo e o espaço dos guaiaqui. Ora, eles não deixam no impensado o vivido: têm uma consciência clara e o desequilíbrio das relações econômicas entre os caçadores e suas esposas se exprime, no pensamento dos índios, como a oposição entre o arco e o cesto. Cada um desses dois instrumentos é, com efeito, o meio, o signo e o resumo de dois estilos de existência tanto opostos como cuidadosamente separados. Quase não é necessário sublinhar que o arco, arma única dos caçadores, é um instrumento exclusivamente masculino e que o cesto, coisa das mulheres, só é utilizado por elas: os homens caçam, as mulheres carregam. A pedagogia dos guaiaqui se estabelece principalmente nessa grande divisão de papéis. Logo aos quatro ou cinco anos, o menino recebe do pai um pequeno arco adaptado ao seu tamanho; a partir de então ele começará a se exercitar na arte de lançar com perfeição uma flecha. Alguns anos mais tarde, oferecem–lhe um arco muito maior, flechas já eficazes, e os pássaros que ele traz para sua mãe são a prova de que ele é um rapaz sério e a promessa de que será um bom caçador. Passam-se ainda alguns anos e vem a época da iniciação; o lábio inferior do jovem de cerca de 15 anos é perfurado; ele tem o direito de usar o ornamento labial, o beta, e é então considerado um verdadeiro caçador, um kybuchuété. Isso significa que um pouco mais tarde ele poderá ter uma mulher e deverá conseqüentemente prover as necessidades do novo lar. Por isso, o seu primeiro cuidado, logo que se integra na comunidade dos homens é fabricar para si um arco; de agora em diante membro ‘’produtor ‘’ do bando, ele caçará com uma arma feita por suas próprias mãos e apenas a morte ou a velhice o separarão de seu arco. Complementar e paralelo é o destino da mulher. Menina de nove ou dez anos, recebe de sua mãe uma miniatura de custo, cuja confecção era acompanha atentamente. Ele nada transporta, sem dúvida; mas o gesto gratuito de sua marcha – cabeça baixa e pescoço estendido nessa antecipação do seu esforço futuro – a prepara para seu futuro próximo. Pois o aparecimento, por volta dos 12 ou 13 anos, da primeira menstruação e o ritual que sanciona a chegada da sua feminilidade fazem da jovem virgem uma daré, uma mulher que será logo esposa de um caçador. Primeira tarefa do seu novo estado e marca de sua condição definitiva, ela fabrica então o seu próprio cesto. E cada um dos dois, o jovem e a jovem, tanto senhores como prisioneiros, um do seu cesto, o outro do seu arco, ascendem dessa forma à idade adulta. Enfim, quando morre um caçador, seu arco e suas flechas são ritualmente queimados, como o é também o último cesto de uma mulher: pois, como símbolos das pessoas, não poderiam sobreviver a elas.
Os guaiaqui apreendem essa grande oposição, segundo o qual funciona sua sociedade, por meio de um sistema de proibições recíprocas : uma proíbe as mulheres de tocarem o arco dos caçadores; outra impede os homens de manipularem o cesto. De um modo geral, os utensílios e instrumentos são sexualmente neutros, se pode dizer : o homem e a mulher podem utilizá–los indiferentemente; só o arco e o cesto escapam a essa neutralidade. Esse tabu sobre o contato físico com as insígnias mais evidentes do sexo oposto permite evitar assim toda transgressão de ordem sócio sexual que regulamenta a vida do grupo. Ele é escrupulosamente respeitado e nunca se assiste a estranha conjunção de uma mulher e um arco nem aquela, mais que ridícula, de um caçador e um cesto. Os sentimentos que cada sexo experimenta com relação ao objeto privilegiado do outro são muito diferentes: um caçador não suportaria a vergonha de transportar um cesto, ao passo que sua esposa temeria tocar seu arco. É que o contato da mulher e do arco é muito mais grave que o homem e do cesto. Se uma mulher pensasse em pegar um arco, ela atrairia, certamente, sobre seu proprietário o pané, quer dizer, o azar na caça, o que seria desastroso para a economia dos guaiaqui. Quanto ao caçador, o que ele vê e recusa no cesto é precisamente a possível ameaça do que ele teme acima de tudo, o pané. Pois, quando um homem é vitima dessa verdadeira maldição, sendo incapaz de preencher sua função de caçador, perde por isso mesmo a sua própria natureza e a sua substância lhe escapa: obrigado abandonar um arco doravante inútil, não lhe resta senão renunciar á sua masculinidade e, trágico e resignado, encarrega-se de um cesto. A dura lei dos guaiaqui não lhe deixa alternativa. Os homens só existem como caçadores, e eles mantêm a certeza da sua maneira de ser preservado o seu arco do contato da mulher. Inversamente, se um indivíduo não consegue mais realizar-se como caçador, ele deixa ao mesmo tempo de ser um homem: passando do arco para o cesto, metaforicamente ele se torna uma mulher. Com efeito, a conjunção do homem e do arco não se pode romper sem transformar-se na sua inversa e complementar: aquela da mulher e do cesto.
Ora, a lógica desse sistema fechado, constituído de quatro termos grupados em dois pares opostos, ficou provada: havia entre os guaiaqui dois homens que carregavam cestos. Um, Chachubutawachugi, era panema. Não possuía arco e a única caça a qual podia entregar-se de vez em quando era a captura de tatus e quatis: tipo de caça que, embora corretamente praticada por todos os guaiaqui, esta bem longe de apresentar a seus olhos a mesma dignidade que a caça com o arco, o iyvondy. Por outro lado, Chachubutawachugi era viúvo; e como era panema, nenhuma mulher queria saber dele, mesmo que a título de marido secundário. Ele tampouco procurava integrar-se à família de um de seus parentes: estes teriam julgado indesejável a presença permanente de um homem em suas expedições de caça, mas partia, só ou em companhia das mulheres, em busca de larvas, mel ou dos frutos que ele havia antes localizado. E para poder transportar o produto de sua coleta, munia-se de um cesto que uma mulher lhe havia dado de presente. Como o azar na caça lhe obstruía o acesso às mulheres, ele perdia, ao menos parcialmente, sua qualidade de homem e se achava assim rejeitado no campo simbólico do cesto. 
O segundo caso é um pouco diferente. Krembégi era na verdade um sodomita. Ele vivia como as mulheres e, à semelhança delas, mantinha em geral os cabelos nitidamente mais longos que os outros homens, e só executava trabalhos femininos: ele sabia tecer e fabricava, com os dentes de animais que os caçadores lhe ofereciam, colares que demonstravam um gosto e disposições artísticos muito melhor expressos do que nas obras das mulheres. Enfim, ele era evidentemente proprietário de um cesto. Em suma, Krembégi atestava assim no seio da cultura guaiaqui a existência inesperada de um refinamento habitualmente reservado a sociedades menos rústicas. Esse pederasta incompreensível vivia como uma mulher e havia adotado as atitudes e comportamentos próprios desse sexo. Ele recusava por exemplo tão seguramente o contato de um arco como um caçador o do cesto; ele considerava que seu lugar natural era o mundo das mulheres. Krembégi era homossexual porque era panema. Talvez também seu azar na caça proviesse de ser ele, anteriormente, um invertido inconsciente. Em todo, o caso, as confidências de seus companheiros revelavam que a sua homossexualidade se tornara oficial, quer dizer, socialmente reconhecida, quando ficara evidente a sua incapacidade em se servir de um arco: para os próprios guaiaqui ele era um kyrypy-meno (ânus fazer amor) porque era panema. 
Os aché mantinham aliás uma atitude muito diferente com relação a cada um dos dois carregadores de cesto que acabamos de evocar. O primeiro, Chachubutawachugi, era objeto de caçoada geral, se bem que desprovida de verdadeira maldade: os homens o desprezavam bastante nitidamente, as mulheres dele riam à socapa, e as crianças tinham por ele um respeito muito menor do que pelos outros adultos. Krembégi ao contrário não despertava nenhuma atenção especial; consideravam-se evidentes e adquiridas a sua incapacidade como caçador e a sua homossexualidade. De tempos em tempos, certos caçadores faziam dele seu parceiro sexual, manifestando nesses jogos eróticos mais libertinagem do que perversão. Mas não ocorreu nunca por parte deles qualquer sentimento de desprezo para com ele. Inversamente e se conformando nisso a imagem que deles fazia sua própria sociedade, esses dois guaiaqui se mostravam desigualmente adaptados ao seu respectivo estatuto. Krembégi estava tão a vontade, tranqüilo e sereno em seu papel de homem tornado mulher, quanto Chachubutawachugi parecia inquieto, nervoso e freqüentemente descontente. Como se explica essa diferença introduzida pelos aché no tratamento reservado a dois indivíduos que, ao menos no plano formal, eram negativamente idênticos? É que, ocupando ambos uma mesma posição em relação aos outros homens, uma vez que os dois eram panema, seu estatuto positivo deixaria de ser equivalente, pois um deles, Chachubutawachugi, embora obrigado a renunciar parcialmente ás determinações masculinas, permanecera um homem, enquanto o outro, Krembégi assumira até às últimas conseqüências sua condição de homem não caçador, tornando-se uma mulher. Ou, em outros termos, Krembégi havia encontrado, por meio de sua homossexualidade, o topos ao qual o destinava logicamente sua incapacidade de ocupar o espaço dos homens; o outro, em compensação, recusando o movimento dessa mesma lógica, estava eliminado do círculo dos homens sem, entretanto, com isso integrar-se ao das mulheres. O que significa dizer que, literalmente, ele não estava em lugar algum, e que sua situação era muito mais incômoda que a de Krembégi. Este último ocupava aos olhos dos aché um lugar definido embora paradoxal; e desprovida em certo sentido, de toda ambigüidade, sua posição no grupo resultava normal, mesmo que essa nova norma fosse a das mulheres. Chachubutawachugi, ao contrário, constituía por si mesmo uma espécie de escândalo lógico; não se situando em nenhum lugar nitidamente identificável, ele escapava do sistema e introduzia nele um fator de desordem: o anormal, sob certo ponto de vista, não era o outro, mas ele. Daí sem dúvida a agressividade secreta dos guaiaqui com relação a ele, que se manifestava por vezes nas caçoadas. Daí também provavelmente as dificuldades psicológicas que ele experimentava e um sentimento agudo de abandono: tão difícil é manter a conjunção de um homem e de um cesto. Chachubutawachugi queria pateticamente permanecer um homem sem ser um caçador: ele se expunha assim ao ridículo e, portanto, às caçoadas, pois era o ponto de contato entre duas regiões normalmente separadas.
Pode se supor que esses dois homens mantivessem ao nível de seu cesto a diferença das relações que tinham com sua masculinidade. De fato, Krembégi carregava o seu cesto como as mulheres, isto é, com a tira do suporte sobre a testa. Quanto a Chachubutawachugi, colocava a tira sobre o peito e nunca sobre a testa. Era claramente uma maneira inconfortável, e muito mais fatigante do que a outra, de transportar a cesta; mas era também para ele o único meio de mostrar que, mesmo sem arco, continuava sendo um homem. 
Central por sua posição e potente em seus efeitos, a grande oposição dos homens e das mulheres impõe então sua marca a todos os aspectos da vida dos guaiaqui. Também é ela que funda a diferença entre o canto dos homens e o das mulheres. O prerá masculino e o chengaruvara feminino se opõem totalmente por seu estilo e por seu conteúdo; eles exprimem dois modos de existência, duas presenças no mundo, dois sistemas de valores bem diferentes uns dos outros. Dificilmente aliás pode-se falar de canto a propósito das mulheres; trata- se em realidade de uma ‘’saudação chorosa‘’ generalizada, mesmo quando não saúdam ritualmente um estrangeiro ou um parente há muito tempo ausente as mulheres ‘’cantam’’ chorando. Num tom queixoso, mas com uma voz forte, agachadas e com o rosto escondido nas mãos, elas pontuam cada frase de sua melopéia com soluços estridentes. Freqüentemente as mulheres cantam todas juntas e o alarido de seus gemidos conjugados exerce sobre o ouvinte desprevenido uma impressão de mal estar. Ficamos tanto mais surpresos ao ver, depois de tudo terminado, o rosto tranqüilo das chorosas e olhos perfeitamente secos. Convém por outro lado frisar o canto das mulheres intervém sempre em circunstancias rituais: seja durante as principais cerimônias da sociedade guaiaqui, seja no decorrer das múltiplas ocasiões propiciadas pela vida quotidiana. Por exemplo, quando um caçador traz para o acampamento algum animal, uma mulher o ‘’saúda’’ chorando, pois ele evoca um determinado parente desaparecido; ou, ainda, quando uma criança se fere brincando, sua mãe logo entoa uma chengaruvara de modo exatamente semelhante a todas as outras. O canto das mulheres, ao contrário do que se poderia esperar, jamais é alegre. Os temas são sempre a morte, a doença, a violência dos brancos; as mulheres assumem assim na tristeza de seu canto toda a infelicidade e toda a angustia dos aché.
O contraste que ele forma com o canto dos homens é sensível. Parece haver entre os guaiaqui como que uma divisão sexual do trabalho lingüístico segundo o qual todos os aspectos negativos da existência são assumidos pelas mulheres, ao passo que os homem se dedicam sobretudo a celebrar se não os seus prazeres, pelos menos os valores que a tornam suportável. Enquanto nos seus próprios gestos a mulher se esconde e parece humilhar-se para cantar ou antes para chorar, o caçador, ao contrário cabeça erguida e corpo ereto, se exalta no seu canto. A voz é poderosa, quase brutal, simulando às vezes irritação. Na extrema virilidade que o caçador investe em seu canto se afirmam uma total certeza de si, um acordo consigo mesmo que nada pode desmentir. A linguagem do canto masculino é aliás extremamente deformada. Na medida em que sua improvisação se torna mais fácil e mais rica e em que as palavras jorram por si mesmas, o caçador lhes impõe uma transformação tal, que, logo, se acreditaria escutar uma outra língua: para um não aché, esses cantos são rigorosamente incompreensíveis. Quanto à sua temática, ela consiste essencialmente numa louvação enfática que o caçador endereça a si mesmo. O conteúdo do discurso é com efeito estritamente pessoal e tudo se diz na primeira pessoa. O homem fala quase que exclusivamente sobre suas aventuras de caçador, sobre os animais que encontrou, as feridas que recebeu, sua habilidade em manejar a flecha. Leitmotiv indefinidamente repetido ouve-se proclamar de modo quase obsessivo cho rö bretete, cho rö yma wachu chija ‘’Eu sou um grande caçador eu costumo matar com minhas flechas, eu sou uma natureza poderosa”, uma natureza irritada e agressiva! E freqüentemente, como para marcar melhor a que ponto sua glória e indiscutível, ele pontua a frase prolongando-a com um vigoroso: Cho cho cho ‘’Eu, eu, eu‘’ .
A diferença dos cantos traduz admiravelmente a oposição dos sexos. O canto das mulheres é uma lamentação mais freqüentemente coral, ouvida apenas durante o dia; o dos homens ocorre quase sempre durante a noite, e, se suas vozes por vezes simultâneas podem dar a impressão de um coro, é uma falsa aparência, já que cada caçador é de fato um solista. Além disso, o chengaruvara feminino parece consistir em fórmulas mecanicamente repetidas, adaptadas às diversas circunstâncias rituais. Ao contrário, o prerá dos caçadores só depende do seu humor e só se organiza em função da sua individualidade; é uma pura improvisação pessoal que autoriza, por outro lado, a procura de efeitos artísticos no jogo da voz. Essa determinação coletiva do canto das mulheres, individual do canto dos homens, nos remete assim a oposição da qual partimos: único elemento realmente ‘’produtivo‘’ da sociedade guaiaqui, o caçador tem no plano da linguagem uma liberdade de criação que a situação de ‘’grupo consumidor ‘’proíbe ás mulheres. 
Ora, essa liberdade que os homens vivem e dizem enquanto caçadores não se refere somente á natureza da relação que como grupos os liga às mulheres e delas os separa. Pois, através do canto dos homens, se descobre, secreta, uma outra oposição, não menos potente que a primeira mas inconsciente: aquela dos caçadores entre eles. E para melhor escutar seu canto e compreender o que realmente se diz, nos é necessário voltar ainda à etnologia dos guaiaqui e as dimensões fundamentais da sua cultura. 
Existe para o caçador aché um tabu alimentar que formalmente o proíbe de consumir a carne de suas próprias presas: bai iyvombre já uéméré ‘’Os animais que matamos não devem ser comidos por nós mesmos‘’. De modo que, quando um homem chega ao acampamento, divide o produto de sua caça entre sua família (mulher e filhos) e os outros membros do bando; naturalmente, ele não provará a carne preparada por sua esposa. Ora, como vimos a caça ocupa o lugar mais importante na alimentação guaiaqui Disso resulta que cada homem passa sua vida caçando para os outros e recebendo deles sua própria alimentação. Essa proibição é estritamente respeitada mesmo pelos rapazes não iniciados, quando matam pássaros. Uma de suas conseqüências mais importantes é que ela impede ipso facto a dispersão dos índios em famílias elementares: o homem morreria de fome, a menos que renunciasse ao tabu. É preciso portanto se deslocar em grupo. Os guaiaqui, para explicar essa atitude, afirmam que comer os animais abatidos por eles próprios é a forma mais segura de atrair o pané. Esse temor maior dos caçadores basta para impor o respeito da proibição que ela funda: se deseja continuar a matar animais, é necessário não comê-los. A teoria indígena apóia-se simplesmente na idéia de que a conjunção entre o caçador e os animais mortos, no plano do consumo, implicaria uma disjunção entre o caçador e os animais vivos, no plano da ‘’produção’’. Ela tem portanto um alcance explicito sobretudo negativo, uma vez que se resume na interdição dessa conjunção.
Na realidade, essa proibição alimentar possui também um valor positivo, já que opera como um principio estruturante que funda como tal a sociedade guaiaqui. Estabelecendo uma relação negativa entre o caçador e o produto de sua caça, ele coloca todos os homens na mesma posição, uns com relação aos outros, e a reciprocidade do dom de alimentação se mostra a partir daí não apenas possível, mas necessária: todo caçador é ao mesmo tempo doador e recebedor de carne. O tabu sobre a caça aparece então como o fato fundador da troca de alimentação entre os guaiaqui, isto é como um fundamento da sua própria sociedade. Outras tribos conhecem sem dúvida esse mesmo tabu. Mas ele se reveste, entre os aché, de uma importância particularmente grande pelo fato de que remete justamente à sua fonte principal de alimentação. Obrigando o indivíduo a se separar de sua caça, ele o obriga a confiar nos outros, permitindo assim que o laço social se ligue de maneira definitiva; a interdependência dos caçadores garante a solidez e a permanência desse laço e a sociedade ganha em força o que os indivíduos perdem em autonomia. A disjunção do caçador e de sua caça funda a conjunção dos caçadores entre si, isto é, o contrato que rege a sociedade guaiaqui. E mais, a disjunção no plano do consumo entre caçadores e animais mortos assegura, protegendo aqueles do pané, a repetição futura da conjunção ente caçadores e animais vivos, ou seja, o sucesso da caça e portanto a sobrevivência da sociedade.
Rejeitando o lado da Natureza o contato direto entre o caçador e sua própria caça, o tabu alimentar se situa no coração mesmo da cultura: entre seu caçador e seu alimento, ele impõe a mediação dos outros caçadores. Vemos assim a troca da caça, que circunscreve em parte nos guiaqui o plano da vida econômica, transformar, por seu caráter obrigatório, cada caçador individual em uma relação. Entre o caçador e seu “produto” abre-se o espaço perigoso da proibição e da transgressão; o medo do pané funda a troca, privando o caçador de todo o direito sobre a sua caça: esse direito só se exerce sobre a dos outros. Ora, é impressionante constatar que essa mesma estrutura relacional, pela qual se definem rigorosamente os homens no nível da circulação dos bens se repete no plano das instituições matrimoniais.
Desde o começo do século XVII, os primeiros missionários jesuítas tentaram em vão entrar em contato com os guaiaqui. Puderam entretanto recolher numerosas informações sobre essa misteriosa tribo e aprenderam, muito surpresos, que ao contrário do que se passava entre os outros selvagens existia entre os guaiaqui um excesso de homens em relação ao número de mulheres. Eles não estavam enganados, pois quase 400 anos depois, pudemos observar o mesmo desequilíbrio do sex ratio: em um dos dois grupos meridionais, por exemplo existia exatamente uma mulher para dois homens. Não é necessário estudar aqui as causas dessa anomalia , mas é importante examinar suas conseqüências. Qualquer que seja o tipo de casamento preferido por uma sociedade, há quase sempre um número mais ou menos equivalente de esposas e de maridos potenciais. A sociedade guaiaqui podia escolher entre várias soluções para igualar esses dois números. Uma vez que era impossível a solução-suicida, que consistia em renunciar à proibição do incesto, ela poderia inicialmente admitir o assassinato dos recém-nascidos de sexo masculino. Mas toda criança macho é um futuro caçador, isto é, um membro essencial da comunidade: teria sido então contraditório desembaraçar-se dela. Podia-se também aceitar a existência de um número relativamente importante de celibatários; mas essa escolha era ainda mais arriscada que a precedente, pois, em sociedades tão reduzidas demograficamente, não existe nada mais perigoso para o equilíbrio do grupo que um celibatário. Ao invés de diminuir artificialmente o número de esposos possíveis, não restava senão aumentar, para cada mulher, o número de maridos reais, isto é, instituir um sistema de casamento poliândrico. E de fato todo excedente de homens é absorvido pelas mulheres sob a forma de maridos secundários, de jepetyva, que ocuparão ao lado da esposa comum um lugar quase tão invejável como o do imété ou marido principal. 
A sociedade guaiaqui soube portanto se preservar de um perigo mortal, adaptando a família conjugal a essa demografia completamente desequilibrada. O que resulta disso, do ponto de vista dos homens ? Praticamente, nenhum deles pode conjugar, se pode dizer, sua mulher no singular, uma vez que não é o único marido e que a divide com um e às vezes até dois homens. Poderíamos pensar que, por ser a norma da cultura na e pela qual se determinam, os homens não são afetados por essa situação e não reagem, diante dela de maneira especialmente forte. Na realidade, a relação entre a cultura e os indivíduos que nela vivem não é mecânica, e os maridos guaiaquis mesmo aceitando a única solução possível ao problema que lhes foi apresentado, não ficam conformados diante dele. Os lares poliândricos tem sem dúvida uma existência tranqüila e os três termos do triângulo conjugal vivem em bom entendimento. Isso não impede que, quase sempre, os homens tenham em segredo – pois entre eles nunca falam sobre isso - sentimentos de irritação, por vezes de agressividade com relação ao co-proprietário de sua esposa. Durante nossa estada entre os guaiaqui uma mulher casada teve um caso amoroso com um jovem solteiro. Furioso, o marido inicialmente bateu no rival; depois, diante da insistência e da chantagem de sua mulher, acabou concordando em legalizar a situação, deixando o amante clandestino se tornar o marido secundário oficial de sua esposa. Aliás, ele não tinha escolha; se recusasse esse arranjo, sua mulher talvez o tivesse abandonado, condenando-o assim ao celibato, pois não existia na tribo nenhuma outra mulher disponível. Por outro lado, a pressão do grupo, cioso de eliminar todo fator de desordem, cedo ou tarde o teria obrigado a se conformar a um a instituição precisamente destinada a resolver esse tipo de problema. Ele resignou-se então a dividir sua mulher com outro, embora a contragosto. Mais ou menos na mesma época morreu o esposo secundário de uma outra mulher. As relações deste com o marido principal tinham sempre sido boas: se não eram marcadas por uma extrema cordialidade, eram pelo menos extremamente polidas. Mas o iméré sobrevivente não demonstrou, no entanto, uma tristeza excessiva ao ver desaparecer o japetyva. Ele não dissimulou sua satisfação: ‘’Eu estou contente‘’, diz ele ‘’agora sou o único marido de minha mulher‘’.
Os exemplos poderiam multiplicar-se. Os dois casos que acabamos de evocar bastam entretanto para mostrar que, muito embora os homens guaiaquis aceitem a poliandria, estão longe de se sentir à vontade. Existe uma espécie de ‘’defasagem’’ entre essa instituição matrimonial que protege - eficazmente a integridade do grupo e os indivíduos que ela envolve. Os homens aprovam a poliandria porque ela é necessária em virtude do déficit de mulheres, mas suportam-na como uma obrigação muito desagradável. Numerosos maridos guaiaquis têm de dividir sua mulher com outro homem, e quanto aqueles que exercem sozinhos seus direitos conjugais, arriscam-se a ver a qualquer momento esse monopólio raro e frágil suprimido pela concorrência de um celibatário ou de um viúvo. As esposas guaiaquis têm por conseguinte um papel mediador entre os doadores e os tomadores de mulheres, e também entre os próprios tomadores. A troca pela qual um homem dá a outro sua filha ou irmã não faz com que termine com licença da expressão - a circulação dessa mulher: o recebedor dessa ‘’mensagem ‘’ deverá num prazo mais ou menos longo dividir a ‘’leitura‘’ com um outro homem. A troca das mulheres é em si mesma criadora de aliança entre famílias; mas a poliandria, sob sua forma guaiaqui, acaba de sobrepor-se à troca das mulheres para preencher uma função bem determinada: ela permite preservar como cultura a vida social a que chega o grupo mediante a troca das mulheres. No limite, o casamento entre os guaiaqui só pode ser poliândrico, uma vez que apenas sob essa forma ele adquire o valor e o alcance de uma instituição que cria e mantém a cada instante a sociedade como tal. Se os guaiaqui rejeitassem a poliandria, sua sociedade não sobreviveria não podendo, por causa de sua fraqueza numérica, obter mulheres atacando outras tribos, eles se veriam colocados diante da perspectiva de uma guerra civil entre solteiros e possuidores de mulheres, isto é diante de um suicídio coletivo da tribo. A poliandria elimina assim a oposição suscitada entre os desejos dos homens pela raridade dos bens que são as mulheres. 
É então uma espécie de razão de Estado que faz com que os maridos guaiaquis aceitem a poliandria. Cada um deles renuncia ao uso exclusivo de sua esposa em proveito de um solteiro qualquer da tribo, a fim de que esta possa subsistir como unidade social. Alienado a metade de seus direitos matrimoniais, os maridos aché tornam possíveis a vida em comum e a sobrevivência da sociedade. Mas isso não impede como as narrativas acima evocadas o mostram, sentimentos latentes de frustração e descontentamento: aceita-se no final das contas partilhar sua mulher com outro homem porque não há outro jeito, mas com um evidente mau humor. Todo homem guaiaqui é, potencialmente, um tomador e um doador de esposa, pois, muito antes de compensar a mulher que ele terá recebido pela filha que ela lhe dará, ele devera oferecer a outro homem sua própria esposa sem que se estabeleça uma reciprocidade impossível: antes de dar a filha é preciso dar também a mãe. Isso significa que, entre os guaiaqui, um homem só é um marido se aceitar sê–lo pela metade, e a superioridade do marido principal sobre o marido secundário em nada modifica o fato de que o primeiro deve levar em conta os direitos do segundo. Não é entre cunhados que as relações pessoais são as mais marcadas, mas entre os maridos de uma mesma mulher, e, o mais das vezes, como vimos, de maneira negativa. 
Pode–se descobrir agora uma analogia de estrutura entre a relação do caçador com sua caça e a do marido com sua esposa? Constata- se inicialmente que, em relação ao homem como caçador e como esposo, os animais e as mulheres ocupam um lugar equivalente. Em um caso, o homem se vê radicalmente separado do produto de sua caça, uma vez que, não deve consumi-la; no outro, ele não é nunca completamente marido, mas, na melhor das hipóteses, um semimarido : entre um homem e sua mulher vem interpor-se o terceiro termo: o marido secundário. Assim como um homem, para se alimentar, depende da caça realizada pelos outros, assim um marido, para ‘’consumir ‘’ sua esposa , depende do outro esposo, cujos desejos, sob pena de tornar a coexistência impossível, deve também respeitar. O sistema poliândrico limita, pois, duplamente os direitos matrimoniais de cada marido: ao nível dos homens que, com licença da expressão, se neutralizam uns aos outros, e ao nível da mulher, que sabendo muito bem tirar partido dessa situação, não deixa de dividir seus maridos para melhor reinar sobre eles. 
Conseqüentemente, de um ponto de vista formal, a caça é para o caçador o que a mulher é para o marido, pelo fato de que uma e outra mantêm com o homem uma relação apenas mediatizada: para cada caçador guaiaqui, a relação com o alimento animal e com as mulheres passa pelos outros homens. As circunstâncias muito particulares de sua vida obrigam os guaiaqui a dotarem a troca e a reciprocidade de um coeficiente de rigor muito mais forte que em outros lugares, e as exigências dessa hipertroca são bastante esmagadoras para surgir na consciência dos índios e suscitar as vezes conflitos ocasionados pela necessidade da poliandria. É preciso com efeito frisar que, para os índios a obrigação de dar a caça não é absolutamente vivida como tal, ao passo que a de dividir esposa é experimentada como alienação. Mas, é essa identidade formal de dupla relação caçador-caça, marido-esposa que devemos reter aqui. O tabu alimentar e o déficit de mulheres exercem, cada um em seu plano próprio, funções paralelas: garantir a existência da sociedade pela interdependência dos caçadores, assegurar sua permanência pela divisão de mulheres. Positivas por criarem e recriarem a cada instante a própria estrutura social, essa funções se duplicam também de uma dimensão negativa por introduzirem, entre o homem por um lado e, por outro, sua caça e sua mulher, toda a distância que vira precisamente habitar o social. Aqui se determina a relação estrutural do homem com a essência do grupo, isto é, com a troca. Com efeito, a doação da caça e a partilha das esposas remete respectivamente a dois dos três suportes fundamentais sobre os quais repousa o edifício da cultura: a troca dos bens e a troca das mulheres. 
Essa relação dupla e idêntica dos homens com a sua sociedade, mesmo que nunca surja em sua consciência, não é entretanto inerte. Ao contrário, mais ativa ainda por subsistir inconsciente, é ela que define a relação singular dos caçadores com a terceira ordem da realidade na qual e pela qual a sociedade existe: a linguagem como troca de mensagens. Pois, em seu canto, os homens exprimem ao mesmo tempo o saber impensado de seu destino de caçadores e esposos e o protesto contra esse destino. Assim se ordena a figura completa de tripla ligação dos homens com a troca: o caçador individual nela ocupa o centro, ao passo que o simbolismo dos bens, das mulheres e das palavras traça a sua periferia. Mas enquanto a relação do homem com a caça e com as mulheres consiste em uma disjunção que funda a sociedade, sua relação com a linguagem se condensa no canto em uma conjunção bastante radical para negar justamente a função de comunicação da linguagem e, ainda, a própria troca. Conseqüentemente, o canto dos caçadores ocupa uma posição simétrica e inversa à do tabu alimentar e da poliandria, dos quais ele marca, por sua forma e por seu conteúdo, que os homens querem negá-los como caçadores e como maridos.
Lembramos-nos com efeito de que o conteúdo dos cantos masculinos é eminentemente pessoal, sempre articulado à primeira pessoa e estritamente consagrado ao louvor do canto enquanto bom caçador. Por que é assim? O canto dos homens, se é seguramente linguagem, já não é mais entretanto a linguagem corrente da vida quotidiana, o que permite a troca dos grupos lingüísticos. Ele é mesmo oposto. Se falar é emitir uma mensagem destinada a um recebedor, então o canto dos homens aché se situa fora da linguagem. Pois quem escuta o canto de um caçador, alem do próprio cantor, e a quem se destina a mensagem senão àquele mesmo que a emite? Ele mesmo objeto e sujeito de seu canto, o caçador dedica apenas a si mesmo o recitativo lírico. Prisioneiro de uma troca que os determina apenas como elementos, de um sistema, os guaiaqui aspiram a se libertar de suas exigências, mas sem poderem recusá-lo no próprio plano em que o realizam e o sofrem. Como, a partir de então, separar os termos sem quebrar as relações? Só se oferecia o recurso à linguagem. Os caçadores guaiaquis encontraram em seu canto o truque inocente e profundo que lhes permite recusar no plano da linguagem a troca que eles não podem abolir naquele dos bens e das mulheres.
Não é certamente em vão que os homens escolhem para hino de sua liberdade o solo noturno de seu canto. Apenas ali pode articular-se uma experiência sem a qual eles talvez não pudessem suportar a tensão permanente que as necessidades da vida social impõem à sua vida quotidiana. O canto do caçador, essa endolinguagem, é assim para ele o momento de seu verdadeiro repouso no qual se vem abrigar a liberdade de sua solidão. Eis por que, caída a noite, cada homem toma posse do prestigioso reino, reservado exclusivamente a ele, onde pode enfim, reconciliado consigo mesmo, sonhar nas palavras o impossível ‘’tête à tête‘’ com sua própria pessoa. Mas os cantores aché, poetas nus e selvagens que dão à sua linguagem uma nova sanidade, não sabem que o fato de todos dominarem uma igual magia das palavras – não são seus cantos simultâneos à mesma canção emocionante e ingênua de seu próprio gesto? - dissipa então para cada um a esperança de conseguir sua diferença. Aliás o que lhes importa? Eles cantam, segundo dizem, ury vwä, ‘’para ficarem contentes‘’. E se repetem assim, ao longo das horas, estes desafios cem vezes declamados. “’Eu sou um grande caçador, eu mato muito com minhas flechas, eu sou uma natureza forte”. ‘’Mas eles são lançados para não serem notados, e, se seu canto dá ao caçador o orgulho de uma vitória, é porque ele quer o esquecimento de todo o combate. Precisemos que não é nossa intenção sugerir aqui nenhuma biologia da cultura; a vida social não é a vida e a troca não é uma luta. A observação de uma sociedade primitiva mostra-nos o contrário; se a troca como essência do social pode assumir a forma dramática de uma competição entre aqueles que trocam, esta está condenada a permanecer estática, pois a permanência do contrato social exige que não haja nem vencedor nem vencido e que os ganhos e as perdas se equilibrem constantemente para cada um. Poder-se-ia dizer, em resumo, que a vida social é um “combate”, que exclui toda vitória e que, inversamente, quando se pode falar de “vitória”, é que se está fora de todo combate, isto é, fora da vida social. Finalmente, o que os cantos dos índios guaiaquis nos lembram é que não se pode ganhar em todos os planos, que não se pode deixar de respeitar as regras do jogo social, e que a fascinação de não participar dele conduz a uma grande ilusão. 
Por sua natureza e função, esses cantos ilustram de modo exemplar a relação geral do homem com a linguagem tema sobre o qual essas vozes lingüísticas nos convidam a meditar. Elas nos convidam a tomar um caminho já quase apagado, e o pensamento dos selvagens, por repousar numa linguagem ainda primeira, se dirige somente ao pensamento. Vimos na verdade que, além do contentamento, o cantor proporciona aos caçadores – e sem que eles saibam – o meio de escapar à vida social recusando a troca que a funda. O mesmo movimento pelo qual ele se separa do homem social que é, leva o caçador a se saber e a se dizer enquanto individualidade concreta absolutamente fechada sobre si. O mesmo homem, existe, portanto, como pura relação no plano de troca de bens e de mulheres e como mônada, se pode dizer, no plano da linguagem. É pelo canto que ele chega à consciência de si mesmo como Eu e ao uso desde então legitimo desse pronome pessoal. O homem existe para si em e por seu canto, ele mesmo é o seu próprio canto: eu canto, logo existo. Ora, é evidente que se a linguagem sob a forma do canto, se designa ao homem como o lugar verdadeiro de seu ser, não se trata mais da linguagem como arquétipo da troca, uma vez que é precisamente disso que se quer liberar. Em outros termos, o próprio modelo do universo da comunicação é também o meio de escapar dele. Uma palavra pode ser ao mesmo tempo uma mensagem trocada e a negação de toda mensagem, ela pode se pronunciar como signo e como o contrário de um signo. O canto dos guaiaqui nos remete então a uma natureza dupla e essencial da linguagem que se manifesta ora em sua função aberta de comunicação, ora em sua função fechada de constituição de um Ego: essa capacidade da linguagem de exercer funções inversas repousa sobre a possibilidade de seu desdobramento em signo e valor. 
Longe de ser inocente como uma distração ou uma simples recreação, o canto dos caçadores guaiaquis mostra a vigorosa intenção que o anima a escapar da sujeição do homem à rede geral dos signos (da qual as palavras são aqui apenas a metáfora privilegiada) por uma agressão contra a linguagem sob a forma de uma transgressão de sua função. O que se torna uma palavra quando cessamos de utilizá-la como um meio de comunicação, quando ela é desviada de seu fim ‘’natural’’, que é relação com o Outro? Separadas de sua natureza de signos as palavras não se destinam a nenhuma escuta, são elas mesmas seu próprio fim, e, para quem as pronuncia, se convertem em valores. Por outro lado, transformando-se de sistema de signos móveis entre emissores e receptores em pura posição de valor para um Ego, a linguagem não deixa no entanto de ser o lugar do sentido: o metassocial não é absolutamente o infra-individual, o canto solitário do caçador não é o discurso de um louco e suas palavras não são gestos. O sentido subsiste, desprovido de toda a mensagem, e é em sua permanência absoluta que repousa o valer da palavra como valor. A linguagem pode não ser mais a linguagem sem por isso se anular no que não tem sentido, e cada um pode compreender o canto dos aché, embora de fato nele nada se diga. Ou antes, o que ele nos convida a escutar é que falar não é sempre colocar o outro em jogo, que a linguagem pode ser manejada por si mesma e que ela não se reduz a função que exerce : o canto guaiaqui é a reflexão em si da linguagem, abolindo o universo social dos signos para dar lugar à eclosão do sentido como valor absoluto. Não há portanto paradoxo no fato de que o mais inconsciente e o mais coletivo do homem – a sua linguagem – possa ser também a consciência mais transparente e a dimensão mais liberada. A disjunção da palavra e do signo no canto responde a disjunção do homem e do social para o cantor, e a conversão do sentido em valor é a de um indivíduo em sujeito de sua solidão .
O homem é um animal político, a sociedade não equivale à soma de seus indivíduos, e a diferença entre a edição que ela não é e o sistema que a define consiste na troca e na reciprocidade pelas quais os homens se ligam. Seria inútil lembrar essas trivialidades se não quiséssemos frisar que se indica o contrário. A saber, precisamente, que se o homem é um ‘’animal doente‘’ é porque ele não é apenas um “animal político”’, e que da sua inquietude nasce o grande desejo que o habita: o de escapar a uma necessidade apenas vivida como destino e de rejeitar a obrigação da troca, o de recusar seu ser social para se libertar de sua condição. Pois é exatamente no fato de se saberem os homens atravessados e levados pela realidade do social que se originam o desejo de não se reduzir a ele e a nostalgia de evadir-se dele. A audição atenta do canto de alguns selvagens nos ensina que em verdade se trata de um canto geral e que nele é despertado o sonho universal de não mais sermos o que somos. 
Situado no próprio âmago da condição humana, o desejo de aboli-la se realiza apenas como um sonho que se pode traduzir de múltiplas maneiras, ora como um mito, ora, como entre os guaiaqui, como um canto. Talvez o canto dos caçadores aché não seja senão seu mito individual. Em todo o caso, o desejo secreto dos homens demonstra sua impossibilidade pelo fato de que só podem sonhá-lo, e é apenas no espaço da linguagem que ele se vem realizar. Ora, essa vizinhança entre sonho e palavra, se marca o fracasso dos homens em renunciar ao que eles são, significa ao mesmo tempo o triunfo da linguagem. Apenas ela na verdade pode preencher a dupla missão de reunir os homens e de quebrar os laços que os unem. Possibilidade única para eles de transcender sua condição, a linguagem coloca-se então como seu mais-além e as palavras ditas pelo que valem são terra natal dos deuses. 
Apesar das aparências, é ainda o canto dos guaiaqui que escutamos. Se chegamos a duvidar disso, não será justamente porque não compreendemos mais a linguagem? Sem dúvida, não se trata mais aqui de tradução. No final das contas, o canto dos caçadores aché nos designa um certo parentesco entre o homem e sua linguagem: mais precisamente um parentesco tal que parece subsistir apenas no homem primitivo. Isso equivale a dizer, que bem distante de todo exotismo, o discurso ingênuo dos selvagens nos obriga a considerar o que poetas e pensadores são os únicos a não esquecer: que a linguagem não é um simples instrumento, que o homem pode caminhar com ela, e que o Ocidente moderno perde o sentido de seu valor pelo excesso de uso a que a submete. A linguagem do homem civilizado tornou-se completamente exterior a ele, pois é para ele apenas um puro meio de comunicação e informação. A qualidade do sentido e a quantidade dos signos variam em sentido inverso. As culturas primitivas, ao contrário, mais preocupadas em celebrar a linguagem do que em servir-se dela, souberam manter com ela essa relação interior que é já em si mesma aliança com o sagrado. Não há, para o homem primitivo, linguagem poética, pois sua linguagem já é, em si mesma, um poema natural em que repousa o valor das palavras. E se falamos do canto dos guaiaqui como de uma agressão a linguagem, é antes como o abrigo que a protege que devemos doravante ouvi-la. Mas será que se pode ainda escutar a lição demasiado forte de miseráveis selvagens errantes sobre o bom uso da linguagem? 
Assim vão os índios guaiaquis: de dia andam juntos através da floresta, homens e mulheres, o arco na frente, o cesto atrás. A vinda da noite os separa, cada um dedicado a seu sonho. As mulheres dormem e os caçadores cantam as vezes, solitários. Pagãos e bárbaros apenas a morte os salva do resto .

*CLASTRES. Pierre. O arco e o cesto In: _______________A Sociedade contra o Estado: pesquisa de antropologia política; tradução de Theo Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. (71-89).

sábado, 28 de junho de 2014

E, aos poucos, você vai pensando diferente. Só isso: Diferente.

Nos encontros, o que menos importa é avançar rápido, cumprir um programa. O data show projeta um parágrafo. O labirinto da página se agiganta na tela. Clareza visual, condição do enfrentamento pelo sentido. A sua interpretação inicial, se houver alguma, é digitada. A primeira frase do texto estudado é isolada. Conversamos a respeito dela. Vasculhamos alguma idéia que, supomos, tenha a ver. Experiências e relatos são bem vindos. O mesmo procedimento é adotado para as frases seguintes. Tentamos relacioná-las com as anteriores. Quando todas as frases tiverem sido discutidas, a interpretação inicial do texto é relida. E, se for o caso, reformulada. No final do encontro, você leva tudo que está na tela. O texto e o que foi dito sobre ele. Por e-mail ou impresso. Resultado inédito de uma produção filosófica daquele momento.

Ao longo das aulas, as reflexões já propostas são resgatadas e servem de suporte para novas interpretações. Os textos fazem lembrar, cada vez mais facilmente, as idéias já discutidas. Você começa a tomar a iniciativa de propor links. De ler novos textos. Por conta própria. De interpretar flagrantes de mundo, da própria existência, segundo novos referenciais. O labirinto vai recebendo indicações de direção. E, aos poucos, você vai pensando diferente. Só isso. Diferente



Se todos os rios são doces...

Se todos os rios são doces, de onde o mar tira o sal?

Como sabem as estações do ano que devem trocar de camisa?

Por que são tão lentas no inverno e tão agitadas depois?

E como as raízes sabem que devem alçar-se 
até a luz e saudar o ar com tantas flores e cores?

É sempre a mesma primavera que repete seu papel?

E o outono?... ele chega legalmente ou é uma estação clandestina?
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Neruda

Qual a relação entre a luta entre os homens e a obra de arte? [ O ato de criação - Deleuze ]

[Qual a relação entre a luta entre os homens e a obra de arte?] 

Qual é esse ato de fala que se ergue no ar enquanto seu objeto
afunda na terra? 


Resistência.
Ato de resistência.




Suponhamos que a informação seja o sistema controlado das 
palavras de ordem que têm curso numa dada sociedade. 

O que a obra de arte pode ter a ver com isso? 

Qual a relação entre a obra de arte e a comunicação?
Nenhuma.

A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação.

Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência.

Qual a relação misteriosa entre uma obra de arte e um ato de
resistência, uma vez que os homens que resistem não têm nem o tempo
nem talvez a cultura necessários para relacionar-se minimamente com a
arte?

Não sei. André Malraux (escritor e diretor francês, 1901-1976)
desenvolve um belo conceito filosófico: ele diz uma coisa bem simples
sobre a arte, diz que ela é a única coisa que resiste à morte.
O que resiste à morte? Basta contemplar uma estatueta de 3.000 anos antes de
Cristo para descobrir que a resposta de Malraux é uma boa resposta.

Poderíamos dizer então, que a arte é aquilo que resiste, mesmo que não seja a única coisa que resiste. Daí a relação tão estreita entre o ato de resistência e a obra de
arte.

Ora, qual é esse ato de fala que se ergue no ar enquanto seu objeto
afunda na terra? Resistência. Ato de resistência.


O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é
também um ato de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja
sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os
homens.

Qual a relação entre a luta entre os homens e a obra de arte?

A relação mais estreita possível e, para mim, a mais misteriosa.
Exatamente o que Paul Klee queria dizer quando afirmava: “Pois bem, falta
o povo”. O povo falta e ao mesmo tempo não falta. “Falta o povo” quer
dizer que essa afinidade fundamental entre a obra de arte e um povo que
ainda não existe nunca será clara. Não existe obra de arte que não faça
apelo a um povo que ainda não existe.


Fontes:

"Qu'est ce que l'acte de création?" por Gilles Deleuze
www.youtube.com/watch?v=VNKo53tUKb4

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PDF em Pt:
http://copyfight.me/Acervo/livros/DELEUZE,%20Gilles%20-%20O%20ato%20de%20Criac%CC%A7a%CC%83o.pdf

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Filosofia, Arte e Ciência : 
modos de pensar o acontecimento e o virtual segundo Gilles Deleuze 
http://cfcul.fc.ul.pt/biblioteca/online/pdf/catarinanabais/filosofiaarteciencia.pdf

Noam Chomsky e sua esperança dissidente

Noam Chomsky e sua esperança dissidente

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Ele vislumbra brechas na fábrica de consensos do capitalismo e aposta: movimentos como Occupy, economia solidária e rejeição ao consumismo podem abalar sistema
Entrevista a Chris Hedge*, no Thruthdig | Tradução Vila Vudu
Noam Chomsky, a quem entrevistei 5ª-feira passada em sua sala no Massachusetts Institute of Technology (MIT), influenciou intelectuais nos EUA e em todo o mundo, por número incalculável de vias. A explicação que construiu para o Império, a propaganda de massa, a hipocrisia e o servilismo dos liberais e os fracassos dos acadêmicos, além do que ensinou sobre os modos pelos quais a linguagem é usada como máscara pelo poder, para nos impedir de ver a realidade, fazem dele o mais importante intelectual nos EUA. A força de seu pensamento, combinada a uma independência feroz, aterroriza o estado-empresa – motivo pelo qual a imprensa-empresa e grande parte da academia-empresa tratam-no como pária. Chomsky é o Sócrates do nosso tempo.
Vivemos um momento sombrio e desolado na história humana. E Chomsky começa por essa realidade. Citou o falecido Ernst Mayr, importante biólogo evolucionista do século 20, que disse que provavelmente nós jamais encontraremos extraterrestres inteligentes, porque formas superiores de vida se autoextinguem em tempo relativamente curto.
“Mayr dizia que o valor adaptacional do que se chama ‘inteligência superior’ é muito baixo” – disse Chomsky. – “Baratas e bactérias são muito mais adaptáveis que os humanos. É melhor ser inteligente que estúpido, mas podemos ser um equívoco biológico, usando os 100 mil anos que Mayr nos dá como expectativa de vida como espécie, para destruir-nos nós mesmos e destruir também muitas outras formas de vida no planeta.”
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A mudança climática “pode acabar conosco, e em futuro não muito distante” – diz Chomsky. – “É a primeira vez na história humana em que temos a capacidade para destruir as condições mínimas para sobrevivência decente. Já está acontecendo. Há espécies que estão sendo destruídas. Estima-se que vivemos destruição equivalente à de há 65 milhões de anos, quando um asteroide colidiu com a Terra, extinguiu os dinossauros e grande número de outras espécies. A destruição, hoje, é de nível equivalente àquele. De diferente, que o asteroide somos nós. Se alguém nos está vendo do espaço, deve estar atônito. Há setores da população global tentando impedir a catástrofe global. Outros setores tentam apressá-la.
Veja bem quem são uns e outros: os que tentam impedir a catástrofe total são os que nós chamamos de primitivos, atrasados, populações indígenas – as Nações Originais no Canadá, os aborígenes australianos, pessoas que ainda vivem em tribos na Índia. E quem acelera a destruição? Os mais privilegiados, os chamados ‘avançados’, os letrados, as pessoas cultas e educadas do mundo.”
Se Mayr acertou, estamos no fim de uma tendência, acelerada pela Revolução Industrial, que nos jogará para o outro lado de uma montanha, ambientalmente e economicamente. Esse evento, aos olhos de Chomsky, nos oferece uma oportunidade e, ao mesmo tempo, traz um perigo. Já várias vezes Chomsky repetiu, como alerta, que, se temos de nos adaptar e sobreviver, é preciso derrubar o poder da elite-empresa-corporação, mediante movimentos de massa; e devolver o poder a coletivos autônomos que são focados em manter as comunidades, em vez de explorar comunidades. Apelar às instituições e mecanismos estabelecidos de poder não vai dar certo.
“Podem-se extrair muitas boas lições, do período inicial da Revolução Industrial” – disse ele. – “A Revolução Industrial decolou aqui perto, no leste de Massachusetts, em meados do século 19. Foi o período quando fazendeiros independentes estavam sendo conduzidos para dentro do sistema industrial. Homens e mulheres – as mulheres deixaram as fazendas para ser “operárias de fábrica” – lastimaram amargamente a mudança. Foi também período de imprensa muito livre, a mais livre que os EUA jamais conheceram, em toda sua história. Havia quantidade enorme de jornais e lê-los hoje é experiência fascinante. O povo que foi arrastado para o sistema industrial via aquilo tudo como um ataque à sua dignidade pessoal, aos seus direitos de seres humanos. Eram seres humanos livres, forçados para dentro do que chamavam ‘trabalho assalariado’, e que, aos olhos deles, não era muito diferente da escravidão. De fato, essa era a impressão dominante entre o povo, a tal ponto, que havia um slogan do Partido Republicano: ‘A única diferença entre trabalhar por salário e ser escravo é que o salário acaba.’”
Chomsky diz que essa deriva, que forçou os trabalhadores agrários para longe da terra e para dentro das fábricas nos centros urbanos, foi acompanhada por uma destruição cultural. Os trabalhadores, diz ele, haviam sido parte da “mais alta cultura da época”.
“Lembro-me disso, lá nos anos 1930s, com minha própria família” – diz ele. – “Aquilo nos foi tirado. Estávamos sendo forçados a nos tornar, de certo modo, escravos. Diziam que você trabalhava como artesão e vendia um produto que você produzia, então, como assalariado, o que você passou a fazer foi vender você mesmo. E isso soava como ofensa profunda. Eles condenavam o que chamavam de ‘novo espírito da época’, ganhar dinheiro e esquecer-se completamente de si mesmo. É velho e, ao mesmo tempo, soa hoje muito familiar aos nossos ouvidos.”
É essa consciência radical, que deitou raízes em meados do século 19 entre fazendeiros e muitos operários de fábrica, que Chomsky diz que temos de recuperar para conseguirmos avançar como sociedade e como civilização. No final do século 19, fazendeiros, sobretudo no meio-oeste, livraram-se dos banqueiros e dos mercados de capitais, e constituíram seus próprios bancos e cooperativas. Entenderam o perigo de virar vítimas de um processo vicioso de endividamento, comandado pela classe capitalista. Os fazendeiros radicais fizeram alianças com os ‘Knights of Labor’ [Cavaleiros do Trabalho],[1]que entendiam que os que trabalhavam nos moinhos deviam ser também proprietários dos moinhos.
“À altura dos anos 1890s, operários estavam tomando cidades e governando-as, no leste e no oeste da Pennsylvania. É o caso de Homestead” – Chomsky lembrou. – “Mas foram esmagados à força. Demorou um pouco. O golpe final foi o ‘Medo Vermelho’ de Woodrow Wilson [orig. Woodrow Wilson’s Red Scare][2].”
“A ideia, hoje, ainda deve ser a dos Knights of Labor,” ele disse. “Os que trabalham nos moinhos devem ser também donos dos moinhos. Há muito trabalho em andamento. Haverá mais. Os preços da energia estão caindo nos EUA, por causa da exploração maciça de combustíveis fósseis, que destruirá nossos netos. Mas, sob a moralidade capitalista, o cálculo é: os lucros de amanhã são mais importantes que a existência ou não dos seus netos. Estamos conseguindo preços mais baixos de energia. Eles [os empresários] estão entusiasmadíssimos, porque podem oferecer preços inferiores aos que a Europa oferece, porque nossa energia é mais barata. E assim, os EUA conseguimos fazer fracassar os esforços que a Europa tem procurado fazer, para desenvolver energia sustentável…”
Chomsky espera que os que trabalham na indústria de serviços e na manufatura possam começar a organizar-se para começar a tomar o controle de seus próprios locais de trabalho. Observa que no ‘Cinturão da Ferrugem’ [orig. Rust Belt],[3] inclusive em estados como Ohio, há crescimento no número de empresas que pertencem aos trabalhadores.
O crescimento de poderosos movimentos populares no início do século 20 mostrou que a classe empresarial já não conseguia manter os trabalhadores subjugados por ação exclusiva da violência. Os interesses empresariais tiveram de construir sistemas de propaganda de massa, para controlar opiniões e atitudes.
O crescimento da indústria de “relações públicas”, iniciada pelo presidente Wilson, que criou o Comitê de Informação Pública [“Creel Committee”][4], para instilar sentimentos pró-guerra na população, inaugurou uma era não só de guerra permanente, mas também de propaganda permanente. O consumo foi instilado também, com compulsão incontrolável. O culto do indivíduo e do individualismo tornou-se regra. E opiniões e atitudes passaram a ser talhadas e modeladas pelos centros de poder, como o são hoje.
“Uma nação pacífica foi transformada em nação de odiadores, fanáticos por guerras” – diz Chomsky. – “Essa experiência levou a elite no poder a descobrir que, mediante propaganda efetiva, poderiam, como Walter Lippmann escreveu, usar “uma nova arte na democracia, e fabricar o consenso.”
A democracia foi destripada. Os cidadãos tornaram-se “público”, “audiência”, telespectadores, não participantes no poder. Os poucos intelectuais, entre os quais Randolph Bourne, que mantiveram a independência e recusaram-se a servir à elite no poder foram expulsos para fora do sistema, como Chomsky.
“Muitos dos intelectuais dos dois lados estavam apaixonadamente dedicados à causa nacional” – disse Chomsky, falando a 1ª Guerra Mundial. “Houve só uns raros dissidentes. Bertrand Russell foi preso. Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg foram mortos. Randolph Bourne foi marginalizado. Eugene Debs, preso. Todos esses se atreveram a questionar a magnificência da guerra.”
Aquela histeria pró-guerra jamais cessou, movida sem alteração, do medo de um bárbaro germânico, para o medo de comunistas e, daí, para o medos de jihadistas e terroristas islamistas.
“As pessoas vivem aterrorizadas demais, porque foram convencidas de que nós temos de nos defender nós mesmos” – diz Chomsky. – “Não é inteiramente falso. O sistema militar gera forças perigosas para nós, que nos ameaçam. Veja, por exemplo, a campanha terrorista dos drones de Obama – a maior campanha terrorista de toda a história. Esse programa gera novos terroristas e terroristas potenciais muito mais depressa do que destrói suspeitos. É o que se vê agora no Iraque. Volte lá, aos julgamentos de Nuremberg. A agressão entre Estados foi definida como o supremo crime internacional. Foi considerado diferente de outros crimes de guerra, porque a agressão entre estados reúne, como crime, todos os demais danos que outros crimes subsequentes causarão.
A invasão que EUA e Grã-Bretanha cometeram contra o Iraque é como um manual de crime de agressão entre Estados. Pelos padrões de Nuremberg, os governantes dos EUA e da Grã Bretanha teriam, todos, de ser condenados à morte e enforcados. E um dos crimes que cometeram foi incendiar o conflito sunita versus xiitas.”
Esse conflito, que agora novamente inflama a região, é “um crime cometido pelos EUA, se acreditamos que sejam válidas as sentenças que Nuremberg proclamou contra os nazistas. Robert Jackson, promotor-chefe no tribunal de Nuremberg, em sua fala aos jurados, disse que aqueles acusados haviam bebido de um cálice envenenado. E que se algum de nós algum dia bebêssemos daquele mesmo cálice teríamos de ser tratados do mesmo modo, ou tudo não passaria de grande farsa.”
As escolas e universidades da elite inculcam hoje em seus alunos a visão de mundo endossada pela elite no poder. Treinam alunos para serem reverentes ante a autoridade. Para Chomsky, a educação, na maior parte das grandes escolas, inclusive em Harvard, a poucos quarteirões de distância do MIT, não passa de “um sistema de profunda doutrinação”.
“Há um entendimento de que há certas coisas que não se dizem nem se pensam” – diz Chomsky. – “É assim, entre as classes educadas. E é por isso que eles todos apoiam fortemente o poder do Estado e a violência do Estado, apenas com uma ou outra pequena ‘restrição’. Obama é visto como crítico contra a invasão do Iraque. Por quê? Só porque disse que seria erro estratégico. É argumento que o põe no mesmo nível moral de um general nazista que entendesse que o segundo front era erro estratégico. Isso, para os norte-americanos, é ‘ser crítico’.”
E Chomsky não subestima o ressurgimento de movimentos populares.
“Nos anos 1920s, o movimento trabalhista estava praticamente destruído” – disse. – “Havia sido um movimento trabalhista forte, muito militante. Nos anos 1930s ele mudou, e mudou por causa do ativismo popular. Houve circunstâncias [a Grande Depressão] que levaram à oportunidade de fazer alguma coisa. Vivemos constantemente com isso. Considere os últimos 30 anos. Para a maioria da população, foram tempos de estagnação, ou pior que isso. Não é a Depressão profunda, mas é uma depressão semipermanente para a maior parte da população. Há muita lenha lá fora, esperando para ser queimada.”
Chomsky entende que a propaganda empregada para fabricar consensos, mesmo na era das mídias digitais, está perdendo efetividade, com a realidade cada vez menos parecida com o “retrato’ dela inventado pelos órgãos da mídia empresarial de massas. Embora a propaganda feita pelo Estado norte-americano ainda consiga “empurrar a população para o terror e o medo e para a histeria de guerra, como se viu nos EUA antes da invasão do Iraque”, ela já começa a fracassar na tarefa de manter fé não questionada nos sistemas de poder. Chomsky credita ao movimento Occupy, que ele descreve como uma tática, ter “disparado uma fagulha iluminadora” a qual, mais importante, atravessou toda a sociedade, apesar da atomização”.
“Há todos os tipos de esforços e projetos para separar as pessoas umas das outras” – diz ele. “A unidade social ideal [no mundo dos propagandistas do Estado-empresa] é você e sua tela de televisão. As ações de Occupy puseram abaixo isso, para grande parte da população. As pessoas reconheceram que poder nos juntar e fazer coisas por nós mesmos. Podemos ter uma cozinha comum. Podemos ter um palanque para discussões públicas. Podemos formar nossas próprias ideias. Podemos fazer alguma coisa. E esse é ataque importante contra o núcleo dos meios pelos quais o público é controlado.
Você não é só um indivíduo tentando maximizar o consumo. Você descobre que há outros interesses na vida, outras coisas com as quais se preocupar. Se essas atitudes e associações puderem ser sustentadas e mover-se em novas direções, será muito importante.

*Chris Hedges, repórter laureado com um Prêmio Pulitzer, mantém coluna regular em Truthdig às 2as-feiras. Hedges é autor de 12 livros, entre os quais o best-seller (New York Times) “Days of Destruction, Days of Revolt (2012)”, do qual é coautor, com o cartunista Joe Sacco. O livro mais recente de Hedges é “Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle” [Império da Ilusão: fim da alfabetização e triunfo do espetáculo].
[1] Sobre o que foram, ver http://en.wikipedia.org/wiki/Knights_of_Labor [NTs].
[2] Para saber o que foi, ver http://firstredscare.edublogs.org/ [NTs].