quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Jean Rouch - [Material Textual para debate em CineClube]

 



---------- Forwarded message ---------
De: Caetano Correa 
Date: qui., 11 de nov. de 2021 às 19:48
Subject: 2021-11-11 - [Jean Rouch] - (material textual) - [último CineClube LCD-UERJ]


Jean Rouch
- [Material Textual] -
(2021-11 --- último CineClube LCD-UERJ)


[16:28, 08/11/2021] JCDC:
EU UM NEGRO (Moi, Un Noir) - Jean Rouch
Também disponível aqui:
[16:46, 08/11/2021] JCDC:
O Cinema de Jean Rouch

Gênero: Documentário 
País de Origem: França
Idioma: Francês 
Duração: 10 minutos ~ 1h 20 minutos
Tamanho: 27 Mb ~ 700 Mb

Sinopse: Inspirado por Dziga Vertov (1896-1954) e Robert Flaherty (1884-1951), especialmente em Nanook (1922), e em colaboração de Damouré Zika, Lam Ibrahima Dia e Tallou Mouzourane, o realizador utiliza o recurso do cinema-direto de modo próprio, preferindo considerá-lo um cinema-verdade: a matéria fílmica não seria um simples objeto a ser registrado. Os seus filmes deixam ver o compromisso com o contexto e as condições do ambiente, a fluência cotidiana da fala, dos gestos e do comportamento, além da relação estabelecida entre os que filmam e aqueles que são filmados, que passam a contribuir com a função crítica pós-montagem, composição dos argumentos e roteiros, num processo de produção de caráter marcadamente dialógico. Sua proposta é explicitar a relação entre o cineasta e as pessoas filmadas (sujeitos da mise-en-scène), defendendo que o etnólogo-cineasta também deva ser por elas afetado. Tais balizas levam à proposição de uma linguagem cinematográfica na qual o roteiro prévio deixa de ser determinante, o que irá ecoar nos cineastas da nouvelle vague, assim como parte do método, no Brasil, através de Eduardo Coutinho.  

Trabalhos disponíveis na pasta:

la circoncision (1949);
initiation à la danse des possédés (1949);
les magiciens de wanzerbé (1949);
les maîtres fous (1955);
mammy water (1955);
moi, un noir (1958);
funerailles au ghana (1960);
jaguar (1967);
les tambours d'avant (1971);
makwayela (1977)

download direto: 




Jean Rouch (1917-2004), matemático e engenheiro de formação, atuou entre a antropologia e o cinema, campos, para ele, inseparáveis. Sua obra e pensamento encontram repercussão nos dois domínios, sendo que sua extensa produção de filmes etnográficos - mais de 120 filmes, a maioria produzida na África ocidental -  se sobrepõe, do ponto de vista dos rebatimentos posteriores, aos seus escritos.

Seu primeiro contato com a África data de 1941, quando esteve no Níger como engenheiro, interessando-se pela etnografia e pelo uso da imagem. De volta à França inicia um doutorado em antropologia sob a orientação de Marcel Griaule (1898-1956), que culmina com as teses “Contribution à l’histoire des Songhay” (tese complementar, 1953) e “La religion et la magie Songhay”, (tese principal, 1960).  Ligado ao CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) em 1947, realiza pesquisas sistemáticas sobre os Songhay, importante grupo étnico do Mali e do Níger, produzindo imagens que se converteriam em seu primeiro filme Au pays des mages noirs (1947), com a colaboração do parceiro Damouré Zika (1923-2009). Paralelamente à pesquisas etnográficas, atua no campo cinematográfico, criando, em 1952, o Comité du Film Ethnographique, no Musée de l’Homme, em Paris, ao lado de Henri Langlois (1914-1977), Enrico Fulchignoni (1913-1988), Marcel Griaule (1898-1956), André Leroi-Gourhan (1911-1986) e Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Sem abandonar as pesquisas africanistas, dedica-se à questão da imigração e da colonização na região da Costa do Ouro (atual Gana) e, em 1957, volta-se para a Costa do Marfim, interessado em problemas como migrações e profetismo. Entre as décadas de 1960 e 1970, diversifica suas investigações, escrevendo artigos e realizando filmes a respeito de temas como religião, possessão e ritual; caça e pesca; arqueologia; etnomusicologia e dança. Produziu ainda reflexões sobre narrativas rituais e tradições orais; mitologia; ritos funerários e conhecimentos medicinais, sem esquecer as  técnicas de gravação e cinematográficas, que praticou e sobre as quais pensou.

No campo da produção fílmica, inspirado por Dziga Vertov (1896-1954) utiliza o recurso do cinema-direto de modo próprio, preferindo considerá-lo um cinema-verdade, recusando tratar a matéria fílmica como simples objeto. Sua proposta é explicitar a relação entre o cineasta e as pessoas filmadas (sujeitos da mise-en-scène), defendendo que o etnólogo-cineasta seja por elas afetado, em uma experiência que denominou cine-transe. Os seus filmes deixam ver o compromisso com o contexto e com as condições do ambiente; a fluência cotidiana da fala, dos gestos e do comportamento, além da relação estabelecida, através do olhar e da escuta, entre os corpos que filmam e aqueles que são filmados. Tais balizas levam à proposição de uma linguagem cinematográfica na qual o roteiro prévio deixa de ser determinante, o que irá ecoar nos cineastas da chamada nouvelle vague francesa, dos anos 1960. Ao seu modo de filmar relacional e pouco roteirizado - refletido e aprimorado ao longo de sua vida, em função da crítica pós-montagem, da formação da equipe técnica, da atuação partilhada com as personagens e da composição dos argumentos e roteiros - soma-se um processo de produção de caráter marcadamente dialógico. Influenciado por Robert Flaherty (1884-1951), especialmente por Nanook of the North (1922), Rouch decide compartilhar as imagens filmadas com seus interlocutores, experimentando novas formas de colaboração. Em Bataille sur le grand fleuve (1951), por exemplo, assume o papel de um etnólogo-cineasta-narrador; os nativos filmados, por sua vez, opinam a respeito das filmagens já editadas e de seus resultados. Inspirado pelas possibilidades de ampliação desses diálogos, o autor desenvolve a proposta de uma antropologia compartilhada, amparada na transformação radical das relações entre antropólogo e nativos, filmadores e filmados, que as equipes formadas em conjunto com os africanos-interlocutores (tanto para a escolha dos temas quanto para a realização das imagens) evidenciam. Não tardou para que Rouch encontrasse como parceiros os nigerenses Damouré Zika (1923-2009), Lam Ibrahima Dia e Tallou Mouzourane. Juntos, realizam Jaguar (1954-67), Moi, un Noir (1957-58), Petit à Petit 1968-70) e Cocorico! Monsieur Poulet (1974), submetendo a experiência cinematográfica e etnográfica a um processo criativo, frequentemente designado por etnoficção. Tais experimentos permitem afirmar que a obra de Jean Rouch não é apenas um conjunto de olhares sobre diversos grupos africanos, incluindo também olhares africanos sobre si mesmos, uns sobre os outros e sobre a sociedade ocidental.

No contexto dos movimentos de maio de 1968, com a colaboração Enrico Fulchignoni (1913-1988), então diretor da Cinemateca Francesa, Claudine de France e Colette Piault, Rouch cria, no Departamento de Ciências Sociais, o que viria a ser o curso de cinema etnográfico e documentário da Universidade Paris X – Nanterre, hoje Paris Ouest. Essa formação, que se torna modelar, tem como objetivo central oferecer ao etnógrafo o recurso do cinema como método de pesquisa e reflexão antropológica. Em 1977, Rouch é convidado a organizar, com Jacques d’Arthuys (1894-1943), uma oficina de cinema para alunos do Instituto Nacional de Cinema de Moçambique, no interior da qual realizam o curta-metragem Makwayela (1977). A partir dessa experiência são criados os Ateliers Varan (1981), com a finalidade de formar cineastas em países sem uma produção cinematográfica consolidada, levando os recursos a grupos étnicos e sociais com pouco acesso a técnicas e meios de produção do cinema. São incontáveis os prêmios e títulos recebidos por Rouch, isso sem esquecer os desdobramentos de sua extensa obra cinematográfica que termina por infletir nas formas de fazer etnografia, sinal da conexão íntima entre cinema e antropologia, em todo o seu percurso.

ESTRELA DA COSTA, Ana Carolina. 2016. "Jean Rouch".
In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia.
Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/autor/jean-rouch> ISSN: 2676-038X (online)



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https://www.olhardecinema.com.br/derivas-da-ficcao-notas-sobre-o-cinema-de-jean-rouch/

DERIVAS DA FICÇÃO: NOTAS SOBRE O CINEMA DE JEAN ROUCH
Jean-André Fieschi*

 [Este texto consiste em um excerto (págs. 28 a 31) do artigo homônimo publicado no catálogo “Jean Rouch: Retrospectivas e Colóquios no Brasil” (2009) vinculado à mostra realizada pela produtora Balafon em 2009/2010. Agradecemos a Mateus Araújo Silva, tradutor do original em francês, além de organizador da mostra e do catálogo, por nos autorizar a publicação aqui. O artigo completo está disponível em: www.fafich.ufmg.br/devires/index.php/Devires/issue/view/12]

Rouch (…) será um dos grandes prospectores do cinema contemporâneo. Ao contrário de uma prática jornalística mistificada, à la Leacock, de pseudo não intervenção, ele trabalhará sobre processos, interações, numa invenção recíproca entre matéria e método, filme e discurso. O mundo nunca se dá tal e qual a inocência de uma película, a virgindade de um olhar. E, aliás, qual mundo? Poderíamos dizer, para simplificar, que o deslocamento do cinema de Rouch se efetua cada vez mais claramente na direção do imaginário. É bem verdade que este já estava inscrito e realizado desde os primeiros filmes sobre ritos. Mas pouco a pouco ele vai ficando diversamente delimitado, desvelado, cada vez mais tributário de um sistema de representação mais mediado que o do simples registro, inscrevendo a parte de fabulação própria a todo sistema de representação (de um indivíduo num grupo étnico, social, ou do próprio grupo), sem esquecer a parte, apagada e central, do observador que a recolhe (filtrando-a, desenvolvendo-a, dando-lhe forma), e dos meios técnicos que a encaminham até seu acabamento espetacular, produto de depósitos sucessivos pertencentes a diversos sistemas (sistema social e cultural em que se efetua sua recepção, sistema cultural e técnico em que se efetua sua transmissão). O cinema de Rouch é esse receptáculo de uma rede particularmente complexa de translações e deslocamentos que nos permite compreender de outro modo, em seus efeitos mais produtivos, a frase de Lévi-Strauss citada há pouco, sobre o exílio assumido do etnólogo: “Ele nunca mais, em parte alguma, se sentirá em casa”. Esta é mesmo a única acepção em que se pode entender a designação de Rouch como cineasta exótico. Exótico, é bem verdade, mas só por seu flanco africano?

Eu, um negro (1957-8) coloca claramente a questão desse descentramento, isto é, a questão do “quem fala?”. O filme que se auto-intitula dessa forma? O autor exibindo ironicamente a diferença de seu estatuto? Um de seus personagens? Seja como for, dessa vez é um monólogo que se dá a ver ou a escutar. Mais precisamente: um tecido de monólogos se unindo em uma única via feita de uma soma de diferenças. Os personagens: reais (eles existem, podemos encontrá-los, em Abidjan por exemplo, Abidjan das lagunas). Desdobrados, também, por trás das figuras míticas que eles mesmos elegeram, como Dorothy Lamour ou, desdobramento de segundo grau fundindo ator, personagem e função, Eddie Constantine / Lemmie Caution / agente federal americano. Ou ainda: Ray Sugar Robinson.

O que Rouch filma então, e em primeiro lugar, não são mais as condutas, ou os sonhos, ou os discursos subjetivos, mas a mistura indissociável que os liga um ao outro. O desejo do cineasta é dedicar-se ao desejo de seus personagens, organizando-o. De segui-los passo a passo, na linhagem, se quisermos, do projeto fundamental neo-realista (zavattiniano), mas rente à palavra deles (ao que ela revela) pelo menos tanto quanto à sua conduta. Encarnando seus fracassos, suas utopias, suas fomes. A guerra da Indochina contada (imitada) por um, os navios designados pelo outro, no porto, quando ele afirma ter viajado em todos os mares e conquistado todas as mulheres, o monólogo do galã na saída da missa, a briga provocada com o italiano: momentos inesquecíveis em que se inscreve o vestígio dos filmes vistos pelos personagens, das histórias em quadrinhos lidas por eles, das narrativas que eles ouviram e que, com uma distância e um fascínio inimitáveis, eles restituem num novo relato, feixe de relatos estratificados alhures e diferentemente, desenvolvendo um espaço lúdico que o cineasta inventa e provoca ao mesmo tempo, e do qual se apropria. Toda distância entre improvisação e premeditação parece aqui abolida, como se (mas o “como se” deve ser fortemente sublinhado), de agora em diante, fosse possível uma transparência entre espaço mental e espaço representado. Ao preço, parece, de uma cumplicidade, de um espírito de clã (entre autor e personagens), ou mesmo de um certo gosto da burla e da mistificação que são signos de uma infância preservada e retomada. Este ponto é capital, tanto pelo que ensina do desejo de Rouch quanto pelo que revela da inflexão rumo à criação coletiva (esses personagens logo se tornarão técnicos tanto quanto atores, quase “profissionais”, seríamos tentados a dizer se o termo não fizesse sorrir nesse contexto). Criação coletiva, improvisação, espontaneidade, cumplicidade: talvez sejam esses os meios privilegiados pelos quais Rouch, de observador de ritos, cruzou a linha para se tornar, a seu modo, criador de ritos.

Eu, um negro é seguramente um ponto de inflexão, no cinema de Rouch e no cinema em geral. Dizendo mais, certamente, sobre Treichville e seus habitantes do que muitas constatações de aparência mais “objetiva”. Dizendo mais, e sobretudo, de modo diferente. Nos Mestres loucos, os próprios membros da seita criavam a mise en scène de seu delírio coletivo em que, vestidos com trajes imaginários de personagens emblemáticos da colonização (o governador, o general, o cabo, o condutor de locomotiva), davam diretamente o espetáculo de um imaginário em ato: uma representação “selvagem” e “regrada”. A partir de Eu, um negro, é toda uma função nova da câmera que se estabelece: não mais simples aparelho de registro, mas agora agente provocador, estimulante, deflagrador de situações, conflitos, itinerários que, sem ela, jamais aconteceriam ou, em todo caso, jamais daquela forma. Não se trata mais de fazer “como se” a câmera não estivesse ali, mas de transformar seu papel afirmando sua presença, sua função, transformando um obstáculo técnico num pretexto para o desvelamento de coisas novas e surpreendentes. Trata-se de criar, pelo ato mesmo de filmar, uma concepção completamente nova do acontecimento fílmico. Diante da câmera de Rouch, que os precede ou os segue, os habitantes de Treichville interpretam primeiro o que eles mesmos escolhem mostrar de si mesmos. Depois, vendo-se na tela, comentam sua atuação, a duplicam ou a deslocam. Um objeto cultural complexo nasce assim dessas operações sucessivas, pelas quais se abre uma via praticamente inexplorada, um cinema da aventura, tanto a do material quanto a de sua descoberta.

(Tradução: Mateus Araújo Silva)

Sobre o autor: Jean-André Fieschi (1942-2009) foi cineasta, crítico e professor de origem francesa.

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O INSUSTENTÁVEL OLHAR DO FILME ETNOGRÁFICO
Mahomed Bamba**

[Este texto consiste em um excerto (págs. 99 a 101) do artigo de título “Jean Rouch: cineasta africanista?” publicado na revista DEVIRES – Cinema e Humanidades, v.6, n.1, p. 92, de jan/jun 2009. Agradecemos aos editores da revista por nos autorizarem a publicação aqui, em especial a Mateus Araújo Silva enquanto organizador do dossiê temático Jean Rouch. Este artigo completo assim como os dois números da revista dedicados ao cinema de Rouch estão disponíveis em: www.fafich.ufmg.br/devires/index.php/Devires/issue/view/12]

O que filmes como Kenya (1961), de Richard Leacock, The boy Kumasena (1952), de Sean Graham, Afrique 50 (1950), de Roger Vautrier, e a obra de Jean Rouch têm em comum? Todos têm a marca indelével da estética do cinema etnográfico. Ilustram, cada qual à sua maneira, os três eixos da problemática da alteridade, tal como definida por Todorov (A conquista da América, 2003) sobre a relação de Las Casas com os índios. São filmes feitos por cineastas ocidentais, com paixão e, às vezes, com um senso de engajamento político, sobre um continente e seus costumes. São filmes sobre a descolonização. No entanto, todos carregam o problema da condescendência no olhar. Esse sentimento é reforçado ainda mais quando se pensa que trazem representações pitorescas de lugares onde o direito de olhar para sua própria realidade continuava sendo, para os nativos, um objeto de conquista. Sem contar o fato de que muitos desses filmes eram obras encomendadas. As mesmas críticas feitas ao africanismo, na sua versão antropológica, encontram eco nas dúvidas e na perplexidade que despertam os filmes etnográficos em que a prepotência de entender melhor os africanos se mistura com a ambição de explicar a África a um público ocidental. Nessa lógica, o africanismo de qualquer etnólogo-cineasta passa a ser assimilado à busca de exotismo que subjaz à dominação colonial. Embora os documentários de Jean Rouch sobre a África dos anos 50-60 não compartilhassem a lógica e a ideologia do discurso colonial, a reminiscência do contexto histórico do qual esses filmes emanam continua problematizando sua leitura.

A partir daqui convém se perguntar se as imagens produzidas por Jean Rouch sobre a África expressam uma vontade de superação ou um gesto de prolongamento do velho eurocentrismo na representação do Outro. Até que ponto se pode acusar seus filmes etnográficos de terem confiscado aos africanos a capacidade de se reinventarem e, consequentemente, de terem anulado a possibilidade da auto-representação? Diferentemente de outros cineastas-etnólogos, Jean Rouch conseguiu, ao seu modo, escapar dessa armadilha. Pelo menos, conseguiu minorar as suspeições colonialistas por opções estilísticas que revolucionaram e consagraram toda a sua arte do documentário etnográfico. Como se sabe, Rouch chega em Níger em 1940 – como uma espécie de Lawrence da Arábia – como simples funcionário da administração colonial. Mas, rapidamente, ele troca a sua função de engenheiro pelo papel de etnólogo atento aos hábitos culturais e sociais locais. Realiza seus primeiros documentários que se distinguem nitidamente da linha do cinema colonial dominante naquele período. Mesmo assim, são filmes etnográficos, e como tais levantam a incontornável questão das distorções e conotações políticas ligadas àquilo que Robert Stam chama de “fardo da representação” do Outro, do diferente (STAM; SHOAHT, 2006). Mas, vista de outro ângulo, a filmografia do etnólogo francês permite considerações interessantes sobre o que é rotulado hoje como “controle das minorias sobre a representação”. Jean Rouch levou até as últimas consequências a estética do cinema direto nas suas investigações etnográficas sobre as sociedades francesas e africanas. Se ele pode ser legitimamente considerado como pioneiro no recurso a dispositivos de filmagem e de narrativa que libertam o Outro do peso da representação, é porque em muitos de seus filmes observa-se um protagonismo ativo do ser africano. A aparente espontaneidade, fingida ou natural, parece devolver aos atores negros uma certa expressão da subjetividade que rompe com a sua passividade nos demais filmes coloniais. Jaguar e Eu, um negro são construídos como percursos. No primeiro filme citado, há uma viagem, uma travessia de um país ao outro, a transição de uma cultura africana à outra (a do Níger e da Costa do Ouro) protagonizada por três personagens. No segundo filme, trata-se de uma deambulação fortemente marcada pela subjetividade de um único indivíduo no interior de uma mesma cidade. Nesses deslocamentos, é como se o sujeito africano estivesse protagonizando sua história. É como se os protagonistas levassem o filme aonde bem quisessem. A câmera participativa se contenta em segui-los nas suas trajetórias. Em Jaguar, o êxodo se transforma rapidamente num grande pretexto para os três personagens lançarem um olhar etnográfico sobre a realidade circundante, sobre os povos, as mulheres e hábitos culturais que encontram na sua peregrinação para a Costa do Ouro. Antes dos três personagens se transformarem em objeto de curiosidade para uma plateia europeia, Jean Rouch toma a liberdade de situá-los numa inédita relação de alteridade com outros hábitos culturais que eles vão encontrando no caminho. Entre estranhamento e fascínio, eles produzem discursos, fazem comentários de cunho valorativo. Além das fortunas materiais que trazem desse eldorado africano, o que parece importar são as narrativas, as histórias que terão de contar aos seus conterrâneos. Com a opção de deixar os seus personagens se expressarem livremente sobre as imagens registradas, é como se Rouch quisesse mostrar que os negros africanos não são todos “iguais” (como ainda se pensa na Europa).

Se muitos definem o cinema de Rouch como uma “etnoficção”, é por causa da mistura de dois tipos de subjetividade na realização de seus documentários: a do cineasta (com controle sobre aquilo que filma) e a do sujeito filmado (livre, até certo ponto, para interagir na representação). Essa restituição do estatuto de sujeito pleno ao homem africano foi objeto de várias teses e comentários. Embora essa opção estilística e ética já estivesse presente nos trabalhos de outros documentaristas, nos documentários de Rouch o protagonismo do homem negro filmado pelo homem branco ganha uma nova ressonância e relevância. Cria uma cisão entre filmes feitos sobre a África (em que os homens fazem apenas parte do ambiente) e filmes “feitos na África”, nos quais se conta com a participação ativa e consciente dos próprios africanos. Para Guy Gauthier, não há dúvida de que a técnica do cinema direto (defendida por Rouch) trouxe, na maioria dos documentários, “um aprofundamento do momento vivenciado, uma possibilidade de transferir a palavra aos atores da história, que não são os atores do filme” (GAUTHIER, 1995: 145). O recurso à voz, a do próprio documentarista e a dos atores da história, acabou sendo uma marca registrada nos filmes de Rouch sobre a África. A voz do homem africano ecoa atrás e através das imagens registradas pelo homem branco a ponto de ser uma narrativa em paralelo. Se os documentários de Jean Rouch podem ser classificados e comparados como aquilo que Gauthier chama de “filmes-de-vida”, é por causa da “qualidade de escuta de seus personagens-vetores, cuja fala é rica e prenhe de experiência”.

**Sobre o autor: Natural de Costa do Marfim, Mahomed Bamba (1966-2015) foi professor na Faculdade de Comunicação (FACOM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisador de cinema e audiovisual com foco nos cinemas africanos e da diáspora.

REFERÊNCIAS
GAUTHIER, Guy. Le Documentaire: un autre cinéma. Paris: Armand Colin, 1995.
STAM, Robert; SHOHAT, Ella. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 


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O legado realista de Jean Rouch
17/06/2010
Maria Betânia Monteiro


Se os irmãos Lumière foram considerados os criadores do cinema, o francês Jean Rouch foi quem deu à luz aos cineastas do mundo inteiro, ensinando como registrar a realidade através de um método de documentação original, desenvolvido ao longo de sua vida. O trabalho de Rouch era tão consistente e inusitado, que sua visita ao Brasil, na década de 1960, foi motivo suficiente para influenciar a obra de Glauber Rocha, Cacá Diegues e outros nomes que figuraram no chamado Cinema Novo. O método de documentação de Jean tornou-se um divisor de águas para o cinema e para a antropologia. Jean Rouch morreu em 2004 e deixou pouco mais de cem documentários, que no Brasil são praticamente inéditos. Apenas oito deles podem ser encontrados no país. E é justamente pela dificuldade de acesso aos filmes, que a Mostra Jean Rouch vem criando uma enorme expectativa nas cidades por onde passa. A mostra tem a finalidade de divulgar o trabalho do “antropólogo do cinema” a partir de uma retrospectiva de curtas e longas do documentarista francês.

“A pirâmide humana” é psicodrama experimentalDepois de ir a Belém, Salvador, Porto Alegre e João Pessoa é a vez de Natal receber nesta segunda-feira, no auditório do Sebrae, os 37 vídeos que compõe a mostra. Os temas dos filmes geralmente são polêmicos e revelam por exemplo, os rituais de circuncisão e a mitologia em países da África.

Patrocinada pelo Fundo Nacional de Cultura e realizada pela Balafon, a mostra é parceira local do Núcleo de Antropologia Visual – Naves (UFRN), Cineclube Natal e Zoon. A curadoria ficou por conta do doutor em filosofia pela Universidade de Paris I (Sorbonne) e UFRMG  Mateus Araújo Silva, que é um estudioso das cinematografias de Jean Rouch e Glauber Rocha.

Segundo Mateus, a seleção foi feita atendendo o aspecto estético e o conceitual. “Procurarei por um lado, expor as obras que representam as diversas facetas de Jean Rouch, e por outro, as obras mais bonitas. Mas muita coisa boa ficou de fora”, disse Mateus de Minas Gerais, em entrevista por telefone ao VIVER.

O curador estará em Natal nesta segunda-feira para participar da abertura do evento às 20h15, no auditório do Sebrae. Na ocasião ele vai falar sobre as interseções nas obras de Jean Rouch e Glauber Rocha. Antes da palestra, a partir das 15h serão exibidos cinco filmes, que compõe o Programa número um, chamado “Tateios iniciais e invenção de um estilo na África Negra”. Às 19h entra em cena uma sessão especial dos filmes “Tourou et Biti – les tambours d’avant” (1971) e  “Le Dama d’Ambara – enchanter La mort” (1974). Os 37 filmes foram divididos em 17 programas e terão exibição única, em três sessões: 15h, 17h e 20h. A mostra fica em cartaz no Sebrae até o sábado (26). A programação completa está no http://www.balafon.org.br/.

Segundo a doutora em antropologia, Lisabete Coradini, coordenadora do Navis, o cineasta e antropólogo francês Jean Rouch apresentou ao ocidente, um novo método de registro da realidade. Ao contrário do que era feito na Europa desde a década de 1940, quando a fotografia e o vídeo construíam uma imagem distorcida das manifestações sociais, Jean Rouch foi capaz de subverter o olhar colonialista direcionado aos grupos étnicos africanos e dar a eles a possibilidade de versar sobre suas próprias práticas.

Antes de Jean Rouch, quando um antropólogo saia para conhecer outra cultura, incluía em sua bagagem a máquina fotográfica.  Segundo Lisabete, a máquina era usada sem que antes o pesquisador questionasse sobre a sua utilização.

Desta forma, as fotos que eram feitas se transformavam em formas documentais da passagem do antropólogo por determinadas comunidades. “Os pesquisadores se valiam desses registros como prova de terem conhecido um ‘povo estranho’. Tratavam-se apenas de documentos ilustrativos”, disse a antropóloga.

Diferente deles, Jean Rouch se relacionava com o sujeito de sua pesquisa e através dos filmes, promovia um diálogo. De posse de informações científicas no campo da antropologia, já que era doutor no assunto, ele ia às comunidades e chegando lá ouvia o que os próprios habitantes falavam a respeito de sua cultura.

A partir deste relato, ele construía os seus documentários e depois de prontos exibia para o grupo pesquisado. Nesta hora era promovido um debate, que poderia inclusive interferir na finalização do filme.

Lisabete relata que Jean Rouch certa vez filmou a caçada a um hipopótamo e na edição, acrescentou uma trilha sonora. Quando o pesquisador exibiu o filme aos personagens reais da caçada, eles lembraram a Rouch que aquela música não caberia ali, já que uma caçada precisa ser silenciosa. Lisabete cita uma frase de Rouch, que define bem o seu trabalho: “eu faço os filmes primeiro para os africanos, segundo para os meus amigos e terceiro para a academia”. A partir dos filmes de Rouch, foi construído um novo método de trabalho, galgado na criação, divulgação e negociação.

Bate-papo

Mateus Araújo » curador da Mostra Jean Rouch


Morando na França há vários anos, Mateus Araújo está no Brasil para realização da Mostra Jean Rouch. Ele falou ao Viver sobre a importância do evento no Brasil.

No Brasil já foram exibidos filmes de Jean Rouch?


Nesta amplitude, nunca. Trata-se de uma chance rara.

Quem perder esta mostra vai demorar a ter acesso aos filmes de Rouch.

Quer dizer que depois da mostra, não há a possibilidade de rever estes filmes?


A maioria dos filmes nunca foi projetada no Brasil. Aqui encontramos cerca de oito filmes e ainda sim, são de difícil acesso.

Por que é importante prestigiar a exibição?


É importante por se tratar da obra do cineasta etnográfico mais importante da história.



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Página sobre a Mostra e Colóquios realizados em 2009 no site da Balafon:







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Clipping com reportagens e textos sobre a mostra:


2009-JeanRouch-Balafon-Jornal_Globo_CAPA-2ndC.jpg




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2009-JeanRouch-Balafon-Jornal_Globo_Consuelo-Lins.jpg



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2009-JeanRouch-Balafon-Jornal_Globo_Moreira-Salles.jpg






Jean Rouch gostava de citar Henri Langlois (1914-1977) – um dos fundadores da Cinemateca francesa –, para quem “cineastas nunca morrem, pois toda vez que seus filmes são projetados, eles revivem”.

Difícil acreditar nisso. O próprio Rouch foi vítima de um prosaico desastre de automóvel, no Niger, em 2004, aos 86 anos. Cineasta e etnógrafo, realizara mais de cem filmes, em sessenta anos de carreira iniciada em 1943. O emblemático título do seu último filme, lançado em 2002, é “O sonho mais forte que a morte”.

Em 2006, quase três anos depois de ele ter morrido, os Dogon da vila de Tyogou, no Mali, realizaram uma cerimônia fúnebre para Rouch, honra raramente prestada a forasteiros por esse povo da África ocidental. Para o evento, com duração de três dias, um manequim empalhado representando Rouch, vestido como era hábito dele – camisa azul e calça cáqui – foi fincado no terraço em cima de uma casa, enquanto embaixo, na praça, uma vaca era sacrificada e dançarinos atuavam usando máscaras kanaga. O manequim foi levado em um caixão para ser enterrado na encosta das escarpas de Bandiagara e a adorada câmera Aaton de Rouch espatifada, dando fim simbólico à vida produtiva dele.

Antes de morrer, porém, assegurando de certa forma sua permanência nas escarpas de Bandiagara, Rouch providenciou para que fosse filmado o próximo ciclo do Sigui – ato coletivo em desafio à mortalidade, com duração de 7 anos, que ocorre a cada 60 anos,  e que voltará a transcorrer entre 2027 e 2033. O próprio Rouch, que filmou as cerimônias de 1967 a 1973,  acreditava que o cinema etnográfico é um empreendimento da mesma natureza do Sigui, um desafio à mortalidade. Assim, indicou seus sucessores e, num texto de 1997, escreveu: “será só em 2027 que ‘nós’ poderemos escrever um verdadeiro comentário sobre esse rito fundamental!”

Um documentário sobre a cerimônia fúnebre dedicada a Jean Rouch foi realizado por Bernd Mosblech: “Eu sou um africano branco: adeus a Jean Rouch”, produzido pela SWR/Arte, e lançado em 2008, na Alemanha.

Essa referência e a descrição da cerimônia fúnebre, estão no livro “The Adventure of the Real – Jean Rouch and the Craft of Ethnographic Cinema” (“A Aventura do real – Jean Rouch e a tarefa do cinema etnográfico”), de Paul Henley, editado em 2009 pela The Chicago University Press. De leitura obrigatória para os interessados no assunto, é uma lição para os franceses que, até o momento, não produziram nada comparável. Muito bem pesquisado e escrito, é um marco definitivo na bibliografia rouchiana.

Além de outras preciosidades, o Sigui filmado por Jean Rouch nas escarpas de Bandiagara, no Mali, de 1967 a 1973, pode ser visto na versão sintética, com 120’ de duração, incluida na caixa de quatro DVDs, lançada este ano, na França, pela Éditions Montparnasse, com o título geral de “Jean Rouch Une Aventure Africaine”. A coletânea inclui também um filme de Luc de Heusch, antropólogo e cineasta, e 3 filmes raros de Marcel Griaule, controvertido mestre de Rouch.

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Duas publicações recentes, editadas na França, oferecem novos acessos à obra de Jean Rouch.

Em 2009, Jean-Paul Colleyn – documentarista e antropólogo, especialista no Mali –, além de escrever a introdução, “Clés pour Jean Rouch” (“Chaves para Jean Rouch”), reuniu textos do próprio Rouch, em edição do “Cahiers du Cinéma” e do Institut national de l’audiovisuel – INA, com o título “Jean Rouch Cinéma et Anthropologie” ( “Jean Rouch Cinema e Antropologia” ). Dividido em três partes, a primeira é biográfica, seguida da que trata de cinema e da última sobre antropologia. Como pósfácio, reproduz o prefácio de Marc Henri Piault, “Regards croisés, regards partagés” ( “Olhares cruzados, olhares partilhados” ), publicado originalmente no livro do próprio Jean Rouch, “Les Hommes et les dieux du fleuve, Essai ethnographique sur les populations Songhay du Moyen Niger, 1941-1983” (“Os Homens e os deuses do rio, Ensaio de etnografia sobre os povos Songhay do médio Niger, 1941-1983”) 1941-1983, Paris: Artcom, 1997.

Esses textos, alguns dificeis de encontrar, formam excelente introdução ao pensamento de Rouch no período que vai de 1968 a 1995.

Em abril deste ano, o Arquivo francês de filmes do Centro Nacional de Cinematografia – CNC editou um catálogo fartamente ilustrado, inventariando 157 filmes de Rouch identificados até o momento, “Découvrir les films de Jean Rouch – collecte d’archives, inventaire et partage” (“Descobrir os filmes de Jean Rouch – coleta de arquivos, inventário e partilha”).

Apresentado como “um guia que dará chaves ao público para se apropriar dessa obra proteiforme, ainda em grande parte desconhecida”, reúne textos de vários autores, descrevendo diferentes aspectos do trabalho ainda em curso, que tem em vista a “salvaguarda, restauração e difusão do imenso trabalho de Rouch”, nas palavras de sua colaboradora François Foucault.

No Brasil, depois da publicação do valioso livro de Marco Antonio Gonçalves, em 2008, “O real imaginado Etnografia, Cinema e Surrealismo em Jean Rouch” ( Rio: Topbooks ), surge o catálogo da retrospectiva e colóquio dedicados a Jean Rouch, em 2009, editado pela Associação Balafon, de Belo Horizonte. Embora tenha ficado pronto com atraso e, até onde consegui saber, não esteja à venda, é uma contribuição significativa aos estudos rouchianos, tanto pela qualidade dos textos, alguns raros em qualquer língua, quanto pelas ilustrações.

Concebidos e com curadoria de Mateus Araújo Silva e Andrea Paganini, a retrospectiva e o colóquio, realizados no Rio, São Paulo, Belo Horizonte e Brasília, foram oportunidade única de conhecer parte expressiva da obra de Jean Rouch, tendo sido exibidos 76 dos seus filmes, e 14 relacionados a ele.

A morte do crítico Jean-André Fieschi, vítima de um infarto quando iniciava sua intervenção no colóquio em São Paulo, fez pairar sobre o evento a sombra da nossa transitoriedade. Além de ter vindo ao encontro do ceticismo daqueles que duvidam da perenidade dos cineastas, contrariando a sempre citada frase de Henri Langlois, que Jean Rouch gostava de repetir: “cineastas nunca morrem etc.”


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