quarta-feira, 31 de julho de 2013

Shakespeare - As piadas sexuais que você nunca notou...

As piadas sexuais que você nunca notou em Shakespeare

Oh, Shakespeare! Quantas pessoas não suspiram só de pensar em seus escritos? Pois é, William Shakespeare é definitivamente um marco na literatura, não só britânica, mas mundial. Além de ter criado um terço da língua inglesa, Shakespeare também ganhou fama por ser um escritor que passa uma imagem de eterno romântico, mas analisando os originais podemos ver outra faceta desse autor, uma faceta bem safada.
Antes de tudo, devemos levar em conta que nossa leitura de Shakespeare geralmente é feita em português e na escola, com professores monitorando cada verso. Tanto isso quanto a linguagem rebuscada de Sir William acaba por nos deixar cegos diante de um grande número de referências picantes um tanto quanto inesperadas – Castro Alves aprova.
 Confira as cinco piadas sexuais que você nunca reparou ao ler Shakespeare (porque provavelmente sua professora fez uma belíssima cara de poker em tais passagens):
1- Romeu e Julieta: Mercúcio, o camarada que dá conselhos sobre “traseira aberta”
Romeu e Julieta é uma das peças mais famosas de Shakespeare, além de ser mundialmente a mais mal interpretada, visto que aparentemente as pessoas ignoram o fato de Julieta ter apenas 13 anos e Romeu 17. Mas tudo bem, afinal, a peça foi escrita aproximadamente no ano 1593, e isso abre espaço para as diferenças em relação a cultura da época, mas mesmo assim não podemos deixar de lado que o romance deles acontece por questões hormonais e porque proibido é mais gostoso, com a exata duração de cinco dias, resultando num suicídio mútuo. E aí todos os leitores suspiram em meio às lagrimas. Ah, o amor é lindo certo? Certo, mas quem acha que Romeu e Julieta é uma história de amor precisa urgentemente reler.
Mercúcio, grande camarada, ao ver que Romeu está um caco, carente e novamente apaixonado, decide dar aquele conselho amigo:
 No poema original em inglês:
“If love be blind, love cannot hit the mark.
Now will he sit under a medlar tree
And wish his mistress were that kind of fruit
As maids call medlars when they laugh alone.
O Romeo, that she were! Oh, that she were
An open arse, and thou a poperin pear
Em uma das traduções originais podemos ver como quase se perde o sentido se você não estiver atento:
“Se o amor é cego, nunca acerta no alvo. Agora vai sentar-se sob a fronde de um nespereiro, a desejar que a amada fosse a fruta que as jovens chamam nêspera, quando riem sozinhas. Ó Romeu! Se ela fosse um “Et cetera”, realmente, bem aberto, e tu, pêra açucarada!”
“Um et cetera bem aberto”, tradutor, eu vi o que você fez ai!
Acho que já entenderam o ponto, mas a tradução literal é definitivamente o que deixa explícito:
 “O Romeo, que ela fosse! Oh, que ela fosse uma bunda aberta, e tu um poperin pêra
E aí vem minha parte favorita: não existe a expressão “poperin”, sendo na verdade um jogo de palavras. Separando suas sílabas podemos chegar mais perto do sentido desejado por Shakespeare: Pop ‘er in, que seria no português penetrar.
 Pois é, no fim Mercúcio na verdade está dizendo:
“O que você precisa, meu amigo, é de uma garota que faz anal.”
2- A Megera Domada: Brincadeiras lúdicas sobre sexo oral
Em A Megera Domada, aquela peça que deu origem ao filme “10 coisas que odeio em você” com o poema que cita exatamente 10 coisas que a mocinha odeia no mocinho, fazendo todo mundo chorar enquanto se entope de chocolate, Petruchio está tentando conquistar o coração congelado de Catarina, para que seu pai permita com que sua irmã caçula se case.
 Para a alegria de todos os leitores atentos, o método preferido de flerte de Petruchio é envolver Catarina num jogo de palavras sexual, enquanto só falta balançar as sobrancelhas charmosamente a la Groucho Marx (quem conseguiria resistir, não é mesmo?).
No original em Inglês:
PETRUCHIO: Come, come, you wasp, i’faith you are too angry.
KATHERINE: If I be waspish, best beware my sting.
PETRUCHIO: My remedy is then to pluck it out.
KATHERINE: Ay, if the fool could find where it lies.
PETRUCHIO: Who knows not where a wasp does wear his sting? In his tail.
KATHERINE: In his tongue.
PETRUCHIO: Whose tongue?
KATHERINE: Yours, if you talk of tales, and so farewell.
PETRUCHIO: What, with my tongue in your tail?
Na tradução original podemos ver que decidiram suavizar o impacto, deixando a palavra tail (no português: rabo) de lado:
 Petruchio
Vamos, vespa; ferina sois bastante.
 Catarina
Sendo eu vespa, cuidado com o ferrão.
 Petruchio
Há remédio para isso: arranco-o logo.
 Catarina
Sim, no caso de o tolo vir a achá-lo.
 Petruchio
Quem não sabe onde as vespas o têm sempre? No corpinho.
 Catarina
Na língua.
 Petruchio
Como! Língua? Língua de quem?
 Catarina
Na vossa, se em corpinho vindes falar-me. Adeus.
 Petruchio
Como! Com minha língua em vosso corpinho?
Um bom ponto a ser levantado é que nos tempos de Shakespeare, “tail” (rabo) era linguajar das ruas que significava “vulva”. Então, na realidade, Petruchio está sendo realmente escrachado ao dizer “com minha língua em vossa vulva”.
3- Venus & Adonis: Vênus dá sinal verde para Adônis ir para suas partes baixas
Além de escrever peças, Shakespeare também gostava de escrever poemas, como é de conhecimento geral, e neles, claro, também misturava insinuações sexuais inesperadas em meio ao linguajar rebuscado das rimas.
 Seu poema Vênus & Adonis, sobre a deusa da beleza se apaixonando pelo cara mais sexy das galáxias (basicamente), se parece mais com uma novela erótica do que algo que você encontraria num livro literário, principalmente shakespeareano. Para dar um pequeno exemplo, confira esses versos de Vênus falando com Adonis:
Em inglês:
Graze on my lips, and if those hills be dry
Stray lower, where the pleasant fountains lie.
Traduzindo temos:
 Paste em meus lábios, e se tal colina seca
Vá para baixo, onde a fonte do prazer fica
Você entendeu certo, Vênus está dizendo: “Qualquer coisa pode fazer um oral, ok?
4- Hamlet: Hamlet se aproveitando da educação de Ophelia
Hamlet, um personagem amargo, decide matar, literalmente, todo mundo ao seu redor depois de ficar maluco por ser assombrado pelo fantasma do pai, que foi assassinado pelo seu tio, que agora é casado com sua mãe. Esse plot seria digno de novela mexicana, se não fosse bem mais profundo que isso, e quem leu a peça, sabe do que estou falando.
 Mas no meio disso tudo, Hamlet tem Ophelia, que seria sua namorada se ele não fosse tão vil com a pobre coitada. Ele é tão nojento com ela que simplesmente faz Ophelia ficar maluca, e spoiler alert, sim, ela acaba se matando por isso (spoiler alert de novo: e também porque Hamlet naquela onda de matar todo mundo, mata também o pai dela).
 Só que antes disso tudo ainda tem aqueles momentos em que Hamlet se diverte conversando com a menina, onde acaba insultando, desrespeitando e tentando quebrar qualquer vestígio que ela tem de honra. O problema é que Ophelia tem noção de sua posição social, e Hamlet é o príncipe, então ela tenta responder as propostas indecentes de Hamlet de forma cortês, ou seria na inocência?
HAMLET: Lady, shall I lie in your lap?
 OPHELIA: No, my lord.
HAMLET: I mean, my head upon your lap.
OPHELIA: Ay, my lord.
HAMLET: Do you think I meant country matters?
OPHELIA: I think nothing, my lord.
HAMLET: That’s a fair thought to lie between maid’s legs.
OPHELIA: What is, my lord?
HAMLET: Nothing.
Na tradução temos uma mudança brusca do significado, primeiro porque “lap” significa “colo”, e na versão original Hamlet insiste pelo colo, já traduzido podemos ver:
HAMLET: Ser-me-ia permitido estar a vossos pés, Senhora?
OPHELIA: Não, meu Senhor.
HAMLET: Queria dizer, recostar a cabeça sobre vossos joelhos.OPHELIA: Sim, meu Senhor.
HAMLET: Pensastes talvez que tivesse outra ideia?
OPHELIA: Nada pensava.
HAMLET: É um pensamento este digno de um coração de donzela.OPHELIA: O que, meu Senhor?
HAMLET: Nada.
“É um pensamento este digno de um coração de donzela”, o que diabos esse tradutor tinha em mente? Com todo o respeito, mas isso é a última coisa que Shakespeare quis dizer com “That’s a fair thought to lie between maid’s legs.” que numa tradução literal quer dizer “É um pensamento justo deitar-se entre as pernas de uma mulher”.
Segue-se uma tradução mais ao pé da letra:
HAMLET: Senhora, eu devo recostar no seu colo?
OPHELIA: Não, meu senhor.
HAMLET: Quero dizer, minha cabeça sobre o seu colo.
OPHELIA: Ai, meu senhor.
HAMLET: Você acha que eu quis dizer “questões de país”? ¹
OPHELIA: Não acho nada, meu senhor.
HAMLET: É um pensamento justo deitar entre as pernas de mulher.
OPHELIA: O que é, meu senhor?
HAMLET: Nada.
¹ “questões de país” é novamente um joguete de palavras que Shakespeare usa, neste caso “country matters” era uma expressão muito comum antigamente, mas veja bem, estamos falando de Hamlet bancando o esperto para cima de Ophelia, o “country” tem a sonoridade de “cunt” que significa vagina. Shakespeare fez de novo.
5 – Soneto 151: Shakespeare “transforma” sua ereção em poesia
Os sonetos nos séculos 13 e 14 foram odes curtos para mulheres, a julgar pela poesia, maravilhosas. Quando Shakespeare estava no auge decidiu também escrever sonetos, e de fato escreveu vários, sobre seu amor por belíssimas mulheres. No entanto, não foram só as mulheres que ganharam essa homage, o soneto 151 de Shakespeare fala na verdade de uma ereção que o autor teve em nome de uma mulher:
My soul doth tell my body that he may
Triumph in love: flesh stays no further reason
But rising at thy name doth point out thee
As his triumphant prize.
Numa tradução literal:
           Minha alma pode dizer ao meu corpo que ele pode
Triunfar no amor: a carne fica sem nenhuma razão
Mas subindo em teu nome, acaso aponto para ti
Com seu prêmio triunfante.
O que Shakespeare quis dizer? Bem, ele diz da forma mais rebuscada possível que “seu corpo” sobe ao som do nome de uma mulher. Ou seja, que uma mulher o deixa completamente ereto, e o mais engraçado é que não para por aí, o fim do poema também deixa esse ar de ambiguidade e “o que diabos acabei de ler” para os mais atentos.
 O Soneto 151 deixa bem claro que naquele dia, Shakespeare, independente dos rumores sobre sua orientação sexual, queria mergulhar a pena no tinteiro de alguma donzela.

terça-feira, 16 de julho de 2013

A psicanálise é a cura dos otários?

"A festa do gozo permanente não é proibida, nem é restrita aos mais espertos. 
Ela é simplesmente impossível de se realizar." 


Por uma vida menos banal  

01 de setembro de 2008

Maria Rita Kehl


Sou psicanalista há mais de vinte anos, mas até hoje me espanta que as pessoas ainda procurem a psicanálise para tentar resolver seus conflitos, sair do sofrimento repetitivo, decifrar seus sintomas.
Não que eu duvide da eficácia da psicanálise - pelo contrário. O que me espanta é que tanta gente ainda escolha o percurso lento e sofrido de uma psicanálise nesses tempos de terapias breves, guias de auto-ajuda, medicações milagrosas. A psicanálise é o avesso da pressa. Sua eficácia difere radicalmente da eficiência pragmática tão cara à nossa cultura neoliberal. O psicanalista não aconselha, não promove o ego de ninguém, não alivia (quase) nada. Numa outra vertente ideológica, o psicanalista diverge também do guru complacente, a conduzir seus adeptos pelos caminhos da morada interior, onde supostamente viveria o 'verdadeiro eu' - essa ficção tão cara à modernidade. Por isso ela me parece desajustada à vida contemporânea, na qual se acredita que um 'ego' bem cultivado seja condição do sucesso e da inclusão social. Afinal, a psicanálise também é o avesso do universo de imagens fulgurantes em que vivemos hoje, e com as quais tentamos nos identificar; ela é o império do significante, da palavra com seu fundo falso, sua parcela de vazio e de nonsense. Por fim, o objeto da psicanálise é o desejo inconsciente, não o 'ego'. 

Não é confortável habitar o terreno do desejo inconsciente. Não é parecido com o palacete narcísico da 'morada interior', abrigo do (suposto) eu verdadeiro que alimenta as aspirações individualistas. No terreno escorregadio do desejo, o sujeito é um eterno sem-teto: vive acampado, nômade, mudando sua tenda de cá para lá de acordo com os ventos e as chuvas. É que o desejo inconsciente não é uma 'coisa' de que o analisando possa se apoderar e controlar, como um habitante incômodo da casa ao qual se reserva um quartinho nos fundos para que ele não perturbe o andamento geral das coisas. Nem é o que se chama hoje, vulgarmente, de desejo (sexual), ou seja: as fantasias (explícitas) de consumo e sexo que apelam para nós de fora para dentro, nos objetos e mensagens da indústria cultural. O efeito de uma psicanálise não é o controle racional do inconsciente, nem a 'realização' do desejo; não é liberar o sujeito da incômoda presença do desejo inconsciente, e sim propiciar que ele suporte desejar. 

Neste sentido, a psicanálise me parece um tanto anacrônica. No aparente império do desejo em que vivemos, onde cada um se acredita no direito ('você merece'!, dizem as mensagens publicitárias) de realizar imediatamente todas as fantasias, a maior parte das pessoas parece ter vergonha de desejar. Por isso escrevi que o império do desejo é aparente: vivemos mesmo é no império do gozo - 'tudo ao mesmo tempo agora' - em que o desejo, que se realiza no trabalho de simbolização e não na posse das coisas, não tem muito lugar. Repito o que escutei em uma conferência do filósofo esloveno Slavoj Zizek: uma das tarefas fundamentais do psicanalista, hoje, é autorizar o analisando a não gozar - e se manter desejante. Nesse sentido, o dispositivo analítico - que mudou muito pouco em um século de existência - deve operar em uma direção oposta à dos tempos de Freud. Hoje já não se trata tanto de permitir a expressão das fantasias inconscientes recalcadas (cujo conteúdo era impensável para a moral vitoriana), e sim de levar o analisando a se perdoar por não conseguir realizar a profusão de fantasias que circulam nas mensagens e apelos da indústria cultural. Não se trata de proibí-lo de gozar e sim de autorizá-lo a não gozar. Pois o imperativo do gozo é tão severo e tão exigente quanto a proibição a toda forma de gozo. O super-eu, instância crítica e sádica que atormenta o eu com suas normas rígidas e suas ameaças de castigo, tanto obriga a gozar quanto proíbe o gozo. Do ponto de vista do supereu, o imperativo: 'goza!' é tão severo quanto a proibição: 'não goza!'. Autorizar o sujeito a não gozar é muito diferente de proibir o gozo: é trabalhar para que ele possa se libertar da relação e servidão com o supereu. 

Na contracorrente do senso comum, muita gente continua procurando os consultórios dos psicanalistas atrás de um tipo de tratamento que, se não é o mais eficiente, a meu ver é o mais ético, já que ao sair de uma análise o sujeito deve ser capaz de se responsabilizar pela sua condição desejante. O que me espanta é que a sedução dos dispositivos de adaptação das pessoas à cultura do narcisismo e do consumo ainda encontre resistências entre os que procuram os consultórios dos psicanalistas. Não: a palavra 'resistência' lembra sacrifícios, barreiras morais, ascese, recusa do prazer. As pessoas não procuram a psicanálise para 'resistir' aos prazeres oferecidos pela sociedade do espetáculo e do consumo. Procuram análise porque não conseguem se adequar a eles. É claro que cada candidato a uma análise tem suas queixas e seus sintomas particulares. Mas escuto com muita freqüência queixas do tipo: 'eu não consigo me divertir tanto quanto eu deveria'. As pessoas, maduras ou jovens (acho que os jovens sofrem mais) vivem em dívida com o gozo. Alguém disse, uma vez: 'é como se em algum lugar estivesse acontecendo uma festa espetacular, onde todos estivessem se divertindo além de todos os limites, só que eu não tenho o endereço'. O neurótico, hoje, não se sente um pecador, um impuro, como no início do século XX: sente-se otário. Barrado no baile. 

A psicanálise é a cura dos otários? Talvez sim: só que o psicanalista não oferece o endereço da tal festa a ninguém. Ele nem sabe o endereço. No máximo, o analista sabe que o cara que se imagina otário não está perdendo festa nenhuma; a festa do gozo permanente não é proibida, nem é restrita aos mais espertos. Ela é simplesmente impossível de se realizar. Mas isso, o analisando vai descobrir por ele mesmo - se quiser deixar de ser otário.

É preciso ser de vez em quando infeliz. Para se poder ser natural... - Alberto Caeiro

"Se eu pudesse trincar a terra toda 
E sentir-lhe um paladar, 
Seria mais feliz um momento... 
Mas eu nem sempre quero ser feliz. 
É preciso ser de vez em quando infeliz 
Para se poder ser natural... 

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja..."

Alberto Caeiro
1914

O guardador de rebanhos - VIII Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) [Poema do Menino Jesus]

O guardador de rebanhos - VIII

Fernando Pessoa(Alberto Caeiro)
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se ao longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas...
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça! 
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou. 
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães,
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em rancho pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias. 
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas. 
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
«Se é que ele as criou, do que duvido» -.
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres».
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
.................................................................. 
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava,
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro. 
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo. 
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena. 
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas. 
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda. 
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão. 
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados. 
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu. 
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos
Vira uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono. 
........................................................ 
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é. 
......................................................... 
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?




Argumentum Ornithologicum - J. L. Borges

Eu fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. 
A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei 
quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido o 
seu número? O problema envolve o da existência de 
Deus. Se Deus existe, o número é definido, porque 
Deus sabe quantos pássaros eu vi. Se Deus não existe, 
o número é indefinido, porque ninguém pode fazer a 
conta. Eu tenho certeza de que vi menos de dez 
pássaros e mais de um, mas não vi nove, oito, sete, 
seis, cinco, quatro, três ou dois pássaros. Eu vi um 
número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, 
seis, etc. Esse número é inconcebível, mas é inteiro; 
Minha opinião ornitológica, Deus existe.

[Jorge Luis Borges. In: O Fazedor]