segunda-feira, 15 de junho de 2015

Deus ex-machina

O caso Deus ex-machina e o cinema de Carlos Gerbase



Fonte: http://www.contracampo.com.br/47/deusex.htm
Quando Deus ex-machina foi exibido, houve espanto e curiosidade. Do título estranho – todos ficavam felizes quando descobriam que a tal "expressão esquisita" está ligada ao fato de que no teatro grego havia um deus que aparecia em cena para dar uma solução arbitrária para os problemas dos personagens – até a forma narrativa – flashbacks, uso de primeiros planos –, tudo contribuía para criar uma aura em torno do filme. Em 1995, o curta de Gerbase levou quase todos os prêmios para curta em 35mm em Gramado e, a partir dali, se tornou o grande recordista em número de kikitos recebidos. À parte toda a badalação festivalesca, o que se viu foi um filme que, sem dúvida, foi um divisor de águas no cinema gaúcho (quiçá brasileiro) e, também, um dos trabalhos em que Gerbase mais conseguiu adequar seus temas a uma proposta cinematográfica consistente.
Antes de pensar no filme propriamente dito, é necessário contextualizar Deus ex-machina no cinema gaúcho dos anos 90. Depois do arrasa-quarteirão Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, uma grande parcela dos curtas produzidos no estado do Rio Grande do Sul foi formada por filmes que, de uma maneira ou de outra, dialogavam com a forma ‘"ensaística" do Ilha. Longe de tentar reduzir esforços valiosos que garantiram diversidade estilística para o período (haja visto os trabalhos de Fernando Mantelli, Sérgio Silva, Otto Guerra, entre outros), o que faço aqui é também chamar a atenção para a impressionante quantidade de películas que encontraram no curta de Furtado uma matriz, uma inspiração ou até um ponto de conflito. Por exemplo: Memória (Roberto Henkin, 1990) também prepara um discurso para demonstrar uma situação social absurda, no caso o apoio dos brasileiros a Collor; Esta não é sua vida (Jorge Furtado, 1991) é, apesar da sua introdução, a tentativa de fazer um anti-Ilha, uma negação do documentário construído; Batalha Naval (Liliana Sulzbach, 1992) caminha pelas ondas da ficção, mas não deixa de ser uma demonstração sobre a burocracia e a ignorância; Ventre Livre (Ana Luíza Azevedo, 1994) mergulha no documentário mais cru, porém acaba, talvez pela postura humanista, lembrando o curta de 1989. Obviamente seria necessário pensar melhor cada uma dessas ligações apresentadas, porém elas servem para justificar porque todo mundo que queria fazer um filme em Porto Alegre na metade da década de 90 tinha que responder a pergunta fatídica: É documentário?
E onde andava Gerbase? Egresso da geração de superoitistas do final dos anos setenta, o cineasta já chamara a atenção com filmes feitos na bitola nanica: se Meu primo (1979) e Sexo e Bethoven(1980), apesar do "sucesso" feito na época, não chegaram à memória dos realizadores mais jovens, Inverno (1983), é considerado até hoje o cult dos cults do cinema gaúcho. Nestes filmes, Gerbase já apresentava alguns dos seus temas, que ganhariam eco na produção em 35mm. Por exemplo, a crônica nostálgica da adolescência exibida com inventividade em Inverno aparece (com menos frescor) em Verdes anos (1984, co-dirigido por Giba Assis Brasil). Já o sexo, elemento caro desde sempre ao cinema de Gerbase, aparece nas produções posteriores ora ligado à transgressão cinematográfica (a gratuidade de Aulas muito particulares –1988 – será sempre um insulto) ora como elemento deflagrador de um conflito moral (o pai de O corpo de Flávia – 1990 - quer punir a filha porque ela transa com o namorado, mas sente desejo pela amiguinha da mesma). Além da nostalgia adolescente e do sexo, podemos detectar no cinema de Gerbase um olhar poético para a classe média (Interlúdio, 1983, co-dirigido com Giba Assis Brasil) e uma radiografia da violência surgida pelo apartheid social (Passageiros, 1987, co-dirigido com Glênio Póvoas).
Uma postura comum entre todos esses filmes variados talvez seja a busca por um discurso direto, sem rodeios nem experimentalismos (Inverno é exceção). Um pouco como nos filmes de Nelson Nadotti, o negócio é ir lá e contar a história. Nos primeiros planos de cada filme, quase podemos ouvir Gerbase dizer: "olha, gente, eu acho legal falar sobre isso aqui". Já quando os créditos finais rolam, o espectador deglute, meio de roldão, o que apareceu na tela. Talvez por essa sinceridade bruta, a chatice passe longe do cinema de Gerbase.
Em termos de temática, Deus ex-machina funde um pouco os temas acima expostos (deixando de lado apenas a nostalgia) e amplia o espectro de preocupações no que diz respeito às problemáticas humanas, examinando questões como incomunicabilidade, mentira, religião e morte. Já no que diz respeito à forma cinematográfica, o estilo despojado dá lugar a um requinte formal onde os acontecimentos são embaralhados, formando uma espécie de "quebra-cabeça". Nesse processo, é principalmente a montagem precisa e complexa que aparece como grande diferencial das realizações anteriores.
Um dos primeiros fatores que chama a atenção em Deus ex-machina é que grande parte do filme é feita em "primeiro plano". Como são raros os enquadramentos que mostram mais de um personagem, o que vemos, quase sempre, é um dos protagonistas sozinho. É interessante perceber que essa espécie de isolamento ou separação do outro está ligada, em primeiro lugar, aos personagens do filme.
Dolores (Luciene Adami) é aquela que tem dor: conheceu Inácio (Werner Schünemann) no confessionário, casou com ele, mas acabou paraplégica depois de um acidente de carro, de onde seu marido saiu ileso. Nunca mais teve carinho (nem sexo) de Inácio. Após isso, ela pede a uma amiga, Alice, que se aproxime dele, pois quer comprovar a impotência do marido. Como Alice (Daniela Schmitz) diz que Inácio não quer saber de transar, Dolores – desconfiada – contrata um detetive. Nestes dois casos lança mão de dinheiro: com o detetive, a relação monetária é óbvia, porém como ela lhe entrega o cartão do banco, o que vemos é uma metáfora da forma com que ela trata as pessoas. Já com Alice a situação é diferente: elas se conheceram no hospital e Dolores acabou pagando a operação da nova amiga. Assim, quando ela pede para Alice se aproximar de Inácio, não deixa de haver aí uma cobrança. Uma das imagens mais emblemáticas da personagem é um momento em que ela aparece com grandes óculos, como que sinalizando o seu não-olhar para o outro.
Já Alice é o contrário de Dolores (não por acaso tem cabelos loiros; em oposição aos cabelos negros da outra). Sonhadora - até por isso seu nome alude ao famoso personagem de Lewis Carroll –, ela atende o pedido da "amiga" sem fazer perguntas. Porém, ela acaba enganada por Dolores, pelo detetive, por Inácio (que sabe da combinação das amigas) e também pelo seu próprio desejo. Apaixonada pelo personagem de Werner Schunemann, Alice mergulha em culpas sem desconfiar do mundo a sua volta. Esse ato de acreditar nos outros, bem característico de Alice, é condenado pelo filme. E isso é metaforizado pelo estupro que a personagem sofre antes de parar no hospital: a carona com um desconhecido pode representar a relação que ela terá tanto com Inácio quanto com Dolores, embarcando na conversa de duas pessoas que, de fato, ela não conhece.
Inácio, que de santo não tem nada, tem uma trajetória sui generis no filme. Abandona a vida religiosa para se juntar a Dolores, mas depois – como se tivesse descoberto os prazeres da carne – abandona a mulher que fica paraplégica. Esperto, ele monitora toda a situação, através de escutas telefônicas e grampos. Inácio é o personagem que mais demora a se mostrar para o público, que só percebe o seu plano – como sabia das intenções da esposa, não faz nada com Alice – quase no final do filme. Por isso, Inácio é a dissimulação, o fingimento (mais do que qualquer outro personagem). Nesse sentido, toda a sua ligação com a igreja parece transmitir, por um lado, uma certa crítica aos dogmas religiosos, e, por outro, um discurso de que a religião está intimamente ligada às fraquezas humanas, da solidão à hipocrisia.
No meio desse triângulo amoroso, está Otávio (Leverdógil de Freitas), o detetive contratado por Dolores. De certa forma, ele aparece como um personagem contrário aos outros, porque é um estranho vindo de outra classe social, com atitudes que parecem displicentes (simbolizadas pelo indefectível palito que carrega na boca e pelo ato contínuo de tomar cerveja). Só que durante o filme, o personagem vai ganhando força e simpatia do espectador, pois ele começa a refletir sobre o caso e sobre a vida - e aqui o recurso da voz over é muito bem usado. Aliás, o interessante é que ele pensa coisas díspares como: "Se o mundo fosse justo não precisava ter padre nem polícia" e "não tem nada mais chato que tomar cerveja choca". Além da simpatia que o personagem traz em si, muitas vezes temos a sensação que é ele que está contando o filme; afinal, o curta inicia e termina com frases dele. Outro elemento que diferencia Otávio dos outros é que duas vezes vemos o personagem em plongée. Só que nesse caso, a câmera de cima para baixo não parece explicitar a diminuição do personagem; muito pelo contrário, o plongée mostra que o detetive está sendo observado de perto por uma instância maior, um deus ou quem sabe até pelo próprio diretor do filme. Então, a câmera em plongée parece ser o emblema da simpatia que o realizador tem por este personagem autêntico – não sem problemas de moral - que estampa uma das posturas do filme: seriedade ma non troppo
Voltando à questão da utilização do primeiro plano, é interessante lembrar que uma das implicações que ela traz é o fato de raras vezes podermos ver as pernas dos personagens. Se pensarmos que Dolores está paralisada em uma cama, podemos entender que a estratégia do primeiro plano iguala todos os personagens no que diz respeito às imagens deles da cintura para baixo. Assim, podemos pensar que os primeiros planos criam a idéia de que todos personagens estão paralisados, todos eles estão mergulhados na forma como são. Apesar de todas as peripécias do filme, nenhum personagem mudará – e isso está estampado no uso de primeiros planos.
Além da solidão e da imutabilidade dos personagens, o primeiro plano passa outras sensações, principalmente quando pensamos na montagem dos mesmos; afinal, um dos procedimentos mais característicos de Deus ex-machina é a "omissão do contraplano". Explicando melhor: em uma cena, vemos um personagem falar com o outro (que está no espaço off). Só que o plano seguinte não mostra a resposta, mas sim outra seqüência, com outro personagem falando. Inclusive, essa fala quase sempre responde de alguma forma o que foi dito antes. Por exemplo, Alice conta ao analista (que está fora de quadro) sobre Inácio: "Ele disse que tinha tomado uma decisão". Então, corta para um flashback de Inácio falando para Alice (que está fora de quadro): "Eu não quero mais te ver, Alice". Assim, quando essas frases se unem, temos a sensação nítida de que aqueles personagens não se entendem, não se vêem e são bem individualistas com seus problemas. Esta espécie de incomunicabilidade é ressaltada não só pelos equipamentos de escuta que aparecem no filme, mas também pelos telefones, usados o tempo todo.
A montagem também é responsável por enfatizar um clima de absurdo quando, ao invés de criar diálogos entre cenas diferentes, alinha frases repetidas. Por exemplo: Alice vai visitar Dolores já no final do filme, e a dona da casa diz: "Que bom que tu veio". Então, corta para Inácio encontrando a amante e repetindo a mesma frase. Esse tipo de reincidência exalta que o casal desfeito – Inácio e Dolores – poderia, em outra circunstância, ter prazer em seus encontros. Por outro lado, essa repetição sugere um lado maquinal nas relações que o filme apresenta. Nesse sentido, a repetição de frases é mais interessante quando dita pelo mesmo personagem em momentos diferentes do filme: Inácio sempre que chega em casa, vai para o banho e diz o tradicional "dorme bem" para Dolores. Não por acaso, quando a esposa traída mata o marido, ela diz: "Dorme bem, Inácio".
Junto com estes aspectos – incomunicabilidade, imutabilidade, solidão, absurdo – aparece a mentira. Se pela quantidade de vezes que os personagens enganam uns aos outros, pode-se pensar que há um discurso do filme mostrando o homem como um ser mentiroso patológico, é interessante perceber também que a organização narrativa ajuda na confusão criada pelas diversas inverdades que aparecem no filme. Num sentido macro, todas as elipses do filme - relativas à construção temporal ou à sonegação de informações – ajudam a criar um clima de desconfiança e uma sensação de que estamos num mundo fragmentado, sem muitas certezas. Inclusive, essa espécie de instabilidade é exaltada pelo flerte com o cinema policial, pela mistura de texturas (cinema e vídeo) e pela utilização de uma trilha sonora que oscila entre sons religiosos e guitarras pesadas. Pensando em procedimentos mais específicos, existem algumas cenas que aparecem para fundamentalmente "enganar" o espectador. Por exemplo, em um determinado momento, quando ainda julgamos que Inácio trai Dolores com Alice, vemos o ex-padre se confessando. Tudo leva a crer que ele está ali pedindo perdão por tal ato, mas depois vemos que fomos enganados: ou ele está se referindo a sua outra amante ou ele confessa sentimentos contraditórios.
Enfim, os seres de Deus ex-machina vivem num mundo de incomunicabilidade, cercados de mentiras e mergulhados na solidão. Mas não podemos esquecer que, como lembram as estátuas que aparecem no filme, a vida foi sempre assim.
Já o cinema gaúcho mudou muito. Além do amadurecimento de outros cineastas já citados neste texto, vale lembrar que foi justamente a partir daquele ano de 1995 que uma nova leva de realizadores começou a fazer filmes. Não se sabe se foi exatamente por causa do curta de Gerbase, mas é incrível o fato de que a grande maioria desses diretores optou pela ficção, se afastando do modelo Ilha das Flores. Por isso, quando vemos os personagens bem construídos de Até(Gilson Vargas, 1999) ou a eficiência da manipulação do tempo de Domingo (Gustavo Spolidoro, 2002) não podemos esquecer que o paradigma do curta com história, com presente-passado-futuro, continua sendo Deus ex-machina.
Fabiano de Souza

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