quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Roland Barthes e o punctum crítico

Roland Barthes e o punctum crítico :
uma arqueologia da crítica barthesiana

Voltado para a obra de Roland Barthes, este artigo pretende investigar as revoluções críticas deflagradas pelo autor e sua incidência sobre a indústria cultural.

Embora seja principalmente um fino crítico literário, Roland Barthes, até porque surge como o primeiro homem dos signos, é também um pensador da cultura das mídias, aquele que se lança numa semiótica da “fala” da cultura. 
"O que é um mito, hoje? Darei desde já uma primeira resposta, muito simples, que concorda plenamente com a etimologia: o mito é uma fala (...) Naturalmente não é uma fala qualquer. São necessárias condições especiais para que a linguagem se transforme em mito, vê-lo-emos em breve. Mas o que se deve estabelecer solidamente desde o início é que o mito é um sistema de comunicação, é uma mensagem. Eis porque não poderia ser um objeto, um conceito, ou uma idéia: ele é um modo de significação, uma forma.” (Barthes, 1982:131)
Para a realização do trabalho, trata-se de percorrer toda a obra do autor, imensa contribuição a um só tempo poética e crítica, de modo a recortar nela a vigorosa parcela de comentário crítico das mídias que aí se encerra. Note-se, a propósito, que tal parcela só faz aumentar conforme vão sendo editados os textos póstumos de Barthes, que não cessam de nos chegar às mãos. 
A essência deste percurso fica talhada nas impressões que Barthes me causou como leitora e, portanto, na condição de escuta crítica em que me colocou no instante em que o li pela primeira vez. Volto-me a ele, antes com o desejo de que os fundamentos de suas inovações possam atravessar (como um punctum sofisticado), a crítica da indústria cultural na contemporaneidade, que como espectadora nostálgica de uma belle èpoque do espírito crítico. 


"Em cada signo dorme este monstro: um estereótipo" (Barthes, 1977:55)
É fundamentado nestas palavras que Roland Barthes desenvolve toda sua trajetória crítica que é, convém lembrar, original, subversiva, e antes de mais nada um pacto com a capacidade de se surpreender dentro de um mesmo assunto: a linguagem.
Emergindo num momento histórico em que os meios de comunicação de massa e a ideologia burguesa instalavam-se e alimentavam-se irreversivelmente, Barthes lança-se no exercício de uma crítica-escritura pautada na desconstrução do inefável: a naturalização da cultura. 
E é pelo caminho de uma suspeita sistemática da linguagem que ele se pretende: desmascarando os estereótipos, deslocando-se pelos campos mais diversos com rara destreza, e apropriando-se - em pleno exercício de guerra contra a doxa - de suas ferramentas semiológicas, tomadas do estruturalismo.
Sem a ingenuidade de acreditar a linguagem fora de qualquer ideologia -"Toda língua é fascista" (Barthes, 1977:35) - Barthes é um samurai que advém de "um estrangeiro extremo - um não-lugar utópico - em seu voô figural" (Motta,1997: 176) a explodir as bolhas retóricasproduzidas pela cultura.
Esta capacidade de desnudar o jogo de constrangimento a que estamos submetidos, uma vez que inseridos nos discursos, torna Barthes um autor fundamental quando se pensa em crítica da indústria cultural. É este o recorte que mobiliza este trabalho, e como tal, se justifica.

         Mitologias
     Esta análise estrutura-se fundamentalmente na definição que Roland Barthes faz de mito e nas estratégias semiológicas adotadas por ele no exercício de desmontagem desses enunciados. 
Para Barthes "O mito é uma fala” (Barthes:1982,131) e, como tal, trata-se de um sistema de comunicação. Ele está portanto, fatalmente imbuído de uma historicidade, pois é uma "fala"  inventada pela cultura: portanto isento de naturalidade e consequentemente advindo de uma formalização.
"A fala mítica é formada por uma matéria já trabalhada em vista de uma comunicação apropriada: todas as matérias-primas do mito, quer sejam representativas quer gráficas, pressupõem uma consciência significante, e é por isso que pode raciocinar sobre eles independentemente da sua matéria. Esta, porém, não é indiferente: a imagem é certamente mais imperativa do que a escrita, impõe a significação de uma só vez, sem analisá-la, sem dispersá-la (...) Isto não quer dizer que se deva tratar a fala mítica como a língua: na verdade, o mito depende de uma ciência geral extensiva à linguagem, que é a semiologia."(Barthes: 1982,133)
Na semiologia que Barthes propõe - em franca interação com a linguística de Saussure -, há três registros de que o mito se apropria: significante, significado e signo. É do engendramento destes conceitos que enunciam-se as operações semiológicas para uma leitura do fenômeno mitológico.
Dentro desta perspectiva, o mito, tido como um sistema em sua especificidade, advém como um segundo sistema semiológico - já que engendra-se apoiado num a priori da tridimensionalidade semio-linguística, que existe antes dele. Trata-se pois, de um deslocamento entre dois sistemas: um sistema linguístico (linguagem-objeto) donde o mitoapóia a sua arquitetura; e o próprio mito que Barthes chama de metalinguagem, já que é uma língua que fala de outra língua (a primeira).
Assim, ao decifrar um mito, a semiologia atém-se ao signo, ou seja, interessa menos a estrutura linguística que a enunciação total que se dá a partir dali. É o signo tomado comosignificante. Ciente da ambiguidade que esses termos podem carregar em seu trânsito - da linguística para a semiologia -, Barthes adota três terminologias: sentido (significante), conceito (significado) e significação (signo).
mito deve ser apreendido pois, como inflexão.
É assim que ele instrumentaliza suas leituras críticas. É esta a sua primeira denúncia: a transformação da história em natureza, o roubo que o mito faz da linguagem, ou seja, o mito como "uma fala excessivamente justificada" (Barthes:1982,151). 


           Uma arqueologia da crítica barthesiana: contextualizações
                   "É no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que é o instrumento, mas pelo jogo de palavras de que é o teatro." 
(Barthes, 1977:25)
Se a filosofia oriental - cara a Roland Barthes em seus últimos anos - evoca a estadia mítica do significante, então ela já estava lá, desde o princípio:  na fruição do não-lugar  em que se instala pela infância assinada numa ausência -  a do pai - e numa presença - a da mãe.
"Não se encontrarão pois aqui, mescladas ao romance familiar, mais do que as figurações de uma pré-história do corpo - desse corpo que se encaminha para o trabalho, para o gozo da escritura.” (Barthes, 2003:14)
Da primeira infância solitária passada em Bayonne, com a mãe, temos encenada a cosmogonia sensível das suas criações. Já em Paris, Barthes adolescente envolve-se no mundo das letras e do teatro. Os anos seguintes são desenhados pela internação em um sanatório (tuberculose) período em que mergulha apaixonadamente em Sartre e Marx. A saúde precária impede-o de seguir a Universidade, o que o ata ao jornalismo. 
Estas marcas, instituídas como falta, dão contorno ao desejo de reconhecimento que passa a mover sua produção. Seus primeiros textos são publicados no período que vai de 1947 a 1959 e aí encontramos um Barthes politizado, marcado pela sociologia e pelo formalismo. 
É com O grau zero da escrita (1953) que ele inicia sua obra, inaugurando ali um diálogo com as questões estruturalistas que vão ancorar, durante um tempo, conceitos fundamentais da sua obra: a definição de uma realidade formal para além do estilo ou da língua, ou a linguagem como fim em si mesma. Trata-se de nomear um antes, um ponto nodal, o zero, de onde emana a composição subjacente do texto. 
Este livro contém o gérmen da palavra crítica barthesiana. É aqui que ele introduz um primeiro filigrama que denuncia alienações construídas pela ideologia, começando pelo próprio conceito de escrita. Ou seja, neste momento, o gesto que lhe é tão peculiar (desmascarar as armadilhas da doxa – a opinião verdadeira) está focado na literatura, lugar que será partilhado por uma multiplicidade de objetos que serão submetidos ao enviezamento da sua escritura ao longo da sua obra.
Mas é em Mitologias (1956) que ocorre a primeira revolução crítica barthesiana. Durante dois anos ele envia artigos mensais para Les Lettres Nouvelles: é aqui que ele inventa a crítica da cultura de massa e passa a denunciar, mensalmente, através de uma refinada (e deliciosa) desconstrução dos sentidos, os mitos consumidos invariavelmente pela sociedade francesa daquele momento.
Mitologias reúne estes artigos e ganha uma segunda parte O Mito hoje, que introduz o seu programa semiológico - onde há um Barthes enamorado pela linguística de Saussure. Segundo François (123), Barthes alimenta-se do conceito de sincronismo e assim traça uma primeira ruptura com a idéia de temporalidade, ainda presente em O grau zero da escrita. Incorpora, daí por diante, o conceito de espacialidade, viés que caracterizará boa parte de sua obra vindoura.
É claro que a liberdade com que Barthes maneja as idéias linguísticas despertaram certa desconfiança da classe. Mas é esta coreografia inusitada que fomenta sua produção desse momento (Elementos de Semiologia, Crítica e Verdade, Sistema de Moda), tornando-o uma figura mítica do estruturalismo. 
Em Elementos de Semiologia Barthes avança com vigor para a construção de uma obra científica. Tece uma organização metodológica das suas teorias e propõe a semiologia como uma nova ciência: ao contrário do que se propunha o pensamento corrente - a semiologia como desenvolvimento da linguística -, Barthes investe na semiologia como subconjunto da outra, nomeando-a como a "ciência por excelência da sociedade, pelo que ela significa.” (Fraçois:272)

Há aqui um percurso cientificista apoiado em diversas manifestações de seu tempo - que formam o coro estruturalista. Para além da linguística: "A sociologia permanece avessa a noção de imanência, mas encontra eco na história praticada pelos Annales (Fernand Braudel), com sua distinção evento/estrutura, na antropologia de Levi-Strauss, que retomou a postulação saussuriana do caráter inconsciente da língua, e na psicanálise de Lacan, para quem o próprio desejo é articulado como um sistema de significação.” (François: 276)
A semiologia fundamenta-se em torno de um fenômeno de imanência: trata-se de investigar asignificação de seus objetos. Isso pressupõe um corte na idéia de diacronia em detrimento da sincronia, ou seja: ela é necessariamente a-histórica, focada na forma e não na singularidade dos assuntos.
Interessa menos o conteúdo do objeto que suas emanações de sentido: que são, a propósito, sentidos a serem elaborados e não descobertos em um núcleo particular pré-existente. Este é o paradigma do estruturalismo, que para Barthes representa "uma verdadeira ruptura na evolução da consciência: o estruturalismo pode ser definido historicamente como a passagem da consciência simbólica para a consciência paradigmática.” (François:278)
Assim, o recorte da crítica é deslocado pela própria conjuntura histórica: trata-se de avançar contra os valores ocidentais e sua ideologia subjacente. Todo o investimento intelectual desse momento atravessa este objetivo, usando da ferramenta sofisticada - e rigorosa - que é a linguagem para desconstruir os produtos ideológicos. É aqui que a semiologia diz a que veio, instaurando-se como o lugar essencial deste exercício.
Mas é com  Sur Racine que Roland Barthes vira o protagonista de um movimento que foi  convocado a batalha contra a Sorbonne e seus paradigmas - a Nouvelle Critique. Tendo invadido um patrimônio poético do classicismo (Racine) para tecer sua perspectiva crítica, ele inaugura - sob a insígnia de impostura - uma postura interpretativa poderosa em detrimento à historicista.
"Como definí-la? Associam-se aí, principalmente, o ensaísmo requintado de Maurice Blanchot em torno da interioridade e do espaço próprio da literatura, definida como “infinita conversa”; requintes de decifração psicanalítica, que, aliás, invertem o princípio da analogia autor/obra, já que a psicanálise imagina relações de denegação entre essas duas ordens; e uma investigação discursiva que se faz à luz das lingüísticas gerais fundadas por Saussure e dos aportes da antropologia de Lévi-Strauss que, por sua vez, se baseia não só em Saussure mas no russo Vladimir Propp (o estudioso do conto maravilhoso) para ver o mito como uma narrativa, ou uma palavra." (Motta,2005:341)

É o postulado da cintilação do sentido que insufla-se contra a velha crítica acadêmica, com a publicação, em 1966, de Crítica e Verdade. E é aqui Barthes propõe a crítica como escritura,ou seja, como um exercício sobre a linguagem. A escritura torna-se fonte de verdade e a linguagem, o verdadeiro sujeito.  O discurso acadêmico fica, pois, implodido nas ousadias barthesianas.
Não é de surpreender que o mesmo Barthes subverte a incondicionalidade de suas influências, emergindo do lugar da diferençaa partir da tensão que sustenta os desfechos de sua escritura: semiólogo versus escritor. 
Com a publicação de S/Z, tem início uma fase emblemática do autor: a prática da escritura e a implosão de suas ambições metodológicas.  Nesta fase ele interessa-se, influenciado pelo grupo Tel Quel (Kristeva, Derrida, etc), pelas emanações polissêmicas do texto, pelas suas diferenças e dissoluções. Assim, qualquer interpretação só seria possível pela multiplicidade dos sentidos, numa fuga da totalidade do texto. Este é o momento em que ele encontra o prazer do texto, implodindo a fixidez do discurso, na festa sígnica que passa a gerir sua crítica-escritura.
A obra crítica de Barthes é, pois, impregnada de uma característica fundamental: a mutabilidade. Embora tenha sido fiel ao que considerava essencial das fases que criava e ultrapassava, é impossível imobilizá-lo em nomenclaturas porque ele foi, antes de mais nada, um punctum crítico, um subversivo da linguagem - esta sim, arma central com a qual ele evita que o discurso coalhe nas ilusões da naturalidade e nas tensões do autoritarismo."(Perrone- Moysés in Aula:61)



    Fonte: http://www.alesialesi.com.br/AlesiAlesi/artigos/Entradas/2010/2/24_Roland_Barthes_e_o_punctum_critico___uma_arqueologia_da_critica_barthesiana.html

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