Homem/animal - arte como anti-humanismo
- por Catarina Pombo Nabais in Omar Kohan, Walter e Müller Xavier, Ingrid (orgs.), ABeCedário de criação filosófica, Belo Horizonte, ed. Autêntica, 2009, pp. 133-8.
O Homem é um animal racional. Desde Aristóteles que esta definição, incessantemente retomada, nos persegue e nos enaltece. Ela constitui uma tentativa quase obsessiva de distanciar o homem face ao animal, de o expulsar do mundo opaco e mudo da animalidade. O homem seria detentor de uma característica única, a racionalidade, que irremediavelmente o elevava acima de todos os outros animais. Ao homem ficava reservada a possibilidade de fazer Filosofia, Ciência, Arte. Curiosamente, também foi Aristóteles quem primeiro definiu a Arte como mimésis da Natureza. A arte é uma actividade exclusivamente humana mas em profunda relação com o mundo natural. A obra de arte imita a Natureza porque, em primeiro lugar, a desdobra nos seus duplos, a replica, e porque, em segundo lugar, é pensada a partir do estatuto de um ser vivo, como totalidade orgânica, como a articulação funcional das partes de um todo à semelhança de um organismo. Isto significa que, para Aristóteles, a arte é uma técnica do orgânico artificial, daquilo que, criado pela habilidade humana (techne), tem todas as características do ser vivo – singularidade, totalidade, autonomia, finalidade interna.
No século XX, Deleuze foi o filósofo que mais profundamente rompeu com a visão aristotélica do homem. Em vez de pensar a essência do homem como o único animal racional, Deleuze explora os lugares de indeterminação e de indiscernabilidade entre o homem e o animal. Uma vez mais, é a arte que serve de operador. Ela é o exemplo por excelência, o lugar que melhor deixa perceber essa indistinção. De facto, para Deleuze a arte é expressão de um mundo que existe por si, de um espaço no qual o homem e o animal se tornam indiscerníveis. Deleuze faz assim da arte o denominador máximo de um anti-humanismo cerrado contra a tradição aristotélica.
Como Deleuze afirma: «A arte não é privilégio do homem. Messiaen tem razão em dizer que muitos pássaros são, não só virtuosos, mas artistas, e são-no em primeiro lugar pelos seus cantos territoriais»[1]. Segundo Deleuze, a arte começa com impressões territoriais que não reenviam a nenhum sujeito humano que as capte. Ela deve por isso ser pensada a partir das marcas constituintes de domínios estabelecidos por animais nas suas demarcações de territórios, de moradas, de marcas expressivas, de assinaturas. «As qualidades expressivas – escreve Deleuze em Mil Planaltos – as cores dos corais, são auto-objectivas, ou seja, elas encontram uma objectividade no território que elas traçam»[2]. É neste sentido que Deleuze insiste na tese segundo a qual o gesto primordial da arte é recortar, talhar, delimitar um território, para nele fazer surgir as sensações. «A arte começa com o animal, pelo menos com o animal que talha um território e faz uma casa»[3]. Demarcar um território é o primeiro momento da criação artística. «Eis tudo o que é necessário para fazer arte: uma casa, posturas, cores e cantos»[4]. Em limite, a arte é o acontecimento primordial das próprias formas da Natureza, o movimento auto-expressivo do sensível, uma epifania de formas de vida.
Segundo Deleuze, a arte renvia a uma teoria dos estratos e da estratificação do mundo, a uma tópica dos códigos, dos meios, dos ritmos a partir dos quais a expressão emerge. É portanto uma Filosofia da Natureza que este hiperrealismo, não do homem, mas da Natureza, convoca. Conceitos que pertencem à geologia, à biologia, à psico-química – como coagulação, sedimentação, ou conjuntos moleculares – misturam-se com categorias semiológicas para descrever o fenómeno da obra de arte. A criação artística, atraversada por forças não-humanas, projecta-se no universo, no cosmos, na vida inorgânica. O anti-humanismo de Deleuze apresenta-se pois como um programa cosmológico, um estudo das forças que trabalham no artista, seja ele homem, animal ou planta.
Para melhor perceber a relação do artista com as forças inhumanas, Deleuze propõe o conceito de devir. Devir é a experiência da absoluta alteridade, do absoluto desnudamento de si-mesmo, de todos os traços que caracterizam alguém como um indivíduo particular e estratificado. O artista, enquanto aquele que entra em processo de devir, é um ser de absorção, de captação, de assimilação, em suma, é uma esponja do mundo. Nessa captação do mundo, o artista descobre uma multidão que o constitui, pré-individualidades e singularidades anteriores a toda a forma constituída como «indivíduo» ou «sujeito». No estado a-subjectivo, a existência acontece entre a singularidade e a multidão: enquanto único e singular, o artista em devir existe como uma multidão, e essa multidão faz dele um elemento da Natureza.
Devir é então tornar-se Natureza, é popular-se com a Natureza, é tornar o seu corpo um fragmento do cosmos universal: animal, flor ou rio. O devir, segundo Deleuze, é um fenómeno que pertence ao mundo dos afectos e dos perceptos puros, onde uma vida se manifesta como vida imanente e liberta das suas amarras subjectivas, uma vida independente das vivências pessoais. Devir é romper as coordonadas subjectivas, é desenraizar as referências humanas. O mundo do devir está para lá de toda a esfera pessoal e subjectiva: lembranças, imaginações, viagens, sonhos, opiniões, estados perceptivos e passagens afectivas das vivências. Como Deleuze explica : «o percepto é a paisagem antes do homem, na ausência do homem (…). Os afectos são precisamente esses devires não humanos do homem, como os perceptos (incluindo a cidade) são as paisagens não humanas da natureza»[5]. O devir é então esse estado não humano do homem, essa paisagem não humana da Natureza, onde os afectos e os perceptos existem por si, em si, como devires, na ausência do homem.
O artista é aquele que entra em devir, isto é, que encontra e se junta ao mundo, que se mistura com a Natureza, que entra numa zona de indiscernabilidade com o universo. Van Gogh entra no devir-girassol, Kafka no devir-animal, Melville no devir-baleia de Moby Dick, Messiaen no devir-ritmo e melodia. Essa zona de indiscernabilidade, esse ponto de indistinção entre o homem e o animal ou o mundo inteiro, isto é, o devir, dá-se no afecto. Por isso, como Deleuze escreve: «O artista é o mostrador de afectos, o inventor de afectos, o criador de afectos, em relação com os perceptos ou as visões que ele nos dá. E não é só na sua obra que ele os cria. Ele também nos dá afectos e faz-nos devir com eles (…). A flor vê (…). A arte é a linguagem das sensações, que o artista passa pelas palavras, pelas cores, pelos sons e pelas pedras»[6].
O afecto, explica Deleuze, «é uma zona de indeterminação, de indiscernabilidade, como se as coisas, os animais, e as pessoas (Achab e Moby Dick Pentesileia e a cadela) tivessem atingido, em cada caso, esse ponto que, apesar de infinito, precede imediatamente a sua diferenciação natural»[7]. O afecto é o estado de uma vida que precede a diferenciação natural entre os seres formados, o estado onde toda a forma se dissolve. Ele pertence a um estado pré-individual, onde o homem não se distingue do animal ou do vegetal, onde todos os seres são a-subjectivos. O afecto é o grau zero do mundo, sem ser por isso um retorno ao estado primitivo da vida. É antes a sua recriação, o recomeço do mundo. Nas palavras de Deleuze: «Não se trata senão de nós, aqui e agora; mas aquilo que em nós é animal, vegetal, mineral ou humano já não se distingue»[8].
A radicalização do programa anti-humanista é ainda mais forte quando Deleuze afirma que o pensamento – aquilo que, como vimos, constituía para Aristoteles o que há de mais específico no homem – tem a forma de um rizoma. Para o modelo clássico, o pensamento é como uma árvore, organizado segundo a lógica dicotómica da oposição, e constitui-se a partir da ideia de verticalidade e totalidade segundo a qual os pontos ramificam-se e unem-se a outros que são da mesma dimensão. A árvore define um centro, hierarquiza. Mas, para Deleuze, o pensamento tem um funcionamento diferente. Pela transbordância, pela intersecção, pela simbiose, ele escapa constantemente a uma organização segundo a imagem-árvore, isto é, ele ultrapassa toda a dualidade. Num rizoma, um ponto qualquer pode ser ligado a todos os outros. À dicotomia, à oposição, à ordem arborescente, o rizoma opõe cadeias de conexão múltiplas e heterogéneas, sem eixo ou estrutura central. E, porque que ele é descentrado, o rizoma torna possível o cruzamento de diversas dimensões. Ao contrário de uma árvore, um rizoma não tem rupturas marcadas e significantes, que separam segmentos ou estruturas. Num rizoma, o que está bloqueado, partido, interrompido, retoma as suas conexões através de outras das suas linhas, nomeadamente as linhas de fuga ou de desterritorialização, sem cortes abruptos, definitivos e significantes. No rizoma não existem senão linhas, as quais fazem proliferar o pensamento na sua multiplicidade. Em lugar da dupla sujeito/objecto, o que existe são intensidades e singularidades, existências a-subjectivas que, funcionando como rizomas, se encontram, se cruzam por meros acasos e formam uma multiplicidade heterogénea.
Definir o pensamento como rizoma significa portanto descentrar o pensamento das faculdades que lhe estão desde sempre associadas: razão, imaginação, entendimento, sensibilidade. No lugar das faculdades, Deleuze propõe o conceito de cérebro, de micro-cérebro, como existência de um pensamento presente em todas as formas da Natureza, mesmo ao nível das plantas e dos rochedos. O pensamento deixa portanto de ser exclusivo do homem. O pensamento encontra-se nas existências mais elementares, nas mais embrionárias, enquanto pura faculdade de sentir. Este vitalismo essencial a toda e qualquer forma de existência, este pensamento tanto do homem como das plantas e dos rochedos, Deleuze condensa-o numa expressão: a vida inorgânica das coisas. «Nem todo o organismo é cerebrado, e nem toda a vida é orgânica, mas há por todo o lado forças que constituem micro-cérebros, ou uma vida inorgânica das coisas»[9]. No momento de pensar o cérebro, Deleuze faz a sua afirmação mais radical do seu programa anti-humanista: «É o cérebro que pensa e não o homem, o homem é só uma cristalização cerebral (…). A filosofia, a arte, a ciência não são objectos mentais de um cérebro objectivado, mas os três aspectos segundo os quais o cérebro se torna sujeito, Pensamento-cérebro»[10]. Nesta perspectiva, a arte é experimentação cerebral, isto é criação artística de uma vida inorgânica imanente ao homem, ao animal, às plantas e aos minerais. Por outras palavras, a arte é, para Deleuze, um exercício inorgânico do micro-cérebro como uma nova forma de pensamento.
***
Na imanência do cérebro em todas as formas de existência, desde os organismos vivos até ao inorgânicos, podemos pois perceber que a arte como dispositivo de delimitação de território – cores dos peixes, posturas e cantos dos pássaros, tropismos botânicos – e como processo de devir-mundo, não é senão a expressão de um Pensamento-cérebro. Trata-se pois de uma nova experiência do pensamento, já não como racionalidade exclusiva do Homem, mas como conexão rizomática com o mundo.
Deleuze transformou por completo a nossa compreensão do Homem, forçando-nos a entrar na escola da Etologia, da Geodesia, da Topologia, da Neurologia, qualquer coisa como uma Biologia do inorgânico. Como ele escreve: «não há mais distinção homem-natureza: a essência humana da natureza e a essência natural do homem identificam-se na natureza (…). Não o homem enquanto rei da criação, mas antes aquele que é tocado pela vida profunda de todas as formas ou de todos os géneros, que está carregada de estrelas e mesmo de animais (...). Homem e natureza não são como dois termos (...), mas uma única e mesma realidade»[11]. Mais de dois mil anos depois de Aristóteles, a fronteira entre o homem e o animal é assim dissolvida. Homo Natura em vez de Homo Sapiens.
[1] Mille Plateaux, Paris : Minuit, 1980, p. 389 (nossa tradução).
[2] MP, p. 390.
[3] Qu’est-ce que la Philosophie, Paris : Minuit, 1991, p. 174 (nossa tradução).
[4] QPh, p. 175.
[5] QPh, pp. 159-160.
[6] QPh, p. 166.
[7] QPh, p. 164.
[8] QPh, pp. 164-5.
[9] QPh, p. 200.
[10] QPh, pp. 197-8.
[11] L’Anti-Oedipe, Paris : Minuit, 1972, p. 10 (nossa tradução).
No século XX, Deleuze foi o filósofo que mais profundamente rompeu com a visão aristotélica do homem. Em vez de pensar a essência do homem como o único animal racional, Deleuze explora os lugares de indeterminação e de indiscernabilidade entre o homem e o animal. Uma vez mais, é a arte que serve de operador. Ela é o exemplo por excelência, o lugar que melhor deixa perceber essa indistinção. De facto, para Deleuze a arte é expressão de um mundo que existe por si, de um espaço no qual o homem e o animal se tornam indiscerníveis. Deleuze faz assim da arte o denominador máximo de um anti-humanismo cerrado contra a tradição aristotélica.
Como Deleuze afirma: «A arte não é privilégio do homem. Messiaen tem razão em dizer que muitos pássaros são, não só virtuosos, mas artistas, e são-no em primeiro lugar pelos seus cantos territoriais»[1]. Segundo Deleuze, a arte começa com impressões territoriais que não reenviam a nenhum sujeito humano que as capte. Ela deve por isso ser pensada a partir das marcas constituintes de domínios estabelecidos por animais nas suas demarcações de territórios, de moradas, de marcas expressivas, de assinaturas. «As qualidades expressivas – escreve Deleuze em Mil Planaltos – as cores dos corais, são auto-objectivas, ou seja, elas encontram uma objectividade no território que elas traçam»[2]. É neste sentido que Deleuze insiste na tese segundo a qual o gesto primordial da arte é recortar, talhar, delimitar um território, para nele fazer surgir as sensações. «A arte começa com o animal, pelo menos com o animal que talha um território e faz uma casa»[3]. Demarcar um território é o primeiro momento da criação artística. «Eis tudo o que é necessário para fazer arte: uma casa, posturas, cores e cantos»[4]. Em limite, a arte é o acontecimento primordial das próprias formas da Natureza, o movimento auto-expressivo do sensível, uma epifania de formas de vida.
Segundo Deleuze, a arte renvia a uma teoria dos estratos e da estratificação do mundo, a uma tópica dos códigos, dos meios, dos ritmos a partir dos quais a expressão emerge. É portanto uma Filosofia da Natureza que este hiperrealismo, não do homem, mas da Natureza, convoca. Conceitos que pertencem à geologia, à biologia, à psico-química – como coagulação, sedimentação, ou conjuntos moleculares – misturam-se com categorias semiológicas para descrever o fenómeno da obra de arte. A criação artística, atraversada por forças não-humanas, projecta-se no universo, no cosmos, na vida inorgânica. O anti-humanismo de Deleuze apresenta-se pois como um programa cosmológico, um estudo das forças que trabalham no artista, seja ele homem, animal ou planta.
Para melhor perceber a relação do artista com as forças inhumanas, Deleuze propõe o conceito de devir. Devir é a experiência da absoluta alteridade, do absoluto desnudamento de si-mesmo, de todos os traços que caracterizam alguém como um indivíduo particular e estratificado. O artista, enquanto aquele que entra em processo de devir, é um ser de absorção, de captação, de assimilação, em suma, é uma esponja do mundo. Nessa captação do mundo, o artista descobre uma multidão que o constitui, pré-individualidades e singularidades anteriores a toda a forma constituída como «indivíduo» ou «sujeito». No estado a-subjectivo, a existência acontece entre a singularidade e a multidão: enquanto único e singular, o artista em devir existe como uma multidão, e essa multidão faz dele um elemento da Natureza.
Devir é então tornar-se Natureza, é popular-se com a Natureza, é tornar o seu corpo um fragmento do cosmos universal: animal, flor ou rio. O devir, segundo Deleuze, é um fenómeno que pertence ao mundo dos afectos e dos perceptos puros, onde uma vida se manifesta como vida imanente e liberta das suas amarras subjectivas, uma vida independente das vivências pessoais. Devir é romper as coordonadas subjectivas, é desenraizar as referências humanas. O mundo do devir está para lá de toda a esfera pessoal e subjectiva: lembranças, imaginações, viagens, sonhos, opiniões, estados perceptivos e passagens afectivas das vivências. Como Deleuze explica : «o percepto é a paisagem antes do homem, na ausência do homem (…). Os afectos são precisamente esses devires não humanos do homem, como os perceptos (incluindo a cidade) são as paisagens não humanas da natureza»[5]. O devir é então esse estado não humano do homem, essa paisagem não humana da Natureza, onde os afectos e os perceptos existem por si, em si, como devires, na ausência do homem.
O artista é aquele que entra em devir, isto é, que encontra e se junta ao mundo, que se mistura com a Natureza, que entra numa zona de indiscernabilidade com o universo. Van Gogh entra no devir-girassol, Kafka no devir-animal, Melville no devir-baleia de Moby Dick, Messiaen no devir-ritmo e melodia. Essa zona de indiscernabilidade, esse ponto de indistinção entre o homem e o animal ou o mundo inteiro, isto é, o devir, dá-se no afecto. Por isso, como Deleuze escreve: «O artista é o mostrador de afectos, o inventor de afectos, o criador de afectos, em relação com os perceptos ou as visões que ele nos dá. E não é só na sua obra que ele os cria. Ele também nos dá afectos e faz-nos devir com eles (…). A flor vê (…). A arte é a linguagem das sensações, que o artista passa pelas palavras, pelas cores, pelos sons e pelas pedras»[6].
O afecto, explica Deleuze, «é uma zona de indeterminação, de indiscernabilidade, como se as coisas, os animais, e as pessoas (Achab e Moby Dick Pentesileia e a cadela) tivessem atingido, em cada caso, esse ponto que, apesar de infinito, precede imediatamente a sua diferenciação natural»[7]. O afecto é o estado de uma vida que precede a diferenciação natural entre os seres formados, o estado onde toda a forma se dissolve. Ele pertence a um estado pré-individual, onde o homem não se distingue do animal ou do vegetal, onde todos os seres são a-subjectivos. O afecto é o grau zero do mundo, sem ser por isso um retorno ao estado primitivo da vida. É antes a sua recriação, o recomeço do mundo. Nas palavras de Deleuze: «Não se trata senão de nós, aqui e agora; mas aquilo que em nós é animal, vegetal, mineral ou humano já não se distingue»[8].
A radicalização do programa anti-humanista é ainda mais forte quando Deleuze afirma que o pensamento – aquilo que, como vimos, constituía para Aristoteles o que há de mais específico no homem – tem a forma de um rizoma. Para o modelo clássico, o pensamento é como uma árvore, organizado segundo a lógica dicotómica da oposição, e constitui-se a partir da ideia de verticalidade e totalidade segundo a qual os pontos ramificam-se e unem-se a outros que são da mesma dimensão. A árvore define um centro, hierarquiza. Mas, para Deleuze, o pensamento tem um funcionamento diferente. Pela transbordância, pela intersecção, pela simbiose, ele escapa constantemente a uma organização segundo a imagem-árvore, isto é, ele ultrapassa toda a dualidade. Num rizoma, um ponto qualquer pode ser ligado a todos os outros. À dicotomia, à oposição, à ordem arborescente, o rizoma opõe cadeias de conexão múltiplas e heterogéneas, sem eixo ou estrutura central. E, porque que ele é descentrado, o rizoma torna possível o cruzamento de diversas dimensões. Ao contrário de uma árvore, um rizoma não tem rupturas marcadas e significantes, que separam segmentos ou estruturas. Num rizoma, o que está bloqueado, partido, interrompido, retoma as suas conexões através de outras das suas linhas, nomeadamente as linhas de fuga ou de desterritorialização, sem cortes abruptos, definitivos e significantes. No rizoma não existem senão linhas, as quais fazem proliferar o pensamento na sua multiplicidade. Em lugar da dupla sujeito/objecto, o que existe são intensidades e singularidades, existências a-subjectivas que, funcionando como rizomas, se encontram, se cruzam por meros acasos e formam uma multiplicidade heterogénea.
Definir o pensamento como rizoma significa portanto descentrar o pensamento das faculdades que lhe estão desde sempre associadas: razão, imaginação, entendimento, sensibilidade. No lugar das faculdades, Deleuze propõe o conceito de cérebro, de micro-cérebro, como existência de um pensamento presente em todas as formas da Natureza, mesmo ao nível das plantas e dos rochedos. O pensamento deixa portanto de ser exclusivo do homem. O pensamento encontra-se nas existências mais elementares, nas mais embrionárias, enquanto pura faculdade de sentir. Este vitalismo essencial a toda e qualquer forma de existência, este pensamento tanto do homem como das plantas e dos rochedos, Deleuze condensa-o numa expressão: a vida inorgânica das coisas. «Nem todo o organismo é cerebrado, e nem toda a vida é orgânica, mas há por todo o lado forças que constituem micro-cérebros, ou uma vida inorgânica das coisas»[9]. No momento de pensar o cérebro, Deleuze faz a sua afirmação mais radical do seu programa anti-humanista: «É o cérebro que pensa e não o homem, o homem é só uma cristalização cerebral (…). A filosofia, a arte, a ciência não são objectos mentais de um cérebro objectivado, mas os três aspectos segundo os quais o cérebro se torna sujeito, Pensamento-cérebro»[10]. Nesta perspectiva, a arte é experimentação cerebral, isto é criação artística de uma vida inorgânica imanente ao homem, ao animal, às plantas e aos minerais. Por outras palavras, a arte é, para Deleuze, um exercício inorgânico do micro-cérebro como uma nova forma de pensamento.
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Na imanência do cérebro em todas as formas de existência, desde os organismos vivos até ao inorgânicos, podemos pois perceber que a arte como dispositivo de delimitação de território – cores dos peixes, posturas e cantos dos pássaros, tropismos botânicos – e como processo de devir-mundo, não é senão a expressão de um Pensamento-cérebro. Trata-se pois de uma nova experiência do pensamento, já não como racionalidade exclusiva do Homem, mas como conexão rizomática com o mundo.
Deleuze transformou por completo a nossa compreensão do Homem, forçando-nos a entrar na escola da Etologia, da Geodesia, da Topologia, da Neurologia, qualquer coisa como uma Biologia do inorgânico. Como ele escreve: «não há mais distinção homem-natureza: a essência humana da natureza e a essência natural do homem identificam-se na natureza (…). Não o homem enquanto rei da criação, mas antes aquele que é tocado pela vida profunda de todas as formas ou de todos os géneros, que está carregada de estrelas e mesmo de animais (...). Homem e natureza não são como dois termos (...), mas uma única e mesma realidade»[11]. Mais de dois mil anos depois de Aristóteles, a fronteira entre o homem e o animal é assim dissolvida. Homo Natura em vez de Homo Sapiens.
[1] Mille Plateaux, Paris : Minuit, 1980, p. 389 (nossa tradução).
[2] MP, p. 390.
[3] Qu’est-ce que la Philosophie, Paris : Minuit, 1991, p. 174 (nossa tradução).
[4] QPh, p. 175.
[5] QPh, pp. 159-160.
[6] QPh, p. 166.
[7] QPh, p. 164.
[8] QPh, pp. 164-5.
[9] QPh, p. 200.
[10] QPh, pp. 197-8.
[11] L’Anti-Oedipe, Paris : Minuit, 1972, p. 10 (nossa tradução).

Portugal, um país largamente marítimo, recebia sempre povos de todos os lugares do mundo. Seus portos eram rota de comércio e de migrações. O contato com estrangeiros estimulava, no povo português, tendências cosmopolitas, imperialistas e comerciais. Na Península Ibérica as raças se misturavam havia milênios. O encontro das culturas árabes e romana impregnava a moral, a arte, a economia e a vida do português. Os árabes - excelentes técnicos navais - e os judeus - financistas e com altos cargos de administração, no conselho real -, emprestavam conhecimento e dinheiro para o empreendimento das navegações e dos descobrimentos. A burguesia comercial ganhava mais poder que a aristocracia territorial portuguesa e buscava no além-mar terras e riquezas nunca exploradas.
Foi aqui que chegou...dia 02 de março de 1535...um português chamado Duarte Coelho Pereira, viu essa bela vista e deu uma exclamação:Oh! linda situação para se construir uma vila. Por isso que a cidade se chama Olinda. Antigamente chamava Marino Caetês, habitada pelos índios. Em Pernambuco e no Recôncavo baiano, a colonização se desenvolvia à sombra das grandes plantações de cana-de-açúcar e das casas-grandes de taipa ou de pedra e cal, longe das cabanas de aventureiros e do extrativismo predatório.
A Igreja desenvolvia planos ambiciosos de evangelização da América Latina, toda ocupada por países de tradição católica. Nessa quase cruzada no Novo Mundo, os padres jesuítas desempenhavam um papel importante na tentativa de implantar uma sociedade estruturada com base na fé católica. Para catequizar os índios, os jesuítas decidiram vesti-los e tirá-los de seu hábitat. Já o senhor de engenho tentava escravizá-los. Nos dois casos, o resultado era o extermínio e a fuga dos primitivos habitantes da terra para o interior.
"Eu sou índio da tribo pataxó. Eu aprendi com meus pais a fazer artesanato. A gente faz cocares..., a gente vive só disso, de artesanato, a não ser no inverno, quando a gente tem que pescar mucussu. Mucussu é peixe. A gente planta mandioca para fazer cuiúna, feijão e arroz. A gente fala em pataxó: jocana baixu significa mulher bonita e jocana baixa é mulher feia."




Na religião conviviam a cultura do senhor e a do negro. O catolicismo praticado aqui era uma religião doce, doméstica, de intimidade com os santos. Os padres se vangloriavam de conceder aos negros certas vantagens, como o direito de manifestar suas tradições nas festas do terreiro. Nasciam então as religiões afro-brasileiras: São Jorge é o orixá Ogum e Nossa Senhora é Iemanjá.
" Os brancos diziam que em nenhum país do mundo essa nefanda instituição foi tão doce como no Brasil. Agora não me passa pela cabeça - não deve passar pela cabeça de ninguém - que essa nefanda instituição, como os próprios brancos chamavam a escravidão, que ela pudesse ser doce em algum lugar. Ela só pode ser doce da perspectiva de quem estivesse na casa-grande e não na perspectiva de quem estivesse na senzala." 
