terça-feira, 11 de abril de 2017

A Violência como Herança










A Violência como Herança

Elizabeth Polity



I – INTRODUÇÃO
A palavra herança vem descrita no dicionário como legado, posse herdada por sucessão. O instituto da herança foi conhecido desde a mais remota antiguidade. Em algumas sociedades o pai não tem necessidade de testar. O filho é herdeiro necessário do culto doméstico, sendo obrigação irrecusável e devendo incumbir-se inclusive das dívidas e dos encargos.
Este último parágrafo interessa-nos em especial, pois aqui pretendo falar das heranças deixadas pelas famílias, não no sentido material, financeiro, mas legados de valor moral, de padrões de comportamento que se estendem sobre várias gerações, e que na maioria das vezes, não deixam escolha para os descendentes.
Aceitar a herança implica num paradoxo: sentimento de pertença e de conformidade. A construção do elo exige a emergência da originalidade, única forma de manter a continuidade. O ato de dar inicia-se no processo de reconhecer haver recebido. Isto vale tanto para bens matérias como para as transmissões de ordem psíquica.
A transmissão psíquica entre gerações, veicula o modelo de parentesco, distribui o lugar de cada um na família, ordena atrações e rejeições, encontra-se na origem dos mitos, dos ideais intervindo ainda na organização do superego individual. Parafraseando EIGER (1998), isto pode nos explicar porque as falhas na transmissão ligadas à violência da transmissão psíquica entre gerações, interferem no aspecto organizador da personalidade, no aparecimento da culpa e em modelos de afetividade negativa, que não são necessariamente conscientes.
Será que a violência faz parte intrínseca desta transmissão?
Ao aceitar a herança e manter a lealdade, instituindo-se como donatário, implica em dar sentido ao recebido, ou seja, percebê-la de forma coerente num sistema de significados conhecidos e transmissíveis. É apropriar-se da herança através de um código comum e dar-lhe cores da singularidade e da individualidade.
Do ponto de vista histórico, CHESNAIS (J.C., 1981), mostra que a família também é o lugar do paradoxo. A violência é aí muito mais forte que em qualquer outro lugar. No sistema familiar os comportamentos não são codificados de maneira definitiva. Isto eqüivale dizer que nesse sistema muitos atos de violência podem parecer educativos ou ainda ficam encobertos pelas fronteiras sociais que determinam como “privacidade da família” o que acontece no âmbito de seu lar. Outras situações ainda, que envolvem medo e vergonha ficam difíceis de se tornarem conhecidas por exporem suas vítimas ao descrédito e ao receio de serem punidas pelo próprio agressor.
Nesse perfil encaixa-se a violência do incesto. Pretendo refletir sobre como as violências, que são cometidas contra os filhos e que deixam marcas profundas em seu desenvolvimento, são elaboradas na vida atual e na constituição de suas famílias nucleares; como eles lidam com essa herança; e o que fazem para impedir que ela avance sobre seus descendentes.
Pretendo fazê-lo, com a ajuda de alguns estudiosos do assunto e com a minha experiência desenvolvida em atendimento clínico. Farei uso ainda do auxílio de um filme (Terras Prometidas), que ao abordar o assunto, levanta questões bastante pertinentes. Para efeito de estudo, será feito um recorte, onde trabalharei apenas com os casos de mulheres abusadas pelos pais, deixando de lado, propositalmente, tantos outros casos de abuso sexual na infância.
II – DESENVOLVIMENTO
Abusar de uma criança ou adolescente significa impor a quebra de uma relação de confiança.
“Sob o aspecto edípico, a criança abusada pelos pais realiza, na prática, o desejo e a fantasia proibidos: triunfa sobre a mãe – ou sobre o pai – sobre aquele que deveria ocupar o lugar do amante., ao lado daquele que faz o papel de abusador. Tal triunfo faz-se acompanhar de grandes confusões internas, inconscientes”. (ANTON, 1998,p.159)
Tomaremos como definição de incesto, o que foi proposto por MIERMONT (J., 1994): “Realização de relações sexuais entre pessoas consangüíneas (uma das quais é pelo menos pré-púbere), homo ou heterosexuais, de uma família nuclear. Quanto ao incesto que envolve pai – filho ou mãe – filha ele o denomina incesto transgeracional, distinguindo-o praticado entre irmãos”.
SCHERRER (P., in MIERMONT, 1994, p. 316) distingue:
incesto despótico (abuso do pai e de todas as filhas)
incesto neurótico (pai viúvo ou abandonado pela mulher, incapaz de arranjar outra companheira)
incesto amoroso (com consentimento relativo da filha)
O abuso do incesto é muito danoso à vítima por ser considerado como Síndrome do Segredo. Há um pacto de silêncio, um acordo tácito entre abusado e abusador para a não revelação do segredo. Além disso o abusador pode se comportar como um adito, usando a criança com a mesma necessidade de quem usa álcool ou outra droga, num círculo repetitivo onde prazer e desprazer se alternam.
Em uma família incestuosa surgem confusões de papéis, de gerações, ligados à existência de triângulos perversos, que demandam da criança ou adolescente que desempenhem ao mesmo tempo papéis antinômicos (amante e filho de um dos pais).
A triangulação é um processo que ocorre todas as famílias e em todos os grupos sociais., ao se formar parelhas que excluem um terceiro ou são contra este. Os triângulos são a base da teoria dos sistemas patológicos de Haley e do enfoque estrutural de Minuchin para a terapia familiar. (HOFFMAN, 1991, p.39) Entretanto, é com Bowen que podemos perceber outros aspectos desse processo. Segundo ele, um sistema emocional de duas pessoas formará, sob pressão, um sistema de três pessoas, ao buscar alívio para a tensão formada entre eles. A tensão pode ainda fixar-se dentro do triângulo original, sem ativar outros triângulos e arrastando mais pessoas.
Bowen associa a rigidez à patologia e indica que em todas as famílias se observam pautas triádicas, e que essas pautas serão mais rígidas quando a família enfrenta mudanças ou sofre tensões e serão mais flexíveis em tempos de calma.(IDEM)
O desejo de companhia, de estar com outras pessoas, de pertencer a um grupo pode-se dizer que é inerente ao ser humano. Companhia pode significar aconchego, ternura, afeto. Pertencer já demanda laços mais estreitos e supõe sentimentos de posse e responsabilidade entre os sujeitos.
Reconhecer e precisar do outro, entretanto, pode ser tarefa árdua, pois relacionar-se é ter o outro como referencial indispensável para a percepção de si mesmo. E isso pode gerar situações difíceis. Situações de conflito, de decepção, de dor, quando a busca pelo afeto não é satisfeita ou quando a relação abre feridas tão profundas que relacionar-se passa a ser sinônimo de sofrimento.
Quando atendemos famílias escutamos histórias que nos revelam, desde há muitas gerações, as mais cruas formas de violência. Dentre elas o abuso sexual configura-se como uma prática que traz em seu bojo, não só a raiva, pelo desrespeito, como a vergonha e o medo de não ser acreditado, levando por isso muito tempo até que seja denunciado.
III- DESCRIÇÃO DE UM ATENDIMENTO
Certos legados, certos mandatos, uma maneira específica de lidar com algumas situações são passadas de uma geração à outra, muitas vezes na tentativa de encontrar soluções para dilemas que ninguém fala, e/ou que viram segredo no grupo familiar.
Neste contexto, podemos observar na clínica, que existe uma preocupação quanto ao legado deixado pelo incesto. As mulheres atendidas, na sua maioria juntamente com os maridos, traziam não só uma preocupação com relação a si próprias, mas o que fazer com relação aos filhos. Como trabalhar o segredo, como livrar-se desta dor, que afetava direta e indiretamente toda a família.
Descreverei a seguir um caso que me parece elucidativo:
Clara é uma mulher jovem e bastante atraente. Profissional liberal, passa um ar confiante e de muita segurança. Ricardo, seu marido, também é jovem, mas tem a aparência deprimida e parece ser muito tímido. Na primeira consulta afirmam que estão em busca de atendimento pela dificuldade em relacionar-se nos últimos tempos de casamento. Afirmam que não conseguem mais conversar, sair, cuidar dos filhos. Estão em constante conflito. Contam que moram na casa dos pais de Clara, pois em função de dívidas contraídas, foram obrigados a vender o apartamento onde moravam.
O casal discute bastante, por assuntos como quem deve fazer o supermercado, quem pega as crianças na escola e coisas do gênero.
Quando começamos o trabalho terapêutico, algumas situações vão sendo reveladas: R. está sem emprego no momento, o casal encontra dificuldade para manter relações sexuais há quase três anos, devido à impotência de R. C. se diz muito irritada e sem paciência com o marido. Queixa-se de ter que ser o “homem da casa”.
Conversando sobre a época que se conheceram, C. revela que R. era um homem muito interessante, professor universitário, vivia rodeado de mulheres, era alegre e muito expansivo.
Naquela época, C. via-se como muito tímida, precisando de cuidados. R. ofereceu-lhe segurança e o apoio emocional que precisava.
Segundo Anton: “a escolha de um cônjuge, por parte das mulheres abusadas pelos pais tende a recair em alguém cuja conduta seja oposta a eles; homens recatados, inibidos, voltados para uma vida intelectual e profissional. A autora prossegue: “quando, eventualmente, o parceiro eleito tem atitudes que lembram, conscientemente, à pessoa do pai, ao expressar diretamente seus desejos sexuais, […]ele tende a rechaça-lo, levando a um afastamento, que efetivado, permite a ela uma relativa inversão de papéis: queixa-se de seu desinteresse e passa a solicitá-lo até o ponto em que ele, cansado, distancia-se definitivamente.(ANTON,1998, p.163)
Muitas sessões transcorreram até que C. revelasse o abuso sexual que sofrera, por parte de seu pai, de forma intermitente, entre os 8 e os 12 anos de idade. Em sessões anteriores C. descrevera o pai (médico, 54 anos) como violento, irresponsável, não podendo ser contrariado, apresentando comportamentos infantilizados e ainda abuso de álcool em algumas situações de convívio familiar. Sua mãe (artista plástica, 52 anos) é descrita como apresentando um quadro de depressão leve, submissa e tolerante às criancices do marido, garantindo que nenhum membro da família o contrarie ou aborreça.
C. possui duas irmãs mais jovens, que segundo ela, também passaram pelo mesmo problema, mas a falta de diálogo entre o sistema fraterno impede que elas troquem confidências ou falem no assunto.
Muitas famílias são governadas por uma poderosa política de coalizões secretas através da gerações. O freio mais comum à violência que este comportamento gera é o acordo de “só um doente” (HOFFMAN, 1991, p.151), em que o grupo alcança uma unidade à custa de um membro sintomático. Mas ainda assim não se observa evolução no Ciclo Vital e mecanismos próprios de grupos mais organizados. Podemos ver esse Ciclo como uma repetição de vários estados de interação.
Existe um conflito entre a singularidade do desejo de cada um e a necessidade que o grupo social tem de controlar e organizar essas singularidades para que posamos viver em sociedade e em família. Entretanto, é muito comum encontrarmos um cônjuge, que mesmo tendo conhecimento do que se passa, prefere ignorar a entrar em conflito direto com o membro agressor, não conseguindo organizar esta singularidade e sendo conivente como uma situação que impossibilita a vida em família.
Percebe-se assim, que a violência como poder-se-ia supor, não começa da porta para fora. Ela, muitas vezes, começa na família, caracterizada pelo abuso sexual, físico ou psicológico, que gera e reproduz a violência social. Entre fatores desintegradores que geram a violência doméstica está o stress, o alcoolismo, uso de drogas, excesso de responsabilidade assumida por pais solteiros e sem condição econômica, paternidade e maternidade precoce, práticas educativas muito punitivas e abuso na própria infância.
A expressão através do sintoma deriva da percepção que o ator tem do tamanho da dívida e de sua impossibilidade de pagá-la. O significado não lhe pertence e não pode ser comunicado, este significado desarticulado evidencia-se em vivências que impedem a dialógica das relações consigo mesmo e com o outro expressando o fusional.
C. relata que precisa “se apaixonar” para poder trabalhar ou mesmo para ter amigos. Sonha com um amante perfeito, que o marido não consegue corresponder. Diz-se frustrada pela “vida sexual pobre” e com muita dificuldade que o casal enfrenta, pois R. fica impotente em “quase todas as vezes” que eles tentam manter relações.
Devaneios, fantasias, masturbação, bem como namoricos ou romances proibidos são preferidos porque permitem que se ignore e/ou negue a relação concreta, atual, quer porque funcionam como canal por onde se deslocam e as fantasias sexuais proibidas e permitem que elas tomem nova forma, quer porque são sentidas como estando sob controle pessoal.
C. conta que no começo do namoro R. não apresentava problemas de ereção. Depois que foram morar juntos, a dificuldade apareceu e ela mostrava-se compreensiva, na tentativa de ajudá-lo. Contudo, com o passar do tempo isto foi incomodando-a até que hoje, a vida sexual do casal é praticamente inexistente. C. afirma que o marido “não se entrega”, e R. diz estar deprimido e com pouca vontade de fazer sexo. Alega que os problemas de ordem financeira o abalam muito e ele não tem disposição para outra coisa. Afirma também que foram muitas as vezes em que ele procurou C. e ela não se mostrava interessada. Ficaram quase seis meses sem ter relações quando ela teve seu primeiro filho.
Alguns comportamentos são freqüentemente observados em adultos que passaram por esta experiência. Entre eles: desestruturação interna, levando a um funcionamento borderline e/ou a surtos psicóticos, alcoolismo, uso de drogas, instabilidade emocional, dificuldade e fracassos na vida profissional, dificuldade em estabelecer relacionamentos positivos, rompantes de natureza agressiva, delírios paranóides, condutas que indicam o alto grau de confusão interna e falta de recursos egóico para administrar a ansiedade decorrente da sua história de vida pessoal.
No caso de C., nota-se muita ansiedade, acompanhada de um certo desprezo pelo marido. Já R., parece perdido sem saber como conduzir a situação. Ele afirma que tem a sensação que ao mesmo tempo que C. insiste em fazer sexo, e o culpa por não conseguir, ela dificulta a relação com adjetivos que o desqualificam e em outras vezes, que ele tem ereção, ela o rejeita. Este comportamento paradoxal o deixa confuso e mais inseguro.
À medida que os atendimentos se sucedem, C. sente-se mais à vontade para falar de sua família de origem. Ao falar dos pais, ela lembra que por várias vezes tentou pedir ajuda à mãe, mas que esta se negava a aceitar o que ela contava, dizendo que as atitudes do pai estavam sendo mal interpretadas. C. refere-se ainda a situações onde o pai lhe dizia que se ela não gostava de suas carícias é porque não o amava suficientemente e ela então lembra que se sentia confusa e abandonada.
Em sua infância, a criança precisa sentir-se protegida e acolhida para que as tarefas evolutivas possam dar lugar a uma construção sólida de personalidade. Uma destas tarefas está na descoberta e no exercício da sexualidade, que inclui curiosidade e desejos e, que tem como alvo principal, seus pais. É assim que descobrirá as diferenças de sexo, bem como aprenderá a se conduzir e a se realizar em diversos níveis de funcionamento. Quando este desenvolvimento fica perturbado pela violência do incesto estabelece-se a culpa e a dificuldade de dar livre curso à escolha do parceiro. Mais ainda, quando forma-se um triângulo entre os adultos – pai e mãe – que se unem num conluio perverso, a criança sente-se culpada, com medo e se vê obrigada a carregar o peso de um segredo desagregador.
Percebo no casal, em especial em C., uma preocupação com os filhos. Eles possuem dois meninos com 6 e 8 anos de idade. Ela relata que o casal está encontrando dificuldade em estabelecer limites para as crianças como horários de dormir e estudar. Conta que seu filho mais velho fala com o avô como se fosse uma criança como ele, e muitas vezes, responde ao pai com falta de respeito, numa clara demonstração de não perceber a hierarquia existente entre as gerações. C. relata ainda, que esta criança vem apresentando enurese noturna, dificuldades de aprendizagem e episódios de agressão, nos quais muitas vezes perde totalmente o controle e se joga no chão aos prantos.
Ao descrever seqüências sintomáticas, deparamo-nos com os processos que determinam e mantém as relações familiares. Segundo alguns autores (Bateson, Ashby, Watzllawick), os mecanismos utilizados com a família podem ser denominados de mecanismo de retroalimentação bimodal compostos por dois tipos de ação corretiva: mudança de primeira ordem e mudança de segunda ordem. O conceito de retroalimentação, conduz no contexto da terapia familiar, ao reconhecimento de que os dados de entradas, fornecidos por cada um dos membros da família, induzem dados de saídas mais complexos e centrados no sistema familiar. As ações corretivas que implicam numa mudança de primeira ordem são aquelas onde se observa uma modificação qualitativa dos parâmetros do sistema, sem perturbação na organização do sistema. Na mudança de segunda ordem há uma modificação qualitativa que transforma o estado do sistema de maneira descontínua, produzindo-se uma mudança na mudança. É este segundo estágio que se busca no atendimento terapêutico, visando que o comportamento que gerou tanta dor em uma geração, possa ser compartilhado e compreendido, numa tentativa de mudar os rumos de uma história familiar, em benefício daqueles que dividem o momento atual, bem como em benefício das futuras gerações.
Em algumas sessões, trabalhamos com o casal as questões de hierarquia e fronteiras, que estruturam o sistema familiar. Ao poder repensar os lugares de cada um, tem-se a intenção de restabelecer a ordem, impedindo que situações desestruturantes, como as vividas por C., atinjam a família nuclear. A proposta visa também permitir que mudanças se operem no sistema, em benefício do que será transmitido às gerações futuras.
Interessa-nos especialmente a questão da mudança, quando se indaga o que é feito com a transmissão da violência? Segundo Freud, a mudança relativa à neurose concerne essencialmente ao estatuto das representações psíquicas, enquanto que conforme Bateson, que elaborou o conceito de mudança a partir dos contextos da aprendizagem, ela supõe um reenquadre epistemológico, uma nova maneira de definir a realidade. Dessa maneira faz-nos supor, que certos tipos de comportamento violento – como o incesto – exigem técnicas de contenção adequados (limites espaciais e especiais), cujos resultados se apreciam durante um tempo suficiente (limite temporal) que torne a mudança estruturalmente estável. (MIERMONT, 1994)
No presente caso, não nos foi possível conhecer com muitos detalhes como era a relação do pai de C., com seus próprios pais. Quando indagada sobre o assunto, ela disse desconhecer, uma vez que eles faleceram antes que ela nascesse. Disse entretanto, que soubera através de sua mãe, que a avó paterna sofria de depressão crônica e que o avô tinha problemas com alcoolismo. De acordo com seu pai, ele levava surras freqüentes por ser uma criança muito levada. Não fez menção a algum tipo de abuso sexual na infância, mas deixa claro que mantinha uma relação difícil com seus pais.
Considero interessante conhecer a história trigeracional da família e poder construir através das narrativas, o fio condutor que nos permite acompanhar o trajeto da violência familiar através das gerações. Poderemos assim, co-construir mudanças e novas possibilidades de inter-relação, que não necessariamente estejam ligadas a padrões de repetição.
IV – A ARTE E A VIDA
Um bom exemplo para refletir sobre a herança deixada pela violência é trazido no filme Terras Prometidas (USA, 1993).
O filme conta a história de uma família, composta por três mulheres (Rose, 37; Wendy, 36 e Lisa, 28), o pai, os maridos das mais velhas e dois filhos de Wendy.
As filhas mais velhas foram abusadas pelo pai, após a morte da mãe, quando ainda eram pequenas.
Após relatar a saga do grupo familiar e o modo de viver numa pequena comunidade dos Estados Unidos, o filme centra-se na maneira como este segredo é mantido entre as filhas e como cada uma lida, à sua maneira, com esta dor.
Num diálogo final entre as duas irmãs alguns pontos podem ser destacados como bastante relevantes, não só pela força emocional que carregam, mas como pela clara correspondência que se pode estabelecer com os casos atendidos em clínica, que reforçam o consenso de que se a vida imita a arte, a arte imita a vida!
W., depois de se separar do marido e tentar em vão estabelecer um outro relacionamento afetivo, encontra-se morrendo de câncer, numa cama de hospital. Ela diz para R.:
“ Não fique triste por mim. Vamos ficar com raiva até a morte…
Quero que tudo isso pare na nossa geração. Olhando para minha vida, vejo que eu não realizei nada. Nem ao menos consegui que o papai soubesse o que fez…
Tudo o que eu tenho é o que eu vi … e vi sem estar com medo e esquecer. E não perdoei o imperdoável! Esta é minha única e solitária realização, mas é alguma coisa, não é?”
Esta cena dramática mostra, com todas as tintas, a emoção da raiva, que penso ser uma tentativa de encobrir a enorme dor causada pelo abuso e pela violência. Emoção essa, que com freqüência aparece nos relatos de mulheres que passaram por esta mesma experiência. Poder-se-ia dizer que a raiva torna-as mais fortes, menos vulneráveis. Vemos, na seqüência, a preocupação com o legado, com a herança, que será transmitido às gerações futuras, e por fim, a redefinição do peso do segredo, que constantemente aparece envolvido em casos de abuso sexual.
R., agora separada, também não consegue estabelecer uma relação mais duradoura com os homem, ficando muito frustrada pelo fato de não conseguir ter seus próprios filhos. Com a morte da irmã, fica encarregada de cuidar dos sobrinhos e tentar dar um novo rumo para a vida da família. O pai, que havia falecido alguns meses antes, nunca se retratou com as filhas.
Na cena final, R. reflete sobre o ocorrido:
“Cada um que se foi me deixou algo e que sinto minha herança quando me lembro deles.
Mas para mim, fica um enigma que não consigo responder: como julgamos aqueles que nos magoam, quando eles não demonstram remorso ou entendimento?
Minha herança está comigo, preciso sentir como algo novo. Olhar para frente e ver que existe esperança!”
Este filme mostra, de maneira contundente, as graves conseqüências deixadas na família por esse tipo de violência. Sobretudo, nas situações onde o abusador parece não se dar conta do fato, demonstrando culpa ou arrependimento. A confusão mental e a dor experimentadas pelas vítimas é de tal ordem, que compromete as relações futuras e podem levar ao aparecimento de doenças físicas e/ou mentais.
V – A GUISA DE ALGUMAS CONCLUSÕES
É a proibição do saber e do compartilhar, o que se poderia denominar de segredo imposto, que juntamente com a violência explícita, provoca mais raiva e dor. As representações de objeto e de afetos que herdamos das gerações anteriores organizam nossa vida atual e nossa escolha de parceiro. Muitas vezes, as experiências iniciais são tão difíceis que o sujeito não querendo correr mais riscos se fecha e tenta assim se proteger definitivamente. Mas sabe-se que é justamente na relação homem – mulher, que se cria espaço e clima para que a experiência de intimidade se realize e se expresse ao máximo. Quando isto fica impedido por acontecimentos herdados, sob a forma de violência, os frutos que se produz são de raiva, dor e frustração.
Sem dúvida, as experiências vividas no convívio íntimo e precoce com os pais estarão exercendo poderosa influência, pois serão armazenadas e passada para a vida e para as gerações seguintes, impregnadas de imagens e sentimentos acerca de como se constituem as relações. As fronteiras e os limites, físicos e psicológicos, são assim determinados dentro do sistema familiar.
Os seres humanos possuem uma capacidade, que a primeira vista poderia ser interpretada como “inflexibilidade”, que aponta para a necessidade de possuir respostas automáticas para problemas habituais. Sem esta capacidade, uma pessoa estaria inventando continuamente soluções. Em situações de stress e crises, essas respostas automáticas não conseguem ser suficientes e necessitamos desenvolver um processo de “adaptabilidade” que chegue aonde nosso repertório habitual não alcança. São soluções que devem ser encontradas ou mesmo criadas para responder ao momento vivido. Isto também ocorre num sistema familiar, que se vê às voltas com situações que demandam adaptabilidade, seja para enfrentar a crise, seja para administrá-la de forma a não permitir que se tornem repetitivas.
Bateson afirma que num sistema que não se permite que as adaptações se processem a níveis profundos, seria lógico supor que o sujeito experimente enorme perturbação e dor. (MIERMONT, 1994)
Em muitas famílias, podemos perceber que as lealdades que embasam um segredo podem ser tão ricas que os esforços de qualquer outro membro em tentar encontrar soluções pode mostrar-se absolutamente infrutífera. Este mecanismo impede que o grupo encontre situações de adaptação para sobreviver a uma violência. Impede ainda, que haja uma reorganização para que o padrão de repetição – violência / segredo / desorganização – não seja delegado às gerações futuras. A observação clínica indica que quando um estado de coisas se leva a um extremo, de modo que nenhuma pessoa possa trocar suas lealdades sem afetar os outros, o grupo se encontra em dificuldade. É esta a situação vivida pelas famílias que tem a violência como herança.
Concluindo, podemos afirmar que o incesto é um fator desagregador da personalidade infantil em formação. Esse fator, se não puder ser nomeado, explicitado estenderá suas conseqüências para todo o sistema familiar e para as gerações futuras. Penso também, que para impedir que seus tentáculos atinjam várias gerações são necessários atendimentos que envolvam todo o contexto familiar, bem como um trabalho em rede desenvolvido junto à comunidade, escolas, hospitais, entre outros.
Lia Luft em seu livro “Reunião de família” nos contempla com uma frase belíssima, na qual ela diz: “Nunca se sabe do que um menino morto é capaz”. (p.122) Plagiando a autora eu diria: “Nunca se sabe do que uma criança abusada é capaz”.
VI – BIBLIOGRAFIA
ALVARENGA, L., Na Escuta do Laço Conjugal, UAPÊ, Rio de Janeiro, 1996
ANTON, I.C., A Escolha do cônjuge, Artes Médicas, Porto Alegre, 1998
CHESNAIS J.C., Histoire da la Violence, Payot, Paris, 1981
CASTILHO, T., org., Temas em Terapia Familiar, Plexus, São Paulo, 1994
EIGER, A., A Transmissão do Psiquismo entre as Gerações, Unimarco Editora, São Paulo,1998
HOFFMAN, L., Fundamentos da la Terapia Familiar, Fondo de Cultura Econímica, México,1991
LUFT, L., Reunião de Família, Siciliano, São Paulo, 1998
MIERMONT, J., Dicionário de Terapias Familiares, Artes Médicas, Porto Alegre,1994
PALAZZOLI, M. S., et all, Os Jogos Psicóticos na Família, Summus Editorial, São Paulo, 1998
Filme: Terras Proibidas, EUA, 1993

Fonte: www.winnicott.com.br/artigos/a-violencia-como-heranca/

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