sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O CORPO E O ACONTECIMENTO - Deleuze por CLAUDIO ULPIANO (1989)


O CORPO E O ACONTECIMENTO

Aula de 28/03/1989
CLAUDIO ULPIANO  - [ AULA TRANSCRITA ]





[Temas abordados nesta aula são aprofundados nos capítulos 5 (A Fuga do Aristotelismo); 7 (Cisão Causal) e 10 (Estoicos e Platônicos) do livro "Gilles Deleuze: A Grande Aventura do Pensamento", de Claudio Ulpiano. ]


FONTE: http://claudioulpiano.org.br/aulas-transcritas/aula-de-28031989-o-corpo-e-o-acontecimento/

[...]

(Atenção - Atenção:)
- Na primeira teoria, quantos atributos existem?
Dois. Olhem que interessante!
- Quais são os dois atributos?
Essencial e acidental. O atributo essencial (olhem, que isso é fundamental, hein?) é um ser de razão. O atributo essencial só existe na razão. Homem não existe no real. Só na razão. E o atributo acidental é algo que acontece no corpo da substância primeira. O atributo acidental tambémé um corpo. O atributo essencial é um ser de razão... e o atributo acidental é um corpo no corpo da substância primeira. Agora, na segunda teoria, o atributo não é nem um ser de razão nem um ser real - é um não-ser, um irreal, um incorporal.
[Claudio fica em pé e pergunta:]
- Isso aqui é o quê?
Isso aqui é um corpo! Olhem "eu andando". Eu estou andando. O corpo do Claudio andando. Se vocês vierem e me tocarem, vocês vão tocar no meu corpo. Mas no "andando", não. "Andando" é um incorporal. (Entenderam?) Nessa teoria, os atributos são...? Incorporais! (Entenderam?)
- Qual é a diferença do atributo essencial para o atributo acidental?
Um é um ser de razão, o outro é real. Corporal, real. Agora: a segunda teoria. O atributo da segunda teoria não é um ser de razão. Ele é real. Mas é um real incorporal. Apareceram, nessa segunda teoria, dois tipos de reais - o corpo e o incorporal.
(Olhem, eu vou explicar para vocês num parêntesis: Isso gera uma novafísica, uma nova metafísica, uma nova biologia, uma nova teria das diferenças, uma nova história... Tudo isso eu quero que vocês entendam! Não há pressa. Qualquer pergunta que vocês fizerem, eu estou aqui para responder.)
Nós temos uma física, aqui. Temos uma física. O atributo essencial é um ser de razão. O atributo acidental é um real corporal. E o atributo acontecimento é um real incorporal.
Nós descobrimos uma coisa fantástica! Na hora que nós nos libertamos do verbo ser copulativo, nós descobrimos a existência de um novo tipo de real - o real incorporal. (Para vocês ganharem uma força e quererem fazer alguma coisa com isso... - é exatamente isso que é a obra do Lewis Carroll: Alice no país das maravilhas! A dificuldade que nós temos de entender Alice no país das maravilhas... é que os atributos - no país das maravilhas - não são essenciais, nem acidentais: são acontecimentos. Por isso que nós não entendemos -----. São esses incorporais. (Então, vamos tentar trabalhar.)
(Agora, vocês tomem um café, enquanto eu descanso um pouquinho).
Aluno: [inaudível]
Claudio: Na primeira parte, quando eu falei em último sujeito, lembrem-se que eu identifiquei o último sujeito a existente. Isso que eu fiz! Então, último sujeito é - simultaneamente - aquilo que existe. "Mauri""esta mesa"... (certo?) Então, esse último sujeito nos conduz para o projeto ontológico. Ontológico é aquilo que existe: tem realidade existencial. Na segunda teoria, eu identifiquei a realidade existencial ao corpo. Então, o que existe são os corpos. No momento em que eu disse que aquilo que existe são os corpos, e eu me preocupo agora com esses corpos, significa que eu estou fazendo uma física - porque a física é aquilo que cuida dos corpos. (Acho que ficou claro, não foi? Muito bem!)
Eu, agora, estou preocupado em fazer uma física. E uma física é a física dos corpos. Então eu vou fazer isso.
Então, eu pego os corpos que existem. Não importa qual! Este isqueiro - por exemplo - é o último sujeito da proposição uma existência ontológica. Logo, é um corpo que existe. Este corpo, que existe, tem necessariamente um atributo essencial. O atributo essencial é o que difere - atenção para o que eu vou dizer - é o que difere este isqueiro deste copo. Porque este copo e este isqueiro têm atributos essenciais diferentes. Mas agora, se eu pegar este cigarro e este [outro] cigarro - estes dois cigarros têm o mesmo atributo essencial. (Entenderam?) Eles vão ser diferentes pelos atributos acidentais. Este aqui [copo] difere deste outro [isqueiro] por atributos essencias. Mas este [um cigarro] difere deste outro [cigarro] por atributos acidentais. (Entenderam?) São os atributos acidentais que vão fazer a diferença de um para o outro. (Certo? Muito bem!)
Aqui está "este isqueiro". Este isqueiro é alguma coisa real. Ele tem uma realidade. Nítida. Existencial. Plano Ontológico. Tem uma realidade! A segunda teoria diz que este isqueiro - enquanto ele existir - tem com ele o seu atributo essencial. E a primeira teoria vai confirmar isso. Ou seja: todos os seres que existem carregam consigo, durante toda a sua existência, o seu atributo essencial. (Certo?) Então, estes dois cigarros carregariam com eles os seus atributos essenciais ao longo de sua existência. E a segunda teoria diz que um corpo, que é o último sujeito, que é existência real, ele só tem o seu atributo essencial O que eles querem dizer com isso? Que um corpo - ao longo da sua existência - não recebe em outro corpo o atributo essencial.
Que ele mantém - ao longo de sua existência - o seu atributo essencial - sem misturar o seu atributo essencial com o atributo essencial de outro corpo. Seu atributo essencial não varia. Se você [quiser] variar o atributo essencial de um corpo, você o destrói. (Certo?) E os atributos essenciais não se misturam. Este copo mantém o seu atributo essencial; e este cigarro mantém o seu atributo essencial - ao longo da existência de todos eles. (Entenderam?)
Então, prestem atenção:
Aqui está este cigarro, em cima da mesa. Ele tem com ele o seu atributo essencial? Tem. Eu passei para a minha mão. Ele continua com o seu atributo essencial? Sim. Então, nós descobrimos alguma coisa. A essência deste cigarro - não importa onde ele esteja - é sempre a mesma. (Vejam se entenderam) Ela é sempre a mesmaPouco importa aonde ele entrar. Pouco importa com que este cigarro se misturar. Ele mantém o seu atributo essencial onde ele estiver: ele está aqui; ele está ali; ele está acolá - é sempre o mesmo atributo essencial. (Posso dar por entendido? O que vocês acharam?)
Vamos ver outro exemplo:
Eu pego um cavalo. Aí levo o cavalo para o Jóquei Clube. Ele vai correr (ele não corre no JC?). Ou então eu ponho esse cavalo para puxar carroça. Num lugar ele corre; noutro, puxa carroça. Esse cavalo - enquanto corre e enquanto puxa carroça - tem o mesmo atributo essencial? Sim, tem o mesmo atributo essencial: o atributo essencial não muda. (Está certo?) Mas... - alguma coisa muda. O que muda é o acontecimento. (Vejam se entenderam.) É o mesmo ser, o mesmo corpo, a mesma essência; mas o que está se modificando nele - são os acontecimentos. Os acontecimentos são incorporais. Então, o que muda, o que é devenir, o que é histórico, o que é temporal - é o incorporal.
Questão: O cavalo no Jóquei. O cavalo puxando a carroça. Ele é simultaneamente o mesmo outro. Ele é o mesmo no seu atributo essencial... Mas é outro, no acontecimento. Então, o acontecimento, o não-ser, o incorporal, é que é a história do cavalo. (Entenderam?) Então, o que eu estou dizendo para vocês, é que o acontecimento é que faz as modificações. (Eu acho que ficou perfeitamente claro... mas se vocês perguntassem, eu teria mais vias para explicar!)
É radical o que eu estou dizendo. Eu não estou dizendo de brincadeira. Isto é radical. Este copo. Se eu pegar este copo e jogar no mar... ele mantém o mesmo atributo essencial que ele tinha? (Entenderam?) Ele mantém o mesmo atributo essencial: é o mesmo copo! Mas aconteceu um negócio diferente. O diferente é o acontecimento. (Certo?) As diferenças passam para o campo dos acontecimentos. Então, na hora em que você falar do corpo - você está produzindo um discurso da identidade. O corpo é o mesmo.A diferença - é o acontecimento!
(Vamos ver se vocês conseguem me ajudar nas perguntas? Ninguém pense que isso que eu estou explicando agora é coisa simples. Olhem, dificilmente vocês encontrarão uma explicação dessas. Não é nenhum orgulho meu, não. Não se encontra isso. Então, é realmente difícil o que eu estou dizendo.)
Eu estou dizendo para vocês que há alguma coisa que é a mesmasempre - é o atributo essencial do corpo. Mas há algo que é do plano da diferença - é o acontecimento. O que nos leva, então, a entender - que o corpo só pode ser pensado pela diferença. Porque o corpo está sempre envolvido em um acontecimento.
Aluno: [inaudível]
Claudio: Não, não. A questão não está aí. A questão é muito simples! Você já vai matar!? Você tem todo o plano para matar! Você viu que o atributo essencial na primeira teoria é um ser de razão. O atributo essencial na segunda teoria tá no corpo. Não é da razão: é do próprio corpo. Não sei se está claro!?... É o caminho que você tem que fazer: você tem que tirar o atributo essencial da razão e colocar no corpo. Porque é o que eles estão fazendo. O atributo essencial é o próprio corpo. O corpo nunca sai da sua essência. Mas ele não pára de variar nas diferenças do acontecimento. (Certo?)
É exatamente o acontecimento que é o plano da história. Então, vocês vão ver. Nós teríamos em diferentes encontros históricos, diferentes acontecimentos. Diferentes maneiras do corpo se conduzir... - embora seja o mesmo corpo.
Tá começando a surgir, não é? O acontecimento é uma teoria de luta terrível para nós. Muita luta mesmo, para nós a entendermos bem. Mas o que vocês têm que marcar agora - e isto é uma radicalidade muito difícil para quem não estuda filosofia, porque são muito poucos os que estudam, são muito poucos..., é vocês aceitarem o que eu estou dizendo:
O corpo é sempre o mesmo. A sua variação é o acontecimento - que é um incorporal. Então, o que vai acontecer agora, é que todos os corpos estão envolvidos em acontecimentos. O acontecimento torna-se - o que há de mais íntimo do corpo. O acontecimento é o que há de mais íntimo do corpo. Porque o corpo é sempre o mesmo - mas com as flutuações do acontecimento; sem perder o seu atributo essencial. (Eu gostaria que vocês falassem um pouco, viu?)
Aluno: A essência é um invariante?
Claudio: A essência é um invariante. O problema... o que você perguntou é muito parecido com o que o Chico colocou. É um deslocamento que eu ainda não fiz para vocês, apenas lancei, mas vocês já têm conhecimento das questões.
É que, na primeira teoria, a essência é da razão. Na segunda teoria, a essência está no corpo. O corpo conduz consigo próprio a sua própria essência - mas ele varia no acontecimento.
(Eu, agora, vou fazer uma redução para vocês. Olhem que coisa interessante:)
Esse corpo que está sendo pensado - olhem se não é isso! - vejam se ele não se parece com uma semente - que ora se torna árvore, ora se torna flor, ora se torna folha, sem deixar de ser coisa. É o mesmo ser - nas suas múltiplas variações. Ou seja: é uma teoria do ser germinativo. O ser é um gérmen, que não para de se modificar pelos seus acontecimentos. Trazendo com ele a [inaudível]. (Eu acho que alguma coisa está se passando, não é?)
Então, lembrem-se que o que eu estou dizendo é essa ideia muito difícil de aceitar - que o Hegel (eu não vou dar Hegel hoje), com a dialética dele, inclusive, não aceita - de que um corpo é absolutamente sempre a mesma coisa. É isso que é difícil de entender. Porque nós não paramos de ver as modificações corporais. Por exemplo, eu era pequeno, agora sou grande; eu não tinha cabelo branco, agora tenho cabelo branco... Vocês não param de ver modificações nos corpos. Mas essas modificações - é essa que é a tese - são modificações incorporais. Porque o corpo é sempre o mesmo. É isso que eu tenho que mostrar para vocês. (Acho que foi bem, não é? Está bem alinhado aqui.)
Vejam o que eu vou dizer: na minha vida, há momentos em que eu sou o avô dos meus netos. Outros momentos em que eu sou irmão do meu irmão. Em outros, sou professor dos meus alunos. Noutros, sou aluno dos meus professores. Cada elemento desses é um incorporal - pai, avô, aluno, professor, tudo isso são os incorporais: os acontecimentos que ocorrem conosco. Os acontecimentos não são modificadores da minha essência. A essência é a mesma - os acontecimentos variam. (Posso continuar? Vocês acham que eu posso? Está ficando muito difícil?)
Na primeira teoria - das essências - a essência é um ser de razão? (Não foi isso que eu disse?) O ser de razão é uma entidade lógica. Ser de razão e entidade lógica é a mesma coisa. Na outra teoria a essência está no corpo? E esse corpo se modifica pelos acontecimentos? (Certo?) Na segunda teoria a essência é potência. Na primeira é uma estrutura lógica, na segunda é uma potência. Todos os corpos têm potência. Isso modifica a teoria do poder. O poder não é alguma coisa que uns têm - poucos têm (não é?), como se diz - e muitos querem. Poder é aquilo que todos os corpos têm - porque a potência é a essência do corpo. A essência do corpo é a potência de germinar. A essência do corpo é a potência de produzir acontecimentos. Por isso, o corpo consegue efetuar a sua vida de uma maneira superior - a partir do instante em que ele executa mais acontecimentos. Produzir experiências é o segredo do corpo. É o segredo da vida. O segredo da vida é a experimentação. É a produção dos acontecimentos. (Não sei se vocês entenderam aqui. Certo?)
(É a coisa mais fácil de entender:)
Se um corpo é potência - não importa o acontecimento - é a mesmapotência, a mesma essência, o mesmo corpo. Esse corpo vai ser envolvido por acontecimentos o tempo inteiro. Não importa qual, certo? Aqui vai passar uma ética: não acuse os acontecimentos: potencialize-os - porque nós não paramos de acusar os acontecimentos. O acontecimento só se explica pela potência que você passa nele. O acontecimento se explica pela potencialização que o corpo dá a ele. Você pode dar a um acontecimento milpotências diferentes. Os estoicos - que são os responsáveis por essa teoria, Nietzsche também - não param de dizer: seja digno do seu acontecimento! (Entenderam?) Não é uma resignação, não é nada disso! Não é resignação! Mas é potencializar o seu acontecimento ao ponto de que qualqueracontecimento da sua vida permita a você ser germinativo.
Vocês sabem que a religião, as forças retrógradas da religião, não pararam de acusar o acontecimento. Vou dar um exemplo para vocês. Quando vocês pegam as leituras das teogonias, por exemplo. Nós sabemos - pelas teogonias - que os deuses trouxeram para o caos ordem regularidade.Havia o caos. Os deuses vieram e deram regularidade ao caos. Apareceram as quatro estações, apareceram o tempo das plantas, o tempo das flores, a ordem na cidade, a saúde, etc. Mas junto a isso, vinham também os furacões, os terremotos e as epidemias. E, como os deuses eram os responsáveis por organizar o caos, evidentemente que os pensadores já diziam: quem produz os furacões os terremotos e as epidemias são também os deuses. E concordaram com isso, mas depois disseram que os deuses produziram terremotos, furacões e epidemias para punir castigar a maldade dos homens. Nós começamos a jogar moralidade em cima dos acontecimentos. (Entenderam?) O que eu estou explicando para vocês é: tirem a moral dos acontecimentos e coloquem uma ética. Ética é a potência.
Nessa tese que eu estou passado para vocês, não há crime quando uma aranha come uma mosca - porque a aranha comer a mosca é germinativo para ela. (Entenderam?) Tirar da Natureza o maior crime que se fez contra ela, que foi jogar - em cima dela - a moral!
Aqui eu estou passando para vocês uma teoria de que a essência é igual à potência e que a potência é germinativa. E ser germinativa é efetuar os acontecimentos. Ponto!
(Foi bem, não é?)

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