quarta-feira, 11 de maio de 2016

O herói a si assiste, vário e inconsciente... [Fernando Pessoa]

Todo começo é involuntário. 
Deus é o agente. 
O herói a si assiste, vário 
E inconsciente. 
À espada em tuas mãos achada 
Teu olhar desce. 
«Que farei eu com esta espada?» 
Ergueste-a, e fez-se.

- - -
Fernando Pessoa



= = = 

BELLUM SINE BELLO é um ideal português de paz a que hoje se convencionou chamar "brandos costumes". 

"Guerra sem combate" é o poder associado à recusa consciente da violência, recusa essa que enobrece o poder. A divisa poderia igualmente ser "A Paz dos fortes" embora, claro, lhe faltasse então a subtileza da epígrafe escolhida por Fernando Pessoa!

Uma outra explicação da epígrafe poder-se-ia basear na tradução alternativa "Guerra sem armas". Neste caso a divisa representaria um ideal de conquista espiritual e humana (pela difusão da cultura portuguesa e não apenas da religião) que foi no passado um importante vector da expansão portuguesa e seria no futuro, presumivelmente, a via para o Quinto Império.

A cultura é, afinal, o único remanescente da colonização que não é efémero...


A epígrafe não é só um sentido enigmático proposto, mas também uma matriz retórica.


Fonte: http://www.rc.unesp.br/igce/saepeig/Evento/evento.html


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I - Primeira Parte: Brasão

Bellum sine bello.

I. OS CAMPOS PRIMEIRO / O DOS CASTELOS
A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar sphyngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.

SEGUNDO / O DAS QUINAS

Os Deuses vendem quando dão.
Comprase a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa! Baste a quem baste o que Ihe basta
O bastante de Ihe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar. Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.

II. OS CASTELOS

PRIMEIRO / ULISSES

O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo —-
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo. Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou. Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

SEGUNDO / VIRIATO

Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instinto teu.
Nação porque reencarnaste,
Povo porque ressuscitou
Ou tu, ou o de que eras a haste —
Assim se Portugal formou.
Teu ser é como aquela fria
Luz que precede a madrugada,
E é ja o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada.

TERCEIRO / O CONDE D. HENRIOUE
Todo começo é involuntáario.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
«Que farei eu com esta espada?»
Ergueste-a, e fez-se.

QUARTO / D. TAREJA
As naçôes todas são mystérios.
Cada uma é todo o mundo a sós.
Ó mãe de reis e avó de impérios,
Vela por nós! Teu seio augusto amamentou
Com bruta e natural certeza
O que, imprevisto, Deus fadou.
Por ele reza! Dê tua prece outro destino
A quem fadou o instinto teu!
O homem que foi o teu menino
Envelheceu. Mas todo vivo é eterno infante
Onde estás e não há o dia.
No antigo seio, vigilante,
De novo o cria!

QUINTO / D. AFONSO HENRIQUES

Pai, foste cavaleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força! Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infiéis vençam,
A bênção como espada,
A espada como benção!

SEXTO / D. DINIS

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.

SÉTIMO (I) / D. JOÃO O PRIMEIRO

O homem e a hora são um só
Quando Deus faz e a história é feita.
O mais é carne, cujo pó
A terra espreita. Mestre, sem o saber, do Templo
Que Portugal foi feito ser,
Que houveste a glória e deste o exemplo
De o defender. Teu nome, eleito em sua fama,
É, na ara da nossa alma interna,
A que repele, eterna chama,
A sombra eterna.

SÉTIMO (II) / D. FILIPA DE LENCASTRE

Que enigma havia em teu seio
Que só gênios concebia?
Que arcanjo teus sonhos veio
Velar, maternos, um dia? Volve a nós teu rosto sério,
Princesa do Santo Graal,
Humano ventre do Império,
Madrinha de Portugal!

III. AS QUINAS PRIMEIRA / D. DUARTE, REI DE PORTUGAL

Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
A regra de ser Rei almou meu ser,
Em dia e letra escrupuloso e fundo. Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri.

SEGUNDA / D. FERNANDO, INFANTE DE PORTUGAL

Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome
Dentro em mim a vibrar.
E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.

TERCEIRA / D. PEDRO, REGENTE DE PORTUGAL

Claro em pensar, e claro no sentir,
É claro no querer;
Indiferente ao que há em conseguir
Que seja só obter;
Dúplice dono, sem me dividir,
De dever e de ser —
Não me podia a Sorte dar guarida
Por não ser eu dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,
Calmo sob mudos céus,
Fiel à palavra dada e à idéia tida.
Tudo o mais é com Deus!

QUARTA / D. JOÃO, INFANTE DE PORTUGAL

Não fui alguém. Minha alma estava estreita
Entre tão grandes almas minhas pares,
Inutilmente eleita,
Virgemmente parada; Porque é do português, pai de amplos mares,
Querer, poder só isto:
O inteiro mar, ou a orla vã desfeita —
O todo, ou o seu nada.

QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL

Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

IV. A COROA NUN'ÁLVARES PEREIRA

Que auréola te cerca?
É a espada que, volteando.
Faz que o ar alto perca
Seu azul negro e brando.
Mas que espada é que, erguida,
Faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida,
Que o Rei Artur te deu. 'Sperança consumada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada
Para a estrada se ver!

V. O TIMBRE A CABEÇA DO GRIFO / O INFANTE D. HENRIOUE

Em seu trono entre o brilho das esferas,
Com seu manto de noite e solidão,
Tem aos pés o mar novo e as mortas eras —
O único imperador que tem, deveras,
O globo mundo em sua mão.

UMA ASA DO GRIFO / D. JOÃO O SEGUNDO

Braços cruzados, fita além do mar.
Parece em promontório uma alta serra —
O limite da terra a dominar
O mar que possa haver além da terra.
Seu formidavel vulto solitário
Enche de estar presente o mar e o céu
E parece temer o mundo vário
Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu.

A OUTRA ASA DO GRIFO / AFONSO DE ALBUQUEROUE

De pé, sobre os países conquistados
Desce os olhos cansados
De ver o mundo e a injustiça e a sorte.
Não pensa em vida ou morte
Tão poderoso que não quer o quanto
Pode, que o querer tanto
Calcara mais do que o submisso mundo
Sob o seu passo fundo.
Três impérios do chão lhe a Sorte apanha.
Criou-os como quem desdenha.

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