quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Eu, um Mendigo, Edvard Grieg, um Cachorro e seu Dono

https://www.facebook.com/caetanodable/posts/10205681452058628

Hoje a tarde estava pagando algumas contas em um caixa eletrônico e sem perceber assobiando uma melodia qualquer que me vinha à cabeça. Um homem que estava no caixa ao lado se vira sorrindo para mim e fala: "Edvard Grieg, Suite No.1, Op.46". Fico um tanto surpreso de início sem entender ao que ele se refere, e depois sem ter certeza se Peer Gynt era de fato do Grieg, retribuo o sorriso da maneira autômata a que fui ensinado a conviver educadamente e digo "Sim senhor!". Talvez envaidecido pela sensação de inusitada compreensão mútua e admiração sobre as nuâncias melódicas do compositor norueguês ele desabafa: "Sempre que falo do primeiro movimento para as pessoas, ninguém se lembra, aí quando faço o... [ele cantarola o No Palácio do Rei das Montanhas]". Antes de eu ter tempo de responder, ele emenda comentando em um tom levemente debochado: "Essa parte aliás não é do Grieg, ele copiou, mas ninguém nota". Eu, alternando olhares entre as sequências numéricas requisitadas pelo caixa eletrônico e o efusivo ouvinte de Grieg, concordo com toda naturalidade: "Sim, essa parte é mais popular; vários desenhos animados usam". O homem parece já ter esquecido o que estava fazendo no seu guichê do caixa eletrônico e está voltando-se outra vez diz: "Minha filha disse a mesma coisa!". Damos uma risada e por fim ele diz: "O nome do meu cachorro é Grieg..." ao que eu arremato com um "Genial...!".
Termino meu pagamento, sorrio novamente ao amante de Grieg e saio do banco onde, naturalmente, há um mendigo pedindo esmola; este, aparentemente da minha idade. De forma tão autômata quanto meus sorrisos, me desvio do indigente. Em um também autômato processo de dissociação que costumo ter frente a miséria humana alguns passos adiante me pergunto se a Suite No.1, Op.46 causaria no mendigo o mesmo maravilhamento que a mim e ao homem do banco... Em sequência (talvez por causa do cachorro "Grieg") me vêm a cabeça uma díptero fotográfico do Miguel Rio Branco com um cachorro sarnento e um mendigo no mesmo estado: entro em mais uma zona de desconforto mental. Em outra tentativa de abstração, me lembro de uma tela do Rothko que fazia o mesmo contraste de tonalidade que o Rio Branco parece ter usado na composição, mas daí me lembro de que o Rothko queria causar uma certa angústia nas pessoas com algumas telas dele. Fico pensando se toda obra de arte é capaz de causar um arrebatamento emocional independente dos elementos referenciais usados. Será que é preciso uma alfabetização estética para gostar de alguns tipos de arte? Será que é possível conciliar essa alfabetização a um processo de auto-consciência e emancipação sócio-cultural? Me lembro então de como uma amiga moradora da Maré me contou sobre a hipocrisia que ela considerava a auto-promoção feita pelo projeto Travessias que, em tese, promove o encontro da "arte contemporânea" com os "favelados".
A essa altura já tinha desistido de fugir do absurdo cotidiano que é a nossa passagem cega pelas ruas de qualquer centro urbano e 12 horas depois estou com essa coisa à cabeça:
QUE PAPEL DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL PODE TER A MÚSICA CLÁSSICA, A ARTE CONTEMPORÂNEA E DE MANEIRA GERAL, A CULTURA "ERUDITA" ?!?
OBS: Isso não é uma pergunta retórica !
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Como ninguém tem nenhuma obrigação de saber do que eu estou falando, a quem interessar possa:
O que eu estava assobiando:
http://youtu.be/O2gDFJWhXp8?t=1s
O trecho "popular" da suite n1 do Grieg:
http://youtu.be/O2gDFJWhXp8?t=13m14s


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