quinta-feira, 22 de maio de 2014

Tempo e subjetividade em Henri Bergson - “O todo aberto: tempo, pensamento e desejo” por Auterives Maciel

Tempo e subjetividade em Henri Bergson

“O todo aberto: tempo, pensamento e desejo”
por Auterives Maciel

"Atualmente, como professor de filosofia – tendo também uma iniciação na clínica – leciono para não filósofos, movido pela intenção de produzir pensamentos que favoreçam a constituição de novos modos de vida. Sair da filosofia, pela filosofia, freqüentar formas de pensamentos com o olhar de um filósofo, verificar, para além das fronteiras estabelecidas pelas disciplinas, o que pode o pensamento, são os desafios que eu assumo atualmente. Neste site, oferto o produto do meu ofício, me abrindo a interlocuções e a experimentações e acreditando no potencial renovador que o diálogo promove."













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Fontes:

MACIEL Jr., Auterives. O TODO ABERTO: Tempo e subjetividade em Henri Bergson. Rio de Janeiro, UERJ, Departamento de filosofia, 1997, 159 fls. Mimeo. Dissertação de mestrado em filosofia.

http://www.lojacomunicacao.com/clientes/auterives/sala/cursos/henri-bergson/o-todo-aberto-tempo-pensamento-e-desejo-01/

http://stoa.usp.br/prodsubjeduc/files/262/1016/Adeus+sujeito+identitario.pdf

http://youtu.be/qHoGNel-GN4
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“O todo aberto: tempo, pensamento e desejo” Aula 01
Auterives Maciel
18 de março 2002

Existe na história da filosofia um conceito que sempre gerou problema para os filósofos. Um conceito tão antigo quanto à história da filosofia, mas que foi interpretado pelos filósofos de formas distintas. Este conceito é o conceito de “fenômeno”. Fenômeno, vem do gregophainómenon e, rigorosamente,  significa “aparição”. Quando o filósofo fala de fenômeno, ele se refere a tudo aquilo que aparece... tudo aquilo que se mostra para a percepção... se mostra para a sensibilidade. Uma imagem ótica é um fenômeno, mas um som tb é um fenômeno. Tudo aquilo que a sensibilidade percebe do sentido externo e do sentido interno, na filosofia nós chamamos de fenômeno. Existe uma outra palavra que Bergson também usa, não tão comum quanto à palavra fenômeno, mas que significa a mesma coisa, que é a palavra “imagem”. Por que eu apresento fenômeno para depois falar de imagem? Para não confundir pois normalmente, quando nós falamos de imagem nos referimos tão somente àquilo que aparece para a visão. Na realidade, quando Bergson fala de imagem no início de “Matéria e Memória”, ele está usando a palavra imagem como sinônima da palavra fenômeno. Então, há imagens óticas, mas há imagens táteis, há imagens acústicas... ou seja, Bergson vai usar a palavra imagem como sinônima da palavra fenômeno... Imagem, para Bergson, significa aparição.
Pois bem, na história da filosofia, dos gregos aos modernos, o fenômeno sempre foi tomado como um problema. Não o fenômeno em si, enquanto aparição para qualquer homem, mas a origem do fenômeno ou seja, quando os filósofos se debruçam sobre o fenômeno ou sobre a imagem, eles procuram entender a origem do fenômeno ou da imagem, e partem de uma consideração bem simples:
“Toda e qualquer imagem, enquanto aparição, é sempre aparição de algo para alguém”.
Se eles tomam isto como ponto de partida a imagem é, a princípio, aparição de algum ser para um determinado sujeito. A imagem é, a princípio, aparição de algo que se põe diante de um sujeito. Mas o problema é: Enquanto aparição de algo para alguém onde é que a imagem se forma? Será que ela se forma na consciência de quem percebe ou a imagem se origina, isto é, se forma, no objeto do qual ela emana?
Para os antigos, para os gregos, a imagem era considerada uma aparição do ser, uma manifestação do ser. Sendo assim, os antigos consideravam a imagem como um acidente no ser. Tudo aquilo que eu percebo de alguma coisa é imanente àquela coisa... está na coisa.
A consciência não interfere no ato de perceber. Esta postura antiga na história da filosofia recebe o nome genérico de realismo. A postura realista parte do pressuposto de que há uma realidade em si. Esta realidade em si apareceria como um substrato, uma substância e, gravitando em torno desta realidade em si, desta substância, deste substrato, haveria as imagens, também chamadas de acidentes.
É o que se encontra na filosofia aristotélica; a coisa em si, o substrato em si Aristóteles chama de substância e as imagens, como aparição dessa coisa, Aristóteles irá chamar de acidentes.
Essa concepção - substância e acidente - como explicação da origem das imagens, permanece na história da filosofia até o século XVII. Até o século XVII nós iremos encontrar os filósofos, cada um com uma inflexão própria, cada um pensando com uma certa particularidade, partindo desse binômio: “substância e acidente”.
Haveria, por detrás do que nós percebemos, uma coisa em si como substrato das imagens só que, na passagem do século XVII para o século XVIII, o mundo material é dessubstancializado ou seja, com o advento da física newtoniana a matéria perde o estatuto de substância. A matéria perde o estatuto de substância, quero eu dizer, já não é mais possível os filósofos pensarem a matéria como um substrato. Newton introduz a noção de força, introduz a noção de onda, introduz a noção de corpúsculo e, fundamentalmente, quando ele introduz a noção de onda, força, corpúsculo, passa a pensar a matéria como movimento. A matéria existe em movimento... O que nós deveremos pensar como matéria é quantidade em movimento. Aquela idéia de uma matéria substancializada posta como o substrato dos acidentes desaparece. A matéria, enquanto movimento, se transmite. A existência da matéria é dinâmica. No momento em que ele começa a dizer que a matéria é movimento e que este movimento é, à luz da investigação física, analisado única e exclusivamente em termos quantitativos, surge no campo da filosofia a seguinte questão:
“Se na matéria o que se tem é movimento, quantidade de movimento, nada além disto, as qualidades das coisas percebidas onde estão”? Na filosofia antiga sustentávamos a ideia de que a qualidade é imanente à substância. Na filosofia moderna, após as descobertas de Newton, já não é mais possível dizer que as qualidades estão na matéria. Surgem, então, filósofos que passam a afirmar que as qualidades percebidas são produtos da consciência. Dito de uma outra forma: “As imagens se formam na consciência. As imagens não são reais. As imagens são construções da consciência”.
Com essa diferença começa a surgir aquilo que em filosofia nós iremos chamar de idealismo.
Haveria, portanto, duas posturas:
Uma postura realista que sustenta a ideia de que a matéria é substrato de imagens e as imagens são imanentes à matéria e uma postura idealista, que parte do pressuposto de que as imagens se formam na consciência... As imagens não estão no mundo. No mundo nós teríamos quantidade de movimento. Na consciência nós teríamos qualidade. Um exemplo claro se encontra no próprio Newton:
-Se o que penetra na minha retina é luz translúcida onde se forma a cor? Se eu analiso o fenômeno físico e encontro no fenômeno físico ondas luminosas emitidas numa determinada freqüência onde se forma a cor? Os filósofos não hesitam em dizer que  a cor se forma na consciência. Se a cor se forma na consciência, isto deve significar, matéria de psicologia, que a consciência tem o poder de engendrar representações.
Surge então, por volta do século XVIII, uma teoria que atravessa diversos filósofos: Berkeley, Locke, Kant, que Whitehead chama de teoria das adições psíquicas. O que vem a ser a teoria das adições psíquicas, que influenciará toda a psicologia do século XIX? A teoria das adições psíquicas diz que as imagens, qualitativamente distintas, são construídas pela consciência. A consciência adiciona à informação sensorial, determinadas imagens que ela cria.
No momento em que os filósofos passam a dizer isto, cria-se um abismo intransponível entre a natureza e a percepção. Se eu faço ciência daquilo que eu percebo, eu tenho, doravante, que considerar que a ciência que eu faço pressupõe a minha interferência. Neste caso, jamais poderei fazer ciência da natureza, tal como ela é em si, porque a natureza, tal como ela é em si, é vetada por meu conhecimento, já que na ordem do conhecimento, eu engendro representações e adiciono a essas representações as informações sensoriais que tenho. A partir deste abismo, os filósofos passam a considerar a existência de duas naturezas: Uma natureza que nós poderíamos chamar de natureza causal e uma natureza que nós poderíamos chamar de natureza aparente A natureza aparente é a natureza que percebo. A natureza aparente continua sendo o quê? A natureza fenomênica... as imagens. Mas a natureza fenomênica, as imagens, torna-se distinta da natureza causal pois as imagens, agora, já não são mais imanentes à substância; as imagens são formadas na consciência. A natureza causal torna-se, na filosofia, um mistério, algo de inefável ou seja, se há a coisa em si, especula Kant, ela só pode ser pensada, nunca conhecida. Se há uma natureza em si independente de mim, ela só pode ser pensada, nunca conhecida. Por quê? Porque a natureza que eu conheço depende de mim, depende das representações que eu adiciono às informações sensoriais que recebo.
Com este abismo introduzido pelo idealismo entre natureza causal e natureza aparente surge um problema dentro da filosofia, que diz respeito ao pensamento, que diz respeito ao pensamento, vou dizer mais, ontológico. Ontologia, em filosofia, significa discurso sobre o ser, acerca do ser. Mas acerca do ser na sua totalidade, não um discurso acerca do ser enquanto ente para mim. O ser como totalidade do ente, o ser como um todo. Se ficarmos na hipótese idealista a ontologia recebe um golpe, porque haveria como problema a impossibilidade de falar disto que é em si, uma vez que na ordem do conhecimento nós só podemos conhecer o que aparece para nós. A ontologia, então, se depara com um impasse, curiosamente, introduzido pela própria psicologia. Se existe um fosso entre a natureza em si e nós, falar da natureza em si como desafio da ontologia, doravante, pode não passar de uma pretensão filosófica não fundada. O conhecimento está salvo na medida em que o conhecimento tem como objeto os fenômenos, mas a ontologia se encontra em questão.
Além disso, há um outro problema; se lá fora só há movimento e quantidade de movimento e cá dentro só há imagens e qualidades imagéticas, como explicar a passagem de uma ordem à outra e como explicar que haja uma correspondência entre estas ordens? Este já não é um problema da ontologia, é um problema do conhecimento. O próprio pensamento chega a um impasse, chega a uma dificuldade, a uma aporia que põe em crise toda uma tradição filosófica. Nós poderíamos dizer que já não é mais possível aceitar o realismo antigo como resposta ao problema da imagem, mas, tampouco, é possível sustentar a hipótese idealista, já que a própria hipótese idealista vai conduzir a uma certa dificuldade.
No prefácio de “Matéria e Memória” Bergson toma como desafio esta dificuldade ou seja, ele apresenta o problema do livro nos seguintes termos: queremos ultrapassar, por um lado, o idealismo, mas não aceitamos também a hipótese ingênua do realismo. Iremos nos situar, dirá Bergson, num meio termo entre idealismo e realismo. Qual seria esse meio termo? Isso é surpreendente... a própria imagem! Bergson não aceita a idéia de que a imagem seja um acidente na matéria. Bergson não aceita a idéia de que a imagem seja uma construção da consciência. O que ele propõe? Ele vai querer,  em um primeiro momento, pensar a imagem nela mesma, o em si da imagem e nós poderíamos, seguindo Bergson, nomear essa proposta como uma proposta ontológica. Dito de outra forma, Bergson vai tentar, no primeiro capítulo de “Matéria e memória”, construir uma ontologia da imagem e a célebre frase que aparece no início de “Matéria e memória”  já indica a intenção do filósofo.
Bergson diz, são palavras dele, que:
“A matéria ou aquilo que chamamos de matéria não é outra coisa senão um conjunto de imagens”.
Não é fácil o que ele está pensando. A imagem existe em si; a imagem não é acidente de uma matéria, nem é uma construção da consciência; a imagem existe em si.
Agora, para dizer que a imagem existe em si, de saída, ele identifica matéria à imagem. Bergson não está pensando a imagem como imagem de algo para alguém. Ele está pensando este algo como imagem. Ele está pensando no ser material como uma imagem. Ou, para sermos mais exatos, como um conjunto de imagens. Se eu seguisse o raciocínio dos antigos poderia dizer que para Bergson só há acidentes, não há substância. Se seguíssemos o raciocínio dos antigos não haveria, para Bergson, um substrato material por detrás das imagens. As imagens e a própria matéria coincidem. Então, num primeiro momento, ele propõe a identificação entre imagem e matéria. Só que aí ele diz que esse em si da imagem, que é igualmente matéria, só existe em movimento e diz, igualmente, que o movimento não é um acidente da imagem, na imagem; o movimento é um dado imediato da imagem.
Para Bergson, não há imagens em movimento pois toda imagem já é movimento. Não há a imagem acrescida de movimento. A imagem é em si movimento, uma vibração... Diremos, um conjunto de impressões … diremos, um conjunto de excitações. A matéria é imagética e fluente ou seja a imagem, matéria e movimento, para Bergson, são a mesma coisa.
Qual é o ponto de partida dele? O ponto de partida de Bergson é a imagem-movimento. Imagem-movimento, para Bergson, é a própria matéria.
No primeiro capítulo de “Matéria e memória”, onde analisa a imagem-movimento, ele vai dizer uma coisa interessante, ele vai dizer que essa imagem, que é matéria fluente, quando reportada à percepção de um ser vivo, de um ser humano, sofre determinados recortes, isto é, determinados enquadramentos e ele diz, que estes enquadramentos, estes recortes que caracterizam a percepção humana, a percepção do vivo, se dão sempre em função dos interesses práticos. Quando fala de enquadramento, quando fala de recorte para explicar a gênese da percepção da imagem, (essa informação é que eu vou reter no primeiro momento), ele fala de subtração e não de adição. Ele inverte o idealismo. Se, para o idealismo, perceber conscientemente é acrescentar sobre informações sensoriais determinadas imagens que a consciência produz, para Bergson, perceber conscientemente é subtrair do em si da imagem tudo aquilo que não for do interesse do ser vivo.
O que ele está dizendo é que há mais na imagem em si do que na percepção da imagem porque o que eu percebo é uma subtração; uma subtração ocasionada pelos meus interesses práticos.
Há sons aqui que o ouvido humano não percebe... não é do interesse do organismo humano perceber tais sons... há sons nesta sala que o cachorro percebe e que o humano não percebe. O som existe em si, mas a percepção do som não é registrada por nós. Quer dizer, então, que nós percebemos menos do que aquilo que existe? Olhe a inversão, não há adição psíquica, há subtração psíquica ou seja, a consciência subtrai, tira da imagem o que interessa e retém, tão somente, aquilo que for do interesse.
A qualidade nasce pela subtração e não pela adição. Esta é uma inversão importante pois lá no idealismo as qualidades estavam na consciência. Para Bergson, as qualidades são diferenças de quantidade que se dão como uma operação de subtração. Além disso, ele diz que esta subtração não é uma iluminação da consciência, é uma espécie de cinema da natureza... não há uma iluminação da consciência. A consciência não subtrai ao focar, ao iluminar. Essa subtração é apenas um enquadramento operado pela consciência. E aí ele usa a célebre metáfora: a consciência aí é uma espécie de espelho ou tela de cinema. Ela apenas reflete uma luz que vem da matéria.
A consciência não adiciona nenhuma imagem, não cria representações imagéticas. A consciência subtrai, e a subtração é um enquadramento. Com isto ele acrescenta um quarto elemento nas identificações que opera no primeiro capítulo de “Matéria e memória”.
Se, num primeiro tempo, ele dizia que matéria é igual a movimento, é igual à imagem, agora ele passa a dizer que matéria é igual a movimento, que é igual à imagem, que é igual à luz.
Tem um capítulo muito interessante para ser estudado, ou seja, Bergson está dando positividade ao fenômeno, ao ser do fenômeno, ao vir à luz que, para ele, a luz é imanente à matéria e não ao espírito.
A luz é imanente à matéria e não ao espírito. A matéria é luminosa.
E a consciência? A consciência virou tela de cinema e ela tem uma importância fundamental como tela de cinema, porque sem a tela de cinema, sem o écran negro a imagem também não se forma porque enquanto pura luz a matéria se propaga. É preciso um espelho para que a imagem se forme. É preciso um écran negro para que a imagem possa aparecer. Não obstante, dirá Bergson, a imagem é imanente à própria matéria, como pura aparição.
Como é que nós poderíamos pensar esse universo imagético luminoso antes do ser vivo? Bergson dirá que é um sistema de interação universal, onde as imagens só existem agindo e reagindo umas sobre as outras... ao infinito. Pouco importa a escala, pode ser um átomo, é uma imagem; pode ser um elétron, é uma imagem; pode ser um neutrino, é uma imagem.
Nesse sistema de interação universal, que é a própria matéria, o que é preciso reter enquanto informação é: há uma ação e reação, imediatas. Chamemos esse sistema de interação universal com ações e reações imediatas de “plano de imanência das imagens móveis, onde tudo reage sobre tudo”.
Um movimento que eu faço aqui, inocentemente, produz uma alteração em todas as imagens do universo. Reação em cadeia. Isso aqui já é uma interação com tudo. Como há interação universal, diz Bergson, a cada movimento detectável na natureza tudo muda. Pelo fato de haver interação universal há, imanente à própria matéria uma mudança. Mudança esta, que é produzida pelo próprio dinamismo material. É em função da mudança promovida pelo movimento que é preciso pensar o todo como dinâmica... que é preciso pensar o todo, primeira inflexão, como algo nunca dado. Que todo, o de agora ou o todo de um minuto atrás, se agora eu digo oi e tudo muda? Se agora essas partículas que saem de mim como sons, entram nessa interação universal e o universo já não é mais o mesmo, o universo já sofreu uma pequena modificação. Chegando a esta inflexão Bergson dirá que neste caso já não podemos mais conceber o todo como os antigos concebiam. O todo como uma totalidade fechada, dada. O todo como objetividade e presença. Já que eu considero o movimento como imanente à matéria, é preciso considerar também que onde houver movimento há mudança. Havendo mudança o todo já não pode ser considerado segundo o lema da objetividade e da presença.
É pensando desta forma, que Bergson vai dizer que o todo é o aberto. Primeira aproximação, o todo é o aberto. Mas o aberto é a mudança.
Mais tarde, eu vou chamar de aberto tempo, porque ainda não introduzi isso... Então, o todo nunca é dado porque ele é, enquanto todo, apenas a expressão de uma mudança. Ele é, enquanto totalidade, sempre a expressão de uma mudança. É pensando a mudança como totalidade, que Bergson chega à famosa expressão, todo aberto.

- Se o todo é aberto, não se pode levantar uma outra hipótese, que ele é caótico?
-        Pode, mas vou guardar esta hipótese para mais tarde. Ainda estamos aqui na matéria. De alguma maneira, esse turbilhão material é um caos. Em interação universal uma borboleta bate asa aqui e tudo muda... De alguma maneira, é porque você não vai ter nenhum centro de fixidez. Ele está tomando como ponto de partida, podemos até especular fisicamente, ainda que ele seja filósofo, uma matéria gasosa; nebulosas... interações universais.Ele está tentando pensar um estado genético da matéria. Nesse estado genético da matéria o universo não tem centro, é acentrado. Nesse estado genético da matéria tudo interage com tudo; é possível até falar de interações à distância. Um átomo se choca com outro átomo e o efeito é imediato na outra banda do universo... propagações. Nós não teríamos um universo relativo porque o vivo ainda não apareceu, e as ações e reações são imediatas. Quer dizer, não tem nenhuma mediação.

A partir daí, Bergson traz o seguinte problema – e é esse problema que eu vou perseguir num primeiro momento, para depois voltar à matéria e aí falar de caos, falar de tudo isso – o seguinte problema:
-O que é um ser vivo dentro desse universo? Se ele tem um corpo, ele é matéria. Se ele é matéria, ele é imagem em movimento.
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Aqui não tem nenhuma diferença entre matéria  viva e matéria não viva. Se o filósofo elege imagem, matéria, movimento, luz como conceitos que irão orientá-lo na compreensão do mundo material, estes conceitos devem servir adequadamente para se pensar também a imagem viva, o ser vivo; dessa forma, o ser vivo tal como o ser não vivo também é um ser que existe em interação: age e reage... recebe estímulos, executa movimentos, transmite movimentos.
Bergson pergunta, o que é que distingue um ser vivo - pensemos especificamente o homem, mas vale para qualquer ser vivo -, uma imagem viva de uma imagem não viva? O que distingue uma imagem viva de uma imagem não viva é que a imagem viva comporta um intervalo de movimento, um hiato. Um hiato entre a recepção do estímulo e a execução do movimento. O átomo reage imediatamente; o vivo reage mediatamente. Entre a recepção do estímulo e a execução do movimento existe um intervalo. Este intervalo de movimento, esses buracos na matéria, esses hiatos na matéria recebem o nome de subjetividade ou espírito.
A linguagem agride um pouco porque é estranha, mas é uma linguagem do século XIX. Bergson está explicando, a sua maneira, o arco reflexo. Tentando pensar exatamente o quê? A emergência do psiquismo como intervalo entre excitação e resposta. Está usando a linguagem dele, uma linguagem filosófica própria.
Então, eu vou dizer que subjetividade é, em primeiro lugar: intervalo de movimento; onde houver intervalo de movimento há vida; onde houver intervalo de movimento há espírito, há subjetividade. O vivo se distingue do não vivo pelo fato dele ser um ser de ação retardada. Enquanto o átomo não hesita, o vivo hesita.O que é que ele ganha ao se tornar retardado em termos de reação? Bergson dirá: indeterminação.
É possível calcular, fisicamente, o trajeto de um átomo a partir de um impulso inicial, mas a resposta de um vivo não é tão calculada assim... Você estimula o ser vivo... ele espera... ele hesita... ele pensa... ele escolhe...ele reage. E Bergson diz que todas essas funções só são possíveis se houver entre o estímulo e a resposta um intervalo de movimento. Esse intervalo de movimento, Bergson irá chamar de “Centro de Indeterminação”. Ele diz, que quanto maior for o intervalo, maior será a indeterminação do ser em questão.
Se pensarmos, por exemplo, o psiquismo primário de uma ameba, o intervalo é mínimo. O intervalo de indeterminação da ameba é mínimo. Na escala dos seres vivos, quando se pega o homem, ele é, de todos os animais, sem dúvida alguma, o que mais hesita ou, pelo menos, o que mais pode hesitar porque, se ele é regido por hábitos, tende a reproduzir a tendência mecânica da matéria. É o que mais pode hesitar, na medida em que é mais indeterminado.
Bergson, então, começa uma associação, muito interessante, entre liberdade e indeterminação. E aí tem uma tese política, que eu quero apresentar no futuro - parece que os poderes sociais querem nos tirar esta indeterminação. Produzir em nós respostas automáticas. Nos tirar o poder de indeterminação; em suma, nos tirar o poder de agir livremente.
É nesse intervalo que Bergson irá localizar a consciência. Consciência é igual a intervalo de movimento. Quanto mais reflexa for a reação, menos consciência nós teremos dela pois uma ação reflexa não exige consciência. Quanto mais pensada a reação maior será a consciência. É uma maneira dinâmica de pensar a consciência; quanto mais automáticos menos conscientes; quanto mais indeterminados mais conscientes. Nesta tese, portanto, consciência também passa a ser  sinônimo de liberdade pois quanto maior for o intervalo entre a excitação e a resposta maior será a consciência. Quanto menor for o intervalo menor será a consciência. Quanto menor o intervalo, mais reflexa será a reação logo, mais determinada será a reação.
A ação reflexa é mais determinada. Quanto mais pensada for a reação, a resposta, mais indeterminada ela será.
Bergson começa a dizer uma coisa interessante; ele afirma que o papel da consciência é duplo. Por um lado, ira selecionar estímulos, por outro lado, escolher, dentre respostas possíveis, a mais eficaz...A consciência seria sensório-motora. Se eu penso, dentre as respostas possíveis, qual a mais eficaz, mais indeterminado eu me comporto perante os outros e perante a matéria.
A indeterminação do intervalo está ligada à seleção dos estímulos e a escolha da resposta. O que me permite dizer que no intervalo de movimento, duas coisas se passam e aí, Bergson e Freud estão muito próximos. O estímulo selecionado é retido. A retenção e a fixação do estímulo, chamar-se-á memória e a escolha das respostas possíveis, abre para o vivo um campo de expectativas.  Em relação a este campo de expectativas, posso dizer que o vivo  antecipa o futuro. Sendo assim, é possível dizer que no intervalo há uma espera...O vivo retém e espera... Antecipar é uma forma de esperar. Bergson então vai dizer, que liberdade e espera se confundem.
Talvez seja necessário gestar na espera um ato livre, ao invés de precipitar uma reação... É lindo isso, é bonito demais! ou seja, os homens agem mecanicamente porque eles não sabem lidar com a espera. Eles não sabem espreitar o futuro. Deixar gestar dentro de si um ato que carregue a totalidade de seu ser.
Esses homens impacientes que repetem os insetos, as abelhas, as formigas... Esses homens impacientes que nascem operários e morrem operários... Por que eles reagem dessa forma? Porque eles não são capazes de se apropriar desse intervalo enquanto espera.
O nome técnico dessa espera, o nome filosófico dessa espera na filosofia de Henri Bergson chamar-se-á duração. Duração é espera.
Pergunto eu:
-Vocês estão de posse da duração de vocês ou estão vivendo um tempo padrão imposto pela cidade; pelos poderes da cidade? Às vezes, eu estou completamente fora da minha duração, ouvindo palavras de ordem de pessoas, de poderes que querem que eu cumpra reações, sem que eu possa esperar, sem que eu possa gestar, me roubando a indeterminação.
Todo problema ético vai se constituir em torno disso. Apropriem-se desse intervalo... aprendam a esperar! A espera é um problema do presente porque se pararmos para pensar o que se passa dentro dessa espera, acho que aí estará todo o problema especulativo do pensamento. É preciso hesitar... é preciso problematizar. É preciso se afastar das opiniões, do mundo do si e de si. É preciso um certo recolhimento. Toda meditação filosófica é uma espécie de aprofundamento neste intervalo. Espera é um nome até genérico; várias coisas se dão aí.

-                    Como é que ele divide o mundo dos vivos do mundo dos não vivos?
-                    Não pela matéria, porque a matéria é a mesma. Pelo intervalo.
Estão faltando agora elementos subjetivos para explicar o intervalo. Construir o intervalo. Por enquanto eu só dei dois: consciência e indeterminação, mas no intervalo você também vai encontrar o afeto. O afeto é o próprio intervalo. Quer dizer, a dor como afeto.
Onde eu sinto a dor? Antes de a resposta ser acionada e depois da percepção ser absorvida. A dor está no intervalo entre a excitação e a resposta. Quer dizer, um intervalo maior garante a Bergson pensar, por exemplo, na maior capacidade de sentir.
Os poetas, normalmente, são retardados em termos de ação. Contemplam porque a poesia nasce da sensação. Os artistas, tão desinteressados, prestam atenção ao que não tem nenhuma utilidade... ao que é da ordem do inútil. Esse estado de contemplação é que habita a origem da obra de arte.

-                    Mas a intuição não é uma resposta mais rápida?
-                    A intuição também está no intervalo. Normalmente, nós usamos a inteligência.

- Mas aí não diminui?
-        De jeito algum, a intuição é um ato do espírito, e não um fenômeno  motor.
Para haver intuição é necessário que você não responda imediatamente porque quando responde imediatamente o que você faz? Identifica os dados sensoriais a partir das representações que traz na sua consciência. Você reconhece e reage. Quando está dirigindo um carro, mecanicamente, é ação reflexa mesmo. Agora, quando especula … a sua atenção vai e volta. Aí Bergson diz que começa a aparecer alguma coisa que não é da ordem da inteligência e sim da intuição.
-E quando você responde alguma coisa que não sabe exatamente de onde vem essa resposta, ou quando você faz um traço que não sabe exatamente de onde vem o traço?

-        Aí não é intuição, é memória. Bergson vai dizer que existe uma memória de dispositivos motores que não precisa da consciência. Essa memória está no corpo. Ele chama de memória-hábito. E existe uma outra memória, que para ser recuperada precisa da consciência, que é a memória das imagens-lembrança.

Bergson desenvolve uma dupla teoria da memória. Essas ações reflexas, esses movimentos abruptos são uma memória corpórea... ele parte daí.
Para Bergson, com certeza, intuição não é uma simpatia, não é um sétimo sentido. Intuição é uma visão imediata do espírito... enquanto visão imediata do espírito supõe uma suspensão dos interesses práticos. Ele está dizendo que se a sua atenção consciente está voltada para os seus interesses, ela é toda sensório-motora. Você observa e retém a informação que precisa para agir de forma eficaz. A intuição só começa a valer quando essa atenção se volta para o intervalo.
Perceber o que normalmente você não percebe, suspendendo os interesses práticos; isto é que é intuição ou seja, que você possa fazer um aprofundamento na sua duração.

-                    Isso não tem a ver com o tempo?
-                    Tem a ver com o tempo.
Mas você está mergulhando onde? Dentro do espírito?

- Em qualquer lugar que eu queira.
-        Não. É isso talvez que se tenha que explicar. Duração é tempo. Bergson vai dizer, que espírito... subjetividade é tempo.
Uma tese dificílima. Não um tempo instantâneo, cronológico, descontínuo mas sim, um tempo que é “fluxo”. Um tempo que ele chama de duração. Duração real. A minha duração real. Como é que eu detecto esta duração real? Bergson dirá, e diz bem que é “pela espera”. É só na ordem da espera que eu percebo que as coisas mudam e que é uma duração concreta... aquém do tempo do relógio. Quem é que pode acessar essa duração concreta aquém do tempo do relógio? Bergson dirá que a inteligência jamais, porque a inteligência cronometra tudo. Só a intuição. É você poder se sentir na espera e perceber que as coisas duram e que a mudança é intrínseca à própria duração... não vem de fora. Não adianta querer mudar... não vai mudar nada. Você vai apenas reproduzir o que já sabe. A mudança é gestada na espera por isso é preciso mergulhar... E aí tem uma outra coisa também que é, “intuir não é sair de si”.
O instrumento que nos permite sair de nós mesmos é a inteligência. Bergson diz que é com a inteligência que eu calculo... que eu  domino a matéria... que eu jogo sobre a matéria leis. A inteligência permite que eu saia o tempo inteiro de mim mesmo... que me volte para o mundo que se constrói ao meu redor. A intuição seria um instrumento especulativo para que eu possa entrar em mim mesmo ou seja, eu só entro em mim mesmo, só me aproprio dessa esfera, que Bergson chama de duração, pela via da intuição. Tem a ver um pouco com o ócio... parar um pouco os movimentos práticos e interesseiros para trafegar nisso que Bergson chama de espírito. Mergulhar nessa duração.
Então, primeira observação: intervalo de movimento é centro de indeterminação. Caracteriza toda e qualquer imagem viva. Qualquer imagem viva tem intervalo de movimento.
Segunda informação: intervalo de movimento é consciência. Onde houver consciência há indeterminação, seleção e escolha.
O nome genérico que eu dei ao intervalo foi duração e por fim, articulei duração e espera. Quando Bergson apresenta o conceito de duração, isso está no primeiro livro dele “Ensaio sobre os dados imediatos da consciência”, ele apresenta o conceito de duração em oposição à noção de instante. Ele diz que o instante é uma abstração, quando nós falamos de tempo real. O instante, enquanto instante matemático, tem a sua utilidade, auxilia a inteligência na labuta com a matéria, mas é inteiramente fictício quando o assunto é o espírito; quando o assunto é a subjetividade.
Quando, na filosofia, o instante é pensado como a única dimensão do tempo que existe, o passado passa a equivaler ao instante que foi, logo, não existe mais e o futuro passa a equivaler ao instante que será; não existe ainda.
Nas ditas filosofias do instante, só o instante é; o passado não é, o futuro não é e a passagem de um instante para outro instante se faz por intermédio de um processo que nós chamaremos de dialético. A dialética do instante vai do instante que é ao instante que se torna, através de uma negação. Para que esse instante ceda lugar a um outro instante é preciso que ele se negue, ele deixe de ser, se torne passado para que um outro instante possa aparecer. Bergson diz que isto é falso porque se nós considerarmos o presente do ser vivo, o presente agora, atual do ser vivo, a primeira consideração a ser feita é que ele nunca é porque a característica do presente é passar... não ser... o presente passa.! O presente passa... o presente nunca é! Ele passa... ele consiste em passar... em vir a ser... não em ser!
Porém, quando nós interrogamos o ser do vivo à luz do tempo, inevitavelmente, chegaremos à conclusão de que aquilo que nele é, é o passado; aquilo que nele consiste é o passado porque o seu presente consiste em passar.
Para Bergson, enquanto pensador da duração... o que é em nós é o passado ou seja, tudo que eu sou, eu devo ao meu passado, porque no presente eu sou matéria móvel; no presente eu estou passando...O agora é o efêmero... é o que não pára de passar e aí, tudo o que eu sei, tudo que eu falo, tudo que eu transmito, todas as minhas ações, todas as minhas reações foram aprendidas ao longo da minha existência... Uma vez aprendidas, acumuladas em mim como memória! Uma inversão interessante na medida em que se eu penso a duração bergsoniana dessa forma, eu terei que dizer, rigorosamente, que segundo Bergson:
“O ser do vivo é passado... O presente do vivo é devir”!
E a duração seria segundo a metáfora do Bergson:
“O prolongamento do passado no presente... marchando em direção ao futuro”!
Ele dá uma outra imagem, também bonita, quando compara:
“É como uma bola de neve, que rola do passado para o presente e vai crescendo ao marchar em direção ao futuro”!
Uma outra imagem que ele também oferece:
“Um passado que, no presente, vai comendo o futuro, e engordando”!
Se a cada presente que passa o passado conserva, é impossível, segundo a lógica bergsoniana, passar pelo mesmo presente uma segunda vez porque na segunda vez teremos, no mínimo, a lembrança da primeira implicada, como uma caixa de ressonância e, na terceira vez, a lembrança do segundo implicada.
Na vida do espírito, que é duração, só há novidade, não há envelhecimento... O envelhecimento é da matéria.
É claro que as reflexões são filosóficas. Você pode se sentir velho e cansado e, normalmente, as pessoas se sentem velhas e cansadas. Porque elas estão, de alguma forma, referidas a uma velha idade mas não é possível considerar a velhice também como uma nova idade?
Eu nunca fui velho...eu envelheço. A velhice pode ser uma nova idade, mas todas as idades serão sempre novas idades.

Apropriar-se da novidade da nova idade, que é o tempo, é o projeto bergsoniano, e eu espero tê-lo apresentado a vocês!

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“O todo aberto: tempo, pensamento e desejo” Aula 02
Auterives Maciel
1 abril 2002

Na aula passada, trabalhei a teoria do afeto em Henri Bergson.  Partindo da idéia bergsoniana de intervalo de movimento, é assim que Bergson apresenta a subjetividade no início do “Matéria e Memória”, localizei o afeto entre a percepção e a ação.
Mostrei como Bergson pensava o afeto no intervalo, localizando-o entre a percepção e a ação, ou seja, entre o sensório e o motor. No final da aula aprofundei a investigação na direção desse intervalo de movimento.
Intervalo de movimento, centro de indeterminação, palavras sinônimas, subjetividade. Aprofundei a investigação perguntando o quê, efetivamente, preenchia o intervalo e a resposta que apresentei foi: a memória.
Na aula de hoje, nós estaremos entrando no segundo capítulo do “Matéria e memória” , onde Bergson começa a apresentar sua teoria da memória.
Vou me demorar bastante nesta tese bergsoniana porque, segundo o autor, a memória seria o aspecto mais profundo da subjetividade.
Bergson não apresenta a memória como uma instância psíquica. Quando ele pensa a memória não se encontra em jogo um problema de localização - onde está a memória - , ele apresenta a memória de forma filosófica. Ele vai dizer, que a memória é o fundamento da subjetividade.
Ele não aborda o problema da memória tentando entendê-la como uma instância ou como um sistema psíquico. Para ele, o psiquismo é memória, porque todas as operações psíquicas estão fundadas na memória. Sendo assim, ele passa a apresentar a memória como o fundamento da subjetividade. Só que, de saída, ele fala da existência de duas memórias.
Uma memória que ele chama de memória de dispositivos motores, e esta memória ele localiza no corpo e uma memória, que ele chama de memória de imagens- lembranças. Uma memória de lembranças e uma memória de dispositivos motores. O nome que ele dará a memória de dispositivos motores, é hábito ou seja, para ele, a memória de dispositivos motores é uma memória-hábito. Para facilitar a argumentação usaremos só a palavra hábito.
O hábito seria essa primeira memória e estaria localizado no corpo e a memória propriamente dita, esta que se apresentaria na tese bergsoniana como fundamento da subjetividade, seria a memória de lembranças.
Bergson apresenta a teoria da memória, trabalhando um problema de filosofia cognitiva, trabalhando um problema de teoria do conhecimento. Qual é o problema? O problema do reconhecimento.
Ele parte da idéia genérica de que para haver reconhecimento é necessário memória, e fala, logo no início do segundo capítulo, de dois tipos de reconhecimento. Um reconhecimento que ele irá chamar de reconhecimento automático e um reconhecimento que ele irá chamar de reconhecimento atento, que ele também chama de atenção.
Ele pensa o reconhecimento da seguinte forma: Reconhecer um objeto é saber se servir dele. Não há reconhecimento desinteressado... Reconhecer um objeto é saber se servir dele. Para que serve este objeto? É isto que se encontra na base do reconhecimento.
Por que Bergson está pensando isso? Porque para ele, a recognição ou o reconhecimento se encontra a serviço dos interesses práticos. Se ele pensa o ser vivo como um ser orientado para a ação, o reconhecimento seria, para este ser vivo, função da ação logo, estaria implicado no interesse prático do vivo em questão. Reconhecer um objeto é saber se servir dele... saber utilizá-lo.
Em contrapartida, nós poderíamos dizer que o objeto reconhecido aparece sempre para aquele que o reconhece como um utensílio. Então, quando  falamos do reconhecimento, pensando reconhecimento como uma operação mental a partir da qual o homem atribui às coisas do mundo um determinado significado, um determinado sentido, é preciso, com Bergson, concluir que a atribuição de significado ou de sentido é função dos nossos interesses.
Só que ele diz que há duas formas de reconhecimento:
-Reconhecimento que se faz por prolongamento da imagem percebida em resposta motriz -  que ele irá chamar de reconhecimento automático.
-Reconhecimento que se faz por intermédio de imagens-lembranças – que ele irá chamar de reconhecimento atento.
O primeiro reconhecimento é fácil; nós reconhecemos imediatamente alguma coisa agindo sobre ela. Um reconhecimento automático. Por exemplo, a vaca reconhece o capim comendo-o. Nós discernimos o alimento de um veneno agindo; ou discernimos um perigo reagindo.
Este reconhecimento é um reconhecimento automático. Este reconhecimento automático se funda sobre uma memória de dispositivos motores, uma memória-hábito, e este reconhecimento é adquirido por repetições motrizes. Esta memória-hábito, portanto, se encontra localizada no corpo. Vou repetindo determinadas reações a partir de determinadas percepções, e, a uma certa altura, tendo a percepção reajo imediatamente. Esse tipo de reconhecimento, uma vez adquirido, é automático ou seja, não exige daquele que reconhece nenhum esforço de reflexão.
Mas há um outro tipo de reconhecimento; esse reconhecimento, Bergson irá chamar de reconhecimento atento. No reconhecimento atento o espírito se esforça, a consciência se esforça, a mente se esforça para reconhecer o objeto sendo assim, a percepção, ao invés de se prolongar imediatamente em ação motriz, em ação motora, reconhecimento automático, irá entrar em circuito com a mente.O circuito do reconhecimento automático é: percepção/ resposta motriz. Eu olho para alguém que vejo todo dia e digo: Oi, fulano. Não há nenhum esforço reflexivo; percepção/ resposta motriz.
Agora, quando eu olho para um objeto, para uma pessoa, para uma coisa que provoca em mim, a um só tempo, um sentimento de estranheza e familiaridade, ao invés de  reagir eu reflito. Suponhamos alguém que conheci há quinze anos atrás. Quinze anos depois essa pessoa se encontra completamente diferente, mas traz alguns traços familiares, que eu interrogo: de onde foi que eu conheci esse indivíduo? No reconhecimento atento o que está no início é uma interrogação. Uma interrogação que impede a ação motriz, fazendo com que a minha atenção se volte sobre o objeto percebido.
O que é que ocorre no momento em que, ao interrogar o objeto, eu suspendo a ação motriz? Em primeiro lugar, Bergson dirá que a percepção deixa de se prolongar em ação motriz. A imagem continua sendo percebida, só que ao invés da resposta ser acionada, eu passo a acionar um dispositivo interno com o propósito de reconhecer a imagem percebida. Este dispositivo Bergson dirá, é a “rememoração”.
-No reconhecimento automático não há rememoração, há resposta.
-No reconhecimento atento a rememoração toma o lugar da ação motriz.
Se eu reconheço automaticamente não preciso rememorar nada... nenhum esforço é exigido... eu reajo. Mas quando me deparo com uma certa dificuldade de reconhecer, quem me socorre? Bergson dirá: a memória.
Então, no reconhecimento atento, a imagem percebida entra em circuito com a memória. A imagem percebida é presente, a imagem rememorada é passada mas ambas, no reconhecimento atento, passam a coexistir na consciência.
Se você demora nesta atenção é provável que comece a alucinar imagens passadas, superpondo-as às imagens que estão sendo percebidas. Por quê?  Bergson dirá que neste circuito você vai, a um só tempo, do presente ao passado, do passado ao presente, de tal maneira que, no limite, talvez não seja nem mais possível discernir o que é passado do que é presente.
É claro, que depois que reconheço o objeto eu irei reagir sobre ele. O problema é saber o que se passa no momento em que estou me esforçando para reconhecer.
Bergson diz que subjetivamente, eu evoco uma lembrança passada e esta lembrança passada, evocada por mim, passa a coexistir na consciência com a imagem percebida... Talvez a lembrança desejada não tenha sido obtida … Não, não é fulano, é alguém que andava com esse fulano e de novo, passo a evocar uma outra lembrança. – Não, ainda não é isso.
Às vezes, quando quer lembrar do nome de uma pessoa e vem um nome parecido e você diz: - Não, não é bem isso, é um outro nome. Evocamos um outro nome... Ainda não é esse... E você hesita entre vários nomes, você hesita entre várias imagens que vão freqüentando a sua consciência, com o propósito de auxiliar na recognição da imagem que está sendo percebida.

Bergson então diz que a imagem que está sendo percebida está sendo, na verdade, refletida pela minha consciência, porque a imagem percebida está fora da consciência. Ela é percebida na matéria. O que você tem na consciência é apenas um reflexo de uma imagem real que lhe afeta.
O que ele está dizendo é que se você, enquanto matéria, é uma imagem móvel, a minha percepção de você é apenas um reflexo da sua imagem que afeta a minha consciência. Conseqüentemente, a imagem que eu percebo é real.
Perceber é apenas uma operação de subtração, que a consciência faz em relação à imagem do mundo que se encontra nos afetando. Dá para dizer assim: a imagem que eu tenho aqui é apenas, como um fenômeno ótico, como um espelho, um reflexo da imagem que me afeta.
E a imagem que evoco do passado, pergunta Bergson, onde ela estava antes de ser evocada? Claro que eu sei que, enquanto imagem, ela agora se encontra na minha mente... a lembrança.
Bergson está dizendo que a imagem a qual eu percebo do mundo está no mundo, uma vez que a matéria é um conjunto de imagens e as imagens que eu recordo do passado? Onde elas se encontram, quando não rememoradas? Essa é uma grande questão!
Na consciência ela se encontra quando evocada. Eu me lembro, por exemplo, do primeiro dia em que eu subi num pé de manga. Está aqui... na minha mente.

-                    Quando evocada, portanto, presente?
-                     Presente. Passa a coexistir com as imagens percebidas. Mas de onde elas vêm? Este é o ponto. Se, num primeiro tempo, ele diz que as imagens percebidas vêm do mundo, e vêm mesmo, num segundo momento ele pergunta de onde vêm às imagens relembradas? Onde elas estão? Alguém poderia dizer que elas estão localizadas numa determinada região do cérebro. Bergson dizque se abrirmos o cérebro, só encontraremos ligações sinápticas e movimento.

- Aí há uma controvérsia, os neurocientistas dizem que está no tálamo.

-        Ou então isso, não importa. Mas como Bergson está abordando o problema da rememoração a questão que ele formula é se a imagem antes de se formar na consciência se encontra em algum lugar?

Há duas respostas possíveis, que Bergson irá rejeitar:
Primeiro, achar que a imagem está arquivada em alguma região, em alguma dobra do nosso cérebro. Ele dirá que não pois cérebro é matéria, e se é matéria é movimento. O cérebro não é um arquivo de lembranças. É um lugar de atualização de lembranças; não um arquivo.
A segunda hipótese é achar que o cérebro recria as lembranças a partir de um nada. Bergson diz que também não, porque a lembrança é um acontecimento que se deu, datado. Foi vivido e agora é reatualizado. Então, ele responde que tentar pensar a memória se servindo de uma lógica espacial é passar ao largo do fundamental, quando nós abordamos os fenômenos psíquicos a partir do passado. As lembranças não estão localizadas no espaço como as imagens percebidas. As lembranças, uma vez passadas, estão no tempo. Perguntar onde se encontra a lembrança antes dela ser rememorada é um falso problema, porque implica em abordar os fenômenos psíquicos segundo uma lógica espacial, e esquecer que as lembranças nelas mesmas pertencem ao passado e não à consciência”. Ele diz que as lembranças se conservam nelas mesmas, não em um lugar.

-        De quando é o livro “Matéria e memória”?
-        Final do século XIX, virada do século.

- Eu estava pensando na questão freudiana do aparelho psíquico também. Toda essa questão da percepção é memória também, não é... Onde ficam as memórias, em que sistema elas ficariam, as lembranças?

A resposta de Bergson, no meu entender, é mais arrojada que a de Freud porque ela vai nos conduzir para uma ontologia e não para uma psicologia profunda. Bergson diz que as lembranças nelas mesmas estão no tempo e não no espaço. Quer dizer... ocupam o espaço quando se atualizam na mente... é uma imagem-lembrança mas quando não atualizadas na mente nem chegam a ser imagens, são apenas lembranças. Bergson dirá - lembranças puras! E olha o termo que ele irá empregar: puras virtualidades.
Nós podemos dizer que o que vivemos e não me  lembro, é virtual. Lembrar é atualizar uma virtualidade. O que passou e não me lembro tornou-se virtual. Relembrar é atualizar uma virtualidade. Essa virtualidade, segundo o filósofo, passa a conferir uma realidade ao passado ou seja, o passado tem uma realidade, a saber, a realidade do virtual. O presente tem a realidade do atual... o presente é composto por atualidades. O passado tem a realidade do virtual.
A articulação bergsoniana para pensar o tempo é: virtual, atual. Aquilo que eu acabo de dizer torna-se, ao término da minha fala, virtual até que eu relembre e atualize de novo, através de um outro dito.
Por que ele está colocando isto? Porque ele está tentando pensar a subjetividade como tempo? Quer dizer... você pode falar de instâncias psíquicas... você pode falar de sistemas psíquicos dentro da subjetividade, mas explicar o processo subjetivo pressupõe o tempo e para pensar o tempo, referindo-o  à subjetividade, é preciso pensar o atual e o virtual.
Bergson tem uma tese muito curiosa. Ele diz que quando atualizo uma imagem passada, certos aspectos do acontecimento que passou são negligenciados pois eu viso, tão somente, os aspectos que me interessam. Tanto é assim, que não há duas rememorações do mesmo evento idênticas. Eu rememoro um evento sob um determinado aspecto, mais tarde rememoro o mesmo evento visando um outro aspecto e aí ele começa a mostrar uma coisa muito singular; ele diz que se assim o é, na rememoração eu estou, o tempo inteiro, diferenciando aquilo que vivi. A visada, o aspecto, já é uma diferenciação do acontecimento vivido, de tal maneira que entre o acontecimento vivido nele mesmo, que agora é virtual, e o acontecimento rememorado existe todo um processo de diferenciação. Se há este aspecto de diferenciação, entre a imagem lembrança e a lembrança pura há uma diferença de natureza. O que é que ele quer dizer? Ele quer mostar que a lembrança pura, enquanto pura virtualidade, é completamente diferente da lembrança imagem como atualização da lembrança pura. É como se ele dissesse que, de alguma forma, nós reinventamos ao rememorar porque na atualização da lembrança há sempre uma diferenciação criativa, onde eu injeto, sempre, o meu desejo, o meu afeto naquilo que eu estou evocando ao rememorar. Com isso ele passa a dizer, que entre o passado nele mesmo e o presente que evoca o passado existe uma diferença de natureza.
Em que consiste essa diferença de natureza? Em primeiro lugar, o presente é instável. Instável porque ele passa, ele muda. Ora eu sinto isso... ora eu sinto aquilo. Ora percebo isso... ora percebo aquilo. Eu vou percebendo inúmeras coisas, sentindo inúmeras coisas e vivenciando uma mudança sem interrupção... Ao passo que o passado é estável pois uma lembrança, uma vez formada, ela passa a ser para o resto da minha vida, rememorando ou não... Daqui a vinte anos, se você quiser se esforçar para se lembrar deste evento você vai recuperá-lo a não ser que tenha alguma deficiência cerebral que impeça. O que você viveu no passado “é”. Bergson diz que o senso comum erra quando diz que só o presente é, o passado deixou de ser e o futuro ainda vai ser. Mas o senso comum erra porque aplica uma palavra inadequada ao presente, que é a palavra ser. Esta palavra nunca deveria ser usada para o presente. Ele diz que a palavra mais adequada ao presente é devir e não ser, porque o presente, de qualquer um, é mudança.
Vamos pensar lá em Heráclito: o homem não entra duas vezes no mesmo rio.
E os discípulos de Heráclito diziam: não pode entrar nem uma vez sequer, porque ele está mudando, ao pisar na água. Quem entra na água? O que começou a entrar ou o que está lá dentro? Não é o mesmo.. ele está mudando.
Bergson diz que a palavra adequada ao presente é a palavra “devir” e não a palavra “ser”. A palavra ser seria adequada a que dimensão do tempo?
Bergson não hesita em afirmar que ao passado... O que é, é o passado... O presente passa.
Quando, em psicologia, nós falamos de caráter, do ser de alguém, nós estamos falando do passado deste alguém.

-                    Mas é um passado virtual, quando ele se torna presente de novo, quando lembro não me lembro do passado, mas lembro do presente, com todas as modificações. Você falou que posso lembrar daqui a vinte anos o que aconteceu aqui.. Mas eu só vou lembrar, com aquilo que eu estarei sentindo vinte anos depois, eu não vou poder lembrar disto.
-                    -Aí é que está o problema. O problema não é o que você recupera do passado, é o que está lá no passado, independente de você.
Não o que você recupera... você vai recuperar o que interessa em cada presente. Eu estou falando do ser como sendo a realidade do virtual. Independente de nós aqui lembrarmos, aquele acontecimento passado é no tempo. Eu, por exemplo,  posso falar de pessoas que se lembram do dia em que foram peixes. Eu posso falar de pessoas que se lembram do dia em que eram reis, no século XVIII. Aí alguém diz: lembranças de vidas passadas. Bergson diz: bobagem. Todas as vidas passadas coexistem com a vida presente. Você não está regredindo no tempo. É o passado inteiro que coexiste com o presente que passa. A gente cai na tentação – vivi numa outra vida; Bergson diz: não precisa, a vida acumula todas as experiências na medida em que avança. Não precisa apelar para misticismo e dizer: vivi uma outra vida. Esta lembrança, antes de ser sua, é da vida.
Então, ele está dizendo o quê? O passado é. Qual é o modo de ser do passado?  Essa é a tese – é como virtual. Ele inverte o senso comum e passa a dizer: o presente é devir; o passado é.  O presente que é devir, é sempre interesseiro, tanto em relação aos objetos presentes, quanto em relação às rememorações.
Se  interessar você lembra, se não interessar não lembra. Bergson cola ao presente à noção de utilidade: o presente é devir interesseiro, vamos dizer assim.  A categoria adequada ao presente é: o presente é da ordem do utilitário. O útil é traço do presente. Se assim é, teremos que concluir, forçosamente, que o passado em si é da ordem do inútil.
… É genial! O passado em si é da ordem do inútil. O passado não serve para nada, nele  mesmo, mas fundamenta o útil.
A pergunta a ser formulada é: quando é que as coisas passam a ser? Quando elas deixam de ser úteis. Então, Bergson vai propor, como um bom filósofo que é, um mergulho no inútil. Pensemos o que é! Olhe que inversão genial; o que é.?
As psicologias se equivocam, porque elas só pensam a partir do que é útil. Nunca pensam o que é. Se eu penso a partir do que é útil, eu estou sempre pensando perspectivas e aspectos, em função dos meus interesses. Mas nunca penso a coisa nela mesma, porque para pensar a coisa nela mesma, ela mesma enquanto ser, é preciso não mais atacá-la com os meus interesses.
Daí a dificuldade de pensar o passado nele mesmo, porque nós só visamos o passado, de acordo com os nossos interesses e o esforço do filósofo é ao invés de visar o passado de acordo com os nossos interesses, pensemos o passado nele mesmo: inútil, inativo, virtual.
“Inútil, inativo, virtual - as três características do passado”.
A imagem-lembrança que eu tenho do passado, agora é presente na minha consciência, tão presente quanto uma imagem percebida. Então, como é que, conscientemente, eu consigo distinguir uma imagem-lembrança de uma imagem percebida, se ambas são presentes? Bergson diz: distinguimos porque sabemos que a imagem-lembrança é passada mas saber que a imagem-lembrança é passada significa, para Bergson, duas coisas:
-Saber que foi no passado que eu fui buscá-la.
-Saber que ela aqui na minha mente traz a marca do passado.
A imagem-lembrança, que é presente na minha mente, traz a marca do passado; o que isto pode significar? Dirá Bergson:
-Que ela, enquanto presente, é contemporânea do passado.
Por que ela é contemporânea do passado? Porque ela traz a marca do passado. Quer dizer, o passado está ao lado dela, o passado é contemporâneo dela.
Isto causa um certo estranhamento porque, normalmente, nós pensamos o passado como aquilo que deixou de ser. Nunca pensamos o passado como contemporâneo de um presente que passou. Mas no momento em que se pensa o passado como contemporâneo do presente que passou, entendendo o presente que passou como estando aqui e agora na mente, nós começamos a perceber que o passado não é alguma coisa que se forma depois do presente ter passado, mas que se encontra ao lado do presente que passou.
Se eu digo que estou lembrando do início desta aula... comecei relembrando os aspectos da aula passada, falando do afeto, do intervalo de movimento... Estou lembrando de tudo, mas eu estou me lembrando, quer dizer, eu estou enunciando um fato que passou, a partir deste presente. Este fato que passou, a partir do presente agora é presente para nós porque eu estou enunciando, mas traz a marca do passado. Então, eu começo a perceber uma coisa curiosa...Este presente que passou, atualizado agora, é contemporâneo do passado, porque foi lá que eu fui buscá-lo. Neste caso, todo presente que foi, é contemporâneo do passado. Se todo presente que foi é  contemporâneo do passado – eis a tese: O passado não é alguma coisa que se forma depois do presente ter passado.
Contemporâneo é ao mesmo tempo. Se o passado não é alguma coisa que se forma depois do presente ter passado, o passado é contemporâneo do presente que passou. Sendo contemporâneo do presente que passou, ele nunca foi presente ou seja, o presente que eu rememoro agora foi presente, mas o passado que é contemporâneo deste presente nunca foi presente.
Então, há um elemento do passado, que é contemporâneo de todos os presentes que passaram, mas que nunca foi presente, por ser contemporâneo.
No senso comum o homem diz assim: o passado é aquilo que se forma depois do presente ter passado. Antes não havia passado, o passado vem depois do presente passar. E o futuro, o senso comum diz, o futuro vem antes do presente ter passado. Então, o futuro é anterior à passagem do presente e o passado é posterior à passagem do presente. Bergson pergunta uma coisa interessante:
-Se o passado se forma depois, se o passado vem depois, como é que o presente vai passar?
Bergson responde que quando eu falo que o presente passa, eu estou dizendo que há um presente e que há um passado.

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A pergunta que ele faz é: qual é o tempo que faz o presente passar? A resposta que ele encontra é o passado, porque o presente não passaria se ele não fosse, enquanto presente, presente passado. Se eu digo que o passado vem depois do presente passar, como é que o presente vai passar? Se o passado se forma depois do presente ter passado o presente não tem como passar, porque o presente só passa na medida em que, enquanto presente, ele já é presente passado.
Então ele diz o seguinte: essa idéia de que houve um primeiro presente, que tudo começou de um ponto zero, e o passado se formou depois do primeiro presente passar é falsa porque, se existisse o primeiro presente, esse primeiro presente nunca passaria porque todo presente que passa já é, enquanto presente que passa, presente passado.
Com isso ele deduz, que isso é um paradoxo... que o passado que faz o presente passar nunca foi presente conseqüentemente, nunca houve um primeiro presente, pois se houvesse um primeiro presente ele não teria como passar. O que é que está sendo afirmado nesta tese?
1) O que está sendo expulso desta tese é a idéia de origem e finalidade, que vai nos conduzir, inevitavelmente, para um deus criador, para uma eternidade. O que ele está dizendo, num primeiro momento é: o devir não tem início e não terá fim. A mudança está ocorrendo o tempo inteiro.
2) Para que a mudança ocorra o tempo inteiro é preciso não haver nem primeiro presente, nem um presente terminal.
As duas pontas são abolidas, só há o presente que passa.
3) Para haver só o presente que passa é preciso não reduzir o passado ao presente que foi, nem reduzir o futuro ao presente que será, mas pensar o passado e o futuro como dimensões que coexistem com o presente que passa.
Os presentes que passaram, isto é, as lembranças, estão no passado, mas o passado nunca passou, porque ele é contemporâneo do futuro que passa.
4) O passado não só é contemporâneo dos presentes que passaram, como também coexiste com o presente que agora passa. Qual é a natureza desta coexistência? Trata-se de uma coexistência virtual.
A tese, ela é construída por uma série de paradoxos, onde, a cada paradoxo, ele reforça a tese principal: o universo é uma gigantesca memória. A cada paradoxo ele reforça a mesma tese: há uma memória mundo, há uma memória cósmica, há uma grande memória virtual coexistindo com o presente que passa.

Eu posso até dizer que a minha memória, tudo que eu lembro é parte dessa grande memória. Então, por que é que nós não acessamos lembranças de outras vidas? Porque as lembranças de outras vidas são inúteis, inativas, virtuais, não nos interessam. Mas Bergson diz que não é porque não nos interessam que elas deixam de ser. Só que antes de chegar lá ele diz: o que foi, é coexistindo com o aqui e o agora.
Aí ele vem com a última tese, que é a tese que fecha tudo, que mostra como é que ele está pensando. Ele diz que quando nós rememoramos um acontecimento antigo não há diferença de tempo em relação a nossa cronologia. Eu gasto o mesmo tempo para lembrar de um acontecimento de dez anos e para lembrar de um acontecimento de cinco anos. E mais, eu não retroajo no tempo, não volto 20 anos para trás para buscar a lembrança, como se ela estivesse lá atrás. Eu não volto cinco anos pra trás para buscar a lembrança, como se ela estivesse cinco anos atrás. No processo de rememoração, eu dei um salto no interior da virtualidade.
Ele diz: a lembrança vai se formando como um processo de condensação.
A princípio, ela é apenas uma nebulosa e vai tomando forma de imagem, como se eu estivesse ajustando o foco de uma máquina fotográfica. Esse salto eu opero no presente o que mostra imediatamente, para mim, que o passado não é alguma coisa que se encontra lá atrás, mas alguma coisa que coexiste com o meu presente. Na realidade, o salto que eu opero é no virtual. O processo de rememoração é um processo de atualização de uma virtualidade.
A partir daí, ele passa a falar, o que causa estranhamento em todo mundo, em um tempo vertical. O primeiro esquema gráfico que ele monta é esse: ele coloca uma linha horizontal que é a linha da matéria, que é a linha do atual, e um ponto no centro da linha, que é o nosso presente, e uma linha vertical que é a linha do passado, que é a linha do virtual. E diz assim: o homem avança no tempo em termos sucessivos – linha horizontal; mas em relação ao passado, ele vai acumulando tudo o que vai percebendo na evolução sucessiva do presente.
Ele sustenta que só há sucessão para o presente que avança; para o passado que conserva o presente que avança não há sucessão, há coexistência.

(GRÁFICO)

O movimento do tempo é esse. Ele avança na direção do futuro e acumula na direção do passado. O tempo só é sucessão para o presente que avança. Para o passado que acumula o tempo não é sucessivo, ele é um tempo de  coexistência. Então, se eu opero um salto nessa linha, é um salto que eu opero no presente.
Eu não preciso recuar vinte anos, porque isso aqui não existe mais, está tudo aqui, e se chama memória. São saltos operados no mesmo lugar. Para os vivos porque, por enquanto, nós só estamos pensando subjetividade porque o passado, na matéria, é diferente. A matéria não rememora, a matéria repete.
Depois ele volta para a matéria para pensar o passado, repetição. Subjetividade... ele está falando da rememoração. O que ele está dizendo é que, se é  assim, nós somos infância, adolescência e maturidade ao mesmo tempo ou seja, a criança que eu fui coexiste com o adolescente que eu fui, com o adulto que eu fui ao mesmo tempo. Há nitidamente aqui uma espécie de arquitetura do tempo.

- Não tem futuro, o que há sempre é um presente que passa?

-                    O futuro é o aberto. Aquilo que se chama de futuro não é o que se prevê, porque isto é passado... passado antecipado.
-                    O que Bergson chama de futuro é o aberto, é o incerto, é o imprevisível, é o novo, vamos chamar assim.
-                    É o devir, por isso o aberto. Porque quando nós falamos: amanhã o sol vai nascer...isto é passado. A antecipação do futuro tem o seu fundamento no passado; vai nascer porque eu vi mil vezes o sol nascer e acredito que agora ele irá repetir uma experiência passada. E, caso o sol nasça, ele está repetindo o passado.

-                    Mas o sol está sempre aí, não tem tempo aí.
-                    -O sol está sempre aí, não tem tempo aí? Só tem tempo aí, porque a duração do tempo do sol, é uma repetição.

-                    Mas não é você quem faz, ele está ali.
-                    -Não, a estrela vai apagar um dia. Se ela ainda queima, ela repete a primeira chama.

-                    Sempre no físico.
-                    Mas no físico não confundam, a repetição no físico nada tem a ver com a rememoração. Nós estamos pensando a rememoração. A repetição, no físico, é um outro tipo de passado, o passado se repetindo; não o passado rememorado.

-                    .... amanhã o sol vai nascer, é um reconhecimento..
-                    Eu diria que é mais do que um reconhecimento, é uma antecipação do futuro.

-                    Mas não tem nada a ver com o reconhecimento automático?
-                    É mais complexa essa operação, porque você diz isto a partir do que reconhece. Eu chamaria isso de inferência. Você infere, a partir do que reconheceu, algo que você espera que aconteça. É um pouco mais complexo. Todo o futuro previsto tem o seu fundamento no passado. E aí Bergson vai dizer uma coisa genial: a subjetividade humana, a subjetividade do vivo é, fundamentalmente, passada. Vida é memória.

-                    E como é que vai tratar?
-                    Eu acho o seguinte, e aí vocês querem entrar em psicoterapia. Eu não estou censurando o querer entrar, estou até positivando. O fundamental é o seguinte: cuidar de si não é cuidar de si só no presente. Cuidar de si é, fundamentalmente, cuidar da memória.

Tem gente que vive “aos trancos” , e a memória volta como um calo porque isso que você vive agora, você carrega para o futuro. Vira trauma, vira marca, vira isso, vira aquilo, porque está incorporado no teu ser. Ou vocês pensam, por exemplo, que fazer esta aula aqui não exige memória? Só exige memória. Até o raciocínio pressupõe memória. Se eu digo que A é B, B é C; logo, A é C, isso precisa de memória. Porque se eu já esqueci o primeiro quando eu formulo o segundo para concluir, como é que eu vou concluir se eu já esqueci o primeiro? Até raciocinar pressupõe acumulação do primeiro juízo quando o terceiro aparece.

-                    Como é que fica quando a memória é curta?
-                    -O jogo da memória longa e da memória curta é um outro problema; é um problema de orientação.
O problema de não memória? Perda de orientação.
Agora, nunca é total, porque alguma memória é acionada. Você pode não ter a rememoração, mas você sabe se orientar porque tem a memória-hábito. Ele joga, é muito complexo. Às vezes, você não tem a lembrança, mas tem o hábito. A lembrança também foi adquirida. Nós vamos entrar nisso quando ele estiver falando de amnésia, paramnésia. Ele fala de paramnésia.  A paramnésia vocês conhecem, é o déjà vu. Ele diz que na paramnésia você tem a impressão de que já viu o que está vendo.Você não tem uma lembrança do que está vendo; você já viu e está vendo. Por quê? Porque, ele diz, que no momento em que está vendo a lembrança ela está se formando. Desenvolve-se um duplo foco: um foco presente e um foco passado. Dá a impressão de que você está assistindo ao que está fazendo. Quando ele diz, você desenvolve um duplo foco, ele passa a dizer o seguinte: o passado se forma ao mesmo tempo em que o presente passa. A lembrança não vem depois... ela se forma ao mesmo tempo. Neste exato momento, eu estou percebendo vocês e a lembrança de vocês já está em mim para ser rememorada mais tarde.
Para Bergson um problema específico é o problema das lesões cerebrais, que inviabilizam certas atualizações de lembranças. Este problema, ele vai abordar no interior do psiquismo porque, para ele, a lembrança aqui no virtual não é afetada em nada. O que é afetado é o canal para atualizar a lembrança. A lembrança nela mesma não é afetada não, ela é virtual, ela está ali.

-                    O que, na verdade, Bergson estuda não é a construção de um aparelho psíquico, um aparelho de memória, um aparelho de pensar, não é nada disso...
-                    Você pode dizer assim... Bergson está trazendo duas coisas. Isso que você está chamando de aparelho da memória está aqui, nessa instância que se poderia chamar de instância psíquica. Isso que ele está chamando de virtual não é psíquico. Isso que ele está chamando de virtual é ontológico, instância do ser.

-                    Quer dizer, o tempo todo é a questão ontológica?
-                    Ontológica. O que é que ele está querendo pensar? O ser do passado.

-                    Porque para quem trabalha o tempo todo com psicanálise, psiquismo, fica muito viciado nessa questão da construção da subjetividade.
-                    Nós estamos pensando aqui, vamos botar um termo de psicanálise, dois inconscientes: um inconsciente psíquico e esse inconsciente ontológico.

- Porque essa questão da reconstrução, em psicanálise ela não pode ser feita o tempo todo, ela tem que vir num tempo próprio; senão fica uma intelectualização. Uma das coisas bonitas da reconstrução é ela ir sendo vivida, para aí aparecer.

(CONE)
-Por que o cone? Aqui entra um aspecto que não vou explicar hoje, mas que tenho que falar para explicar o cone. Porque ele diz assim: esse ponto presente que é o nosso corpo e a nossa consciência, dimensões  materiais do nosso ser, pertence à matéria. Mas aqui nesse corpo, se injeta toda uma dimensão virtual que é a memória,  que ocupa o quê? O intervalo do movimento. Como se nós participássemos, nós seres vivos, de dois planos ao mesmo tempo: o plano da matéria e o plano da memória. O plano do atual e o plano do virtual, ao mesmo tempo. Ele diz que como seres pensantes, nós nunca estamos aqui, exceto quando agimos automaticamente. Como seres pensantes, nós estamos sempre navegando nessas zonas intermediárias. Por exemplo, quando sonha, você passeia livremente por lençóis ou regiões de passado.

-                    Eu estava pensando em estados alterados de consciência.
-                    Também, porque quando delira você está em regiões do passado.

Ele pensa que o passado mais extenso é uma virtualidade pura, mas o movimento de atualização do passado é um movimento de contração e condensação até se atualizar no presente. Só que, nesse movimento de contração e atualização, o passado inteiro vai sofrendo modificações. Poderíamos dizer que  o plano das ideias é virtual.
A atualização das idéias é uma diferenciação que vai se dando, no momento em que eu estou pensando. Tanto é assim, que eu agora planejo uma conexão, lembro de alguma outra coisa e faço uma outra conexão, e configuro um outro sentido e às vezes, lembranças que estão distantes no tempo passam a estar ao lado; uma lembrança atrás de uma outra de 20 anos atrás. Como eemplo podemos pensar:  eu vou falar de uma coisa... me lembro de alguma coisa de 20 anos atrás e enxerto isso que se passou 20 anos atrás no meu texto presente.
Bergson dirá que isso ocorre porque, no virtual, tudo coexiste. As coisas só passam no atual. Ele também diz uma outra coisa mto interessante: ele não usa a palavra recalque... ele usa a palavra atenção à vida.
Pela atenção à vida, eu elimino tudo o que for inútil e só deixo se atualizar o que for útil para as minhas ações. É como se eu me alienasse da totalidade do meu ser. Por interesse prático, eu me alieno do ser. A vida não é só interesse prático, é isso que ele quer dizer. A vida também é sonho, a vida também é devaneio.

-                    O sentimento também vira memória?
-                    Sim, mas você aí tem que prestar atenção, porque quando vira memória é lembrança, já não é mais sentimento.

O cinema moderno usa isso. Já que o cinema moderno tem como foco a subjetividade, o tema do cinema moderno é o tempo. O ano passado em Mariembad é fabuloso nesse aspecto; os filmes do Alan Resnais, Hiroshima, mon amour. O romance moderno, de alguma forma,  também usa isso.
Nós vamos entender as conseqüências desse virtual, quando eu avançar um pouco mais nas teorias bergsonianas para pensar o problema do pensamento. Porque assim, vocês vão perceber a contundência da tese; por que é que ele está colocando isso.
Ele usa metáforas geniais... Ele diz: a vida é o impulso originário do passado marchando em direção ao futuro. Mas tudo que a vida cria, ela acumula, como uma bola de neve.
Poder usar essa experiência acumulada num ato presente a ponto de fazer com que dela algo de novo possa emergir, segundo Bergson, é agir com a totalidade do ser. E agir com a totalidade do ser, eis a tese do filósofo, é agir livremente. O que é que atrapalha o homem, nessas horas? Os interesses mesquinhos, interesses práticos, sociais, políticos, utilitários, narcísicos..., onde o homem se aliena do seu ser.
Aquela noção de falso self em Winnicott é isso, falso self é exatamente isso. Você forja um comportamento adequado ao outro, ao mundo e se aliena do seu ser. A espontaneidade do que você é, que é fundamentalmente memória, não aparece, aparece no lugar o quê? Uma construção que você faz de si..
O que Winnicott chama de verdadeiro self, o self que se forma, não é outra coisa senão esse impulso espontâneo de um virtual que marcha. Para viver este verdadeiro self é preciso estar inteiro naquilo que você faz. Estar inteiro naquilo que faz, o que significa na linguagem bergsoniana? Agir com a totalidade do ser passado.  Isso é inteireza. Está tudo aqui. Tudo que eu sou está aqui concentrado, condensado. E cada ato feliz, para mim, é aquele onde eu posso jogar tudo o que eu sou nele. Isso é raro, muito raro. Na maior parte das vezes nós nos comportamos. Nos comportamos, quer dizer duas coisas: só retemos aquilo que é útil, e procuramos, o máximo possível, agir de forma eficaz.
Tem gente que não acredita em nada do que Bergson diz, porque entrar no bergsonismo é diferente de entrar numa filosofia positivista, pautada sempre em verificações científicas. Entrar no bergsonismo é aceitar fazer uma viagem, uma viagem no virtual. Pensar bergsonianamente é pensar intuitivamente.
Alguns filósofos valorizam a intuição;  a filosofia, de um modo geral, trabalha com a inteligência. A filosofia que marcou, é uma filosofia que inspirou a ciência, a filosofia que influenciou a ciência, a filosofia que deu à ciência um método empírico de verificação e objetividade. Bergson quer explorar o lado que a ciência não explorou, a saber: devaneio, pensamento, alucinação, delírio.

-                    Quem são os autores que dialogam com Bergson no século XX?
-                    Deleuze, Pierre Levy trabalha muito com a questão do virtual, Merleau Ponty dialoga com Bergson.
Tem um outro, filósofo e músico, chamado Wladimir Yankelevitch, que tem um livro lindo sobre Henri Bergson.
Agora o grande filósofo contemporâneo que reativa Bergson, traz Bergson para cá é o Deleuze mesmo. O Deleuze vai dizer, e é muito contundente o que ele diz: a filosofia é virtual.
Ninguém trabalha a filosofia... só um tolo, hoje, trabalha a filosofia como se ela fosse uma sucessão de atualidades históricas. Eu não seria tolo de tratar Heidegger dessa forma. Heidegger é virtual, para nós, e no dia em que eu atualizar ele aqui...  Heidegger será presente.
Por que é que hoje eu retorno a Platão? Porque Platão pensou coisas, lá atrás, que interessam a nós,  hoje.

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“O todo aberto: tempo, pensamento e desejo” Aula 03
Auterives Maciel
15 de abril 2002
Vou começar a aula de hoje com um texto de Henri Bergson, texto este que iremos trabalhar bastante neste curso, que se encontra no livro “O pensamento e o movente”. Esse texto está editado em português, na coleção Os Pensadores, volume sobre Bergson. O texto se chama “Introdução à Metafísica”. Inicialmente, vou conjugar teses deste texto com um outro texto de Bergson, “Evolução criadora”, para fazer, com Bergson, uma crítica a um certo preconceito. Ele fala desse preconceito como sendo um duplo preconceito:  um preconceito pedagógico que se desdobra num preconceito social. Denunciando estes dois preconceitos Bergson introduz na sua filosofia uma categoria, que vai ter uma importância tanto para pensarmos o virtual quanto para pensarmos a evolução da vida.
Em que consistem esses dois preconceitos? Primeiro, Bergson fala de um preconceito pedagógico, de um preconceito escolar. Desde a primeira infância, nós somos habituados a vincular a idéia de liberdade com a faculdade de resolver problemas; com a capacidade de resolver problemas. Nós pensamos, normalmente, que o exercício da liberdade se encontra na resolução dos problemas que nos são postos. Bergson diz, que este preconceito começa na escola, porque na escola quem apresenta os problemas, normalmente, ocupa o lugar do mestre, e o mestre é exatamente aquele que sabe cabendo ao aluno, na condição de aprendiz, resolver os problemas que são propostos pelo mestre. Se ele resolve os problemas, ele é um bom aluno, passa de ano, evolui no aprendizado. Tudo se passa como se a palavra problema tivesse um sentido pejorativo, onde o que conta, por parte de qualquer um, é a capacidade de encontrar soluções. Em termos pedagógicos, Bergson diz que isto é um preconceito, um preconceito escolar que, de alguma maneira, impede o aprendiz de colocar, isto é, de criar para si um campo de problematizações. Em seguida, ele vai dizer que este preconceito que começa na escola se desdobra em um preconceito social. Já no preconceito social a palavra problema vai possuir uma carga pejorativa maior porque quando  falamos que alguém é problemático, que alguém tem problemas, normalmente, nós estamos, de alguma forma, acentuando um defeito no indivíduo, um defeito no grupo ou em uma coletividade. Tanto na escola quanto na sociedade, somos sempre desafiados a encontrar soluções para os problemas que a própria sociedade ou a escola nos propõe. Através da denuncia deste preconceito, Bergson vai dizer que o verdadeiro exercício libertário, o exercício de liberdade do ser humano consiste no poder que ele tem, e Bergson brinca, quase divino, de criar para si ou até mesmo para a vida problemas e não buscar soluções.
Denunciando o preconceito, portanto, Bergson passa a dar à categoria de problema uma importância não só para o campo da evolução da vida como também para a própria atividade do pensamento. Bergson é um dos filósofos, no século XX, no início do século XX, que passa a dizer que pensar, assim como evoluir é, antes de tudo, criar problemas e não encontrar soluções. Para assumir esta posição, em primeiro lugar, eis a insistência do filósofo, é preciso abandonar os preconceitos sociais e pedagógicos que nos levam a crer que o desafio maior do homem é encontrar respostas ao invés de colocar problemas. Em segundo lugar, para Bergson, estes preconceitos nos levam a pensar que os problemas, ou aquilo que nós chamamos de problemas já se encontram prontos, se apresentando para nós, tão somente, como interrogações acerca de soluções já dadas, porém desconhecidas.
Bergson diz: quando um homem coloca um problema, quando um homem inventa um problema, as soluções não preexistem ao problema inventado.
O que ele está dizendo? Que a invenção de um problema é, igualmente, invenção de soluções ou seja, o exercício da criação começa, antes de tudo, na formulação e na invenção do problema. E ele passa a dizer que a categoria de problema, é mais importante do que a categoria de necessidade. Não que a necessidade não exista, mas ela não explica, segundo Bergson, a evolução da vida enquanto evolução criadora.
Podemos dizer que a tese que Bergson sustenta, desde o início da “Evolução Criadora”, é que a vida evolui porque ela tem o poder de criar problemas e de dar respostas a estes problemas criados com um detalhe, a resposta dada ao problema criado é, rigorosamente, segundo Bergson, uma invenção.
Se eu pegasse, por exemplo, e Bergson gosta desses exemplos, a biologia evolutiva... pela biologia evolutiva nós sabemos perfeitamente que a vida veio do mar. Hoje, há teses que confirmam isso; que os primeiros organismos vivos habitavam o mar. Bergson afirma que não havia nenhuma razão para que a vida se aventurasse fora da água tanto é assim, que continuam existindo seres vivos aquáticos mas, num determinado momento da evolução, determinados seres vivos fizeram um pulo fora d´água, um pequenino desvio do meio aquático para fora deste meio.

Vocês poderiam dizer: eles pularam de um meio para outro mas em biologia a categoria de meio é morfogenética, não existe um meio em si, qualquer meio é integrado à estrutura do ser vivo. Na realidade, quando estes organismos pulam fora d´água, eles saem do meio para um não meio. Eles não possuem pulmões, eles não possuem patas... eles vão ter que inventar um outro organismo. O que é que eles fazem quando pulam fora d´água? Bergson diz: inventam problemas. Terão agora, que inventar pernas, vão ter que inventar patas, vão ter que inventar uma nova membrana, vão ter que se livrar das escamas... Ou seja, eles vão ter que inventar um outro organismo para que a vida possa continuar. Então, Bergson passa a dizer: em qualquer salto evolutivo, seja numa espécie, seja entre espécies há, antes da aparição do novo organismo, um problema constituído.
Antes da aparição de um novo organismo há sempre, a constituição de um campo problemático.; a partir daí, ele passa a dizer, também, que a evolução se dá sempre pela invenção de soluções resultantes dos problemas colocados.
Este autor está procurando dar uma dignidade à categoria de problema, e elevando a categoria de problema à instância do pensamento. Se ele parte do exemplo da evolução para poder pensar, positivamente, a noção de problema é que, para ele, a evolução é criadora e a vida, antes de tudo, problematiza para criar. Agora, é preciso não supor os problemas como preexistindo pois, para Bergson, essa é a tese, a verdadeira criação consiste em formular problemas, isto é, em problematizar. Quando o homem apenas busca soluções para os problemas que o mundo lhe impõe, ele nada cria, ele procura, tão somente, se adaptar ao meio. Os problemas já foram constituídos, o meio já é proposto, meio social, meio ambiente, e ele fica tão somente tentando se adequar a este meio, procurando respostas eficazes. Mas quando o homem é levado, por força das circunstâncias, a criar problemas, é preciso que ele saiba, antes de tudo, que o que ele se encontra fazendo é problematizando uma nova maneira de existir.
_É preciso que não renunciemos ao nosso direito de colocar novos problemas!
_É preciso que não renunciemos ao nosso direito de problematizar!
Parece que, para este autor, problematizar é, verdadeiramente, um ato subversivo... Interessante isto... a humanidade desejosa de um consenso; um autor que propõe o dissenso. Só um autor que pensa o novo é que pode apostar, radicalmente, no dissenso porque no consenso, os problemas já foram dados, já foram postos, restando a nós tão somente o quê?... Uma adaptação às soluções que os problemas criaram, como problemas de um meio social...
Eu me lembro de exemplos simples: um exercício de liberdade, por exemplo, ficar rico, ganhar dinheiro. Eu não estou aí, problematizando absolutamente nada. Eu estou encontrando uma resposta, talvez a resposta mais eficaz, para poder me inserir no meio de uma maneira mais, vamos dizer assim, digna, supostamente mais digna. Bergson diz: tudo bem, mas isso é um preconceito. Por que o valor dinheiro tem que se apresentar como valor hegemônico? Não seria possível contrariar a regra e inventar novos problemas? Só que, para isto, é necessário que se assuma a noção de problema de uma forma afirmativa ou seja, não tome os problemas como já prontos, já dados, já acabados, o que seria a confissão de uma certa impotência, a saber: a impotência do homem gerar novos problemas... e pense o problema como alguma coisa que tem que ser criada. Criada, quero eu dizer, formulada, uma instância a ser formulada. Uma instância a ser criada! Um exemplo claro: a evolução da matemática se dá pelos problemas que os matemáticos inventam. porque, em matemática, teorema já supõe o problema colocado. Em física a mesma coisa; antes do físico chegar à fórmula, porque a fórmula física é uma solução, ele se depara com um problema...Quando a maçã cai na cabeça do Galileu, eis aí um problema. Perguntar, interrogar é pensar... E se ele chega, a partir daí, à lei da gravidade, é preciso entender também que ele encontrou uma resposta para aquele problema. Em qualquer atividade criativa o que vem primeiro é o problema!
Outro exemplo: se vou escrever determinada novela, em primeiro lugar, é preciso que eu formule bem o problema da novela. Poderíamos dizer, que o problema da novela aparece na idéia da novela - qual é o problema?! Em seguida, desdobrando a novela vamos encontrando, através do texto escrito, uma solução para aquele problema.
O que Bergson fala da vida serve, igualmente, para o pensamento ou seja, em um primeiro tempo é preciso formular o problema; é preciso saber formular o problema. Pergunta: qual é a natureza dos problemas? Bergson dirá, sem hesitação, os problemas são virtuais. Quando alguém formula um problema atualiza uma virtualidade imanente. Da mesma forma que quando aquele peixe pula fora d´água ele virtualiza um campo, cuja atualização resultará, inevitavelmente, na problematização de um novo organismo, de tal maneira, que é preciso dizer que a alteração pela qual nós criamos alguma coisa nunca vai de um atual dado a um outro atual mas sempre, de um virtual a um atual novo sendo aí, o processo de atualização uma verdadeira criação.
Por exemplo, ali onde o homem hesita, ali onde o homem interroga, ali onde o homem questiona, ele se abre para um campo de virtualidades. Justo o oposto daquele que fica procurando respostas mais eficazes para problemas já constituídos... enquanto problemas atuais. Pensem no que eu falei, há duas aulas atrás, de centro de indeterminação, e procurem entender, que quanto maior a indeterminação do ser vivo, mais problemático ele se torna... Conseqüentemente, mais imprevisível ele se torna... mais criativo ele se torna... e se torna, por isto mesmo, mais pensante.
Quando coloco o problema como uma virtualidade, o faço para distinguir a noção de problema da noção de resposta ou solução.
_Primeiro: a resposta ou a solução, enquanto ação, é sempre atual. Os problemas são, neles mesmos, virtualidades.
_Segundo: os problemas, enquanto virtualidades, não possuem realidade material, mas, sim, temporal.
_Terceiro: entre o problema como virtualidade e a sua resposta, a diferença é sempre de natureza, de modo que há casos em que o mesmo problema pode  engendrar respostas completamente distintas. Tem escritores, por exemplo, que perseguem o mesmo problema a vida inteira; tem cineastas que perseguem o mesmo problema a vida inteira e nunca estão contentes, porque eles acham que não foi nesse filme ainda que eles conseguiram resolver esse problema... será no próximo... não foi ainda nesse romance, será no próximo.
Não vai ser, na verdade, nunca, sendo sempre porque se o problema é, nele mesmo, virtual, ele nunca se esgota enquanto virtualidade, nesta ou naquela resposta. Há, sempre uma face do problema inesgotável, por ser ele um virtual... Eu tive, hoje, uma idéia de uma aula. A aula, nesta idéia, é uma virtualidade. No momento em que eu começo a dar a aula, eu estou atualizando e inventando a aula a partir dessa idéia. Mas no meio da aula, suponhamos, alguém coloca uma questão.... Nós estamos falando agora da relação do passado com o presente. Toda vez que nós buscamos no passado alguma coisa é porque aqui no presente um problema se apresentou. De alguma maneira, a lembrança nela mesma tem uma estrutura problemática que, ao se desdobrar, vai ganhando feições imagéticas. Na realidade, eu não estou estabelecendo uma equivalência entre memória e problema, eu estou estabelecendo uma equivalência entre virtual memória e virtual problema.
O que eu quero marcar para vocês é que a estrutura do virtual... o virtual é problemático. Toda vez que houver um processo de virtualização, nós estamos
lançados em um problema; e o contrário também: toda atualização é resolução de um problema... De repente, eu me deparo com alguma coisa que não conheço, que não sei e começo a vasculhar no passado. Rigorosamente, é preciso dizer, aí na ausência de saber, na ausência de conhecimento eu estou diante de um problema. Resolver aquele problema é a tarefa que me cabe. E só é possível resolver este problema se eu for capaz, antes de tudo, de formulá-lo. E é aí que Bergson, de uma maneira muito interessante... vai propor uma crítica no nível dos próprios problemas. Ele diz que por conta dos preconceitos, nós sempre usamos verdade e falsidade para as respostas dadas a um problema proposto ou seja, a humanidade nunca avalia os problemas, sempre avalia as respostas porque a humanidade parte do pressuposto de que os problemas são dados e não criados. Bergson pede  que apliquemos o verdadeiro e o falso no nível dos próprios problemas, e cria duas noções: verdadeiro problema e falso problema. Quando leva a prova do verdadeiro e do falso para o âmbito do problema o que ele quer, fundamentalmente, é estabelecer uma crítica imanente ao pensamento.
Em outros termos: pensar é, de fato, problematizar, sem dúvida alguma, mas é preciso que o homem saiba, de saída, se o seu problema está bem formulado ou mal formulado; se o seu problema é um problema verdadeiro ou se ele é um falso problema. Há problemas que já são criados como falsos problemas... Vai resultar sempre em alguma coisa... Talvez resulte, por exemplo, em uma superstição; é uma resposta... Talvez resulte em um assujeitamento... Talvez resulte em uma submissão. Há homens que se deixam atormentar por falsos problemas. Eles pensam que se encontram diante de um problema real quando, na realidade,  se encontram diante de um falso problema... É uma crítica.
_Ao invés de vocês dizerem, agora: Deixem de ser problemáticos!  Passem a dizer: deixa de falso problema!  É mais elegante!
Procurem colocar problemas vitais, problemas importantes. O verdadeiro problema é aquele que cria uma possibilidade de vida, de evolução, de criação. Então, Bergson diz: é preciso começar avaliando os próprios problemas, porque existem problemas que já nascem falsos. Exemplo de falso problema... Bergson fala, num determinado momento da  sua obra, que há pensadores, há filósofos que dizem que a desordem vem antes da ordem... que antes desta ordem aqui havia, provavelmente, um caos ou uma desordem, e quando eles pensam a desordem como anterior à ordem, normalmente eles apelam para um Deus ou para um princípio transcendente que impõe a ordem a partir da desordem.
A mesma coisa quando alguém pensa o nada: no princípio era o nada, Deus criou o mundo. No princípio era o caos, um Deus criou uma ordem.
Bergson diz: pensar a partir da desordem é um falso problema. Por quê? Porque a desordem como idéia não vem antes da idéia de ordem. A idéia de desordem, segundo Bergson, é uma idéia negativa: já supõe a idéia de ordem mais a sua negação. Então, na idéia de desordem não há menos realidade do que na idéia de ordem, há mais porque há sempre uma ordem primeira acrescida de uma operação lógica de negar. Ele questiona: qual o motivo que o homem possui que o leva sempre a negação de uma ordem dada? Bergson responde: impossibilidade real de lidar com as ordens encontradas ou, o que dá no mesmo: impossibilidade real de lidar com os problemas encontrados. É provável, que neste motivo que leva o homem a achar que há uma desordem generalizada, esteja implicada uma cólera, uma raiva, se entendermos a raiva ou a cólera como uma falta de adequação entre a ordem esperada e a ordem encontrada... um grupo, um bando de pivetes não teria ordem alguma. Imediatamente, o que eu faria? Projetaria sobre aquela ordem uma desordem, porque compararia a ordem ideal com a ordem encontrada. E como existe entre a ordem ideal e a ordem encontrada uma defasagem, nesta defasagem surge no espírito, a idéia de desordem.
Bergson diz que a desordem é um falso problema, porque nós sempre iremos nos deparar com ordens irredutíveis às nossas ordens idealizadas. Não haveria desordem; são várias ordens. Idem, para a idéia de nada, que é outro falso problema. O que veio antes: o ser ou o nada? Bergson diz: os filósofos sempre acham que o nada antecede o ser, mas o nada o que é em filosofia? Não ser. O não ser já supõe o ser mais a sua negação. Para chegar à idéia de não ser, de nada, é preciso, em primeiro lugar, generalizar a idéia de ser e, em seguida, negar a idéia generalizada. Aí Bergson diz: então não há menos na idéia de nada do que na idéia de ser. Há mais, porque há a idéia de ser mais a sua negação. Qualquer negação é uma operação lógica que já supõe o termo posto a ser negado mas ele diz: Um espírito que nega logicamente é um espírito insatisfeito porque para negar é preciso, em primeiro lugar, se decepcionar com os seres existentes. Ele diz:
_Em primeiro lugar, não há um ser genérico.
_Em segundo lugar, o motivo da negação generalizada está sempre numa falência do querer. Em que consiste esta falência? Incapacidade de afirmar a irredutibilidade dos seres existentes... Quer dizer que, as operações do pensamento não estão separadas da vontade, do impulso da vida e um impulso afirmativo jamais nos conduziria a pensamentos negativos, a pensamentos abstratos, a pensamentos que nos levem a conclusão de que há uma desordem primeira; um nada primeiro como matriz de tudo o que advém. São exemplos de falsos problemas. Um outro exemplo de falso problema: quanta alegria é necessária para ser feliz? Ee diz que é um absurdo achar que entre a alegria e a felicidade a diferença é de grau. Quando eu acho que entre a alegria e a felicidade a diferença é de grau, é preciso um quantum de alegria para alcançar a felicidade. Bergson afirma que entre a alegria e a felicidade, são dois sentimentos distintos, a diferença é de natureza, não de grau. Talvez a alegria seja um estado intenso, talvez a felicidade seja um estado de paz, calma. Quando se lida com os sentimentos tratando-os como coisas quantificáveis, nós ignoramos a diferença de natureza existente entre eles e engendramos, por isso mesmo, uma série de falsos problemas.
Bergson dirá que se eu estou alegre, a menor parcela da alegria contém toda alegria; se eu estou feliz o sentimento é outro. Se eu estou triste, a menor parcela da tristeza contém toda tristeza... eu estou falando de sentimento.
Então, quando o homem diz: estou pouco triste ou muito triste, está faltando palavra para este homem, porque ele está falando, na realidade, de dois sentimentos distintos e não de um mesmo sentimento, mais intenso ou menos intenso; é porque ele não consegue pensar os sentimentos no momento em que eles se dão. Ele busca sempre significações já estabelecidas; ele busca sempre significações já dadas e generaliza aquilo que não pode generalizar, pois pertence ao domínio da singularidade, o afeto, e engendra, por isto mesmo, falsos problemas.
Quem cria os problemas, sem dúvida alguma, no homem é a inteligência. Na vida não foi a inteligência, mas no homem é a inteligência. A inteligência seria, no humano, a faculdade de criar problemas mas quem denuncia os falsos problemas da inteligência não pode ser a própria inteligência porque a inteligência, como faculdade de criar problemas, não teria capacidade de estabelecer, em relação àquilo que cria, um discernimento se aquilo que ela cria é falso ou verdadeiro. Quem vai informar à inteligência se ela está, de fato, criando um verdadeiro problema ou um falso problema é uma outra faculdade, distinta da inteligência, que Bergson irá chamar de intuição. A intuição é que informa. Se você pensa uma desordem prévia à ordem, acione a intuição; vocês não irão encontrar, em momento algum, nenhuma desordem na natureza. A intuição nela mesma também não vale, porque intuição, em filosofia, é visão. Mas a intuição informa à inteligência, dando a ela condições de corrigir e criticar seus próprios problemas.
_Intuição vem do latim intuere, que quer dizer ver. Transpondo para a noção filosófica, ver quer dizer apreender sem mediação.
Qual é o objeto da intuição, para Bergson? O objeto da intuição, para Bergson, seria o espírito. Intuir, para Bergson, é ser capaz de apreender o espírito sem mediação. Então, a intuição não apareceria aí nem como um sexto sentido, nem como uma simpatia mística, uma captação mística. A intuição é concebida aí como uma apreensão imediata do espírito por ele mesmo, uma espécie de suspensão do julgamento. Vamos colocar um outro nome, já que estou falando de vários nomes como sinônimos, a subjetividade por ela mesma.

-          O que é que compõe a intuição?
-A memória, o afeto, a consciência. Bergson localiza a intuição entre a inteligência e os sentidos. Entre a inteligência, razão, e os sentidos, apreensão do mundo externo e do mundo interno, existiria uma faculdade chamada intuição.

-          E como é que se pode diferenciar de introspecção?
-No primeiro momento não dá nem para diferenciar, vai se diferenciando pela explicação. Entrar em estado intuitivo é, de alguma maneira, parar com os movimentos para prestar atenção neste movimento
evolutivo, que é o movimento da sua própria subjetividade.
Você só discerne que entre felicidade e alegria existe uma diferença de natureza, se você intuir; se for capaz de experimentar o que sente sem julgar.
Agora, é óbvio, que quando experimenta o que sente sem julgar, você está informando à inteligência um equívoco que ela comete quando subjuga um sentimento a outro quer dizer, as reparações lógicas serão sempre feitas pela inteligência. Sempre, será  a inteligência o instrumento capaz de fazer reparações lógicas, correções conceituais, etc, mas a intuição deveria estar, vamos dizer assim, informando à inteligência.
No projeto filosófico, ele passa a dizer uma coisa mais interessante:
É preciso que a intuição, de alguma forma, tome a dianteira e que o filosofar não comece pelos conceitos preestabelecidos, mas sempre por um campo intuitivo.

-Quando falou de Spinoza, você falou sobre inteligência intuitiva...
-Ciência intuitiva. Tem o mesmo valor, só não está ... é da mesma intuição que eu estou falando, só não está naquele esquema hierárquico que Spinoza propôs, porque ele está montando de uma forma diferente.

-Os dois tiveram a mesma intuição sobre a inteligência?
-Sim, só que Bergson coloca a crítica em uma outra distribuição, mas eles estão pensando a mesma coisa: eles estão pensando a intuição como uma categoria do pensamento, uma ferramenta do pensamento que viabiliza um
modo de conhecimento distinto da inteligência. Agora, o que Bergson está dizendo é rigoroso, não se pode falar de conhecimento só com intuição daí a necessidade de pensar um acordo entre inteligência e intuição, onde, neste acordo entre inteligência e intuição, é preciso, com mais rigor, pensar a inteligência convertida à intuição. Só assim podemos fazer filosofia. Então, converter a inteligência à intuição é colocar a inteligência depois... que a intuição venha em primeiro.
A intuição é exatamente o quê? O meio que nós temos de apreender, sem mediação, o virtual. A inteligência, aí sim, o que é que ela vai fazer? Ela vai elaborar, ela vai conceitualizar, ela vai atualizar, ela vai nos informar. A inteligência trabalharia com conceitos, a intuição com visões.

-A intuição é da natureza humana?
-Sim, ainda que Bergson em determinado contexto possa dizer: é uma conquista do humano.
Talvez, o próximo passo que o humano tenha que dar porque se a intuição, de alguma forma, é um instrumento que nos permite entrar na virtualidade, de alguma maneira, também, a intuição, para muitos humanos, é uma virtualidade.
Nós usamos a inteligência para quê? Primeira coisa, a inteligência na vida, no homem, é usada para quê? Para dar conta dos interesses práticos. Quanto mais inteligente mais eficaz nas respostas. Se você tem uma inteligência para comércio, você ganha dinheiro. A inteligência é prática. Se você tem uma inteligência filosófica bem cultivada, você vai fazer excelentes aulas. Mas o que seria de uma inteligência sem intuição? Apenas um instrumento de cálculo, que elabora a frio, a serviço de uma técnica ou de um interesse prático.
Existem homens que não pensam duas vezes; eles já trazem as fórmulas prontas na cabeça, aplicam, resolvem o problema. É o que mais existe, e são hiper-valorizados pelo campo social ou seja, no campo social ninguém valoriza a intuição, porque a intuição rende um tipo de especulação que chega, às vezes, a subverter a ordem social. Ninguém valoriza. Valorizar um espírito intuitivo, um espírito que sonha, que especula ao invés de agir? Não... seja inteligente. Ali onde o homem hesita, onde ele não tem respostas prontas, mesmo que não saiba, ele cai num campo intuitivo. A dúvida seria uma forma de hesitação, mas não se prendam à dúvida, pensemos na indeterminação, ali onde ele não tem uma resposta pronta, ali onde a inteligência não é eficaz, mesmo que ele não saiba, ele cai num campo de intuição. Se ele for capaz de explorar aquilo que intui nesta indeterminação, provavelmente, ele pode chegar a uma criação, chegar à formulação de um problema. Quem vai formular o problema é a inteligência mas, sem dúvida alguma, os problemas nascem sempre no campo intuitivo. Quando se está dando uma aula, está se trabalhando com palavras e com conceitos. Aliás, para sermos mais rigorosos, com palavras que são conceitos. Ao dar uma aula, ao fazer uma explicação conceitual, eu estou transmitindo palavras com significados.
Mas, no momento em que o entendimento se transmite, há, inevitavelmente, ao lado do conceito, uma compreensão intuitiva e a felicidade do professor é quando ele passa ou quando ele suscita no outro esta compreensão intuitiva porque, nesta compreensão intuitiva, você passa não só a entender o conceito, como também a ver, através do conceito, uma determinada realidade.

-Existe uma intuição inteligente ou uma inteligência intuitiva?
-Não. Existe uma inteligência convertida à intuição.
Bergson diz que na arte tudo começa na intuição. Primeiro você intui, depois formula. Primeiro você vê, depois elabora. Na arte a intuição orienta a inteligência, que é diferente, por exemplo, da técnica, onde a inteligência comanda.

-          No caso do visionário, aquele que consegue ver, se explica o seu sucesso por ser um visionário.
-Depende do visionário; se ele vê o novo ou se explica o estabelecido. Se ele explica o já estabelecido, ele não está sendo visionário, se ele explica o já estabelecido, ele está sendo altamente inteligente, ele está trabalhando com razões.

-O senso comum diz que o visionário é aquele que vê além dos outros, à frente.
-Aí é também uma operação da inteligência. A capacidade de prever é função da inteligência, que é um cálculo de razões, nada além disso. Você aposta no mais provável e, na medida em que aposta no mais provável,  vai antecipando um número maior de fatos. Mas quem aposta no mais provável e
antecipa um número maior de fatos é a inteligência, porque essa é uma função dela: antecipar, prever, generalizar.

-Na arte, você falou que o cara vê primeiro e depois formula.
-Por que eu estou dizendo que na arte a intuição aparece sempre primeiro? Porque o artista quando cria cai, em primeiro lugar, numa espécie de indeterminação. Se ele cai em primeiro lugar numa espécie de indeterminação, se ele hesita diante do quadro, no momento em que ele hesita algo vem se configurando no espírito dele.
O que se configura no espírito dele, a princípio, Bergson dirá, é uma idéia simples, quase que indistinta de uma intuição, é uma visão. No momento em que ele começa a traçar as coordenadas, no momento em que ele começa a calcular distâncias, no momento em que ele começa a estabelecer cálculos, regras para dar a esta idéia simples, indistinta de uma intuição, uma forma, aí a inteligência é acionada. A intuição quase que se confunde com a emoção, porque a intuição é do espírito. Não é a intuição sensível, é aquele momento de indeterminação, aonde algo vem, e este algo que vem ainda não tem uma formação lógica que a inteligência vai dar.
Tudo tem que começar pela emoção, mas nem sempre tudo começa pela emoção. Por quê? Porque, por outro lado há, e isso é inevitável, os conceitos e as significações preestabelecidos, o que nós chamamos no início de preconceitos, que a inteligência, por economia, utiliza como ferramenta para operar a realidade. Bergson chega a pensar esse processo de utilização do já estabelecido, pela via do utilitário, como uma espécie de alienação.
Em que consiste esta alienação? Perdemos o contato com o impulso criador que nos habita por nos tornarmos excessivamente pragmáticos. Por excesso de pragmatismo, de eficiência, deixamos de sonhar, de delirar, conseqüentemente, de criar. São espíritos pouco intuitivos, são espíritos que imitam abelhas, sociedades fechadas. Sociedades voltadas para os interesses práticos, são sociedades que não evoluem. Mas se você quiser pensar uma categoria de visionários que inventam novas formas de convívio social, aí sim se pode pensar o visionário como um ser intuitivo porque o que Bergson quer mostrar é que na gênese de um ato criativo há sempre uma intuição.

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-O problema só é verdadeiro quando ele vem da intuição; se ele for só ministrado pela inteligência ele é falso?
-Perfeito. É por isso que a intuição é instrumento de correção dos problemas. Porque quem vai formular o problema é sempre a inteligência, mas quem informa à inteligência? A intuição. Então Bergson diz: problemas sem intuição são falsos. Em filosofia não há nada de abstrato.

Quando um filósofo diz, você sente se ele está dizendo a verdade ou não, porque você intui ou não. E se você não intui, não fique acanhado achando que você é burro por não ter intuído. Denuncie o problema como falso porque intuição aqui não se gradua, inteligência sim. A intuição, ou você tem ou não tem. Às vezes, o discurso de um homem não tem intuição nenhuma, é tão lógico, tão rigorosamente lógico que não se consegue enxergar nada através daquilo. Ele tem toda razão, quando diz que há um vínculo entre intuição e emoção. Há. Mas existem emoções que são suscitadas pela inteligência.
Só há vínculo da intuição com a emoção, quando a emoção é criadora e a emoção criadora é uma coisa tão notável, porque a emoção criadora é uma emoção suscitada por uma coisa criada. Quando você ouve uma sinfonia, a emoção que a sinfonia suscita em você, lhe abre um campo intuitivo. É como se você intuísse, através da música. Você ouve uma sinfonia, você vê um mundo, você é transportado para aquele mundo.

-          Quando a intuição se casa com a inteligência, o melhor momento disso é o acaso?
-          O acaso seria uma resposta, mas o Bergson vai falar de emoção criadora. É o momento da criação. O que você está tentando pensar, é se nós poderíamos incluir o acaso aí na gênese dessa emoção. É uma questão. Mas ele está pensando o seguinte: o que está na gênese da intuição é a emoção. Quer dizer, que a filosofia possa funcionar como uma sinfonia, e que a filosofia possa ampliar a capacidade intuitiva.

-                    A filosofia só se aplica ao campo virtual.
-                    A filosofia se aplicaria ao campo virtual. Quando nós estamos trabalhando com conceitos, estamos no campo de virtualidades. Se intuir vai entender; se não intuir vai ficar em sobrevôo intelectual, ou seja vai pensar
aquela filosofia como uma filosofia abstrata. O que eu quero ensinar é que não há filosofia abstrata.

-                    A gente fica tentando puxar o conceito para o mundo já dado, aquele que  já se sabe. Fica uma luta inglória...
-                    Aí você cai no preconceito. Um duplo preconceito: o preconceito pedagógico e o preconceito social.
Os conceitos são, sem dúvida alguma, criações da inteligência. Mas o que são os conceitos como criações da inteligência? Os conceitos como criações da inteligência são respostas que o filósofo cria para problemas que ele intuiu. Então, não dá para pensar uma pedagogia do conceito sem a intuição do problema. Se vocês não intuíram o problema, os conceitos serão apresentados como vazios, apenas formalizações lógicas. Agora, se eu for feliz numa aula a ponto de passar o entendimento do problema, suscitar em vocês a intuição do problema, aí a orquestração conceitual flui com naturalidade porque você vai estar, ao mesmo tempo, trabalhando a ordem dos conceitos e as visões que aqueles conceitos traduzem.

Há sempre duas operações na filosofia: a operação de compreender, ler o conceito e a operação de ver. Mas isso não é só na filosofia não, na literatura é tão claro também... Existem visões e audições literárias, de tal maneira que todo grande escritor é, igualmente, um grande pintor e um grande músico.
Quando lê um romance, você não está lendo um romance, está sendo transportado para um mundo e, entre as palavras daquele romance, visões e audições aparecem. Num determinado momento, quando a leitura embala, você esquece até que está lendo um romance, você está num mundo; se o romance é bom. Tem um texto dele, “A intuição filosófica”, em que ele diz: compreender uma filosofia é buscar, a partir do texto filosófico, a idéia simples que nasceu da intuição. Só aí você compreende. O estudioso de filosofia é, de alguma forma, um analista, ele vai decompondo o texto, decompondo o texto... para chegar lá na idéia simples. O que é que ele pensou e quis traduzir no conceito? Aquilo que ele pensou num primeiro momento, está vinculado a uma intuição que ele teve.
Por que esses exemplos, por que recorrer à arte e à criação filosófica? Eu poderia pensar a intuição na ciência também... É porque nós temos que pensar sempre a intuição, vinculando-a com a criação. Não é que intuir seja criar, o que Bergson está dizendo é que na gênese de qualquer criação há sempre uma intuição. A criação é um processo muito mais engenhoso que implica até mesmo a inteligência, o labor da inteligência, mas sempre na gênese de qualquer criação, é isso que ele está dizendo, há uma intuição.
E sempre na gênese de qualquer intuição, isso é que ele está dizendo, há uma emoção. Qual é a natureza desta emoção? Uma emoção criadora. Bergson diz: só a criação é capaz de suscitar a criação. Em outros termos, esses espíritos pragmáticos só inspiram alienação. É uma questão de convívio. É uma questão ética que o filósofo vai colocar muito bem no final da vida dele, ou seja, é preciso que nos aproximemos dos criadores, porque são esses que vão transmitir criação. Se você passa uma vida cuidando dos interesses práticos, entre pessoas que só cuidam de interesses práticos, você vai estar reproduzindo, inconscientemente, uma sociedade de abelhas ou de formigas. Eu vou me juntar com pessoas que só cuidam de interesses práticos, de repente, estou eu tomado por interesses práticos. É impossível erradicá-los totalmente, não é essa a questão, mas sim: é possível uma abertura, um ganho a mais? Aqui a filosofia deveria ser um campo propício à intuição. E aí eu passo pela arte, porque a arte, mais ainda, porque tem gente que usa a filosofia como pragmatismo, e eu discordo.
Existem filosofias pragmáticas... peguem a filosofia analítica. A filosofia analítica se agencia com o pragmatismo. Não é um pragmatismo quando nasce, mas para a filosofia analítica não existem problemas intuitivos, existe jogo de linguagem. Existe o pragmatismo americano; o pragmaticismo americano no campo da filosofia. O segundo Wittegenstein, Richard Rorty.
Eu diria o seguinte: enquanto o espírito da filosofia se mantiver vivo, a intuição filosófica sempre estará presente. Mas não existem apenas intuições filosóficas, existem outras intuições. Quando alguém tem uma idéia incrível, essa idéia nasce de uma intuição. Por isso é que eu não acredito em idéias abstratas, isso é uma tolice. E é por isso também que eu não acredito em idéias universais, isso é uma outra tolice. Uma idéia que valha para todos. Não, não existe idéia universal. As idéias são sempre específicas, quando elas nascem de uma intuição porque nascendo de uma intuição, elas são precisas. Elas dizem respeito única e exclusivamente a este problema que aqui se elabora.

-          A intuição é sempre individual?
-          Singular. Singular é uma palavra melhor do que individual, porque também está aquém do indivíduo, o indivíduo pode ter várias intuições.

… Vou fechar a aula dizendo:
Bergson começa pensando a intuição do modo como eu apresentei, depois, nesse texto “Introdução à metafísica” , ele vai querer desenvolver a intuição como um método e aí aparece um paradoxo, porque método é mediação e intuição é conhecimento imediato. Como é possível pensar, a partir da intuição, um método? A chave do método, que passo a expor na semana próxima, já foi dada na própria aula de hoje:
_Só é possível pensar um método intuitivo se, por método, pensarmos a relação da intuição com a inteligência.

-          O método não quer dizer à procura de um caminho? Então, à procura de um caminho, intuitivamente.
-          Mas aí quem procura o caminho? A inteligência.

Para pensar o método filosófico que é elaboração da inteligência, é preciso pensar essa relação entre intuição e inteligência.
Só faz sentido aí, e respondo a você: no método intuitivo quem elabora o caminho, quem procura é a inteligência, orientada por quem? Dirá Bergson: pela intuição. A primeira regra do método eu apresentei hoje e retomo na próxima aula, que é a denúncia dos falsos problemas mas a meta do método é ensinar o homem a pensar temporalmente porque o tempo só pode ser intuído. Quando a inteligência pensa o tempo, normalmente, ela espacializa o tempo... ela conta e  contar é uma operação espacializante.
_Para você pensar o tempo sem espacializá-lo é preciso pensá-lo intuitivamente.

-          Mas o método não é temporal?
-          Vamos colocar assim: a meta do método é ensinar o homem a pensar temporalmente.

Ainda volto ao virtual para falar da evolução da vida... ainda volto á memória, mas agora vamos entrar na metodologia bergsoniana; nós agora vamos tratar de epistemologia, sempre visando à compreensão do todo aberto, onde o aberto é o tempo.

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