terça-feira, 2 de maio de 2017

As diversas ondas do feminismo acadêmico

As diversas ondas do feminismo 
acadêmico
Os diferentes momentos dos estudos acadêmicos voltados às questões da mulher e um desafio do momento atual

De uma forma geral, pode-se dizer que o objetivo do feminismo é uma sociedade sem hierarquia de gênero: o gênero não sendo utilizado para conceder privilégios ou legitimar opressão. Ou como disse Amelinha Teles na introdução de Breve história do feminismo no Brasil, “falar da mulher, em termos de aspiração e projeto, rebeldia e constante busca de transformação, falar de tudo o que envolva a condição feminina, não é só uma vontade de ver essa mulher reabilitada nos planos econômico, social e cultural. É mais do que isso. É assumir a postura incômoda de se indignar com o fenômeno histórico em que metade da humanidade se viu milenarmente excluída nas diferentes sociedades no decorrer dos tempos”.
No Brasil, o “assumir essa postura incômoda”, o movimento feminista, teve início no século XIX, o que chamamos de primeira onda. Nesta, as reivindicações eram voltadas para assuntos como o direito ao voto e à vida pública. Um grande nome dessa onda é Nísia Floresta. Em 1922, nasce a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que tinha como objetivo lutar pelo sufrágio feminino e o direito ao trabalho sem a autorização do marido.
A segunda onda teve início nos anos 70 num momento de crise da democracia. Além de lutar pela valorização do trabalho da mulher, o direito ao prazer, contra a violência sexual, também lutou contra a ditadura militar. O primeiro grupo que se tem notícia foi formado em 1972, sobretudo por professoras universitárias. Em 1975 formou-se o Movimento Feminino pela Anistia. No mesmo ano surge o jornal Brasil Mulher, editado primeiramente no Paraná e depois transferido para a capital paulista e que circulou até 1980.
Na terceira onda, que teve início da década de 90, começou-se a discutir os paradigmas estabelecidos nas outras ondas, colocando em discussão a micropolítica. Apesar de que, as mulheres negras estadunidenses, como Beverly Fisher, já na década de 70, começaram a denunciar a invisibilidade das mulheres negras dentro da pauta de reivindicação do movimento. No Brasil, o feminismo negro começou a ganhar força no fim dessa década, começo da de 80, lutando para que as mulheres negras fossem sujeitos políticos.
As críticas trazidas por algumas feministas dessa terceira onda, alavancadas por Judith Butler, vêm no sentido de mostrar que o discurso universal é excludente; excludente porque as opressões atingem as mulheres de modos diferentes, seria necessário discutir gênero com recorte de classe e raça, levar em conta as especificidades das mulheres. Por exemplo, trabalhar fora sem a autorização do marido, jamais foi uma reivindicação das mulheres negras/pobres, assim como a universalização da categoria mulheres tendo em vista a representação política, foi feita tendo como base a mulher branca, de classe média. Além disso, propõe,como era feito até então, a desconstrução da teorias feministas e representações que pensam a categoria de gênero de modo binário, masculino/feminino.
Simone de Beauvoir já havia desnaturalizado o ser mulher, em 1949, em O Segundo Sexo. Ao dizer que “não se nasce mulher, torna-se”, a filósofa francesa distingue entre a construção do “gênero” e o “sexo dado” e, mostra que não seria possível atribuir às mulheres certos valores e comportamentos sociais como biologicamente determinados. A divisão sexo/gênero funcionaria como uma espécie de base que funda a política feminista partindo da ideia de que o sexo é natural e o gênero é socialmente construído como algo que se impõe à mulher assumindo assim um aspecto de opressão. Essa base fundacional dual foi o ponto de partida para que a Butler questionasse o conceito de mulheres como sujeito do feminismo, realizando assim uma crítica radical a esse modelo binário e empreendendo uma tentativa de desnaturalizar o gênero.
Pode-se dizer que Problemas de gênero de Butler, é um dos grandes marcos teóricos dessa terceira onda, assim como o Segundo sexo de Simone de Beauvoir foi para a segunda. Segundo Harding, “as pesquisas acadêmicas voltadas às questões feministas esforçaram-se inicialmente em estender e reinterpretar as categorias de diversos discursos teóricos de modo a tornar as atividades e relações sociais das mulheres analiticamente visíveis no âmbito das diferentes tradições intelectuais”. Além disso, seu início foi ainda marcado pelo compromisso acadêmico direcionado à causa da emancipação das mulheres. Faz-se importante ressaltar que não existe apenas um enfoque feminista, há diversidade quanto às posições ideológicas, abordagens e perspectivas adotadas, assim como há grupos diversos, com posturas e ações diferentes.
Note-se que não fiz uma distinção entre o que seria teoria feminista – os estudos acadêmicos voltados às questões da mulher-, e o movimento feminista, por assim dizer na prática. Não o fiz porque corroboro com a visão de Patricia Hill Collins, de que a teoria é a minha prática. Uma deve existir para interagir dialeticamente com a outra em vez de se criar dicotomias estéreis. A teoria ajuda na prática e vice versa.
A relação entre política e representação é uma das mais importantes no que diz respeito à garantia de direitos para as mulheres e é justamente por isso que é necessário rever e questionar quem são esses sujeitos que o feminismo estaria representando. Se a universalização da categoria mulheres não for combatida, o feminismo continuará deixando de fora diversas outras mulheres e alimentando assim as estruturas de poder.
Não incluir, por exemplo, mulheres trans*, com a justificativa de que elas não são mulheres, reforça aquilo que o movimento tanto combate e que Beauvoir refutou tão brilhantemente em 1949: a biologização da mulher ou em termos beauvorianos, a criação de um destino biológico. Se não se nasce mulher, se ser mulher é um construto, ou em termos butlerianos, se o gênero é performance, não faz sentido a exclusão das mulheres trans como sujeitos do feminismo. O movimento feminista precisa ser interseccional, dar voz e representação às especificidades existentes nesse ser mulher. Se o objetivo é a luta por uma sociedade sem hierarquia de gênero, existindo mulheres que para além da opressão de gênero, sofrem outras opressões como racismo, lesbofobia, transmisoginia, urgente incluir e pensar as intersecções como prioridade de ação e não mais como assuntos secundários.
registrado em: Nísia Floresta Berta Luz Judith Butler Simone de Beauvoir Patricia Hill Collins Beverly FisherFeminismo


Fonte: https://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista/feminismo-academico-9622.html


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CONTRIBUIÇÃO DE TEÓRICAS FEMINISTAS PARA OS ESTUDOS DE GÊNERO


http://periodicos.ufpb.br/index.php/artemis/article/viewFile/17356/9870


178 Revista Ártemis, Vol. XVI n 1; ago-dez, 2013. pp. 178-185 ISSN: 2316 - 5251 A CONTRIBUIÇÃO DE TEÓRICAS FEMINISTAS PARA OS ESTUDOS DE GÊNERO THE CONTRIBUTION OF FEMINIST THEORISTS FOR GENDER STUDIES This paper discusses some contributions produced by feminist theorists regarding the debate historically built on gender as a category. Focused on the work of authors such as Joan Scott, Linda Nicholson and Judith Butler, this article points out some these theoretical criticisms about the limitations of feminist proposals focused on defining categories such as “Gender” and “Women”. They criticize binary notion of masculine/feminine to expose their theoretical innovations. The topics discussed deal with theoretical, methodological and political issues. Silvana Maria Bitencourt Universidade Federal de Mato Grosso / Departamento de Sociologia e Ciência Política. Professora Adjunta I da Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT, campus Cuiabá. e-mail: silvana_bitencourt@yahoo.com.br Esse trabalho discute algumas contribuições de teóricas feministas no debate historicamente construído sobre a categoria gênero. Focado no trabalho das autoras Joan Scott, Linda Nicholson e Judith Butler, este artigo apresenta as críticas de algumas destas teóricas sobre as limitações das propostas feministas centradas em definir categorias como “Gênero” e “Mulheres”. Criticam a noção binária de masculino/feminino para expor suas inovações teóricas. Suas colocações abrangem questões de cunho teórico, metodológico e político. Abstract: Resumo: Keywords: Gender. Women. Feminist Theory Palavras- chave: Gênero. Mulheres. Teoria Feminista. ISSN: 2316 - 5251 Revista Ártemis, Vol. XVI n 1; ago-dez, 2013. pp. 178-185 A Contribuição de Teóricas Feministas para os Estudos de gênero 179 O debate historicamente produzido sobre a categoria “Gênero1 ” tem implicado em diversas perspectivas e impasses entre as (os) pesquisadoras (es). Posicionamentos bastante distintos têm revelado a dinamicidade deste campo de estudos e a necessidade de constantes diálogos. Nesse sentido, discutir algumas premissas que acompanharam a constituição deste campo permitirá um olhar crítico sobre a definição de uma teoria academicamente compartilhada entre as (os) estudiosas (os). A possibilidade de acesso à literatura internacional sobre os estudos de gênero contribuiu significativamente para estudiosas (os) brasileiras (os) interagirem neste campo de estudos. Artigos científicos e livros produzidos por teóricas feministas (SCOTT, 1990; NICHOLSON, 1999; BUTLER, 2003:1998) ajudaram a intensificar o debate e acrescentaram sofisticação teórica em estudos de “gênero”. Pode-se verificar que estas estudiosas tomaram como ponto de partida as incoerências produzidas pelo feminismo pautado na oposição binária masculino/feminino. Este tipo de feminismo, denominado “diferencialista2 ”, procurou definir a identidade das mulheres por uma base comum, presente em todas as mulheres, ou seja, o sexo biológico no caso, o genital. Assim sendo, o feminismo “diferencialista” foi criticado muitas vezes, por essencializar masculino e feminino através de modelos dicotômicos, normativos e heterossexuais (RUBIN, 2003: 175). A autora Joana Maria Pedro, ao comentar sobre as feministas ‘diferencialistas’ salienta que, A seguir serão apresentados os enfoques das autoras (Scott, 1990; Nicholson, 1999; Butler, 2003:1998) selecionadas para este trabalho a fim de pontuar algumas de suas contribuições teóricas para os estudos de gênero. A contribuição de Joan Scott para os estudos de gênero pode ser verificada no texto “Gender a Useful Category of Historical Analysis” de 1986, posteriormente traduzido em 1990 no Brasil com o título “Gênero: uma categoria útil de Análise Histórica”. INTRODUÇÃO 1 Importante ressaltar como a autora Joana Maria Pedro (2005) fez no campo da história e Lucila Scavone (2005) no campo da sociologia, que a emergência deste campo de estudos possui estreitas relações com os movimentos feministas de “segunda onda”, neste período faziam estudos sobre mulheres. Pedro (2005) comenta que inicialmente as (os) historiadoras (es) estudavam a “mulher” em relação ao homem e posteriormente começaram a fazer estudos sobre “mulheres” a fim de incorporar outras diferenças (classe social, etnia, raça) que também excluíam mulheres. No entanto, a base comum que fazia todas as mulheres serem identificadas como “iguais” por serem vítimas da dominação masculina ainda vigorava nestes estudos. 2 O feminismo recebeu inúmeros rótulos de suas estudiosas, por isso deve ser analisado na sua pluralidade conceitual. No entanto, neste texto parto de três momentos históricos definidos por Lucila Scavone. Para a autora, o feminismo tem sido delimitado por suas etapas históricas, três grandes fases são comumente referidas: a fase universalista, humanista ou as lutas igualitárias pela aquisição dos direitos civis, políticos e sociais; a fase diferencialista e ou essencialista das lutas pela afirmação das diferenças e da identidade; e uma terceira fase, denominada de pós-moderna, derivada do desconstrutivismo que deu apoio às teorias dos sujeitos múltiplos e nômades (SCAVONE, 2008:177). As ‘diferencialistas’ eram acusadas de ‘essencialistas’ – ou melhor, de que negariam a temporalidade ao atribuir uma ontologia primordial e imutável aos produtos históricos da ação humana. Enfim, que estariam considerando que seria o sexo – no caso do genital – que portavam o que promoveria a diferença em relação aos homens, e que lhes dava a identidade para as lutas contra a subordinação. Assim, diziam que o fato de portarem um mesmo corpo que tem menstruação, que engravida, amamenta e é considerado menos forte, fazia com que fossem alvos das mesmas violências e submissão. (PEDRO, 2005, p. 81). O argumento histórico e relacional de Joan Scott Revista Ártemis, Vol. XVI n 1; ago-dez, 2013. pp. 178-185 ISSN: 2316 - 5251 BITENCOURT, Silvana Maria 180 inserissem seus estudos a partir do contexto específico e da transformação fundamental. A autora gasta significativa parte de sua análise com três enfoques teóricos, estes centrados no patriarcado, marxismo e psicanálise (dividida entre escola anglo-americana das teorias da relação do objeto e escola francesa centradas na teoria estruturalista e pós-estruturalista). Ao discutir estas teorias, que tinham a pretensão de teorizar o debate de gênero, a autora explicita as inconsistências analíticas destes enfoques e literalmente põe o “dedo na ferida”. As limitações reveladas por Scott tratam da dificuldade das autoras em sair de seus quadros de análise. Conforme Scott, enquanto as teóricas do patriarcado centradas na dominação masculina analisavam os aspectos internos, deste modo esquecendo os efeitos das estruturas na construção da identidade do sujeito; as marxistas faziam o inverso, pois ofereciam maior ênfase aos fatores externos no processo de construção da identidade. Para a autora, ambas as abordagens retardaram o avanço teórico do tema “gênero”, Na perspectiva psicanalítica, as estruturalistas e as pós-estruturalistas apresentaram o mesmo problema. A construção das identidades feminina e masculina entre as teóricas das relações de objetos naturalizou uma produção de identidade de gênero centrada somente na esfera da família e na experiência doméstica. Deste modo, revelou-se perigosamente essencialista e a-histórica, pois a construção da identidade estava centrada na responsabilidade dos pais, culpando estes de suas ausências. Esta teoria excluiu os indivíduos que eram socializados por outros tipos de família. Nesse enfoque, o social é ignorado, consequentemente, o contexto histórico também é. Entre as pós – estruturalistas da linguagem, Scott indica o valor da linguagem na captura do sentido das relações de gênero. Porém, chama a atenção para outro problema em relação ao aspecto simbólico estável do “falo” na construção da identidade de gênero. Aponta que significado do “falo” é produzido anteriormente. Nesse sentido, o gênero é a-histórico, portanto, sem possibilidades de questionamentos e mudanças. Este artigo tornou-se um clássico, pois representou um dos principais avanços teóricos para as (os) pesquisadoras (es) interessadas (os) pelo recente campo, que começou a se consolidar no Brasil no inicio dos anos 90. Diversas estudiosas3 brasileiras citam Joan Scott, não apenas pelo avanço teórico de sua articulação com a noção de poder4 para definir “gênero”, mas pela própria historicidade desta categoria no âmbito institucional brasileiro. Joan Scott, neste referenciado texto, preocupou-se em analisar minuciosamente as abordagens descritivas e teóricas realizadas por historiadoras (es), mostrando como o termo gênero foi construído pelas (os) estudiosas (os), enfatizando suas contribuições, mas também os limites destas abordagens. Em relação às abordagens descritivas, Scott salienta que gênero aparece como um novo tema, pois é usado para substituir a categoria “mulheres”. Desta forma, foi percebido como uma visão mais “neutra”, pois aparecia como dissociado da militância que o feminismo representava na época. O gênero também foi usado para designar as relações entre os sexos. Nesta abordagem descritiva, o gênero apareceu como um novo tema, um novo domínio de pesquisas históricas. Entretanto, o gênero não teve a força de análise suficiente para questionar. Portanto, mudar os paradigmas historicamente existentes. Conforme Scott, a busca de legitimidade dos estudos de “mulheres” fez com que estudiosas feministas vinculadas a quadros teóricos universais 3 Em relação às autoras brasileiras podemos destacar: Scavone, Lucila. Estudos de gênero: uma sociologia feminista? Revista estudos feministas. Vol 16, no 1. Florianópolis Jan/apr 2008, p.17-185; Pedro, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História [online]. 2005, vol 24, n.1p.77-85. ISSN 0101-9074; Grossi, Miriam Pillar. Identidade de gênero e sexualidade In: Antropologia em Primeira Mão, nº 26. Florianópolis: PPGAS/ UFSC, 1998; entre outras. 4 A autora Joan Scott (1990) ao comentar sobre a necessidade de um conceito de poder para se analisar as relações de gênero, propõe que a visão de poder social unificado, coerente e centralizado deve ser substituída por qualquer coisa que esteja próxima ao conceito foucaultiano de poder, entendido como constelações dispersas de relações desiguais constituí- das pelos discursos nos “campos de forças” sociais (Scott, 1990, p.14). ISSN: 2316 - 5251 Revista Ártemis, Vol. XVI n 1; ago-dez, 2013. pp. 178-185 A Contribuição de Teóricas Feministas para os Estudos de gênero 181 Scott alerta sobre a insistente dualidade entre realidade social e realidade psíquica, pois as perspectivas teóricas analisadas pela autora acabaram enfatizando uma das realidades. E estas teorias pouco questionaram a relação entre indivíduo/estrutura e o processo complexo que envolve a construção da identidade de gênero. A ausência do aspecto relacional que faz interagir estas realidades psíquica/social, ou melhor, indivíduo/ estrutura é salientada por Scott como uma das suas contribuições para os estudos de gênero. Sendo relacional, o gênero dialoga com classe, etnia, raça e geração, ou seja, outras categorias sociais. O aspecto histórico que envolve a construção do gênero também é destacado por Scott. Por isso, a compreensão sobre as relações sociais pode ser alcançada usando esta categoria para analisar a história numa conexão do presente com o passado. Scott define o gênero em duas partes que estão ligadas entre si, mas deveriam ser separadas para fins de análise. Para a autora, “O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é o primeiro modo de dar significado às relações de poder.” (SCOTT, 1990: 14) Na primeira definição de gênero, Scott apresenta quatro elementos que operam na construção da identidade de gênero. São eles: simbólico, normativo, noção política referente às instituições e a identidade subjetiva. A autora explica que não atuam sozinhos, são interdependentes5 . Para Scott, o gênero é construído na relação e para analisá-lo não devemos ter olhares fixos numa origem, a fim de compreender a oposição binária masculino/ feminino, mas sim no processo histórico que tem envolvido a produção/reprodução desta oposição binária. Ao analisar o campo político, a autora mostra como o simbólico e a linguagem operam no modo como são estruturadas as relações sociais. Sobre as representações de gênero que envolvem o campo político, compreende que, Desta forma, a análise de gênero de Scott não corresponde ao gênero em si, mas aos diversos campos que reproduzem/produzem discursivamente a representação masculino/ feminino. Esta noção de como opera a categoria “gênero” contribui para as (os) pesquisadoras (os) não somente questionar a oposição binária masculino/ feminino, mas ao mesmo tempo, investigar como as percepções implícitas do gênero são invocadas ou reativadas nas diferentes relações sociais. 5 Para mais informações ver: Scott, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Revista Educação e Realidade. Porto Alegre, v 16, n2, 1990. p.14. O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político foi concebido, legitimado e criticado. Ele se refere à oposição masculino - feminino e fundamenta ao mesmo tempo seu sentido. Para proteger o poder político, a referência deve parecer certa e fixa fora de toda construção binária e o processo social tornam-se ambos partes do sentido do poder de ele mesmo; por em questão ou mudar um aspecto ameaça o sistema inteiro. (SCOTT, 1990: 18). A definição de gênero de Joan Scott inaugurou uma teoria consistente para se pensar como os significantes de gênero são historicamente significados nas relações sociais. A partir dela, o debate começou a tomar corpo. Depois de Scott, Linda Nicholson publicou em 1999, o artigo “Interpreting Gender”, que foi posteriormente traduzido em 2000 no Brasil com o título “Interpretando o gênero”. Para Nicholson, a definição que separa sexo e gênero ainda tende a persistir entre as feministas. A autora comenta esta prevalência como uma “herança que ainda sobrevive” entre as feministas, e é sobre esta herança que Nicholson constrói sua argumentação. Linda tem contribuindo significativamente para pensarmos no entendimento do corpo biológico como algo complexo que está dentro de uma cultura e uma história Ao buscar as origens do gênero, verifica que o sexo biológico não foi totalmente negado pelas feministas. Ele foi empregado como base Linda Nicholson provoca as feministas diferencialistas Revista Ártemis, Vol. XVI n 1; ago-dez, 2013. pp. 178-185 ISSN: 2316 - 5251 BITENCOURT, Silvana Maria 182 Para construir seu argumento, Nicholson problematiza o corpo biológico, a forma que ele tem sido historicamente compreendido e propõe pensar o corpo como uma variável, ao invés de uma constante. No entanto, em sua análise, o corpo não desaparece; ela afirma que há diferenças no sentido e na importância atribuídas ao corpo e que tal fato consequentemente afeta o sentido da dicotomia masculino/feminino. A autora desenvolve uma análise da prevalência da metafísica materialista6 que comprova como as especificidades foram se tornando cada vez mais evidentes. De tal modo, mostra como o sentido das características físicas, que de sinal ou marca da distinção masculino/feminino, passou a ser causa, aquilo que lhe dava origem. A distinção masculino/feminino tornou-se altamente binária. Neste contexto, Nicholson referencia os estudos de Thomas Laqueur (1994) sobre a mudança que ocorre no século XVIII com o desenvolvimento da biologia e medicina quando a noção de unissexuada do corpo é substituída pela noção bissexuada. Com isto percebemos como o corpo biológico tem sido construído por discursos sociais que expressam interesses. Contudo, a diferença, quando apareceu, foi marcada no corpo da mulher. Quando Nicholson analisa os argumentos das feministas “diferencialistas”, compartilha as críticas introduzidas por Joan Scott: o perigo de generalizar as mulheres por teorias. Assim, desconhecendo os contextos sociais, tomando o corpo biológico como algo dado, ou seja, fora da cultura e sem história. Nicholson traz uma contribuição ao salientar o perigo de usarmos uma teoria que pensa o gênero como dependente do sexo biológico, pois isto pode contribuir para excluir aqueles que se desviam da norma, pelo modelo pautado na oposição binária masculino/feminino adotar uma heterossexualidade normativa. primordial na construção do gênero. Desta forma, a biologia foi utilizada pelas feministas afirmando suas vantagens através da igualdade detectada no corpo das mulheres. Mas, também distinguia as mulheres dos homens por meio do corpo biológico. Portanto, para Nicholson, não houve uma libertação da biologia na construção do gênero. A autora define essa noção do relacionamento entre corpo, personalidade e comportamento de fundacionalismo biológico, a fim de indicar suas diferenças e semelhanças em relação ao determinismo biológico. Segundo ela, Partindo deste aspecto, a biologia continua sendo o referencial para a construção do gênero sem contextualização do corpo biológico. A proposta de Nicholson é de abandonar tanto o fundacionalismo biológico como o determinismo biológico. “Defendo que a população humana difere, dentro de si mesma, não só em termos das expectativas sociais sobre como pensamos, sentimos e agimos; há também diferenças nos modos como entendemos o corpo.” (NICHOLSON, 2000: 14). 6 A metafísica materialista se desenvolveu entre os homens da ciência entre o século XVII e o XIX, esta tendência pensa as pessoas como matéria em movimento – seres físicos que podem se distinguir uns dos outros, acima de tudo, pela referência às coordenadas espaciais e temporais que ocupam. Esta visão também significou a tendência cada vez mais forte à compreensão da natureza de fenômenos específicos em termos de configurações específicas da matéria que os corporificava (NICHOLSON, 2000: 15) Tal concepção do relacionamento entre a biologia e a socialização torna possível o que pode ser descrito como uma espécie de noção ‘porta casacos’ da identidade: o corpo é visto como um tipo de cabide de pé no qual são jogados diferentes artefatos culturais especificamente os relativos à personalidade e comportamento. Tal modelo permitiria às feministas teorizar sobre o relacionamento entre biologia e personalidade aproveitando certas vantagens do determinismo biológico, ao mesmo tempo em que dispensando certas desvantagens. [...] Rotulo essa noção de relacionamento entre corpo, personalidade e comportamento de ‘fundacionalismo biológico. (NICHOLSON, 2000: 12). ISSN: 2316 - 5251 Revista Ártemis, Vol. XVI n 1; ago-dez, 2013. pp. 178-185 A Contribuição de Teóricas Feministas para os Estudos de gênero 183 Partindo desta perspectiva, a autora destaca a necessidade de complexificarmos a análise para entendermos - como estes padrões binários possuem uma historicidade. Diz ser necessário abandonarmos a dicotomia masculino/feminino, ou seja, desistir da ideia de pensarmos a categoria mulher por um único sentido, mas como uma rede complexa7 de características que se entrecruzam. Para a autora, a distinção masculino/feminino pode ter sido importante para a cultura Ocidental, no entanto há contextos em que esta distinção não se aplica e por isso esta especificidade deve ser levada em consideração. A autora sugere, Deste modo, o corpo é uma variável que deve ser compreendida historicamente, cujo sentido e importância são reconhecidos como potencialmente diferentes em contextos variáveis. Linda Nicholson propõe pensarmos a mulher numa rede complexa de características que as constitui e não reduzidas a um único sentido comum, ou seja, o “genital”. O argumento de Nicholson mostra-se focado na crítica as “diferencialistas”. Quando fala desta “herança insistente”, não comenta sobre a definição de Joan Scott, parece voltar ao feminismo de segunda onda, sem contextualizar o que a proposta de Scott acrescentou. O argumento de Nicholson propõe a negociação política numa compreensão de corpo biológico socialmente e historicamente construído. Sua crítica é sobre o corpo, ou seja, sobre o entendimento feminista sobre o corpo e os significados que o constituem discursivamente. 7 Foi através da filosofia da linguagem que defendida por Ludwig Wittgenstein que Linda Nicholson pensou esta rede complexa para se pensar a mulher em vários sentidos. (...) pensarmos o sentido de “mulher” como capaz de ilustrar o mapa de semelhanças e diferenças que se cruzam. Nesse mapa o corpo não desaparece; ele se torna uma variável historicamente específica cujo sentido e importância são reconhecidos como potencialmente diferentes em contextos históricos variáveis. Essa sugestão, desde que se assuma que o sentido é encontrado, não pressuposto, assume também que a procura em si não é um projeto político ou de pesquisa que uma intelectual será capaz de executar sozinha em seu gabinete. (NICHOLSON, 2000: 36). Como Linda Nicholson, a filósofa pós-estruturalista Judith Butler também enxerga ‘problemas’ em se procurar definir categorias como gênero e mulheres. Em 1990, publicou “Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity” traduzido em 2003, para o português com o título “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade”. Para Judith Butler buscar uma definição para gênero e mulher, já é, em si, um ato autoritário. Butler, como Nicholson, abandona a ideia de uma definição precisa para a categoria gênero e mulheres e questiona as limitações do sujeito do feminismo “mulheres”. Desta forma, critica a posição das feministas numa política representacional para as mulheres. Para Butler, tentar definir a categoria “mulheres” só tende a reforçar ainda mais o binarismo masculino/feminino de matriz heterossexual. A proposta da autora é questionar a estrutura que oferece legitimidade para este sujeito precisar existir. Partindo desta percepção, quem determinou que se precisa de um sujeito determinado para a política feminista? Deste modo, a tarefa é justamente formular no interior dessa estrutura constituída, uma crítica às categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam. A argumentação da autora, centrada em abandonar a ideia de um sujeito definido para o feminismo tem sido muitas vezes, entendida como o “fim do feminismo”. No entanto, o que Butler propõe é se pensar o feminismo como um movimento em constante transformação, ou seja, constituindo-se na contingência. Desta maneira, do mesmo modo que se questionam as bases do feminismo, também se O argumento Contingente de Judith Butler Revista Ártemis, Vol. XVI n 1; ago-dez, 2013. pp. 178-185 ISSN: 2316 - 5251 BITENCOURT, Silvana Maria 184 passa por constantes re-significações, que podem ser contestadas a todo momento. Percebemos que críticas e diálogos travados entre diferentes posicionamentos feministas são frequentes. A própria Judith Butler já recebeu críticas sobre seu posicionamento por pensar que somente poderá haver transformação a partir de um campo que não esteja ligado às categorias homem e mulher. Diversos autoras (es) que refletem no campo dos estudos feministas e estudos culturais têm procurado debater o aspecto situacional que revela a ambiguidade entre a necessidade e a impossibilidade que permeia o processo de construção da identidade (HALL, 2000). se renova o próprio movimento. Para a autora é arrogante se estipular uma base fundamental para definir a categoria “mulheres”. Por isso, destaca o perigo de se determinar uma base universal para opressão feminina, sobre isto enfatiza que, Desta forma, a afirmação da identidade feminina através de um modelo de “ser mulher” tem apresentado diversas contradições e incoerências fazendo o discurso feminista ‘diferencialista’ ser criticado pelas adeptas do pós-estruturalismo e Teoria Queer8 . Judith Butler (1998) afirma que o uso da categoria “mulher”, é coerente para reinvindicação política. No entanto, esta categoria não é fixa, é polissêmica. A proposta da autora é esquecer as identidades que rotulam fixando realidades numa alegoria de masculino/feminino. Butler (1998) propõe pensar o poder que permeia a constituição desta mulher, todo o processo que esta passou para hoje se torna um “agente”. Neste sentido, um “sujeito viável” constituído pelo poder e o discurso que permeia a sua identificação. Butler (1998) explora a ideia de liberdade do sujeito estar “aberto” para novos enfrentamentos e realidades vigorando e re-significando sua constituição. Esta desconstrução permite a abertura para estarmos cientes que a categoria “gênero” é histórica e Dentro de tudo que foi exposto nesse trabalho podemos verificar que os estudos de Michel Foucault e Thomas Laqueur têm se mostrado útil para as feministas (SCOTT, 1990; NICHOLSON, 1999; BUTLER, 2003), pois estes autores, ao partirem de problematizações que o discurso médico teve ao legitimar categorias historicamente construídas, mostram que as diferenças sobre os sexos não são e não devem ser usadas inquestionavelmente, pois suas construções permeiam poder (NICHOLSON, 2000). O olhar treinado pode salientar aquilo que pensamos ser consideravelmente seguro para nos comprometer a falar. Desta forma, escolhendo um modelo de análise que envolve determinada proposta temática consequentemente, não desenvolveremos em nossa análise aquilo que o modelo escolhido não propõe destacar. A ocorrência disso pode ser justificada por limitações de conhecimento, mas também por arrogância ou diversos motivos que nos acomodam a produzir críticas sem conhecer como o “outro” tem se constituído, sem nos autoanalisar enquanto pesquisadoras. Assim, as críticas desfocadas, muitas vezes, são feitas visando à destruição da experiência “do outro”. Por isso, sem justificações fundamentadas, o criticar sem conhecer não contribui para a produção de uma reflexividade consciente e ética (SANTOS, 2007). 8 Teoria Queer foi um desdobramento do gênero que ocorreu nos anos 90, conforme Judith Butler ocorre no momento que se começa a questionar a normatividade heterossexual e ressaltar o aspecto socialmente contingente e transformável dos corpos e da sexualidade (Butler, 2003). Considerações Finais A urgência do feminismo no sentido de conferir um status universal ao patriarcado, com vistas a fortalecer aparência de representatividade das reivindicações do feminismo, motivou ocasionalmente um atalho na direção de uma universalidade categórica e fictícia da estrutura de dominação, tida como responsável pela produção da experiência comum de subjugação das mulheres. (BUTLER, 2003: 21). ISSN: 2316 - 5251 Revista Ártemis, Vol. XVI n 1; ago-dez, 2013. pp. 178-185 A Contribuição de Teóricas Feministas para os Estudos de gênero 185 Necessitamos ter consciência da “razão indolente9 ” que nos limitou a pensar dicotomicamente excluindo uns para afirmar outros em nossas análises. Nesse sentido contextualizar como tem sido definida a categoria mulher, como propõem as autoras trabalhadas neste texto, contribui para refletirmos sobre as implicações produzidas na afirmação de um padrão de feminilidade, muitas vezes, analisado como universal. As incoerências em afirmar uma feminilidade, ou seja, um modelo de ser mulher, não negaram totalmente a biologia do corpo. Mas utilizaram as vantagens desta para afirmar o gênero constituído a partir da base biológica. Logo, ao utilizar desta base ao seu favor, as feministas não se libertaram da biologia definindo o gênero como social (NICHOLSON, 2000). No entanto, o feminismo “diferencialista” contribuiu num determinado momento histórico. Diversos intelectuais estavam dispostos a refletir sobre o discurso universal, o qual salientava uma universalidade particular. Desta forma, o momento contemplava, além de uma nova abordagem teórica/metodológica do conhecimento, uma política diferente pautada no reconhecimento daqueles excluídos historicamente. Assim sendo, foi nesta política de reconhecimento que a diferença serviu como uma base significativa para referenciar positivamente o sujeito que fora historicamente sujeitado. O trabalho de desconstrução realizado por estas teóricas tem contribuindo de diferentes formas. Joan Scott com sua teoria de gênero associada à organização social e a noção de poder mostra-se viável para trabalharmos em pesquisas que abordem os significados que ainda permeiam a distinção binária masculino/feminino historicizando estas categorias, mostrando os motivos, os interesses sobre determinada ordem estabelecida. Linda Nicholson e Judith Butler, embora estejam refletindo e compartilhando com Joan Scott, pois ambas falam das “manhas de poder”, possuem preocupações centralizadas no corpo e seu caráter historicamente construído. E tudo que é construído, pode ser mudado. Essa é a boa notícia. 9 Segundo Boaventura de Souza Santos, trata-se de um modelo de razão limitada, preguiçosa, que se considera única, exclusiva, e que não se exercita o suficiente para poder ver a riqueza inesgotável do mundo, pois nossas categorias são muito reducionistas é nesta razão que temos sido treinados o produzir conhecimentos. Para mais informações ver: SANTOS, Boaventura Sousa. Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social. São Paulo, Boimtempo, 2007, p. 12-49. BUTLER, Judith. (1998). O feminismo e a questão da Pós-modernidade. In: Cadernos Pagu n.11: p.11- 42. BUTLER, Judith. (2003). Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. FEMENÍAS, Maria Luisa. (2003). Judith Butler: Introducción a su lectura. Buenos Aires: Catálogos, 2003.. FOUCAULT , Michel. (1980). Herculine Barbin, Tradução (do francês para o inglês) Richard McDougal, New York: Pantheron. GROSSI, Miriam Pillar. (1998). Identidade de gênero e sexualidade. In: Antropologia em Primeira Mão, nº 26. Florianópolis: PPGAS/UFSC. HALL, Stuart. (2000). “Quem precisa de Identidade?” In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org). Identidades e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes. LAQUEUR, Thomas. (1994). La construcción Del sexo: cuerpo y género desde los griegos hasta Freud. Madrid: Cátedra. NICHOLSON, Linda. (2000). Interpretando o gênero. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, vol. 8, n.2: p. 09-41.PEDRO, Joana Maria. (2005). Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa. In: História [online]. vol 24, n 1: p. 77-98. RUBIN, Gayle com BUTLER, Judith. (2003). Tráfico sexual – entrevista. In: Cadernos Pagu, Campinas, n.21:,p.57.205. SANTOS, Boaventura Sousa. (2007). Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo, Boimtempo. SCAVONE, Lucila.(2008). Estudos de Gênero: inistas. Vol. 16. n.1: p.173-185, jan-apr., SCOTT, Joan Wallach. (1990). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Revista Educação e Realidade. Porto Alegre, v 16, n.2: p 5-22. Recebido em: 10/02/2013 Aceito em: 10/06/2013 Referências 

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