segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Arte, Ciência e Ficção - Jorge de Albuquerque Vieira

No dia 3 de agosto, o Cineclube Ciência em Foco exibiu o filme A máquina do tempo (The time machine - EUA, 1960), clássico de George Pal baseado no livro de H.G. Wells. Após o filme, o professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, Jorge de Albuquerque Vieira, apresentou a palestra Ficção e produção de conhecimento. Embora o filme também convide a um debate sobre a filosofia do tempo - o que poderia levar a uma série bem mais longa de encontros - a preocupação tanto de Pal quanto de Wells parece se voltar a outras áreas da ciência, levantando questões ligadas à sociologia, à economia e à política. Neste sentido, o filme consegue traduzir o espírito da obra de Wells, ao colocar em cena a preocupação com um possível destino da espécie humana. Tanto o filme de Pal quanto o livro de Wells motivaram a discussão em torno do que significa uma ficção.  Afinal, por que criamos ficções? Seria a ficção uma espécie de produção inútil, passível de ser entendida como uma mera distração? Jorge indagou se a ficção não teria uma finalidade cognitiva, aproximando-a de características do conhecimento: todo conhecimento tem como principal função manter a sobrevivência de um sistema vivo. Toda troca com o ambiente já se configuraria como uma espécie primitiva de conhecimento. Como pensar o fato curioso de nós, humanos - supostamente seres mais complexos na escala evolutiva -, nos dedicarmos a criar ficções?





Se a produção de conhecimento ficcional parece ter uma certa finalidade, haveria algum motivo para que certas ficções fossem inventadas. Vejamos a arte: os artistas lidam com a ideia de possibilidade, com as realidades possíveis, e não diretamente com aquilo que seria real. Não seria uma condição tão distante da ciência, que se baseia em uma hipótese de natureza realista-objetivista: admite-se uma realidade e procura-se guiar por ela. Todos os critérios e refutações científicas são sempre baseados nesta possível realidade, que parece não depender de nós. Portanto, o fato de se prever realidades é uma estratégia evolutiva baseada na tentativa de se entender não apenas o que a realidade é, mas o que ela pode ser. Dos tipos de conhecimento baseados em possibilidades o mais representativo deles, além da própria ciência, é a arte. Pode-se encontrar estudos de possibilidades da realidade na maioria dos autores de ficção científica, não apenas com ênfase na ciência mas na poesia ou na sociologia - esta bastante enfatizada por Wells em "A máquina do tempo". Muitas pessoas concebem o conhecimento científico separado do conhecimento artístico, como dois domínios excludentes. No entanto, aqueles que já se envolveram profundamente em atividades de pesquisa científica já devem ter se deparado com momentos de impasse, diante dos quais só nos resta criar, inventar. A partir destes casos, percebemos que o conhecimento científico não se reduz a uma mera descrição do real, já que a realidade nunca nos é dada. Como a maior parte dos aspectos da realidade estão profundamente afastados de nós, só nos resta um jeito quando queremos conhecê-la: lançar mão da invenção, fabular uma realidade e depois testar a invenção com rigor, conjecturas, sem esquecer que o que estamos submetendo a teste são ficções. Passamos, portanto, a dar certos atributos a criações que descrevem bem o mundo.

Jorge trouxe o exemplo da teoria da curvatura do espaço-tempo quadridimensional, que aparece na discussão do início do filme. De acordo com ele, as grandes teorias científicas são ficções: a partir de testes, recolhem-se indícios que mostrem, de modo indireto, se determinada ideia é boa. Einstein buscou indícios da curvatura do espaço-tempo apenas após experimentar um momento de criação, de invenção, que se aproxima do conhecimento artístico. É por isso que os grandes avanços científicos podem ser considerados atos de criação. Dividindo as ficções em dois grandes grupos, teríamos as ficções puras e as ficções eficientes, ou seja, de um lado as ficções mais ou menos livres e, de outro, as ficções mais ou menos especificadas, no sentido de serem eficientes na descrição ou representação de uma realidade fora do nosso alcance. No entanto, estes dois tipos não se contaminariam? Jorge trouxe um exemplo desta contaminação quando lembrou de suas leituras de ficção científica na adolescência, quando travou contato com o livro "A nuvem negra" (The dark cloud, 1957), de Fred Hoyle. Seu interesse pelo romance se deveu aos seus interesses de pesquisa científica naquela época. Anos mais tarde, já trabalhando com radioastronomia, descobriu que o autor do romance não só era um cosmólogo inglês, como também que seu livro de ficção tornou-se referência para muitos pesquisadores sobre as discussões científicas em torno de possibilidades de vida no Universo. Aquilo que ele havia conhecido como ficção científica, anos atrás, havia se tornado modelo científico anos mais tarde. Deste modo, longe de ser uma mera atividade supérflua, dispensável, não seria arriscado dizer que toda atividade artística é produção de conhecimento, assim como a ficção. Quando se faz ficção, ainda que não se saiba, procura-se captar alguma possibilidade do real. Muitas vezes essa conexão existe, independente do artista.

Há um motivo para isso, parece, de natureza evolutiva. Os seres humanos interagem com a realidade recolhendo os seus sintomas e depois codificando-os em suas redes neuronais. Deste modo, os sinais da realidades nos atingem e deverão ser traduzidos, transduzidos. Toda codificação, no entanto, possui limitações. As representações que criamos para lidar com o mundo e sobreviver são limitadas, além de extremamente especializadas, em comparação com outras espécies. A história evolutiva individual de cada um define os "filtros" seletivos a partir dos quais percebem e se relacionam com o real, englobados na concepção de Umwelt: termo que designa "mundo em torno", "mundo em volta", o universo perceptual de cada espécie, na concepção do biólogo estoniano Jakob Von Uëxkull (considerado hoje o pai da biossemiótica). Deste modo, a umwelt humana delimitaria aquilo que nos coube no jogo evolutivo. A questão passa a ser: como descobrir algo que se encontra para além da nossa percepção biológica individual? A resposta se insinua na nossa capacidade de expandir este nosso universo perceptual, na medida em que ele se torna não meramente biológico, mas também psíquico, psicossocial, social e cultural. Somos capazes agora de criar ficções, ao recorrer a signos para representar certos aspectos da realidade fora de nosso universo biológico. Na perspectiva de Jorge, nenhuma ficção é completamente pura, mas sempre baseada em uma possibilidade real. Do mesmo modo, estaríamos sempre lidando, na nossa experiência do mundo, com processos criativos ligados à produção de conhecimento. Estes processos não seriam restritos a determinadas áreas ou domínios, mas provariam antes a necessidade de sua mútua contaminação.


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Qual o papel evolutivo da criação artística?
http://cineclubecienciaemfoco.blogspot.com.br/2013/07/qual-o-papel-evolutivo-da-criacao.html

"Acredito que a afetividade, mais especificamente, a bondade, sejam tipos de conhecimento. Nossas sociedades, notadamente as ocidentais, têm ignorado muito destas dimensões; mas é óbvio que sem tolerância e acolhimento entre os seres vivos não há muita esperança para o futuro", Jorge de Albuquerque Vieira, Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor aposentado pelo Departamento de Astronomia da UFRJ, professor da PUC-SP e da Faculdade Angel Vianna e palestrante do Ciência em Foco de agosto.

1) Por que pensar a partir do cinema?

O cinema é um tipo de arte e em nosso trabalho consideramos tipos de artes como produtores de conhecimento; ou seja, a Arte não é mero entretenimento, mas sim uma característica evolutiva de nossa espécie, visando sempre a uma adaptação maior a uma realidade complexa.

2) O filme A máquina do tempo é baseado na obra de H.G. Wells, um dos clássicos da literatura de ficção científica inglesa. Tendo em vista o potencial especulativo destas obras com relação à realidade, capaz de projetar cenários ficcionais que provocam o pensamento acerca do nosso próprio mundo, de que modo seu caráter científico se articula ao artístico?
O caráter científico apóia-se no conhecimento que Wells tinha da ciência de sua época; ele nasceu em 1866 e ao longo de sua vida dedicou-se mais à Biologia (interagindo muito com Thomas Huxley) e, mais tarde, a publicações em Sociologia, Política e Filosofia. Tinha ideias pacifistas e socialistas. Sua produção máxima em ficção é do período de 1895 a 1900 (os dados acima foram retirados da contra-capa do livro “A Máquina do Tempo”, Francisco Alves, 1981).

Os escritores de ficção, embora não todos, possuem a característica de imaginar fatos “não existentes”, seja agora, ou no passado ou no futuro. É comum a preocupação mais atilada quanto ao futuro, quando eles têm formação científica e filosófica, avaliando as consequências das ações do ser humano no destino da própria espécie. Isso pode ser por meio de discursos fortemente científicos, como em alguns textos de Isaac Asimov, ou mesmo poéticos, como em Ray Bradbury. Wells situa-se a meio caminho entre essas duas posturas: ciência e sociologia, por exemplo. “A Máquina do Tempo”, “Os Primeiros Homens na Lua”, “A Guerra dos Mundos”, são típicos dessa tendência. Nestes casos, a criação artística identifica-se com a criação científica. Lembremos que a produção científica não se resume à forma de conhecimento discursiva, com ênfase na lógica: ela contém, geralmente no início de uma pesquisa, um caráter tácito e imaginativo que é mais típico da Arte. Fazer boa ciência implica fazer também algo com qualidade estética.

3) O senso comum associa a ideia de ciência à ideia de verdade, normalmente identificada a partir de métodos rigorosos que permitiriam uma leitura objetiva do real. De forma análoga, a ficção é comumente entendida como meio de afastamento daquilo que diz respeito à realidade. No entanto, ciência e ficção dialogam a todo momento. De que forma se dá esse diálogo, e como estes dois domínios se relacionam?

É um diálogo necessário, porque não temos acesso direto à realidade objetiva. O que acontece fora do nosso cérebro tem que ser devidamente codificado em neurônios, com todas as limitações que neurônios e codificações possuem. Essas limitações, resultantes de adaptações que se revelaram eficientes ao longo da nossa evolução, demarcam o que é chamado em Biosemiótica de “Umwelt”, a interface entre a objetividade da realidade e a nossa subjetividade. Parece-me visível que fazer ciência, principalmente a mais avançada, exige a produção de signos, em nossa “Umwelt”, para representar aquilo que parece existir objetivamente, mas fora do alcance de nossa elaboração perceptual. Atos de criação.

Por exemplo, ao que tudo indica existe algo associado ao espaço-tempo que representamos como “curvatura”; ela está fora do nosso alcance perceptual, adequado a três dimensões, mas testes (perguntas bem feitas à realidade) científicos fotografam, embora de maneira indireta, os resultados da curvatura do espaço-tempo ao alcance de “nossas” três dimensões. Imaginamos, sempre indiretamente, uma curvatura quadridimensional e buscamos comprovar isso pelos seus reflexos em três. Imaginação e criação.

A Arte me parece um tipo de conhecimento que trabalha possibilidades do real, explorando fortemente o nosso conhecimento tácito e nossa imaginação e, no caso da pesquisa científica, orientando a produção de teorias avançadas e de modelos. Este é um ponto de confluência entre os dois tipos de conhecimento.

4) As duas sociedades que habitam o mundo no futuro, no filme de George Pal, podem ser entendidas como desdobramentos possíveis de certas características atuais da civilização, como o ideal de progresso e a desigualdade social. Como pensar as tensões entre o progresso científico e a ética, situando a produção de conhecimento como dimensão política?

Creio que uma tentativa de avaliar esse problema consiste em considerar outros tipos de conhecimento, além da ciência e tecnologia. A Ética, por exemplo, é componente da Axiologia, a teoria dos valores. A questão é que nosso conhecimento, ainda primitivo, é complexo, já que tem que lidar com uma realidade muito, muito complexa. Conhecemos “bem” alguma coisa quando este conhecimento, acima de tudo, é capaz de nos manter vivos, permanentes no tempo. O papel evolutivo do conhecimento é a sobrevivência. O que pode nos destruir é a crença no sucesso e suficiência de um único tipo de conhecimento e o abandono de outros. Uma sobrevivência complexa em meio ao complexo só me parece possível quando elabora valores e outros aspectos de nossa vida. Por exemplo, acredito que a afetividade, mais especificamente, a bondade, sejam tipos de conhecimento. Nossas sociedades, notadamente as ocidentais, têm ignorado muito destas dimensões; mas é óbvio que sem tolerância e acolhimento entre os seres vivos não há muita esperança para o futuro. É preciso não esquecer que nossa espécie já se tornou capaz da autodestruição. Como disse Edgar Morin, o Homo sapiens sapiens é também o Homo demens.

5) Roteiros alternativos - espaço dedicado à sugestão de links, textos, vídeos, referências diversas de outros autores/pesquisadores que possam contribuir com a discussão. Para encerrar essa sessão, transcreva, se quiser, uma fala de um pensador que o inspire e/ou seu trabalho.

Jakob Von Uexkull, pai da biosemiótica. Bom livro dele: “A stroll through the worlds of animals and men”. Boa frase dele: “As únicas leis que conhecemos são as leis dos signos”.

6) Como conhecer mais de suas produções?
Os pontos principais de meus trabalhos estão contidos em 3 livrinhos, pertencentes a uma trilogia cujo título em geral é “Formas de Conhecimento: Arte e Ciência” com os volumes (1) Teoria do conhecimento e Arte, (2) Ciência e (3) Ontologia.

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