segunda-feira, 1 de maio de 2017

Sem pão e sem rosas: do feminismo marxista impulsionado pelo Maio de 1968 ao academicismo de gênero

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http://www.ifch.unicamp.br/formulario_cemarx/selecao/2009/trabalhos/sem-pao-e-sem-rosasdo-feminismo-marxista-impulsionado-pelo.pdf

https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/view/18620


Sem pão e sem rosas: do feminismo marxista impulsionado pelo Maio de 1968 ao academicismo de gênero 

Renata Gonçalves 
Profa. do Departamento de Ciências Sociais Universidade Estadual de Londrina 

Neste artigo, pretendemos retomar a dinâmica do movimento feminista destacando a particularidade de sua dupla face no Brasil: o feminismo “revisitado” e o movimento de mulheres. Se na origem encontramos um feminismo combativo nos moldes da explosão de maio de 1968, na atualidade percebemos um feminismo cada vez mais confinado ao estudo acadêmico e/ou à institucionalização, sobretudo por meio das assessorias às ONGs, o que contribuiu para o refluxo da luta de classes.

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As experiências feministas de maio de 1968 Com o golpe militar de 1964 muitos jovens estudantes se lançaram à resistência, inclusive armada, e vários tiveram de deixar o país, dentre estes, muitas mulheres militantes ou companheiras de homens que atuavam em organizações de esquerda. Passaram pelo Chile popular de Allende, mas a ditadura de Pinochet os lançou mais uma vez em rota de fuga. A Europa, sobretudo a França, acolheu esses jovens que também chegavam de outras regiões do mundo, inclusive de outros países latino-americanos. Ali encontraram uma agitação social e cultural que marcaria as jovens mulheres. Os anos no exílio revelaram uma faceta ainda desconhecida de seus companheiros de luta. A realidade era bem diferente daquela da classe média brasileira, de onde saíra a maioria destas jovens, que sempre recorreu às empregadas para o desempenho das tarefas domésticas, permitindo camuflar os problemas ligados à desigualdade presente na divisão sexual do trabalho. Agora a situação era outra: “os companheiros de arma revelaram-se tão tradicionais e pouco dispostos a dividir os trabalhos domésticos quanto seus pais burgueses e acomodados...”1 . As jovens mulheres logo encontraram refúgio junto ao ativo movimento feminista francês que colocava em xeque as tradicionais hierarquias em que o poder masculino era aceito como natural. Se maio de 1968 questionava o funcionamento da sociedade e considerava que tudo era um construct, logo, passível de transformação, restava voltar os olhos para uma exceção: as mulheres, suas ocupações, suas relações com os homens. Esta nova onda do feminismo francês, nascida da revolta de maio de 1968, contribuiu para uma mudança radical das estruturas mentais. Em torno do Movimento de Libertação das Mulheres, o movimento feminista, talvez mais que outros, expressou o espírito do período: um “nada será como antes”. Tanto estas experiências do feminismo francês como a afinidade política entre mulheres com a mesma trajetória de esquerda serão decisivas no sentido de permitir a articulação dos grupos feministas entre as exiladas brasileiras. Tais experiências também ∗ Dep. de Ciências Sociais da UEL; pesquisadora do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais (PUCSP) e do Grupo de Estudos de Política da América Latina (UEL). 1 Maria Lygia Quartim de Moraes, Marxismo e feminismo no Brasil. Campinas, Unicamp, 1996, p. 4. 3 foram vistas com desconfiança pelos companheiros homens. Como observa Pinto, “a esquerda exilada, marxista e masculina, via no feminismo uma dupla ameaça: à unidade da luta do proletariado para derrotar o capitalismo e ao próprio poder que os homens exerciam dentro dessas organizações e em suas relações pessoais”2 . A relação dos exilados brasileiros do sexo masculino era tensa com os grupos feministas, “chegando ao extremo de a Frente de Brasileiros no Exílio ameaçar retirar o apoio financeiro às famílias cujas mulheres freqüentassem essas reuniões”3 . Todavia, não apenas estas posturas prevaleceram. Os grupos feministas que fervilhavam em Paris se tornaram o apoio teórico e existencial para o círculo de debates brasileiros e para vários grupos de reflexão bastante ativos. Segundo Moraes, a revista política brasileira Debate, editada e publicada em Paris por um conjunto de exilados e de brasileiros que estudavam na França, é um dos exemplos de como a temática passou a fazer parte das discussões dos grupos ativos no exílio: seu número 17 teve como dossiê a questão feminina. A preocupação fundamental era “atualizar a análise marxista no tocante à questão feminina na busca da ‘legitimação’ teórica para a luta feminista” 4 . Ao estilo do feminismo europeu, consolidava-se uma postura política de esquerda que entrelaçava a luta de classes com um trabalho interno de grupo de reflexão. O livro de Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, tornava-se leitura obrigatória para as exiladas brasileiras que viam no marxismo a ferramenta teórica capaz de ajudar na análise da origem da opressão das mulheres. Mulheres em movimento no Brasil Durante este período, dentre as mulheres dos meios populares gestava-se uma efervescência. A ditadura militar é também o período do “milagre econômico” caracterizado por um modelo de industrialização acelerada com super-exploração da classe operária, acompanhada por um crescimento sem precedentes da urbanização. A industrialização começa a atrair grande contingente de trabalhadore(a)s expulso(a)s do campo. As grandes cidades, sobretudo São Paulo, tornam-se sinônimos de pleno emprego. Nem todos conseguiram e grande parte se viu obrigada a se instalar nas favelas, tornando cada vez mais visível a urbanização precária, sem um mínino de infra-estrutura. Na seqüência do Brasil do “milagre”, ocorreu o aumento exponencial da dívida e se 2 Céli Regina J. Pinto, Uma história do feminismo no Brasil, São Paulo, Perseu Abramo, 2003, p. 53. 3 Idem, ibidem, p. 53. 4 Moraes, Marxismo e feminismo no Brasil, op. cit., p. 6. 4 instalou uma elevadíssima taxa de desemprego ao mesmo tempo em que se desenvolvia uma inflação galopante. A profunda crise econômica que se instalou atirou inúmeros trabalhadore(a)s para fora do mercado de trabalho e no tocante às mulheres, assistimos a uma importante mudança: a feminização precária do mercado de trabalho. Elas se concentraram em guetos ocupacionais como o comércio, as instituições bancárias, os serviços (estes compreendendo sobretudo as empregadas domésticas)... mas também, e principalmente, no setor informal que desde então não parou de se ampliar5 . Além disso, se consolidaram as chamadas “especificidades” do trabalho feminino: desigualdade de salários, má qualificação, maior desemprego, etc. Estas dificuldades de natureza econômica contribuíram para que muitas mulheres, que no geral até então se escondiam sob o papel de mulheres frágeis, submetidas, buscassem alternativas para assegurar a sobrevivência de suas famílias e, portanto, se lançassem cada vez mais no mercado de trabalho, principalmente o urbano, o que expôs as grandes falhas na mentalidade tradicional machista brasileira. A entrada massiva de mulheres no mercado de trabalho abalou a visão machista acerca de seu pertencimento “natural” à esfera doméstica. Uma vez transposta a barreira do lar, uma série de dificuldades foi encontrada: onde deixar as crianças enquanto estou no trabalho? Como chegar ao local de trabalho se não há linhas de ônibus? Os tradicionais espaços políticos estando ainda sob intervenção militar, as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) ligadas à Teologia da Libertação, um setor progressista da Igreja Católica, desempenham papel decisivo na organização política destas mulheres que, não representando perigo algum para os militares, pois vistas como excluídas por definição da esfera política, encontram no interior destas comunidades (a partir de atividades ligadas à reprodução, como por ex., cursos de costura, de pintura, de tricô, etc.) o lugar para falar de seus problemas e para perceberem que não eram as únicas a sofrerem em função das políticas impostas pelos militares. Estas atividades transformaram não somente suas vidas, mas também elas próprias se colocaram em movimento. Criaram, por exemplo, o movimento contra a carestia, reuniram mais de um milhão de assinaturas contra as medidas econômicas tomadas pelos militares... Enfim, neste processo se politizam. Desempenham igualmente papel decisivo quando, em 1978, os operários do ABC entram em greve, realizaram abaixo-assinados em apoio a eles, recolheram alimentos, fizeram 5 Pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo revela que, no ano de 2001, das mulheres que trabalhavam, 57% se alocavam no setor informal! Ver: Renata Gonçalves, “Precarização do trabalho feminino no mundo ‘globalizado’”. In: Vera Chaia e Eliel Machado (orgs.). Ciências sociais na atualidade: tempo e perspectiva. São Paulo: Paulus, 2009, p 265. 5 passeatas, participaram da luta pela Anistia que culminou no retorno dos refugiados políticos em 1979. As inovações de um (re)encontro: o movimento feminista revisitado6 O retorno das mulheres exiladas que aderiram ao feminismo contribuiu para uma interação entre a agenda feminista e a dos movimentos de mulheres. Enquanto as mulheres dos meios populares tinham reivindicações mais ligadas às dimensões de classe, as feministas que voltavam do exílio explicitaram novas questões que complementaram a agenda. É certo que o feminismo nascente vem de uma trajetória particular ligada às experiências das jovens exiladas nos países que as acolheram. É certo também que a forte presença da Igreja Católica sobre os movimentos de mulheres foi um freio para muitas das reivindicações feministas, como foi o caso da luta pela descriminalização do aborto. Porém, houve uma inovação: a forte junção das lutas. Segundo Sarti, numa perspectiva de transformar a sociedade como um todo, grupos feministas “atuaram articulados às demandas femininas das organizações de bairro, tornando-as próprias do movimento geral das mulheres brasileiras”7 . E, neste sentido, deram impulso aos debates acerca das discriminações no trabalho, da violência doméstica, do direito ao divórcio. Na contramão da exaltação da maternidade, questionaram o laço “natural” entre maternidade e sexualidade, ao mesmo tempo em que denunciaram a violência que as mulheres sofrem dentro do casamento, inclusive o estupro. Todos estes processos, que não podiam deixar imunes as mulheres das classes populares, não obtiveram unanimidade no seio da sociedade brasileira. As idéias feministas se chocaram com o moralismo católico presente, sobretudo, nos setores populares. O tom predominante, entretanto, consistiu numa política de alianças entre o feminismo, os grupos de esquerda e um setor progressista da Igreja Católica, “todos navegando contra a corrente do regime autoritário. Desacordos sabidos eram evitados, pelo menos publicamente. O feminismo ganhava espaço no cenário nacional. O tema da violência doméstica, por exemplo, também passou a ser problematizado e compreendido como um mecanismo de controle social. O debate sobre este assunto sai do âmbito privado e ganha visibilidade 6 Expressão utilizada por Souza-Lobo para diferenciá-lo das lutas feministas pelo direito ao voto e à educação, ocorridas no início do século XX. Ver: Elizabeth Souza-Lobo, A classe operária tem dois sexos, São Paulo, Brasiliense. 7 Cinthia Sarti, “O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória”. Estudos Feministas, Florianópolis, n° 12(2), 2004, p. 40. 6 em escala nacional ao mesmo tempo em que o próprio movimento feminista ganha espaço e pauta os debates. Em 1979, o principal canal de televisão brasileira introduz em sua programação semanal a série intitulada Malu Mulher, seguida por Quem ama não mata! O mesmo canal, em 1980, leva ao ar diariamente o TV Mulher, que passa a abordar as ditas “questões femininas”. Questões sobre a sexualidade das mulheres passam doravante a entrar nos lares brasileiros. A “educação sexual” passa a fazer parte do cotidiano via televisão. Esta dinâmica não se restringiu à televisão. Já em 1976, um grupo de mulheres que se apresenta como feminista e lança o jornal Nós Mulheres cujos objetivos passam por entrelaçar as questões políticas com as condições de vida cotidiana, mas ainda não era comum se debruçar sobre a sexualidade. No mesmo ano, o jornal alternativo Opinião, propôs fazer no 1º. de maio uma reportagem nacional sobre o tema da inserção das mulheres no mercado de trabalho, mas foi censurado pelos militares. Todavia, mesmo sob forte censura, os movimentos de mulheres e feminista se multiplicaram impulsionados, inclusive, pela decisão da ONU (Organização das Nações Unidas) de definir 1975 como o Ano Internacional da Mulher. O reconhecimento oficial pela ONU da questão da mulher como problema social favoreceu, de acordo com Sarti, “a criação de uma fachada para um movimento social que ainda atuava nos bastidores da clandestinidade, abrindo espaço para a formação de grupos políticos de mulheres que passaram a existir abertamente”8 . A questão da mulher ganhava a partir daí “um novo status tanto diante de governos autoritários e sociedades conservadoras como em relação a projetos ditos progressistas que costumeiramente viam com grande desconfiança a causa feminista9 (Pinto, 2003: 56). O feminismo passava a ganhar corpo no Brasil, mas ainda sem muita autonomia, pois, num período marcado pela repressão militar, a luta que unificava as forças progressistas era pelo fim da ditadura. Isto se reflete, por exemplo, nas reivindicações feitas pelo Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira, em 1978, aos candidatos às eleições daquele ano. No documento intitulado “Carta às mulheres”, as reivindicações dividiam-se em “gerais” e “específicas”. Enquanto as primeiras enfatizavam a luta pela anistia, eleições livres e diretas para todos os cargos eletivos, Assembléia Geral Constituinte soberanamente eleita, fim da carestia; as segundas priorizavam “criação de creches nas empresas e principalmente nos bairros; aumento do número de área de lazer, 8 Idem, ibidem, p. 39. 9 Pinto, op. cit., p. 56. 7 principalmente nos bairros pobres; aumento do número de escolas e de horas letivas; ampliação e melhoria da merenda escolar nas escolas públicas; igualdade salarial; condições mais adequadas de trabalho”10. Curiosamente, nenhum dos dois tipos de reivindicações faz parte do ideário feminista. Para além destas reivindicações expressarem o que ocorria no cenário político em que se travavam as lutas sociais no Brasil, esta divisão demonstra o forte caráter de classe das lutas populares que naquele momento conseguiam, inclusive, pautar o debate da agenda feminista que, como mencionado, era composto por mulheres das classes médias e intelectualizadas. Talvez aí resida a particularidade do encontro entre movimento feminista e movimento de mulheres cuja ação conjunta deu coloração própria ao que Vera Soares denominou Movimento de Mulheres com dupla face11 . Porém, pouco a pouco este projeto se esvai: boa parte é seduzida pela institucionalização por meio dos Conselhos, das ONGs e outra parte considerável se fecha na academia. Adeus ao marxismo: onguização do movimento e discurso acadêmico de gênero Nos anos 1990 consolidou-se a institucionalização do movimento feminista. Várias feministas se inserem no aparelho de Estado para, a partir daí, fazer política voltada para as mulheres. Algumas consideravam esta decisão uma importante estratégia para o movimento na direção de um projeto de sociedade. Para outras, no entanto, esta adesão ao Estado permitiria que pequenos grupos de vanguarda fossem devorados pela dinâmica política dos governos. O caráter combativo do movimento feminista começou a desaparecer gradativamente. O receio de perder as formas não hierárquicas de organização e de serem cooptadas pelo sistema patriarcal tornou-se realidade. Pouco a pouco uma mudança se introduziu tanto no debate como nas ações do movimento. Como escreve Moraes, “afrouxaram-se os laços que tinham unido intelectuais feministas e movimentos populares de mulheres; desapareceu a militância não-profissional ao mesmo tempo em que a discussão sobre a questão da mulher, bem como sobre o ponto de vista feminino desloca-se cada vez mais para os espaços acadêmicos”12 . 10 Idem, ibidem, p. 61. 11 Vera Soares, “Muitas faces do feminismo no Brasil”. In: Ana Borba, Nalu Faria & Tatau Godinho, (orgs.), Mulher e política: gênero e feminismo no Partido dos Trabalhadores, São Paulo, Perseu Abramo, 1998. 12 Moraes, Marxismo e feminismo no Brasil, op. cit., p. 9. 8 O Brasil dos anos de 1990 foi marcado pela consolidação do projeto neoliberal, cujas políticas centrais consistiram na liberalização do comércio exterior com redução de tarifas; facilitações para as empresas multinacionais, com empréstimos a longo prazo junto a órgãos públicos, sobretudo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); privatizações via desregulamentação do mercado; Estado mínimo para os trabalhadores; quebra dos sindicatos; enfim, foi o período da retirada dos direitos do(a)s trabalhadore(a)s. Coincidência duvidosa é o fato de, nos mesmos anos 1990, o Banco Mundial começar a se interessar pelos projetos “locais” nos países “emergentes”, cabendo aos governos a tarefa de “gerir a descentralização e as relações com a sociedade civil, cujo papel essencial é reafirmado tanto para determinar o tipo de ação como de que modo concretizá-la”13. A prioridade foi dada a programas sociais sob o lema da participação, da transparência e da cidadania ativa, sendo as ONGs as executoras privilegiadas. A cidadania repentinamente torna-se homogênea. E “os intelectuais, antigamente de esquerda, se transformaram em tecnocratas progressistas que assumiram a responsabilidade de colaborar com estes projetos de governabilidade, desenvolvimento sustentável etc.”14 . Tudo que o movimento feminista, sobretudo o de base marxista, havia defendido, ou seja, a necessidade de pensar as classes sociais e as relações de gênero (e de raça) desapareceu sob o signo da “cidadania”15 propagado pelas ONGs. Como para o resto da América Latina, muitas feministas no Brasil, financiadas por organizações internacionais, prestam consultorias enquanto especialistas das questões de gênero. A institucionalização, a onguização e a burocratização do movimento feminista tomou tal amplitude que assistimos à sua própria despolitização. Para Falquet, trata-se de uma nova orientação ideológica ou mesmo de idéias latentes que encontraram o contexto ideal para se desenvolver16 e, acrescentamos, deixar para trás os ideais marxistas. Os efeitos dessas novas orientações ideológicas são perceptíveis nos meios populares em que, ao invés de se organizarem contra a exploração a que estão submetidas, mulheres são motivadas a criarem os chamados projetos de desenvolvimento local. São 13 Bruno Lautier, “La Banque mondiale et sa lutte contre la pauvreté: sous la morale, la politique”. Cahiers Genre & Développement, Paris, L’harmathan, n° 3, 2002, p. 145. 14 Andréa D’Atri, Pan y rosas: pertenencia de género y antagonismo de clase en el capitalismo, Buenos Aires, Ediciones Las armas de la crítica, 2004, p. 133. 15 Para além dos aspectos positivos que a conquista da cidadania pode adquirir em países como o Brasil, a maneira como esta noção é utilizada obscurece a distinção e o antagonismo de classe, de gênero, de raça e, portanto, esvazia a possibilidade de superá-los. Ver: Renata Gonçalves, “Ciudadanía/clases populares: el lado oculto de la dominación capitalista de clase”, Herramienta, Buenos Aires, n° 27, 2004. 16 Jules Falquet, De gré ou de force: les femmes dans la mondialisation, Paris, La Dispute, 2008. 9 interpeladas a se associarem para construir uma padaria, uma oficina de costura, etc. Projetos ligados à reprodução, sob a lógica geral da produção capitalista, e que, portanto, não questionam a causa nem as desigualdades de sexo e tampouco deixam espaço para as lutas de classe. Enquanto no período de intensa mobilização dos movimentos de mulheres dos anos de 1970, essas atividades, mesmo ligadas à reprodução, detinham um imenso potencial de politização/emancipação, na medida em que as mulheres saíam de seus espaços domésticos, privados por excelência da esfera política; agora fazem o caminho inverso: as mulheres deixam a esfera da participação mais política e “politizadora” e se dirigem para programas, projetos que consomem boa parte de seu tempo na confecção de relatórios para as organizações internacionais que financiam seus projetos. Todo o dinamismo de antes, que levava a criação de espaços de encontro para discutir problemas que eram seus, mas que também diziam respeito a toda a classe trabalhadora, assim como pensar em ações com vistas a uma transformação mais geral, se perde sob a roupagem da “participação cidadã”. Elas tornam-se agora as responsáveis por gerir a miséria e, como tal, “amortecem a crise, ao mesmo tempo em que prolongam o mais tradicional de seus papéis” 17 . No meio acadêmico, sobretudo nas Ciências Humanas, o divórcio com o marxismo foi ainda maior. A busca de compreender as causas da opressão feminina para além da questão econômica colocada pela análise das classes sociais, fez com que o conceito de gênero ganhasse corações e mentes na academia. Esta paixão também bateu à porta do feminismo de base marxista, cujas preocupações consistiam em entender o porquê da “permanência de relações de opressão entre homens e mulheres, mesmo em contextos econômicos e políticos diferenciados”18. Gênero como categoria de análise possibilitou “pensar a construção/desconstrução das identidades de gênero, isto é, os caminhos através dos quais os atributos e lugares do feminino e do masculino são social e culturalmente construídos, muito mais como significados do que como essência”, o que acabou por contribuir “para incorporar na agenda feminista a luta no plano da cultura e da ideologia, fornecendo um espaço para a subjetividade na construção e reprodução dos lugares e significados socialmente identificados com o masculino e o feminino”19 . 17 Idem, ibidem. 18 Clara Araújo, “Marxismo, feminismo e o enfoque de gênero”, Crítica Marxista, São Paulo, n° 11, 2000, p. 69. 19 Idem, ibidem. 10 No entanto, as confluências não foram tantas assim. Intensificaram-se dificuldades semânticas e, na maioria das vezes, gênero acabou sendo utilizado como substituto da categoria sexo ou simplesmente como sinônimo de homem e de mulher. Outra dificuldade é que, ao destacar a dimensão subjetiva das relações de poder entre homens e mulheres, gênero acaba por desvinculá-la de suas bases materiais, sobretudo porque a ênfase na “dimensão simbólica ganha centralidade e a referência às práticas e relações materiais torna-se opaca”, desaparecendo também as intercessões com outras clivagens. Assim, “gênero passa a descrever tudo e a explicar muito pouco, pois, como conceito, tendeu a ser auto-referido”20. Tudo se torna relativo, uma construção discursiva e, logo, bem distante da própria idéia de uma opressão das mulheres e das lutas para sua emancipação, pois estas “pressupõem uma realidade material sobre suas condições e sobre a validade de suas reivindicações” 21 . No mundo capitalista, como observa Toledo, continuam existindo uma classe burguesa, que concentra cada vez mais em suas mãos a riqueza social, e uma classe proletária, cada vez mais miserável e espoliada. Neste sentido, lutar pela igualdade entre os gêneros sem combater a ordem econômica sob a qual se assenta a sociedade é combater “os efeitos e não as causas da opressão da mulher”22. Por outro lado, as várias tentativas de revolução mostraram que não basta mudar a ordem econômica para alterar as desigualdades entre homens e mulheres. As lutas sociais assumem formas distintas e não se pode correr o risco do dogmatismo estéril23 (Moraes, 2004) e se distanciar de questões candentes para a transformação social proposta pelo marxismo. Nada indica que as experiências vividas, sobretudo, desde os acontecimentos de Maio de 1968, estejam dissolvidas para sempre. Eis um bom motivo para apostar no casamento feliz entre marxismo e feminismo ou mesmo que podemos lutar por Pão e Rosas... 20 Idem, ibidem. 21 Martha GIMENEZ, “Le capitalisme et l’oppression des femmes: pour un retour à Marx”. Actuel Marx, Paris, PUF, n° 30, 2001, p. 64. 22 Cecília Toledo, Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide, São Paulo, Rosa Sundermann, 2003, p. 116. 23 Maria Lygia Quartim de Moraes, “Pós-modernismo, marxismo e feminismo”. Margem esquerda: ensaios marxistas, São Paulo, Boitempo, n° 2, 2004.


VI Colóquio Internacional Marx & Engels 03 a 06 de novembro de 2009, Unicamp, Campinas GT – Marxismo e Ciências Humanas


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