terça-feira, 20 de dezembro de 2016

A Morte de Sarita

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10209961439735645&set=a.1842353781643.108883.1324551686&type=3&theater


"Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se esponjariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes."


"A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida. Por isso Fabiano imaginava que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. (...) Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito. (...) Pobre Baleia. Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia. Os meninos começaram a gritar e espernear (...) Como o animal estivesse de frente e não apresenta-se bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente. (...) E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de rosna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos. Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda. Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitando as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros. Caiu antes de alcançar esta nova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas. Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis. (...) Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinham fugido. Esqueceu-os e de novo veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas. O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. (...) Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. (...) Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado. Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito. (...) A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença. Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo. Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se esponjariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes." (Graciliano Ramos)

https://www.youtube.com/watch?v=WriQmEI_EGI

Morte da Baleia - YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=WriQmEI_EGI
11 de dez de 2009 - Vídeo enviado por cinensina
Cena do filme Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos.


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Acabei de saber que uma das minhas cachorras foi atropelada. Deixaram o portão do sitio aberto, ela saiu para a rua, um carro passou por cima, ela morreu. Simples, banal e gratuito; como tudo na vida.

Que sinto a dor da perda da convivência com ela, é óbvio. Não é isso que me faz pensar o que escrevo aqui.

Tento entender como viver a vida sem negar a morte. Como não negar a morte sem com isso cair na hipocrisia de cultos religiosos que velam a sua presença no cotidiano da vida como forma de manipulação.

Acho que só me surpreendi com a primeira morte inesperada que vivi. Todas as outras já são esperadas, mais cedo ou mais tarde. Não há mais novidade, não há mais susto em reviver a morte.

"Reviver a morte", porque a "morte" é uma experiência de abstração feita por quem está vivo. Quem morre vivencia o "morrer" até não ser capaz de vivenciar mais.

Morrer e Morte são experiências distintas, que se dão em corpos distintos.

O medo de morrer é sempre o da nossa própria morte.

A dor e o sofrimento são emoções derivadas da experiência de perceber a morte alheia.

Mas a dor e o sofrimento não se dão no corpo do ser que morre, mas nos corpos dos que permanecem vivos.

A morte é uma abstração que experenciamos enquanto vivos. É abstrata porque o ato de morrer não se dá no nosso corpo, mas no corpo de um outro. Um outro que, se estamos sofrendo, amávamos, amamos(?), amaremos(?).

Fico me perguntando a função de nos dedicarmos a lembrar os mortos. Nao apenas lembrar, mas re-verenciar, re-sofrer sua morte.

Qual a função disso?

Não me sinto mais vivo celebrando em dor a morte alheia. Não sinto a minha própria morte mais distante de mim ao referenciar na morte dos outros o ato de morrer.

Por isso me pergunto: qual a função de cultuarmos a morte?

(Não estou defendendo a banalização da experiência de quem morre, mas me perguntando o sentido disso ser cultuado.)

Será que nos forçamos a vivenciar a experiência da morte para podermos inventar um valor para a vida? Que ela é gratuita é óbvio, mas porque buscar na ausência da vida um contra-sentido que a potencialize em negação?

Vivemos uma cultura do medo da morte.
Por quê?
Pra que?
Para quem?

Se o amor se dá em relação, é possível amar (no sentido relacional) a quem não podemos mais vivenciar a presença?

Revivemos as experiências compartilhadas com quem já morreu acessando nossas memórias. Modelamos o presente e engendramos o futuro em função do que nos colocamos para pensar. Daí fico imaginando no que engendramos ao investirmos em uma virtualizaçao de uma relação de amor . As lembranças tentem a se cristalizar no que foram. Revive-las demanda energia de quem está vivo, já que a significação do ente que morreu só pode se dar por quem se remete à lembrança deles.

O que nos desperta esse fluxo de energia que usamos para reviver a sensação de convivência com quem já morreu?

Será que vem daí a dor, o sofrimento; do direcionamento de uma potência de vida para engendrar relações com um corpo fantasmático?

Qual a função social da dor da perda, do sofrimento da falta?

Será que sem nos forçarmos a isso não somos capazes de amar uns aos outros?

Será que o amor é uma reação à falta?
Ou isso é só uma questão de perspectiva temporal?



https://www.facebook.com/caetanodable/posts/10211545632219467

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tem um livro, a partir da perspectiva evolutiva, etológica e acho que antropológica também:

"The Nature of Grief: The Evolution and Psychology of Reactions to Loss"
Por John Archer

https://books.google.com.br/books?id=MmiGAgAAQBAJ&lpg=PP1&ots=uLFWRCr8Ey&dq=grief%20evolution&lr&hl=pt-BR&pg=PP1#v=onepage&q=grief%20evolution&f=false

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Spinoza: reflexões sobre a vida e a morte
Por Roberto Romano

http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=129&id=1576

A Ética de Spinoza insiste no elo entre vida, morte e relações sociais. Não percebemos sempre, mas o trato com os nossos semelhantes é garantia de vida, saúde, felicidade. Parece incrível numa ordem social capitalista constatar que a individualidade isolada segue rumo à morte. Só temos consciência de quem somos porque os outros nos alertam para nossa singularidade. Um coletivo sem abertura ao outro é quase um ajuntamento morto.
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Spinoza relembra o trato entre vida e morte entre humanos “o corpo humano precisa de um grande número de outros corpos para se conservar”. A forma do nosso corpo “consiste em que as suas partes se comunicam e seus movimentos seguem determinada relação que o conserva”. Os indivíduos são afetados e afetam de muitos modos. O movimento e o repouso permitem que assumam uma outra forma, o que pode causar sua destruição e os tornar inaptos para afetar e serem afetados, o que é letal. A vida consiste em estar o indivíduo em pleno movimento de expansão e conservação. Tal processo só pode ser experimentado em sociedade.
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só temos consciência do que somos e de quem somos porque os outros nos alertam para a nossa singularidade. Um coletivo sem abertura ao outro é ausência de vida, obscura inconsciência, quase um ajuntamento morto. A Substância (Deus ou Natureza) é infinita e possui infinitos modos. Cada modo reúne infinitas relações. No caso dos seres humanos, a quantidade de nexos por eles mantidos com a natureza e com os semelhantes os enriquece ou empobrece, depende dos afetos assumidos. “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (Ética 3, Definição 3)
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Ética, V, proposição 10, escólio, “o melhor que podemos fazer, enquanto não tivermos um conhecimento perfeito de nossos afetos, é idear um método correto de vida, ou seja, princípios seguros, e gravá-los na memória e sempre os aplicar às coisas particulares que se encontram facilmente na vida, de modo que a nossa imaginação seja por eles amplamente afetada e que eles estejam sempre a nossa disposição. (…) Se lembramos a razão de nosso verdadeiro interesse e do bem advindo de uma amizade mútua e de uma sociedade comum, se recordamos que a suprema satisfação da alma nasce do correto método de viver (…) e que os homens, como as demais coisas, agem por necessidade de natureza, a ofensa, ou seja, o ódio que dela brota ordinariamente, ocupará pouco a imaginação e será facilmente superada”.
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Pensamentos metafísicos, capítulo VI: “Entendemos como vida a força que faz perseverar as coisas em seu ser; e como tal força é distinta dos próprios seres, dizemos justamente que os seres mesmos têm vida. Mas a força pela qual Deus persevera em seu ser nada mais é que sua essência; falam bem, pois, os que dizem que Deus é a vida.”.
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Talvez seja o momento de recordar os enunciados de L. Wittgenstein sobre o místico e a vida: “O místico não está em como é o mundo, mas no que é. A solução do problema da vida se entrevê no desvanecer-se desse problema. Existe verdadeiramente o inexprimível. Ele se mostra; é o místico. Minhas proposições são explicativas desta maneira: quem me compreende, afinal as reconhece desprovidas de significado, quando subiu através delas, sobre elas, para além delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora a escada depois de ter subido por ela). Deve passar acima dessas proposições: então verá o mundo do modo certo”.



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