quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Deleuze, Bergson & O Cinema

Gilles DELEUZE
(Susana Viegas)





Filósofo francês, nasce a 18 de Janeiro de 1925 em Paris, cidade onde morre a 4 de Novembro de 1995. Durante os estudos de filosofia na Sorbonne foi aluno de Ferdinand Alquié, Jean Hyppolite e de Maurice de Gandillac (orientador de doutoramento com a tese Différence et Répétition, em 1969). É também em 1969 que Deleuze conhece o psiquiatra e filósofo francês Félix Guattari (1930-1992) que se torna seu amigo pessoal e com o qual escreve L'Anti-OedipeMille Plateaux eQu'est-ce que la philosophie?. Para além da filosofia, Deleuze mostrou também um renovado interesse por escritores, pintores e cineastas, desde Kafka a Proust, passando por Beckett, Melville, Artaud ou Lewis Carroll e Francis Bacon mas os textos escritos sobre cinema não são, surpreendentemente, sobre um realizador em particular mas sobre o Cinema.
L'Image-Mouvement e L'Image-Temps tornaram-se textos incontornáveis para os estudos cinematográficos graças à criação de novos conceitos filosóficos. Na classificação de todos os signos cinematográficos, Gilles Deleuze esclarece a necessária passagem da imagem-movimento para a imagem-tempo afirmando que a imagem-tempo é uma apresentação directa do tempo, isto é, a duração não é uma sucessão de dimensões temporais (passado-presente-futuro). A questão reside no modo de  representar directa ou indirectamente o tempo e não apenas numa distinção histórica entre cinema clássico e moderno: “a imagem-movimento não nos dá uma imagem-tempo” (I.T.: 354).
Os livros escritos por Deleuze sobre cinema, uma “aventura do movimento e do tempo”[1], pretendem ser uma taxinomia de todos os signos do mundo e não uma história do cinema ainda que esta, inevitavelmente, se espelhe nas sua teorias. São diversos os filmes citados assim como os realizadores referidos aproximando-se do que pode ser uma história pessoal do cinema. Mas, por pretender ser uma taxinomia, Deleuze pretendia ver as condições de individuação das imagens cinematográficas inventariando os diversos signos fílmicos como signos do mundo, isto é, as imagens cinematográficas são analisadas como acontecimentos do mundo e não apenas como imagens artísticas. 
Para além de L'Image-Temps L'Image-Mouvement, Deleuze dedicou também diversas aulas ao tema do cinema e ao pensamento de Bergson e que estão disponíveis em www.webdeleuze.com. Deleuze começa L'Image-Temps, precisamente com comentários a Bergson no que diz respeito ainda à imagem-movimento para no quarto capítulo do livro introduzir o conceito de imagem-cristal, conceito fulcral na ontologia deleuziana. A imagem-cristal é o mínimo circuito temporal da imagem-tempo, ou seja, vemos o tempo puro na imagem-cristal. Sendo o mínimo circuito, a imagem-cristal tem duas faces que não se confundem: a sua natureza é dupla, virtual e actual. Neste aspecto, a filosofia do cinema encontra-se com a ontologia deleuziana através do desenvolvimento das relações entre estes dois conceitos. 

[1] Deux régimes de fous. Paris: Les éditions de Minuit, 2003, p. 331.



Para Gilles Deleuze, a crise da imagem-acção da imagem-movimento é uma passagem necessária para a imagem óptica e sonora pura da imagem-tempo maximamente representada nos anos 40 pelo neo-realismo italiano e nos anos 60 pela nouvelle vague (I.T.:10). Através do plano-sequência próprio deste cinema do vidente, o filme dá a ver a realidade tal como ela é em vez de a representar ou imitar mostrando situações ópticas e sonoras puras por oposição às situações sensório-motoras da imagem-acção. Em relação à filosofia do cinema em Gilles Deleuze podemos destacar quatro ideias fundamentais relacionadas com o conceito de imagem-tempo: a imagem-tempo como apresentação directa do tempo; a deslocação temporal do tempo fora dos eixos enquanto marca da imagem-tempo; o passado transcendental em Bergson; e, por último, a imagem-cristal como paradoxo temporal.

1. A Imagem-tempo e a crise da imagem-acção
L'Image-Temps é o segundo volume dos livros escritos por Gilles Deleuze sobre cinema e consiste na exposição e criação de novas categorias estéticas como “o não evocável em Welles, o inexplicável em Robbe-Grillet, o irresolúvel em Resnais, o impossível em Marguerite Duras, ou ainda aquilo a que poderíamos chamar o incomensurável em Godard”(I.T.:237). Diz Deleuze que a imagem-tempo é uma representação directa do tempo através de mecanismos cinematográficos concretos: o flash-back, o faux-raccord, a profundidade de campo, a dessincronização, não dizendo respeito à sucessão temporal horizontal das dimensões passado-presente-futuro, antes pelo contrário, dizendo respeito ao tempo não cronológico, subjectivo, de dimensões coexistentes. Ontologicamente, esta imagem é tempo puro, é a coalescência de passado, presente e futuro. É a propósito do filme Primavera tardia (1949) de Yasujiro Ozu que Deleuze introduz o conceito de imagem-tempo ou chronosigne (I.T.:27) para se referir a um tipo de imagem cinematográfica que arranca ao cliché, à imagem sensório-motora dos objectos representados, o seu modo de ser, a sua duração real. Mas, relativamente às imagens-tempo, Deleuze refere três tipos: dilatação no passado virtual (passado que coexiste com o presente que é), contracção no presente desactualizado (presentes do passado, do presente e do futuro) e devir (diferença e repetição). 
Em relação aos dois grandes regimes de imagens cinematográficas, imagens-movimento e imagens-tempo, Gilles Deleuze distingue ainda o regime orgânico, que considera o objecto representado como independente da sua imagem, realidade preexistente, do regime cristalino, em que a apresentação cria o seu objecto, um objecto que não pretende ser representação da imagem-mundo. O regime orgânico está enraizado, por exemplo, no cinema-acção, isto é, no cinema de situações sensório-motoras, uma representação indirecta do tempo marcada por códigos narrativos rígidos, tanto ao nível da linguagem, como da acção, segundo o padrão narrativo e de montagem acção/reacção/acção. No regime orgânico, tudo está seleccionado para criar a sensação de verosimilhança – desde os diálogos, aos cenários, à própria montagem final. A narração, ainda que fictícia, tem pretensões de verdade. O espaço e o tempo adequam-se perfeitamente um ao outro, de modo a não distrair o espectador (a chamada montagem invisível). Nas coordenadas espácio-temporais predominam as ideias de continuidade e logicidade, o que se reflecte na montagem das imagens. Todas as cenas mais inesperadas, irreais ou surpreendentes têm o registo de exterior narrativo, como sonhos, alucinações etc.  ou seja, no regime orgânico regido regras da continuidade espacial e temporal, o onírico e a lembrança também estão presentes mas no modo descontínuo, por oposição à normalidade. Por outro lado, o regime cristalino do cinema moderno é o regime das situações puras, desligadas de prolongamento motor. No cristalino cria-se um circuito mínimo entre realidade e imaginação de um modo distinto mas indiscernível. As imagens cristalinas do cinema-duração relacionam-se directamente com uma forma diferente de encarar a arte cinematográfica: vive-se um outro regime temporal onde o virtual se conserva e coexiste com a sua imagem actual como pontas de presente e extensões de passado virtuais. A complexidade narrativa  aumenta e o plano fixo é reinventado. Podemos mesmo afirmar que a narrativa não tem como função primeira avançar o movimento, mas impedir o seu desenvolvimento, criando ambiguidades e retrocessos que destroçam e voltam a construir a narrativa.
Não será coincidência o facto de o regime cristalino dizer respeito aos filmes posteriores à Segunda Guerra Mundial, marcados pela crise da imagem-acção e da narrativa verosímil. Consequentemente, surge também a crise do conceito de verdade. A narrativa cristalina prolonga a descrição cristalina: a narrativa é falsificante. A destruição do carácter absoluto da verdade não significa a multiplicação de verdades com a subjectivação absoluta do verdadeiro. O verdadeiro deixa de ser uma categoria do pensamento; o falso e o impensável revelam-se o campo próprio do acto de pensar de facto. O novo regime cristalino permite uma nova imagem do pensamento onde a descrição deixa de pressupor a realidade e onde a narrativa deixa ter pretensões de verdade. O carácter refractário das imagens-cristal abandona termos como verdade, original e cópia, imaginação e realidade. Os elementos são temporais, podendo ter acontecido e não ter acontecido, no mesmo universo mas em mundos diferentes. Assim, o cinema moderno da imagem-cristal afirma o poder do falso de tal modo que se o passado inclui alternativas indecisas, o presente inclui diferenças inexplicáveis.
A transição que ocorre entre a imagem-movimento e a imagem-tempo acontece principalmente a nível temporal: “a imagem-movimento não nos dá uma imagem-tempo”(I.T.: 354). Para Deleuze, a transição de regimes diz também respeito a uma inversão da tradicional relação entre movimento e tempo no sentido em que na imagem-tempo, o tempo manipula o próprio movimento em vez de o movimento construir a duração. A passagem do cinema-acção do cinema clássico para o cinema-vidente moderno corresponde à passagem do esquema sensório-motor para imagens ópticas e sonoras puras, isto é, imagens com uma duração autónoma do movimento, sem continuidade racional na imagem seguinte, às quais não há reacção. Por outro lado, se na imagem-movimento o esquema narrativo é ASA (Acção-Situação-Acção), no novo esquema será SAS' em que S' não deverá ser uma sequência lógica ou um desenlace natural de S mas deverá ser a sua dobra; “ganhou em vidência o que perdeu em acção ou reacção”(I.T. 356). No cinema europeu do vidente não há imagem-acção, é como se os actores reagissem no modo de não reagir perante o vazio e a devastação humana em que se encontra a Europa. Roberto Rossellini não consegue evitar filmar os lugares destruídos e irreconhecíveis, seja em Roma, città aperta (1945), aquando da libertação de Roma da ocupação nazi, seja em Germania anno zero (1948), acompanhando o percurso de um rapaz de 12 anos que sobrevive à destruição da infância e à pobreza da família que sustenta. Encontramos também Ladri di Biciclette (1948), de Vittorio De Sica, em que nos deparamos com o olhar impotente de uma criança perante a irreversível sucessão de acontecimentos. 
A ruptura com o esquema sensório-motor (montagem baseada no esquema acção-reacção) do cinema clássico e narrativo permite o avanço de um novo tipo de filme da imagem-visão, de situações ópticas e sonoras puras onde não se consegue reagir. Diz Deleuze que “ganhou em vidência o que perdeu em acção ou reacção”(I.T.:356). O ponto de vista do espectador deixa de ser um ponto de vista expectante do futuro, do plano seguinte, onde se age ou reage, e começa a ficar preso no presente, acompanha a própria personagem, tem tempo para fixar cada plano. A imagem-tempo aparece assim duplamente como imagem actual, as imagens ópticas e sonoras puras, e como imagem virtual, imagens-sonho e lembranças, criando, deste modo, uma imagem-cristal. A virtualização da imagem actual encontra-se neste momento, distinto e indiscernível, quando a imagem actual procura a sua própria imagem virtual e, coexistindo temporalmente, originam uma imagem única que é a imagem-cristal.

2. O tempo fora dos eixos 
Ao contrário da imagem-movimento, uma imagem-tempo apresenta directamente o tempo mostrando a cisão que o tempo é entre passado, presente e futuro, não de uma forma sucessiva, mas simultânea através de imagens ópticas e sonoras puras. O cinema moderno da imagem-tempo surge na filosofia de Deleuze como um elemento absolutamente necessário, não por motivos técnicos ou de novos suportes próprios do cinema, mas antes por uma ruptura com um modo de pensar. A crise da imagem-acção no cinema europeu dos anos 40 significa concretamente que, tanto a narrativa com base no esquema acção-reacção, como os actores profissionais, dão lugar ao tempo da observação feita por pessoas comuns, dão lugar a um cinema do observador, onde não há reacção possível. O cinema torna-se uma expressão artística onde o tempo está desajustado. Por diversas vezes Deleuze refere Hamlet de Shakespeare: “o tempo está fora dos eixos”[1].  O cinema neo-realista do pós-guerra tentou mostrar o intolerável e o impossível e, neste sentido, surgiram novas relações entre a imagem e a temporalidade. A reacção lógica e imediata deu lugar à observação passiva, a palavra descritiva ao silêncio, as cidades tornaram-se não-lugares (conceito original de Marc Augé).
Na imagem-tempo, representação directa do tempo, o tempo está deslocado ou fora dos eixos no sentido em que o presente que passa coexiste com o passado que se conserva. Segundo Deleuze, este paradoxo temporal, permite a divisão da imagem-tempo em dois tipos: a coexistência das extensões de passado, como em Citizen Kane, e a simultaneidade das pontas de presente, como em L'année dernière à Marienbad. Deleuze questiona[2] como solucionar o dualismo entre cinema abstracto e cinema figurativo presente no cinema francês do pré-guerra de modo a obter um equilíbrio entre um tipo de cinema que seja abstracto sem deixar de ter emoções, isto é, de modo a criar situações ópticas e sonoras puras. O tempo, ao estar fora dos eixos, permite compreender a sua manipulação do movimento. Podemos, deste modo, destacar nos textos de Deleuze os exemplos do cinema soviético de Eisenstein e Tarkovsky, como momentos marcantes de cada um dos regimes cinematográficos em causa relativamente à relação movimento/tempo. Segundo Deleuze, nos filmes de Andrei Tarkovsky, principalmente em Solaris (1972) e Andrei Rublev (1969), o movimento já não domina o ritmo do tempo. Pelo contrário, este movimento rarefeito depende do tempo, o plano acompanha a visão do actor e tem a duração desse olhar em que impera o plano sequência. Esta inversão de relações entre o movimento e a duração possibilita também a intervenção do falso movimento, através da actualização de regiões temporais não presentes, como o passado e o futuro. Ou seja, a montagem cria o movimento do filme mas não cria a sua duração.
A montagem interfere na representação do tempo determinando o todo fílmico, organizando as diversas imagens, os diversos planos e enquadramentos, concorrendo igualmente para o todo. Através da montagem dos planos, enquadramento, etc., temos uma representação indirecta do tempo, porque indirecta é também a captação do tempo, não através da duração de cada imagem, mas através da duração do conjunto das imagens.  A montagem é, para Eisenstein, o fundamento do cinema, no sentido em que a relação entre imagens, a sua sucessão, resulta da escolha manipuladora do ponto de vista. Da dialéctica entre as imagens a e b resulta uma outra, c que excede a soma das outras duas, criando uma relação inovadora. Deste modo, a montagem tem o poder de controlar as emoções e a compreensão do espectador, manipulado por completo na terceira imagem da dialéctica (síntese). Neste caso, o movimento é o elemento principal porque ele controla o próprio tempo.
Com a introdução do som, as mudanças são muitas, principalmente a nível da montagem, que muitas vezes poderia substituir a descrição  narrativa. Por exemplo, um filme como M (1931) de Fritz Lang, tem o seu centro nevrálgico no som sem o qual o filme não seria possível, uma vez que é o assobio que se ouve é fulcral no desenvolvimento do filme. Andrei Tarkovsky, além de realizador foi também teórico sobre a arte cinematográfica tendo escrito Esculpir o tempo [3], um livro que Deleuze cita por diversas vezes, onde refere que um dos problemas do cinema moderno surge quando os realizadores privilegiam a montagem visual, agora que dispõem do potencial do som directo. Este impasse técnico impede a libertação do tempo, que continua a ser controlado pela montagem, isto é, um dos motivos que impedem a representação directa do tempo são as reminiscências do cinema mudo no sonoro. Segundo Tarkovsky, a imagem cinematográfica nasce no momento da filmagem, e não na mesa de montagem. Idealmente, o tempo é que deve controlar o ritmo sendo a função do realizador o de  esculpir o tempo[4]principalmente ao decidir o registo dos planos. O tempo é a matéria-prima do cineasta, que o esculpe como se aquele fosse a matéria bruta e informe. Deste modo, a imagem cinematográfica não é o resultado final do trabalho da montagem, antes nasce no local de filmagem e cabe ao realizador escolher o momento do ritmo interno, de acordo com a pressão do tempo nesse momento[5]

[1] "The time is out of joint".
[2] Curso de Vincennes: "Bergson, propositions sur le cinéma" de 18/05/1983, em www.webdeleuze.com.
[3] Esculpir o tempo, São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1998, p. 81.
[4] Esculpir o tempo, p. 72.
[5] Esculpir o tempo, p. 139.

3. O passado transcendental em Bergson
Henri Bergson foi uma influência decisiva para a filosofia do cinema deleuziana e presente, quer nos dois livros sobre cinema, quer em diversas aulas que deu em Vincennes entre 1981/83. Podemos destacar da filosofia de Bergson, principalmente a exposta em Matière et Mémoire, o estatuto do passado ou da memória como passado total, como o Todo aberto do tempo, duração pura. Em Matière et Mémoire, Bergson identifica memória e duração. Para compreendermos os mecanismos que convertem a duração  em lembrança, quando, habitualmente, a duração é identificada com a sucessão de presentes e não com uma dimensão temporal passada, teremos de compreender primeiro de que modo é que o presente passa. Relativamente a este aspecto, Bergson inverte o modo habitual de compreendermos a passagem do presente. Como é que o presente passa e onde se conservam as memórias? Através de duas formas de duração: a memória-contracção, em que uma multiplicidade de lembranças é contraída no mínimo ponto actual, e a memória-lembrança, que é a extensão das lembranças passadas. Bergson afirma igualmente o carácter de não-ser do presente: paradoxalmente, de todas as dimensões temporais, apenas o presente não é porque está em devir, está em vias de deixar de ser. Apenas o presente não é porque o presente é a dualidade, dilatação do passado e contracção do futuro, e, apenas por ser esta dualidade é que o presente passa. Ou seja, a razão de o tempo passar reside no facto de o presente nunca estar fechado no presente mas ser sempre já passado e futuro. Lembrando Deleuze, que cita Godard: só os maus filmes estão no presente.
De que modo é que o presente passa? O presente passa porque o passado é simultâneo tanto ao presente que foi como ao presente actual pelo qual é passado. O passado é, deste modo, uma dimensão entre dois presentes: o presente virtual que o próprio passado foi e o presente actual em relação ao qual ele é passado. É uma síntese activa da memória que funda e determina a síntese originária e passiva do hábito (que é uma síntese empírica) e que, por sua vez, permite revelar o fundamento na síntese passiva e transcendental da memória, constituição do passado puro. Segundo Deleuze, “é pelo elemento puro do passado, como passado em geral, como passado a priori, que tal antigo presente é reproduzível, e que o actual presente se reflecte” (D.R.: 157). Através da noção de passado transcendental, refere Deleuze, Bergson, ao indicar todo o passado como o motor de passagem de presentes, tem o seu elemento ontológico fundador que antecede a memória enquanto estado psicológico; o todo do passado permite a passagem do tempo presente e actual de modo simultâneo com o passado coexistente com o presente que ele foi (virtual) e com o presente que agora é (actual)[1].
Desta situação, surgem diversos paradoxos. Em primeiro lugar, o presente vivo, constituído pelos elementos assimétricos de passado e futuro, somente passa porque é simultaneamente passado e futuro. O presente passa porque já é passado e, deste modo, o passado torna-se contemporâneo do presente que ele foi. Em segundo lugar, o passado vai também coexistir com o novo presente actual em relação ao qual o passado é passado. Como afirma Bergson, contraindo ao máximo o passado num presente permite que este presente passe e que o passado esteja sempre lá, isto é, o passado deixa de ser uma dimensão do presente e torna-se o próprio tempo, enquanto elemento a priori da duração. Por último, o passado preexiste ao presente e ao futuro. Não se movendo, não sendo um presente que tenha deixado de ser, o passado transcendental nunca é o antes nem nunca é o presente que foi: o passado preexiste ao presente que passa (é contemporâneo) e coexiste com o presente em relação ao qual ele é passado. Entre o presente virtual, do passado que foi presente, e o presente actual, formam-se séries que não se sucedem numa linha horizontal do tempo, mas antes coexistem e, deste modo, o passado, não só é virtual, como é real: o passado virtual age no presente porque coexiste com o presente. A síntese activa do tempo forma séries entre passado e presente sempre relativas a um ponto singular de onde se afastam ou se aproximam. As lembranças são extensões maiores, topo do cone invertido, ao passo que o presente vivo é a base, contracção máxima. Trata-se do esquema bergsoniano do cone invertido:

[1] Le Bergsonisme, Paris, P.U.F., 1998, p. 52.

4. A Imagem-Cristal
Enquanto imagem directa do tempo, a imagem-cristal é uma imagem biface, actual e virtual, presente e passado: o presente que passa coexiste com o passado que se conserva. É uma imagem que, pela sua natureza dupla, propicia o pensamento dos paradoxos temporais, da duração temporal como simultaneidade permitindo, deste modo, analisar os dois extremos desta relação indiscernível entre actual e virtual, divisão em dois tipos de registos cristalinos: se em Citizen Kane encontramos a coexistência de extensões do passado, em L'année dernière à Marienbad encontramos a simultaneidade de pontas de presente. No quarto capítulo de L’Image-temps, Deleuze interrompe os comentários a Henri Bergson e refere a noção fulcral da imagem-cristal e dos cristais de tempo. A imagem-cristal tem duas faces que não se confundem, o real e o imaginário são o carácter objectivo de certas imagens, duplas por natureza, actuais e virtuais (I.T.: 94). Na imagem-cristal, a imagem actual faz-se acompanhar sempre pela sua imagem virtual como o duplo de um reflexo num espelho acompanha sempre o objecto reflectido. Entre as duas forma-se um circuito de coalescência, uma imagem dupla, que é um ponto indiscernível. Entre a sua percepção e lembrança, a imagem não tem um prolongamento sensório-motor mas um prolongamento no passado transcendental, uma camada de passado. A imagem-cristal é a imagem-tempo directa que não decorre do movimento nem é controlada pelo movimento.
Existem duas imagens-cristal possíveis, ambas valendo pelo todo do tempo, por mostrarem a cisão que o tempo é: o presente que passa e o passado que se conserva em si, coexistindo com o presente que é. Deste modo, as duas imagens podem ter o seu fundamento, quer no passado (esquema do cone invertido em Bergson), quer no presente, mas não de um modo disjuntivo. Elas valem pelo todo do tempo, não de um modo exclusivo, antes pelo contrário, valem pelo todo do modo inclusivo de o presente passar e o passado se conservar. É uma forma de encontramos no cristal os dois pólos da memória bergsoniana. Tal como Bergson expõe o campo ontológico através da noção do passado transcendental, Deleuze define a sua ontologia da imagem ao evidenciar a natureza cristalina de certas imagens cinematográficas, do ponto de vista ontológico, são tempo puro, ou seja, é a coalescência de passado, presente e futuro. No entanto, não é um conceito unívoco, e por isso Deleuze refere dois tipos de imagem-tempo: o passado virtual - o passado que coexiste com o presente que é; os presentes desactualizados – o presente do passado, presente do presente e presente do futuro. E, consequentemente, existem duas abordagens à imagem-cristal: pela sua dilatação em regiões ou extensões do passado virtual, ou pela sua contracção em pontas do presente actual. A dilatação do circuito de uma imagem actual corresponde ao seu envolvimento em imagens-sonho e lembrança sempre reportadas ao passado transcendental que coincide com o presente que é. Nenhuma está parada no momento presente uma vez que o mais alto nível da memória corresponde ao mais profundo da realidade. Seguindo o pensamento de Bergson, podemos afirmar que o presente passa porque é uma contracção mínima, o mínimo circuito virtual-actual. Toda a imagem efectua a duplicação da sua existência numa realidade actual e virtual e, sendo biface, ela é constituída como dupla, é virtual e actual, é passado e presente.
Contrariamente, o mais pequeno circuito é o limite interior aos circuitos mais alargados, sustentando o envolvimento da imagem actual, uma imagem do mundo. Assim, o mínimo circuito, máxima contracção, da imagem é um ponto físico, com elementos de actual e virtual, distintos mas indiscerníveis. A imagem actual é simultânea com a sua imagem virtual. No mais pequeno circuito da contracção no actual presente, a imagem virtual é contemporânea da actualização: não só não há dilatação espacial, como não há dilatação temporal. Como no espelho, a expansão espacial é ilusória (repetição infinita), o tempo é uma fracção mínima. A imagem é biface quando (e não onde) o virtual e o actual são coalescentes. O passado virtual não é sucedido pelo presente mas coexiste com a sua actualização. Obriga o tempo a um desdobramento em passado-presente a cada momento. É esta cisão que vemos na imagem-cristal e, neste sentido, há uma indiferença ontológica ao falar das duas primeiras imagem-tempo: imagem actual do presente que passa e imagem virtual do passado que se conserva.
O mínimo circuito acontece por contracção no interior do momento presente actual, que coincide com o seu próprio passado. Os circuitos, mais ou menos alargados, acontecem na região do passado virtual e podem trazer, a qualquer momento, todo o passado ao presente. O circuito mínimo é assim o mais pequeno gérmen cristalino e o circuito alargado é o vasto universo cristalizável(I.T.: 108). O cristal é gérmen e estrutura. “O opsigne [imagem óptica actual sem prolongamento motor] encontra o seu verdadeiro elemento genético quando a imagem óptica actual se cristaliza com a sua própria imagem virtual, no mais pequeno circuito interno”(I.T.: 93). Por exemplo, o espelho cria sempre um circuito com o que reflecte. O espelho é virtual para a realidade do que se reflecte mas, em si, enquanto reflexo, ele é actual remetendo o que se reflecte à virtualidade.
Há uma permuta entre o visível e o invisível, entre o límpido e o opaco: a virtualização do actual é uma mudança para a opacidade do actual, assim como a actualização do virtual torna-o límpido. No entanto, este gérmen cristalino não é possível sem um universo cristalizável, isto é, em termos temporais, o passado transcendental. A imagem actual deve ter uma estrutura virtual cristalizável, em relação à qual a imagem é actual, de um presente que é presente por ser já passado. Por este motivo, a imagem-cristal mostra o fundamental de uma imagem-tempo directa, o desdobramento a cada momento do presente em direcções heterogéneas, passado e futuro, a cristalização do actual. O passado não é um momento temporal posterior ao presente que foi, mas simultâneo ao presente que é actual (I.T.:108). A imagem-cristal, por ser biface, virtual e actual, tem também, correspondentemente,  duas abordagens temporais: extensões de passado, ou a profundidade de campo em Orson Welles; e pontas de presente, ou as simultaneidades em Alain Resnais. Deste modo, encontramos na imagem-cristal os paradoxos do cone invertido bergsoniano porque a imagem tem um prolongamento no passado e não no esquema sensório-motor. 
5. Conclusão: uma nova imagem do pensamento
O cinema, enquanto imagem cerebral, permite compreender como funciona o pensamento quando este não funciona através dos bloqueios, das falhas, revelando o intervalo entre duas imagens que, devido a um corte irracional, não seria previsível estarem relacionadas. Deleuze afirma que “a essência do cinema, que não é a generalidade dos filmes, tem o pensamento como objectivo mais elevado, nada mais do que o pensamento e o seu funcionamento”(I.T.:219) e analisa diversos filmes de Stanley Kubrick e de Alfred Hitchcock para exemplificar esta ideia. Se, para Bergson, uma imagem é imediatamente uma imagem-movimento, para Deleuze, uma imagem será uma imagem-pensamento. Por este motivo, encontramos em diversos textos uma crítica à imagem dogmática do pensamento porque o projecto de criação de uma nova imagem do pensamento entra em conflito com esta imagem dogmática: Proust et les signes, Nietzsche et la philosophieDifférence et répétitionL'Image-mouvement e L’Image-Temps. Em Nietzsche e a filosofia[1], por exemplo, Deleuze reconduz a crítica nietzschiana para a criação de uma nova imagem do pensamento, através do desmascarar da imagem dogmática cartesiana e kantiana. 
Assim, e segundo a imagem dogmática do pensamento, pensar significa pensar automaticamente a verdade porque não se pensa na falsidade. De acordo com esta ideia, há no homem uma predisposição natural para pensar a verdade, acto avaliado como uma disposição boa.  Em segundo lugar, como pensar significa pensar a verdade, o bem pensar não pode conduzir ao erro, isto é, o pensamento que conduz ao erro é desviado por agentes e elementos que são exteriores ao pensamento, como o corpo próprio, os sentimentos, etc. Em terceiro lugar, seguir o método é conduta necessária para a verdade. Mas, para Gilles Deleuze, “uma nova imagem do pensamento significa, em primeiro lugar, o seguinte: o verdadeiro não é o elemento do pensamento”[2].
Na passagem de regimes das imagens cinematográfica para a imagem-tempo, Deleuze vai afirmar que “por um lado, a imagem cinematográfica torna-se uma apresentação directa do tempo, segundo as relações incomensuráveis e os cortes irracionais. Por outro lado, esta imagem-tempo põe o pensamento em relação com um impensado, o não evocável, o inexplicável, o indecidível, o incomensurável”(I.T.: 279). O choque entre imagens cinematográficas coloca o próprio pensamento perante a possibilidade de pensar o impensável e, ao fazer isto, reavalia o cinema como a nova imagem do pensamento, capaz de elaborar uma crítica concreta à imagem dogmática do pensamento. O cinema impõe movimento ao pensamento, faz do espectador um autómato espiritual, e, simultaneamente, reproduz o movimento automático das imagens. Esta é a grande diferença entre o cinema e as outras artes e que será o ponto de viragem da filosofia do cinema em Deleuze. O cinema não é um instrumento necessário para se pensar melhor porque ele próprio é pensamento, é interface, "membrana cerebral"(I.T.:164 e 268), termo utilizado para falar do cinema de Stanley Kubrick, permitindo a passagem para um plano de imanência: intervém o pensamento do exterior, o choque do impensável entre imagens. “Kubrick renova o tema da viagem iniciática porque qualquer viagem no mundo é uma exploração do cérebro” (I.T.:267). 

[1] Nietzsche e a filosofia, Porto, Rés editora, s/d, p. 156.
[2] Nietzsche e a filosofia, p. 157. 



1. Prefácio da edição americana de Imagem-Movimento
(Título do editor [David Lapoujade]. “Preface to the English Edition” in Gilles Deleuze, Cinema 1: The Movement-Image, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1986, p.ix-x. Tradução inglesa de Hugh Tomlinson e Barbara Habberjam.)
Este livro não se propõe a constituir uma história do cinema, mas a esclarecer alguns conceitos cinematográficos. Estes conceitos não são técnicos (como os diversos planos e diferentes movimentos da máquina) nem críticos (por exemplo, os grandes géneros, western, policial, histórico, etc.). Não são também linguísticos, no sentido em que se dizia que o cinema era uma língua universal ou então no sentido actual, em que se diz que o cinema é uma linguagem. O cinema parece-nos ser uma composição de imagens e signos, isto é, uma matéria inteligível pré-verbal (semiótica pura), ao passo que a semiologia de inspiração linguística elimina a imagem e tende a prescindir do signo. Aquilo a que chamamos conceitos cinematográficos são então os tipos de imagens e os signos que correspondem a cada tipo. Deste modo, e considerando a imagem do cinema como sendo “automática” e simultaneamente imagem-movimento, procurámos saber em que condições ela se individualizou em diferentes tipos. Estes tipos são, essencialmente, a imagem-percepção, a imagem-afecção e a imagem-acção. A sua distribuição determina certamente uma representação do tempo, mas é preciso notar que o tempo permanece objecto de uma representação indirecta enquanto depende da montagem e deriva das imagens-movimento.
É possível que, desde a guerra, uma imagem-tempo directa se tenha formado e imposto no cinema. Não queremos dizer que já não houvesse mais movimento mas que, tal como já tinha acontecido há muito tempo na filosofia, produziu-se uma inversão na relação movimento-tempo: já não é o tempo que se relaciona com o movimento, mas são as anomalias do movimento que dependem do tempo. Em vez de uma representação indirecta do tempo que decorre do movimento, é a imagem-tempo directa do tempo que decorre do movimento, é a imagem-tempo directa que comanda o falso-movimento. Por que é que a guerra tornou possível  esta inversão, esta emergência de um cinema do tempo com Welles, com o neo-realismo, com a nouvelle vague...? Também aí será preciso investigar que tipos de imagem correspondem à nova imagem-tempo e que signos se combinam com estes tipos. Talvez tudo surja com a falência do esquema sensório-motor: este esquema que tinha encadeado as percepções, afecções e acções, não entra numa crise profunda sem que antes o regime geral da imagem tenha mudado. Em todo o caso, o cinema sofreu aqui uma mudança muito mais importante do que sofrera com o surgimento do sonoro.
Não é caso para se dizer que o cinema moderno da imagem-tempo “seja melhor” que o cinema clássico da imagem-movimento. Apenas falamos de obras-primas às quais não se aplica nenhuma hierarquia de valores. O cinema é sempre tão perfeito quanto pode ser, tendo em conta as imagens e signos que ele inventa e de que dispõe nesse momento. Por este motivo, este estudo deve entrelaçar as análises concretas das imagens e signos com monografias dos grandes autores  que os criaram ou renovaram.
O primeiro volume fala sobre a imagem-movimento, o segundo falará sobre a imagem-tempo. Se no final deste primeiro volume conseguirmos compreender toda a importância de Hitchcock, um dos maiores cineastas ingleses, dever-se-à ao facto de nos parecer que ele inventou um tipo de imagem extraordinária: a imagem de relações mentais. As relações, enquanto exteriores aos seus limites, foram sempre objecto do pensamento filosófico inglês. Quando uma relação acaba ou muda, o que é que acontece aos seus limites?  Deste modo, Hitchcock, numa comédia menor como Mr and Mrs Smith pergunta: o que é que acontece a um homem e a uma mulher que um dia tomam conhecimento que o seu casamento não estava legalizado, que nunca estiveram casados? Hitchcock faz um cinema da relação como a  filosofia inglesa fazia uma filosofia da relação. Talvez, neste sentido, ele se situe na charneira dos dois cinemas, o clássico, que  ele termina e o moderno, que ele prepara. Neste sentido, não basta comparar os grandes autores de cinema aos pintores, aos arquitectos ou mesmo aos músicos, mas também aos pensadores. Frequentemente, é uma questão de uma crise no cinema, que sofre a pressão da televisão e depois da imagem electrónica. Mas, as capacidades criadoras de uma e de outra são já inseparáveis daquilo a que os grandes cineastas lhes trouxeram. Um pouco como Varèse na música, eles reclamam os novos materiais e meios que o futuro torna possíveis.
in Deux régimes de fous. Textes et entretiens 1975-1995, Les éditions de Minuit (coll. “Paradoxe”), Paris, 2003, pp 251-253.

2. Prefácio da edição americana de Imagem-Tempo
(Título do editor [David Lapoujade]. O texto manuscrito tem a data de Julho de 1988. “Preface to the English Edition” in Gilles Deleuze, Cinema 2: The Time-Image, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1989, p.xi-xii. Tradução inglesa de Hugh Tomlinson e Robert Galeta.)
Na Filosofia, houve uma revolução que se desenvolveu durante muitos séculos, desde os Gregos a Kant: inverteu-se a subordinação do tempo ao movimento, o tempo deixa de ser a medida do movimento normal. Cada vez mais se manifesta por ele mesmo e cria movimentos paradoxais. O tempo sai dos seus eixos: a frase de Hamlet significa que o tempo já não está subordinado ao movimento, antes o movimento ao tempo. É possível que, por sua vez,  o cinema tenha passado pela mesma experiência, a mesma inversão, em condições mais rápidas. A imagem-movimento do cinema dito “clássico” deu lugar, depois da  guerra, a uma imagem-tempo directa. É evidente que uma ideia tão geral deve ser matizada, corrigida, adaptada aos casos concretos.
Porquê a guerra como corte? Porque o pós-guerra na Europa fez proliferar situações às quais deixámos de saber reagir, em espaços que já não sabíamos qualificar. Eram espaços “quaisquer”, desertos apesar de povoados, entrepostos desafectados, terrenos vazios, cidades demolidas ou em reconstrução. E nestes espaços quaisquer agitava-se uma nova raça de personagens, qualquer coisa mutante: eles viam mais do que agiam, eram os Videntes. Deste modo, apareceu a grande trilogia de Rossellini, Europe 51, StromboliAlemanha, ano zero: uma criança numa cidade destruída, uma estrangeira numa ilha, uma mulher burguesa que passa a olhar à sua volta. As situações podem ser extremas ou, pelo contrário, aquelas da banalidade quotidiana ou uma de cada vez: o que tende a estilhaçar, ou pelo menos a se desqualificar, é o esquema sensório-motor, tal como este constituía a imagem-acção do antigo cinema. E em vez desse esquema sensório-motor falido, temos o Tempo , “um pouco de tempo em estado puro”, que surge à superfície do ecrã. O tempo deixa de derivar do movimento, manifesta-se por ele próprio e ele próprio suscita falsos-movimentos. Daí a importância do faux-raccord no cinema moderno: as imagens deixam de se encadear por cortes e ligações racionais, e começam a reencadearem-se com os faux-raccords ou cortes irracionais. Até mesmo o corpo já não é exactamente o móbil, o sujeito do movimento e instrumento da acção, torna-se mais depressa o revelador do tempo, testemunha o tempo através dos seus cansaços e esperas (Antonioni).
Não é certo que a imagem cinematográfica esteja no presente. O que está no presente é aquilo que a imagem “representa”, e não a própria imagem, que nunca se confunde com aquilo que representa, no cinema bem como na pintura. A própria imagem é um sistema de relações entre os seus elementos, isto é, um conjunto de relações de tempo, de onde o presente variável se limita a derivar. Penso que é neste sentido que Tarkovsky recusa a distinção entre montagem e plano, definindo o cinema como “pressão do tempo” no plano[1]. O que é próprio da imagem, do que ela é criadora, é tornar sensíveis, visíveis, as relações temporais que não se deixam ver no objecto representado e não se deixam reduzir ao presente. Seja a profundidade de campo em Welles, ou o travelling de Visconti: mergulhamos no tempo mais do que percorremos o espaço. No início do filme de Visconti, o carro de Sandra move-se já no tempo e as personagens de Welles ocupam no tempo um lugar de gigantes, ainda que não mudem de sítio no espaço.
A imagem-tempo não tem nada a ver com o flash-back nem mesmo com uma lembrança. A lembrança é simplesmente um antigo presente, ao passo que as personagens amnésicas do cinema moderno mergulham literalmente no passado e, ao emergir, fazem ver aquilo que se esconde mesmo na lembrança. O flash-back não é senão um rótulo e, quando é utilizado pelos grandes autores, só está lá para manifestar estruturas temporais muito mais complexas (por exemplo, em Mankiewicz, o tempo que “bifurca”: recuperar o momento onde o tempo podia ter tomado outra direcção...). De qualquer modo, aquilo a que chamamos estrutura temporal, ou imagem-tempo directa, excede evidentemente a sucessão puramente empírica do tempo, passado-presente-futuro. É, por exemplo, uma coexistência de durações distintas ou de níveis de duração, um mesmo acontecimento pode pertencer a diferentes níveis: os lençóis de passado coexistem numa ordem não-cronológica, em Welles com a sua poderosa intuição da Terra  e depois em Resnais com as personagens que regressam do país dos mortos.
Há ainda outras estruturas temporais: o principal objectivo deste livro é de esclarecer aquelas que a imagem cinematográfica soube capturar e revelar, e que podem fazer eco com aquilo que a ciência nos ensina, aquilo que as outras artes nos revelam, ou aquilo que a filosofia nos faz compreender, com toda a respectiva independência. É um disparate quando falamos da morte do cinema, porque o cinema está ainda no início das suas investigações: tornar visíveis as suas relações do tempo, que não podem aparecer senão numa criação da imagem. Não foi o cinema que sentiu falta da televisão, nela a imagem fica deploravelmente no presente se não for fecundada pela arte do cinema. As relações e as disjunções entre o visual e o sonoro, entre o que é visto e o que é dito, relançam mais o problema e dão ao cinema novos poderes para capturar o tempo  na imagem (de modo muito diferente, Pierre Perraut, Straub, Syberberg...). Sim, se o cinema não tiver uma morte violenta, tem a possibilidade de um começo. Inversamente, devemos procurar já no cinema anterior à guerra, e mesmo no mudo, o trabalho de uma imagem-tempo muito pura que não acabou de atravessar, de reter ou de englobar a imagem-movimento: a natureza-morta de Ozu, como forma imutável do tempo? Agradeço a Robert Galeta pelo cuidado que teve ao traduzir esta aventura do movimento e do tempo.

in Deux régimes de fous. Textes et entretiens 1975-1995, Les éditions de Minuit (coll. “Paradoxe”), Paris, 2003, pp 329-331.

[1] Tarkovsky, “De la figure cinématographique”, Positif, nº249, Dezembro, 1981 (nota do texto original).

3. Comentário
Através da leitura destes dois prefácios escritos por Gilles Deleuze a propósito da tradução para a língua inglesa dos seus livros sobre cinema, conseguimos ter uma ideia geral das principais motivações da escrita dos mesmos. Deleuze pretendeu compreender a criação de diferentes tipos de imagem na sua relação com a representação directa do tempo e com o pensamento filosófico contemporâneo. Neste aspecto, a frase de Hamlet, “the time is out of joint”, serve como mote para uma inversão filosófico-cinematográfica de se entender a relação entre tempo, movimento e duração.
Um dos objectivos de Deleuze era não escrever uma história do cinema nem estabelecer uma hierarquia nas obras de arte cinematográficas mas antes fazer um levantamento de todos os signos cinematográficos. Partindo do princípio de que uma imagem cinematográfica é imediatamente uma imagem-movimento, Deleuze procura localizar as condições de individuação dos diferentes tipos de imagem-movimento. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e com a crise do esquema sensório-motor, surgem outras condições que possibilitam a criação de imagens-tempo em que o tempo controla o movimento.
Na passagem de imagem-movimento para imagem-tempo, uma passagem natural e necessária, há uma autonomização do tempo relativamente ao movimento, ou, se quisermos, à montagem. Com a falência do esquema sensório-motor, há uma apropriação do tempo por si próprio como domínio do plano pela duração. Esta autonomia tem consequências quer a nível técnico, de captação da imagem, da escrita do argumento, quer a nível teórico com a projecção de ideias e pensamentos, o modo como a mente funciona. Neste sentido, percorrendo as cinematografias de Hitchcock, Rossellini, Antonioni, Visconti, Tarkovsky, Welles, Resnais ou Ozu, Deleuze explora as possibilidades filosóficas de criação de conceitos no cinema evidenciando a supremacia do tempo, autêntica revolução filosófica para a qual o cinema é paradigmático enquanto cinema cerebral, das relações mentais que obrigam o espectador a pensar o impensável.



1. De Gilles Deleuze
Empirisme et subjectivité. Essai sur la nature humaine selon Hume, Presses Universitaires de France, Paris, 1953.
 Nietzsche et la philosophie, Presses Universitaires de France, Paris, 1962.
 La philosophie critique de Kant, Presses Universitaires de France, Paris, 1963.
 Proust et les signes, Presses Universitaires de France, Paris, 1964.
 Nietzsche, Presses Universitaires de France, Paris, 1965.
 Le bergsonisme, Presses Universitaires de France, Paris, 1966.
 Présentation de Sacher-Masoch: La Vénus à la fourrure. Paris, Éd. de Minuit, 1967.
 Spinoza et le problème de l'expression, Les éditions de Minuit (coll. “Arguments”), Paris, 1968.
 Différence et répétition, Presses Universitaires de France, Paris, 1968.
 Logique du sens, Les éditions de Minuit (coll. “Critique”), Paris, 1969.
 L'Anti-Oedipe- Capitalisme et schizophrénie, en collaboration avec Félix Guattari, Les éditions de Minuit (coll. “Critique”), Paris, 1972.
 Kafka. Pour une littérature mineure, en collaboration avec Félix Guattari, Les éditions de Minuit (coll. “Critique”), Paris, 1975.
 Rhizome, en collaboration avec Félix Guattari, Paris, Éd. de Minuit, 1976. (Reeditado em Mille-Plateaux.)
 Dialogues avec Claire Parnet, Paris, Flammarion, 1977; (a 2ª edição de 1996 inclui o anexo L'actuel et le virtuel).
 Superpositions, en collaboration avec Carmelo Bene, Paris, Éd. de Minuit, 1979.
 Mille Plateaux- Capitalisme et schizophrénie 2, en collaboration avec Félix Guattari, Les éditions de Minuit (coll. “Critique”), Paris, 1980.
 Spinoza - Philosophie pratique, Les éditions de Minuit, Paris, 1981.
 Francis Bacon: logique de la sensation (2 vol.). Paris, Editions du Seuil (coll. “L'ordre philosophique”), 1981.
 L'image-mouvement. Cinéma 1, Les éditions de Minuit (coll. “Critique”), Paris, 1983.
 L'image-temps. Cinéma 2, Les éditions de Minuit (coll. “Critique”), Paris, 1985.
 Foucault, Les éditions de Minuit (coll. “Critique”), Paris, 1986.
 Le Pli - Leibniz et le baroque, Les éditions de Minuit (coll. “Critique”), Paris, 1988.
 Périclès et Verdi. La philosophie de François Châtelet, Les éditions de Minuit, Paris, 1988.
 Pourparlers 1972 - 1990, Les éditions de Minuit, Paris, 1990.
 Qu'est-ce que la philosophie?, en collaboration avec Félix Guattari, Les éditions de Minuit (coll. “Critique”), Paris, 1991.
 “L’épuisé”, postface à Quad, de Samuel Beckett, Paris, Éd. de Minuit, 1992.
Critique et clinique, Les éditions de Minuit (coll. “Paradoxe”), Paris, 1993.


1.1. Póstumo
L'île déserte et autres textes. Textes et entretiens 1953-1974, Les éditions de Minuit (coll. “Paradoxe”), Paris, 2002.
Deux régimes de fous. Textes et entretiens 1975-1995, Les éditions de Minuit (coll. “Paradoxe”), Paris, 2003.

1.2. Video
L'Abécédaire de Gilles Deleuze , conjunto de entrevistas filmadas  com Claire Parnet e realizado por Pierre-André Boutang, Éditions Montparnasse, 1996.
No mês de Maio de 2006 a televisão italiana Rai Tre transmite várias horas dos cursos filmados de Vincennes (1975-1976-1980).

1.3. Audio
Artifice et société dans l'œuvre de Hume (15 min. 1956), Le Dieu de Spinoza (4 min. 1960), Le travail de l'affect dans l'éthique de Spinoza (8 min. 1978), 3 intervenções reunidas na  Anthologie sonore de la pensée française par les philosophes du XXe siècle, Editions INA-Institut National de l'Audiovisuel/Frémeaux & Associés, 2003.
Spinoza, immortalité et éternité, 2 CD, Gallimard, “A voix haute”, 2005.
Leibniz, âme et damnation, 2 CD, Gallimard, “A voix haute”, 2005.
Gilles Deleuze, cinéma, 6 CD, Gallimard, “A voix haute”, 2006.

2. Sobre a Filosofia do Cinema de Gilles Deleuze
 AA. VV. (1995). Philosophie, n.º 47, Paris, Éditions de Minuit.
BOGUE, Ronald (2003). Deleuze on Cinema, New York, Routledge.
CORDEIRO, Edmundo (2005). Actos de cinema, Coimbra, Angelus Novus.
DE LACOTTE, Suzanna Hême (2001). Deleuze: Philosophie et cinéma, Paris, L’Harmattan.
FAHLE, Olivier/Engell, Lorenz (dir.) (1997). Der film bei Deleuze/Le cinéma selon Deleuze, Verlag der Bauhaus Universität Weimar/Presses de la Sorbonne Nouvelle.
FLAXMAN, Gregory (ed.) (2000). The brain is the screen: Deleuze and the philosophy of cinema, University of Minnesota Press.
RODOWICK, D. N. (1997). Gilles Deleuze's time machine, Durham, Duke University Press.
SERRANO, Jacques (dir.) (1996). Après Deleuze: philosophie et esthétique du cinéma, Dis Voir.
ŽIŽEK, Slavoj (2004). Organs without bodies, London, Routledge.
ZOURABICHVILI, François (1996). Deleuze: une philosophie de l’événement, Paris, P.U.F.
_____; SAUVAGNARGUE, A.; MARRATI, P. (2004). La Philosophie de Deleuze, Paris, P.U.F.



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