A sacralização do cotidiano
O conceito central para o pensador: o conceito de Deus. Trata-se de um Deus poético
Gustavo Bernardo
Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2014/06/a-sacralizacao-do-cotidiano/
A vida de uma pessoa faz parte da realidade: premissa acaciana. No entanto, Vilém Flusser afirma, no seu primeiro livro, que a língua cria a realidade. Ora, se a língua cria a realidade, o que cria a língua? Para o filósofo, a poesia cria a língua. Mas, se a poesia cria a língua e a língua cria a realidade, quem ou o que cria a poesia? A poesia cria a si mesma, responde Flusser: ela é uma espécie de causa suficiente. Logo, a poesia se compara a nada ou ninguém menos do que Deus.
Vemos aqui conceito central para o pensador: o conceito de Deus. Trata-se de um Deus poético. Vilém Flusser é religioso? Não. Ele faz parte do vasto grupo de judeus sem Deus do século 20. Apesar disso, a noção e a necessidade de Deus formam o norte da vida e da obra desse homem.
No capítulo “Maravilhas” do livro Natural:mente, Vilém Flusser recorda que as mulheres da sua família queriam lhe provar que Deus existia. Desde tenra idade, o iniciam na metafísica. Elas mostram evidências de Deus apontando ora para uma flor maravilhosa, ora para a maravilhosa cor de um pássaro.
Suponho que essa experiência seja vivida por nós outros. Apresentam-nos as belezas e as maravilhas da natureza como prova incontestável da existência de um Deus criador. Todavia, quando menino, Vilém se depara com um tio que lhe prova a falsidade desse tipo de prova. Com oito anos de idade, esse tio o leva para pescar.
Na beira do rio Moldávia, o tio lhe mostra como enfiar as minhocas vivas no anzol. Ver o seu tio querido comprazendo-se em torturar as pequenas minhocas faz com que a ideologia do Deus criador deste mundo maravilhoso torne horroroso este mesmo mundo.
A vivência é muito forte, misturando nojo, dó e sentimento de culpa. Flusser descobre a estupidez brutal do suposto criador das minhocas, dos peixes e dos pescadores. No entanto, para não ver Deus como estúpido, Vilém prefere deixar de vê-lo como Criador. Por piedade de Deus, Flusser deixa de crer no Deus criador.
O menino compreende que a hipótese do Deus Criador é contrária à fé em um Deus do amor e da esperança. Ele compreende que o Deus responsável pela morte da minhoca mata o Deus para o qual pede toda noite que tome conta da mãe, do pai e da irmã.
Flusser então recusa o Deus dos filósofos para conservar o Deus existencial. Passa a se perguntar como a fé “consegue resistir ao peso morto do dogma de um Deus criador”. Ele não concilia a noção de um Deus criador com a noção de um Deus bom.
Ou Deus criou o mundo – e portanto é tão cruel que se diverte com o sofrimento das minhocas e dos meninos – ou Deus é bom – e portanto não criou esse mundo: não há conciliação possível. Flusser sabe que nossa mente cristã admira a perfeição da natureza porque todo passarinho tem a sua minhoca e todo gatinho tem o seu ratinho. No entanto, nossa mente cristã desconsidera o ponto de vista da minhoca e do ratinho.
A tal da natureza na verdade é brutal: todos os seres cantam e chilram, rosnam e grunhem, zunem e grasnam, mas não em louvor do Senhor. Eles o fazem em louvor da fome.
À medida que cresce, porém, o filósofo conhece outras explicações para a brutalidade da natureza: a explicação científica, através da teoria da evolução de Charles Darwin, e a explicação filosófica, através do jogo entre o acaso e a necessidade, como formulou Jacques Monod. Estas explicações lhe parecem melhores do que aquela que postula um Deus criador de tudo o que existe. No entanto, algo o incomoda, a saber: ele não consegue descartar a explicação “Deus”.
A teoria de Monod complementa a de Darwin por ser mais formal. Se há um jogo, ele tem regras. Se o jogo tem regras, ele pode ser compreendido e reproduzido. A explicação primitiva, entretanto, ao afirmar que Deus criou a vida, não mostra nenhuma das regras do jogo de Deus para criar e, portanto, não explica nada.
Ora, mas é exatamente a circunstância de não se revelarem quaisquer regras da criação que mantém a força da explicação “Deus”. Se vejo as regras que constituem o mundo, o mundo se revela vazio, arbitrário e irrelevante a ponto de eu não conseguir mais enxergar qualquer mundo. Se não vejo as regras que constituem o mundo e sua criação, o mundo volta a se compactar, tão belo quanto terrível.
A ciência descarta a hipótese “Deus” enquanto a filosofia mata Deus, mas Deus retorna no mesmo instante. Vilém também precisa de Deus enquanto criador do mundo. Ao mesmo tempo, sabe que “Deus é uma péssima explicação do mundo”. O menino que ele continua a ser quer amar Deus sobre todas as coisas como lhe ensinaram, mas sabe que se assumir Deus como criador do mundo não pode mais amar nem Deus nem o mundo.
Ele precisa de Deus para que o mundo não se evapore em formas transparentes, embora saiba que assim o mundo se resume em minhocas espetadas no anzol do tio. O filósofo costumava dizer: perguntas têm sentido apenas quando não têm resposta. Considerava que vivia uma vida sem religião, mas sempre em busca de religião; uma vida sem Deus, mas sempre à procura de Deus. Ele entendia essa ausência-procura como a própria definição da filosofia.
Vilém compreendia por religiosidade a capacidade de captar a dimensão sacra do mundo. Reconhecia a existência de pessoas religiosamente surdas: elas viveriam em mundos rasos e se movimentariam entre dimensões transparentes, porque explicáveis, andando sempre de costas para a morte. A morte, portanto, as pegaria sempre pelas costas.
A predisposição religiosa, ao contrário, torna profundo o mundo e opacas as coisas, porque nunca inteiramente explicáveis, e torna problemática a morte, forçando-nos a caminhar de frente para ela.
A predisposição religiosa deixa obscura a visão clara do mundo, assim como a contemplação da paisagem deixa obscura a visão clara do mapa. O pintor, no ponto de vista do cartógrafo, é um obscurantista. O escritor, no ponto de vista do cientista e do professor que acreditam no que falam, seria igualmente um obscurantista. O homem religioso, no ponto de vista daquele que não é incomodado pela dimensão sacra do mundo, não deixa de ser igualmente um obscurantista.
Como se deseja a clareza, algumas pessoas abafam a voz da religiosidade e vivem com óculos escuros, supondo que enxergam melhor assim. Entretanto, como a clareza também é chata, algumas dessas pessoas fingem um sentimento religioso para o qual não têm capacidade. São duas inautenticidades opostas que complicam o fenômeno da religiosidade.
O desvio do ardor religioso para o campo do profano resulta no endeusamento do dinheiro, do Estado, dos media, da química, das drogas, lá o que seja. Em contrapartida, existe a ficção de Kafka e de Guimarães Rosa. Por isso, Flusser dava graças ao deus das línguas “que permitiu o fenômeno Guimarães Rosa, como que para provar de forma prática as minhas teorias”. Vilém Flusser dava graças ao deus das línguas que fez o Riobaldo de Rosa dizer: “Deus existe mesmo quando não há”.
O ensinamento do tio e os conflitos entre o Deus criador e o Deus bom retornam na vida de Vilém Flusser de uma maneira que mal podemos imaginar, transformando toda a realidade numa ficção trágica e, por isso mesmo, mais intensa do que a própria realidade.
Em 1939, ele completa 19 anos de idade quando os nazistas invadem o seu país. No mesmo mês da chegada de Hitler a Praga, Vilém foge junto com Edith, sua namorada, na direção da Inglaterra. Quando Paris cai, Vilém e Edith, com medo de a Inglaterra ser invadida, vêm para o Brasil, aonde chegam em agosto de 1940.
Nas docas do Rio de Janeiro, Vilém recebe a notícia de que o seu pai morrera no campo de Buchenwald. A mãe e a irmã haviam sido presas e deportadas. Elas morreriam em 1942, em Auschwitz. Todos os seus entes queridos são espetados, como minhocas judias, no absurdo anzol dos nazistas.
Flusser morre em 1991, num acidente de trânsito e justamente em Praga, para onde volta para fazer uma conferência. Gosto de imaginar que, antes da conferência e do acidente fatal, Vilém teria visitado sozinho o Memorial da Sinagoga Pinkas, na rua Siroká.
Este Memorial é dedicado às 80 mil vítimas tchecas dos nazistas. Seus nomes, em ordem alfabética, acompanhados das datas de nascimento e morte, preenchem todos os centímetros quadrados das paredes das salas que constituem o Memorial. No centro do Memorial, Vilém descobre o nome do seu pai, o professor Gustav Flusser.
Vejo-o parado no centro da sala, revendo o nome do pai na parede, o pai de que o afastaram irremediavelmente, enquanto revê a sua própria vida e cumpre mais uma vez o eterno retorno do mesmo terror e da mesma esperança.
Sabemos que Vilém lia muito literatura. Ele dedicou seus melhores comentários especialmente a dois autores de ficção: Franz Kafka e João Guimarães Rosa. Há um personagem comum a ambos que orientou toda a filosofia de Vilém, porque ele o procurou por toda a vida: esse personagem é o Pai.
O Pai de Kafka é o pai do inseto chamado Gregor Samsa, e é também o próprio pai de Kafka, da terrível Carta ao pai. O Pai de Guimarães Rosa é o pai do mais belo conto da literatura brasileira: “A terceira margem do rio”.
O pai de Vilém se chamava Gustav Flusser. O nome me espelha e me assusta. Gustav não fugiu da barbárie com o filho. Gustav permaneceu em Praga e foi assassinado. O filho esperou encontrá-lo por toda a vida: no Brasil, na França, na Alemanha e em Praga.
Justamente em Praga Flusser reencontra o seu pai: como um nome gravado na parede do Memorial da Sinagoga Pinkas. À beira do rio Moldávia, Vilém decerto imaginou-se como o filho sem nome do conto de Guimarães Rosa.
É esse filho que nos conta: quando menino, seu pai manda fazer uma pequena canoa e parte nela para o meio do rio. O pai não vai a lugar nenhum, permanece apenas no meio do rio. Ele fica ali, remando contra a corrente apenas o suficiente para não se mover, por meses, por anos, por décadas a fio.
O filho chama o pai de “nosso pai”. Da mesma maneira que Deus é a projeção metonímica agigantada da figura paterna, os pais de Kafka e de Guimarães Rosa são projeções metonímicas reduzidas da figura de Deus. De algum modo, o pai de Vilém Flusser também se torna uma projeção metonímica reduzida da figura de Deus.
O pai de Rosa cria a terceira margem do rio como uma bela metáfora da transcendência. Depois de décadas esperando esse pai na margem do rio, o filho, agora com cabelos brancos, decide chamá-lo aos gritos: “está na hora de tomar o seu lugar, meu pai? O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!”.
O pai escuta. Pela primeira vez em tantos anos, ele rema para a margem. O filho sente que o pai vem “da parte de além”. Apavorado, foge. O pai, então, desaparece. O filho sente “o grave frio dos medos” e adoece. Ele percebe que vai morrer e pede que também depositem o seu corpo numa pequena canoa e a soltem no rio.
Gosto de imaginar Vilém inundado pela memória do pai, imaginando a si mesmo à beira das águas imaginárias do seu amigo brasileiro, o escritor João Guimarães Rosa, a esperar o pai que se mantém na terceira margem do rio, remando dentro de uma pequena canoa.
Neste momento, Vilém perguntaria ao pai, como se dentro da história de Guimarães Rosa: “está na hora de tomar o seu lugar, meu pai? O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!”.
Vilém Flusser de fato morre poucas horas depois, num acidente de trânsito. Eu só não sei se ele troca de lugar com o pai, na canoa, para permanecer na terceira margem do rio no lugar de Gustav, ou se ele foge, desatinado, e nos pede perdão até hoje.
Como continuamos falando desse menino tcheco duas décadas após a sua morte, creio que Vilém é mais corajoso do que o filho do conto de Guimarães Rosa. Creio que ele se encontra lá, no meio do rio Moldávia, remando contra a corrente desde então, ainda e sempre à procura do Deus em que não acredita.
Gustavo Bernardoé doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), autor do livro A dúvida de Flusser (Globo Livros, 2012)
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