terça-feira, 18 de novembro de 2014

Vilém Flusser : O Brasil e a concepção de pós-história

Brasileiro no melhor dos casos

O Brasil e a concepção de pós-história de Vilém Flusser
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Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2014/06/brasileiro-no-melhor-dos-casos/

Rodrigo Duarte

O que Flusser chama de “pós-história” pode ser definido como período em que o decurso histórico, o progresso e o encadeamento de eventos tendo em vista certo propósito não são mais predominantes. Tal classificação, em princípio, excluiria o Brasil, já que, segundo Flusser, aqui nunca teria se consolidado uma vivência propriamente histórica, mas apenas ilhas de história (nos grandes centros urbanos, por exemplo) num mar de vivência não histórica. No entanto, a contrapelo da posição explícita de Flusser, pretendo indicar, aqui, que as instigantes contribuições do filósofo para a compreensão da realidade e da cultura brasileiras apontam para a possibilidade de uma vivência que, embora não imediatamente oriunda de experiência histórica, podem inspirar inclusive os povos emersos dessa experiência no sentido de um período pós-histórico que signifique não o aprofundamento das mazelas da história, mas a ampliação das possibilidades de realização da humanidade.

Tendo em vista esse objetivo, começo com uma exposição de alguns conceitos fundamentais na caracterização da pós-história (“programa”, “comunicação”, “ritmo” e “imagem”), para, após a apresentação de algumas das colocações de Flusser sobre o Brasil, propor uma aproximação entre esses dois campos de reflexão do filósofo.
No que tange ao “programa”, é interessante observar que, onde há programas, há aparelhos, equipamentos que fazem os programas funcionar, o que ocorre por meio de funcionários – pessoas incumbidas de operar os aparelhos. Por outro lado, se há programas, também deve haver programadores – aqueles que estabelecem o conjunto de virtualidades contidas nos programas que funcionam nos aparelhos, os quais, por sua vez, são operados pelos funcionários. Para Flusser, no entanto, embora o programador tenha mais poder do que o funcionário que apenas opera o aparelho, está longe de ser onipotente, pois ele próprio é também funcionário de um meta-aparelho. Ainda que essa situação encerre um perigo de enorme desumanização, a saída seria aprendermos a lidar com o absurdo dos jogos propostos pelos programas: “A liberdade é concebível apenas enquanto jogo absurdo com os aparelhos. Enquanto jogo com programas” (Pós-história: Vinte instantâneos e um modo de usar, São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 31).
Ao estabelecer o seu conceito de “comunicação”, Flusser faz a distinção entre “discursos” e “diálogos”, sendo que aqueles visam à objetividade e têm a função de difundir conhecimento, enquanto esses tem como meta a intersubjetividade e funcionam como produtores de conhecimento novo. Para Flusser, o lado perverso da pós-história é que, mesmo diante das amplas possibilidades de desenvolvimento dos diálogos, nela predominam os discursos, o que é sintoma de uma crise profunda na sociedade contemporânea.
O mesmo tom sombrio da discussão sobre a comunicação ocorre também no conceito de “ritmo”, que descreve o percurso cíclico que as massas pós-históricas realizam como resultado de sua programação pelos aparelhos. Flusser lembra que, assim como na Idade Média o espaço que servira de mercado foi coberto com uma cúpula, originando a basílica, na atualidade as duas funções desse espaço – de mercado e de templo – foram transpostas para os atuais shopping centers, nos quais o papel do mercado foi transposto para o supermercado, e o do templo para o cinema. Exatamente isso é o que determina o “nosso ritmo”: “O supermercado e o cinema formam as duas asas de um ventilador que insufla na massa o movimento do progresso. No cinema a massa é programada para comportamento consumidor no supermercado, e do supermercado a massa é solta para reprogramar-se no cinema” (Pós-história, p. 70).
A menção ao papel do cinema remete ao conceito flusseriano de “imagem”: nosso cotidiano é dominado por superfícies resplandecentes que irradiam mensagens, determinando nossas vidas: “Planos como fotografias, telas de cinema e da TV, vidros das vitrines, tornaram-se os portadores das informações que nos programam. São as imagens, e não mais os textos, que são os media dominantes” (Pós-história, op. cit., p. 97). Essa colocação sugere que a escrita surgiu como revolta contra as imagens, quando se constatou que essas não apenas orientavam, mas também iludiam e alienavam. Para Flusser, a passagem do predomínio das imagens para o dos textos coincide com a superação da pré-história e o advento da história: “Para a consciência estruturada por imagens a realidade é situação: impõe a questão da relação entre os seus elementos. Tal consciência é mágica. Para a consciência estruturada por textos a realidade édevir: impõe a questão do evento. Tal consciência é histórica. Com a invenção da escrita a história se inicia” (Pós-história, p. 99).
Se, por um lado, a invenção da escrita objetivava ao esclarecimento do mundo, por outro, ela não escapou da “dialética interna” a que obedeciam também as imagens: “Os textos, como as demais mediações (…) Des-alienam e alienam o homem” (Pós-história, p. 100). Essa característica dos textos ocasiona, segundo Flusser, o surgimento de um novo tipo de imagem, que, diferentemente das tradicionais, não é produzida diretamente pela mão do homem, mas mediatizada por códigos lineares. Desse modo, assim como a noção de pré-história se liga ao surgimento das imagens tradicionais e a de história à invenção da escrita, as imagens técnicasoriginam a “pós-história”: “O gesto de codificar e decifrar tecnoimagens se passa em nível afastado de um passo do nível da escrita, e de dois passos do nível das imagens tradicionais. É o nível da consciência pós-histórica” (idem).
Naturalmente, a mesma ambiguidade das imagens tradicionais e da escrita ocorre também nas tecnoimagens, uma vez que elas pretendem ser não simbólicas – como o são as imagens tradicionais –, mas “objetivas”, portanto “verdadeiras”. Tal postulação não se sustenta, segundo o filósofo, porque o progressivo “realismo” dos registros que fornecem do mundo exterior não impede que esses se submetam a um novo processo de simbolização. É por isso que, de acordo com Flusser, “a mensagem das tecnoimagens deve ser decifrada e tal decodagem é ainda mais penosa que a das imagens tradicionais: é ainda mais ‘mascarada’” (Pós-história, p. 101).
Apesar de em Pós-história: Vinte instantâneos e um modo de usar Flusser nem sequer mencionar o Brasil, não se pode dizer que ele tenha recusado esse tema, já que dois livros escritos no início da década de 1970, alguns anos antes da obra sobre a pós-história, têm no país seu tema principal. Desses, destaco, aqui, a Fenomenologia do brasileiro (Editora Eduerj, 1998), buscando relacioná-lo com o conceito de pós-história, o que não é fácil, uma vez que o filósofo afirma que só se pode falar de pós-história no caso de uma sociedade que viveu plenamente a história, “porque do ponto de vista da não-história não tem sentido querer distinguir entre ‘pré’ e ‘pós’, já que significam o mesmo” (Fenomenologia do brasileiro, p. 35).
Entretanto, se fizermos uma leitura sintomática dos seus escritos relacionados com os dois temas, poderemos concluir que, embora não havendo concordância no tocante à terminologia adotada por Flusser, aquilo que ele aponta de mais frutífero na vida e na cultura do Brasil corresponde em grande parte àquelas oportunidades de ampliação da liberdade humana que o período pós-histórico pode oferecer. Na impossibilidade de abordar todos os tópicos que indicam essa correspondência, ater-me-ei, aqui, a um aspecto em que ela aparece com mais nitidez: a cultura como fenômeno lúdico.
Antes disso, seria necessário acompanhar a distinção, feita pelo filósofo, entre mistura e síntese: “…na mistura os ingredientes perdem parte da sua estrutura, para unir-se no denominador mais baixo. Na síntese, os ingredientes são elevados a novo nível no qual desvendam aspectos antes encobertos. Mistura é resultado de processo entrópico, síntese resulta de entropia negativa. Obviamente o Brasil é país de mistura. Mas potencialmente, por salto qualitativo, é o país da síntese…” (Fenomenologia do brasileiro, p. 52).
Flusser entende por “salto qualitativo” uma transformação radical na vida, a qual não seria proveitosa apenas para todos os brasileiros, mas também para toda a humanidade: “Pois o que pode significar ser brasileiro no melhor dos casos? Pode significar um homem que consegue (inconscientemente, e mais tarde conscientemente) sintetizar dentro de si e no seu mundo vital tendências históricas e não históricas aparentemente contraditórias, para alcançar síntese criativa, que por sua vez não vira tese de um processo histórico seguinte” (Fenomenologia do brasileiro, p. 54).
Isso se associa à distinção, proposta por Flusser a respeito da relação do Brasil com o exterior, entre defasagem e síntese. Um exemplo sobre essa distinção diz respeito ao passado colonial brasileiro: o chamado “barroco mineiro”. Segundo o filósofo, um europeu teria motivos para ridicularizar o conjunto arquitetônico, pictórico e escultórico das cidades históricas de Minas Gerais, se o comparasse à grandiosidade das manifestações europeias desse estilo. No entanto, o problema seria muito mais terminológico do que relacionado com a qualidade artística das obras: “…a risada sossega e vira admiração desde que o imigrante se liberte do rótulo barroco. Porque então descobre um fenômeno sem paralelo, no qual elementos portugueses, orientais (hindus e chineses) e negros conseguem formar uma síntese na qual é possível descobrirem-se os germes de um novo tipo humano” (Fenomenologia do brasileiro, p. 81).
Exatamente tendo em vista o que já ocorreu nesse sentido, o filósofo acredita na possibilidade de uma grande síntese futura, que consistiria numa contribuição brasileira para a humanidade em geral. No tocante às sínteses, na cultura mais elaborada, entre os diversos elementos mais ou menos autóctones e aqueles advindos diretamente do exterior, o filósofo tcheco-brasileiro lembra a importância do modernismo brasileiro, totalmente no espírito do seu conceito de “síntese”: “… a única verdadeira revolução brasileira, a ‘Semana de 22’, se deu na cultura. É ela que revolveu a estrutura inteiramente alienada da cultura anterior, formando a base de toda cultura futura, seja positivamente, seja negativamente” (Fenomenologia do brasileiro, p. 111).
Para além das elaborações artísticas eruditas, Flusser se reporta também aos fenômenos culturais afeitos às massas brasileiras, demonstrando grande admiração pelo que ele chama de “cultura de base” brasileira, a qual se liga a um apuro estético que não se encontra apenas nas manifestações artísticas propriamente ditas, mas se difunde por todo o ambiente humano do país. Segundo o filósofo, essa cultura é profundamente marcada pela sensualidade da raça negra e penetra em todos os aspectos do cotidiano, de um modo que nem o racismo latente, nem o conjunto dos preconceitos sociais arraigados podem negar e ao qual não conseguem resistir.
Desse modo, parece claro que, mesmo evitando cuidadosamente a aplicação do termo “pós-história” nas abordagens sobre a sociedade e a cultura brasileiras, Flusser tenha em mente algo semelhante quando fala da atitude do nosso povo diante da centralidade do jogo, a qual corresponde à postura dos jogadores na realidade pós-histórica “que jogam em função do outro” (Pós-história, p. 168). De modo análogo, as mencionadas sínteses alcançadas na cultura brasileira, entre os elementos a-históricos e os históricos, não deveriam ser consideradas como produtoras apenas de uma realidade cultural interessante a partir de padrões europeus, mas como apenas fazendo sentido enquanto adquirentes da característica de ser um meio de atingir o imediato, a qual, por sua vez, aponta para uma refuncionalização dos aparelhos em benefício das pessoas.
Rodrigo Duarteé doutor em Filosofia pela Universität Gesamthochschule Kassel, na Alemanha, e professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

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