Fenomenologia do brasileiro
Vilém Flusser
Judeu nascido em Praga (1920), Vilém Flusser estudou filosofia, sem concluir o curso. Após a invasão nazista (1939), evadiu-se para Londres. Viajou para o Brasil, onde se casou (Rio, 1940), estabelecendo-se em São Paulo, onde passou a viver do comércio. Exímio conhecedor de línguas, neste período mais se dedicou, solitariamente, à leitura filosófica. Para dedicar-se apenas à filosofia, integrou-se à comunidade filosófica paulista através do diálogo com Vicente Ferreira da Silva, dentre outros. Ao iniciar sua nova fase (1958-1959), quando passa a elaborar textos de grande originalidade, exerce inúmeras atividades: Professor Convidado junto à Escola Politécnica da USP, lecionando Filosofia da Ciência; fundador do Curso de Comunicação Social da FAAP; colaborador na Revista Brasileira de Filosofia, no Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo; colunista na Folha de São Paulo, na Frankfurter Allgemeine Zeitung, etc. Em 1972, mudou-se para a Europa, estabelecendo-se em Robion, na França, onde morou até a sua morte (1992). Neste último período, Flusser foi reconhecido pela comunidade filosófica internacional, sendo constantemente convidado para palestras e congressos.
Judeu nascido em Praga (1920), Vilém Flusser estudou filosofia, sem concluir o curso. Após a invasão nazista (1939), evadiu-se para Londres. Viajou para o Brasil, onde se casou (Rio, 1940), estabelecendo-se em São Paulo, onde passou a viver do comércio. Exímio conhecedor de línguas, neste período mais se dedicou, solitariamente, à leitura filosófica. Para dedicar-se apenas à filosofia, integrou-se à comunidade filosófica paulista através do diálogo com Vicente Ferreira da Silva, dentre outros. Ao iniciar sua nova fase (1958-1959), quando passa a elaborar textos de grande originalidade, exerce inúmeras atividades: Professor Convidado junto à Escola Politécnica da USP, lecionando Filosofia da Ciência; fundador do Curso de Comunicação Social da FAAP; colaborador na Revista Brasileira de Filosofia, no Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo; colunista na Folha de São Paulo, na Frankfurter Allgemeine Zeitung, etc. Em 1972, mudou-se para a Europa, estabelecendo-se em Robion, na França, onde morou até a sua morte (1992). Neste último período, Flusser foi reconhecido pela comunidade filosófica internacional, sendo constantemente convidado para palestras e congressos.
Obra editada originalmente em alemão sob o título Brasilien oder die Suche nach dem neuen Menschen: Für eine Phänomenologie der Unterentwicklung (Brasil, ou a procura de um novo homem: por uma fenomenologia do subdesenvolvimento), Bollmann Verlag, 1994. Primeira edição em português organizada por Gustavo Bernardo, Rio de Janeiro: UERJ, 1998.
Fonte: http://textosdevilemflusser.blogspot.com.br/2008/10/fenomenologia-do-brasileiro-i.html
Fonte: http://textosdevilemflusser.blogspot.com.br/2008/10/fenomenologia-do-brasileiro-i.html
Sumário
1. Em busca de um novo homem
2. Imigração
3. Natureza
4. Defasagem
5. Alienação
6. Miséria
7. Cultura
8. Língua
9. Diagnóstico e prognóstico
1. Em busca de um novo homem
O homem é um ente essencialmente perdido e, quando se dá conta, procura encontrar-se.
Esta sentença pode ser lida em vários níveis, por exemplo, no nível religioso ou no nível de um bandeirante no sertão, e seu sentido é sempre este: a decisão de tomar caminho (ou abrir caminho) depende sempre de um mapa da situação na qual o homem se encontra. Isto significa que toda decisão depende não apenas da posição das coisas, mas também da imagem que fazemos da posição das coisas (provavelmente isto tem muito a ver com o problema da liberdade). Pois essa imagem, seja ela mais ou menos fiel, depende sempre de um ponto de vista, a partir do qual foi projetada, e este ponto de vista não pode, ele próprio, fazer parte da situação que enfoca.
O fato de o homem assumir pontos de vista não diz no fundo outra coisa a não ser que o homem procura encontrar-se. Poderíamos dizer que a capacidade para a visão distanciada é prova da perdição humana, porque não teria sentido afirmar de um ente incapaz de ver sua situação que está perdido. No entanto, devemos ser cautelosos ao tentar estabelecer um nexo causal entre a capacidade para a superação e a perdição humana. Estaremos perdidos por podermos nos distanciar de nos mesmos, ou podemos sair de nós mesmos por estarmos perdidos? Provavelmente trata-se de pergunta sem sentido. É melhor constatarmos simplesmente que a capacidade para a imaginação (inclusive para a imaginação de si mesmo) caracteriza o homem tanto quanto a sensação de: (a) estar perdido em não importa que situação; (b) e dever portanto orientar-se.
Devemos constatar também que a consciência da desorientação e da necessidade de orientar-se não esta desperta sempre, nem em todos. Os assim chamados "bem integrados" (ou "quadrados") não se sentem perdidos, e neste sentido cada um de nós é "quadrado" na maioria das vezes. A sensação da desorientação, a angústia do beco sem saída, toma conta de nós apenas por momentos, e torna-se insuportável por períodos mais extensos. Pois são estes momentos fugazes que nos movem para darmos o passo para trás de nós mesmos. Retroceder, para podermos imaginar e depois compreender e, por fim, para agir decididamente. Pois estas são as fases do encontro consigo mesmo: distância, imaginação, conceito, ato; ou superação da situação, projeto de um plano sobre a situação, adequação do plano à situação, modificação da situação de acordo com o plano.
É óbvio que a tentativa de encontrar-se pode falhar em não importa qual dessas fases, e esta é a razão porque a ensaiamos tão raramente. Na maioria das vezes, permitimos de bom grado que a situação nos atordoe, a fim de escaparmos à desorientação e à angústia do momento. A liberdade, por louvada que seja, é incômoda, exige esforço, e não oferece garantia de sucesso. O atordoamento pela situação é um bom método para evitá-la. Este atordoamento pode ser formulado assim: a situação me determina e me propele, ela é incompreensível e, mesmo se pudesse compreendê-la, não bastariam minhas forças para opor-me a ela. Isto é uma formulação razoável e uma tentativa honesta de evitar o uso da capacidade para conseguir a liberdade. Via de regra, no entanto, não somos tão honestos, e procuramos fazer crer que fazemos o que fazemos por nos termos decidido livremente para tanto. São os momentos de angústia (por fugazes que sejam) que nos revelam que fazemos o que fazemos por estarmos determinados e empurrados por fora. Mas até a formulação honesta é em certo sentido indigna, porque é da dignidade humana ensaiar a liberdade, por irrazoável que seja. Portanto: tentar manter a sensação da desorientação desperta. Assumir a perdição é a tentativa de encontrar-se, sob pena de fracassarmos. Este é o clima das considerações seguintes.
Obviamente: distanciar-se e projetar planos não passam das duas primeiras fases do processo do encontrar-se. São as fases especulativa e desengajada, e serão vãs, se não forem seguidas pela fase engajada. É certo: não basta explicar o mundo. Mas igualmente certo é que não podemos modificá-lo, sem tentarmos explicá-lo (fato nem sempre suficientemente salientado pelos engajados). Pois um tal "explicar o mundo" depende de pelo menos dois fatores, a saber: da distância do afastamento, e do ponto de vista. Quanto maior a distância, tanto mais ampla a visão, mas, também, tanto mais indistintos os detalhes e tanto menos fiel o plano da situação concreta. E todo ponto de vista projeta uma luz sobre a situação na qual as coisas lançam sombras específicas, e portanto aparecem diferentemente de não importa que ponto de vista. Isto significa que toda tentativa de visão é individual, e que a visão que se oferece caracteriza o visionário pelo menos tanto quanto caracteriza a situação vista. Mas isto não significa que toda tentativa assim é necessariamente subjetiva, e portanto nada comunica. Pelo contrário: da soma das visões disponíveis pode fazer-se um mapa que se aproxima infinitamente da "verdade objetiva", sem jamais alcançá-la. É claro: soma de distâncias e de pontos de vista nunca resultará na reprodução fiel do visto, portanto nunca levará à verdade no sentido aristotélico do termo. Mapas verdadeiros não podem existir e, portanto, não existem. Mas seriam desnecessários se existissem. Pelo contrário: mapas não devem ser verdadeiros, se quiserem orientar-nos. Um mapa de uma cidade, que seria fiel se a reproduzisse por inteiro, seria tão confuso quanto o é a própria cidade, e não teria utilidade alguma. Um elemento de simplificação e de exagero é essencial para todo o mapa, e o ideal da objetividade é portanto sumamente duvidoso. Em todo caso, não será este o ideal das considerações que se seguem.
Distanciar-se da situação e projetar de um determinado ponto de vista um mapa sobre ela, esta é a meta aqui perseguida. Portanto, este ensaio tem meta e limite. A meta é, repitamos, oferecer ao leitor um ponto de vista, a partir do qual poderá ver, de um ângulo determinado, a situação na qual estamos e acrescentar a visão resultante a outras visões para poder orientar-se. O limite é o engajamento, do qual o presente trabalho procurará aproximar-se sem alcançá-lo. Pretende este ensaio manter-se desengajado, embora admita que todo desengajamento ou serve de trampolim a um engajamento, ou é irresponsável. O engajamento permanecerá (assim esperemos) fora dos limites deste ensaio, porque ele pretende contribuir para a decisão do leitor, mas não lhe dar conselhos. Em outros termos: o ensaio recusa responsabilidade para assumir-se como não importa que "autoridade" (por admitir ser incompetente para tanto), mas assume responsabilidade para ser "fonte de informação" (porque crê possuir alguma competência para tanto).
Para resumir o que foi dito: movido por angústia e pela sensação de estar em beco sem saída, este ensaio se distancia da nossa situação, assume um ponto de vista específico, procura projetar daí uma imagem da situação, na esperança que tal imagem possa servir, em conjunto com outras, a uma orientação na situação e de trampolim para a sua modificação – portanto, para um engajamento.
O que significa "nossa situação" neste contexto? Primeiramente, a situação da humanidade neste final do século XX. Mas, obviamente, um tal significado vasto obrigaria a tomar tamanha distancia da situação, a fim de abarcá-la, que a visão resultaria em mera generalidade e banalidade. Por isso, urge definir o termo "nossa situação" um pouco mais razoavelmente. Por exemplo, desta forma: situação de um intelectual burguês, proveniente da cultura ocidental, no final do século XX. Mas, mesmo assim definido, o problema é tão amplo que parece convidar a uma queda na conversa fiada grandiosa. Evitar tal perigo será uma das tarefas mais árduas deste ensaio.
A esperança para tanto reside na estreita especificidade do ponto de vista a ser assumido. Será o ponto de vista de um intelectual brasileiro imigrado da Europa. Conforme disse: toda imagem depende de dois fatores: da distância e do ponto de vista. A distância assumida por este ensaio é grande, por ter ele escolhido um campo muito vasto. Em compensação, o ponto de vista é tão estreito que permite esperar que lugares comuns sejam evitados. O ponto de vista a ser assumido não exige explicação, já que resulta da própria condição de quem escreve este ensaio. Mas a decisão de publicar tal visão deve ser explicada. O seguinte item será, pois, tentativa de autojustificatica do autor, e deve portanto ser tomado cum grano salis.
A história enquanto soma dos atos decisivos (res gestae), e não enquanto também soma de sofrimentos, se tem desenvolvido até agora (isto é: nos últimos 8.000 anos, aproximadamente) em larga faixa que cinge o globo entre os graus 25 e 60 do Hemisfério Norte. Não se trata de um período muito amplo, já que perfaz apenas 2% da existência do homem na Terra. É provável que a humanidade não seja nativa desta faixa, e quiçá a história toda não passe do método da humanidade para adaptar-se a ambiente não inteiramente conveniente. Uma maneira de ler a história é seguir as curvas traçadas pelos pontos de decisão dentro da faixa. Em tal leitura, por exemplo, a abertura do norte da Europa no século IV e do norte da América no século XVI serão tomados por momentos decisivos, e efetivamente a história é geralmente lida desta forma. Mas, vistos a partir de uma distância maior, tais traços e saltos do ponto decisivo na faixa não parecem constituir a verdadeira medida da história, e uma outra medida se impõe, a saber: a da relação entre a faixa histórica e o resto da humanidade (um resto que pode ser chamado de ahistórico ou pré-histórico, não importa). Esta segunda leitura da história está se tornando mais comum: a humanidade extra-histórica deixa de ser exótica, o mundo por ela habitado deixa de ser chamado hinc sunt leones e passa a ser chamado "terceiro mundo", e o problema da relação entre história e não-história torna-se mais consciente.
Tal problema aparece na consciência sob duas formas. Uma o vê como desafio de enquadrar na humanidade histórica a humanidade não-histórica, e é esta a forma que caracteriza as sociedades históricas (por exemplo o Ocidente que "ajuda no desenvolvimento", e a China que "ajuda as revoluções libertadoras"). A outra o vê como desafio de depor a faixa histórica, e esta forma caracteriza algumas sociedades não-históricas (por exemplo a "negritude" e o black power).
Há, no entanto, outras formas de o problema aparecer na consciência, e uma é esta: é possível tomar a história no sentido acima proposto como epiciclo de 8.000 anos sobre um ciclo maior da humanidade, que dura centenas de milhares de anos. É possível dizer-se que existem sintomas que apontam o próximo fim de tal epiciclo. Visto da história, isto significa que esta emergia da pré-história para mergulhar em pós-história, em futuro próximo. E efetivamente há vozes neste sentido no Ocidente (e não são apenas as vozes da nova esquerda e dos hippies). Mas, visto da não-história, isto significa que o epiciclo histórico surgiu precariamente da não-história, para nela mergulhar novamente. Porque do ponto de vista da não-história não tem sentido querer distinguir entre "pré" e "pós", já que significam o mesmo. E o problema da relação entre história e não-história aparece agora como problema de absorver novamente a história em não-história.
Este ponto de vista é raras vezes assumido, e é ainda mais raramente publicado. Isto se explica com facilidade. Porque assumir tal ponto de vista intelectualmente, como ginástica mental, é coisa fácil e pode ser feita por todo aquele que tem intelecto um pouco treinado. Mas insistir existencialmente sobre tal ponto de vista é acessível a poucos, apenas para quem sente o próximo fim da história em todos os seus nervos, e simultaneamente vivencia os problemas da não-história no próprio corpo. Para poder sentir o primeiro, é preciso ter-se originado em sociedade histórica, e para vivenciar o segundo, é preciso viver em sociedade não-histórica, por exemplo: ser intelectual brasileiro imigrado da Europa.
Mas em verdade nem sequer isto basta para assumir tal ponto de vista. Não basta pelas razões seguintes: o imigrante intelectual tem um papel na "sociedade subdesenvolvida", a saber: propagar os valores históricos em novo ambiente. Este papel é tão sedutor, que poucos a ele resistem, e destarte o imigrante se transforma, sem se dar conta disso, em catalisador da historicização do novo ambiente. Sem se dar conta, porque, se não estivesse atordoado pelo choque da imigração deveria lembrar-se que, afinal de contas, emigrou da história porque a história lhe é problemática a ponto de ser insuportável. Acontece, é claro, que o imigrante se torna consciente disto e assume o exílio de bom grado. Mas neste caso dá as costas à história, qual Gauguin, e se desinteressa dela. Em ambos os casos é impossível assumir o ponto de vista aqui proposto, porque o primeiro é fruto de um engajamento na história, e o segundo de um desengajamento dela.
Para se poder assumir o ponto de vista proposto, é necessário que o imigrante se tenha perdido tanto na história quanto na não-história, e que procure orientar-se em ambas. Que duvide de ambas, sem desesperar de nenhuma. Portanto, que não desespere da não-história (como o faz a maioria dos pensadores do "Terceiro Mundo", os quais procuram desesperadamente penetrar a história adentro), nem desespere da história (como o fazem tantos pensadores ocidentais, os quais procuram desesperadamente uma saída dela em direção de uma não-história romanticamente paradisíaca e mentirosa). O autor crê estar na situação relativamente rara de poder assumir existencialmente o ponto de vista proposto. E esta relativa raridade representa, assim o crê, uma justificativa para a publicação do seu ponto de vista.
Para resumir o que ficou dito: este ensaio assumirá o ponto de vista de um intelectual burguês brasileiro, imigrado da Europa, para tentar imaginar, a partir dele, a situação do burguês intelectual ocidental em geral. Nutre a esperança de que a raridade do seu ponto de vista poderá contribuir para que outros se orientem e mudem o mundo.
Quanto ao método a ser seguido neste ensaio: será empreendida a tentativa de dar um passo para trás com relação à situação de um intelectual brasileiro imigrado, para ver tal situação à distância e permitir que ela própria se articule. Isto significa que será feita a tentativa de abandonar todo preconceito e todo valor antes de dar o passo. Tal método constitui, geralmente, o método da fenomenologia. Quem já procurou aplicá-lo, sabe que é um método muito penoso, porque exige constantemente autocontrole para evitar que os preconceitos e valores (que são muito pegajosos) não continuem agarrados àquele que se afasta. Mas pode ser um método extremamente poderoso, porque, quando aplicado com êxito, revela a própria essência das coisas.
Portanto: este ensaio procurará ver, descrever e raciocinar despreconceituadamente. "Despreconceituadamente" significa não apenas livre de ideologias, mas principalmente também livre de conhecimentos, isto é, de teorias. A atitude será portanto não apenas despida de valores, mas também de instrumentos das ciências especializadas. Não será pretendida análise sociológica, econômica, etnológica, etc., mas, pelo contrário, todo possível conhecimento que porventura existe no autor quanto aos métodos e resultados destas disciplinas será posto entre parênteses, a fim de não perturbar o fenômeno mesmo. Destarte se procurará conceder a palavra ao próprio mundo vital do autor para que isto resulte em imagem viva e vivificada. Obviamente o autor não conseguirá evitar que valores e conhecimentos, tanto "falsos" quanto "verdadeiros", se infiltrem constantemente e perturbem a imagem. Não conseguirá evitá-lo, porque sabe que a visão "pura" não é apenas coisa da disciplina, mas também de um dom, e que pode ser forçada apenas até certa medida. O resultado do ensaio será (se este estiver pelo menos êxito fragmentário) uma imagem do brasileiro do ponto de vista de um imigrante da Europa. Isto explica o título do ensaio. Quem quiser pode efetivamente ler o ensaio assim: como descrição de um país e seus habitantes. Mas, conforme foi dito, esta não é a meta do ensaio. A meta é fornecer uma imagem, a qual, graças a analogia e contraste, possa servir de orientação ao ocidental em geral, e em particular ao burguês intelectual do Ocidente.
Parece existir, todavia, e faz parte, uma certa contradição entre método e meta: o método é permitir que as coisas da situação se articulem espontaneamente; a meta é falar, sotto voce, também em coisas nem sequer vistas e, a saber, graças ao contraste e à analogia. O método continua não deliberado, no sentido de não manipular as coisas deliberadamente para que sustentem teses preconcebidas. E, enquanto método, persegue, como todo método, uma meta.
Vários setores da cena brasileira serão escolhidos sucessivamente, a fim de serem iluminados. A escolha será puramente subjetiva, no sentido de obedecer ao interesse e à vivência de quem escreve este ensaio. Mas está na dialética da coisa que a escolha subjetiva provoca a coisa para ser objetiva, isto é: coisa. No final será ensaiada uma síntese da imagem sob a égide do ponto de vista. E tal imagem sintética não passará, ela própria, de mero setor a ser por sua vez sintetizado em visão mais ampla de uma situação mais ampla. Apenas em tal síntese maior adquirirá a imagem o seu verdadeiro sentido, e é no fundo assim que este ensaio quer ser lido.
Para formular o mesmo fato de outra maneira: o presente ensaio é um depoimento da nossa situação do ponto de vista de um imigrante brasileiro. Como depoimento, procura não apenas dar-se conta a si mesmo e aos outros da situação na qual estamos, todos, mas também encontrar caminhos e saídas. Em tal depoimento aparece, expressamente, apenas o mundo vital do autor, a saber, o Brasil, mas também, implicitamente, a situação geral de nós todos. O depoimento procura ser honesto, mas sabe que a honestidade é um ideal de muito difícil alcance. Portanto o depoimento se oferece assim: enquanto ensaio, não obra – e assim quer ser lido.
Para resumir, finalmente: neste ensaio será tentada uma descrição fenomenológica de um Brasil vivido, para servir de mapa, por analogia e contraste, a uma humanidade tão perdida quanto o é o próprio ensaio. As analogias e os contrastes deverão ser fornecidos pelo próprio leitor, do seu próprio ponto de vista. Por isso, as considerações que se seguirão estão neste sentido "abertas": são ensaio que passará a ser obra apenas se encontra leitor que o complete.
2. Imigração
Há na literatura que trata do problema da imigração uma curiosa lacuna. Parece que pouco ou nada tem sido escrito sobre um tema que se poderia chamar "Filosofia da Imigração e Imigração da Filosofia".
Embora o fenômeno da imigração tenha sido exaustivamente analisado de numerosos pontos de vista (especialmente nos países imigratórios), quase nunca o foi do ponto de vista do intelectual imigrante. Isto é surpreendente, já que deve ser suposto ser justamente o intelectual o mais indicado para articular a situação existencial do imigrante. A explicação disto talvez seja esta: a situação imigratória é de difícil generalização, e a generalização é a meta da visão filosófica. Em toda situação imigratória predominam os fatores específicos (por exemplo o background sociocultural e geográfico do imigrante, o território em que imigra, e o momento histórico no qual o faz), e estes fatores encobrem a estrutura da situação quase inteiramente. A tarefa de desencobrir tal estrutura geral parece condenada ao fracasso (já que existe o perigo de, ao remover o específico, perdemos o próprio fenômeno), e os pensadores estão aparentemente prontos a abandonar o estudo do fenômeno às disciplinas científicas especializadas, como sejam a sociologia, a economia, a biologia e a psicologia.
Mas o fenômeno da imigração é um aspecto importante da história em geral e da atualidade em particular, e, a rigor, não compreenderemos nem a história nem a atualidade sem considerá-lo. Blondel diz que a verdadeira história consiste de vidas humanas, e a vida humana é metafísica em ato. Pois se "metafísica" tem a ver com "superação da situação", a vida imigratória será exemplo extremo da afirmativa blondeliana, já que tal superação lhe é começo. Portanto uma descrição fenomenológica da situação imigratória pelo próprio imigrante deveria a rigor poder desvendar a estrutura de toda vida humana, e isto não a despeito, mas por causa dos fatores específicos que a caracterizam. Tal descrição deveria desenterrar categorias aplicáveis a situações inteiramente diferentes. Uma tal tentativa será agora empreendida. Não no sentido de visar ao oferecimento dessas categorias já prontas para o uso, mas no sentido de provocar o leitor a escolher tais categorias que lhe pareçam aplicáveis à situação na qual ele próprio se encontra.
O ambiente brasileiro se oferece ao imigrante de forma ambivalente. Para captar a ambivalência, o imigrante deve libertar-se dos preconceitos que lhe encobrem a realidade, principalmente dos preconceitos "país novo", "sociedade aberta" e "terreno americano", mas também dos preconceitos "tropical" e "sociedade latina". Tais preconceitos encobrem a realidade não por serem falsos, mas por serem meias verdades, e meias verdades são perniciosas.
Retirados os preconceitos, o Brasil aparece ao imigrante na seguinte forma: o primeiro contato se dá com uma massa urbana heterogênea e quase amorfa. É verdade que a massa fala uma única língua (o português), e isto parece dar-lhe estrutura. Mas o ouvido atento descobre que essa língua não é infra-estrutura (como no caso das sociedades europeias, mas que forma um teto a reunir a massa, qual esperanto ou koiné, debaixo do qual pulsam inúmeras outras línguas que se refletem no próprio português para poder penetrar a massa e integrar-se nela. Mas, fora disto, ela não oferece obstáculo digno de nota. É massa num sentido mais radical que a população urbana européia. A sua monotonia e a falta de articulação (que contrasta com a sua heterogeneidade) é o que primeiro salta à vista, em suma a falta de especificidade, quando São Paulo serve de modelo (o modelo é aplicável a muita cidade sulina, mas não a toda cidade brasileira, por exemplo não ao Rio de Janeiro, não às cidades da Bahia).
Ao penetrar na massa, o imigrante descobre no mingau um arquipélago de ilhas em processo de decomposição lenta. Toda ilha corresponde a uma sociedade europeia, ou a alguma sociedade do Oriente próximo e extremo, e é habitada por imigrantes dessas sociedades, seus filhos, e no máximo netos. As ilhas se diluem na massa que as banha e, se não se diluíram de todo, é por estarem ainda irrigadas por corrente imigratória já em vias de secar atualmente. As ilhas oferecem a imagem das sociedades originais em várias fases de decadência, desde um agarrar-se central e rígido a formas trazidas, até uma vaga lembrança periférica dos usos e abusos dos antepassados. O ritmo da decadência não depende apenas da corrente imigratória renovadora, mas também da rigidez e complexidade da sociedade original: japoneses se diluem em ritmo diferente dos árabes, judeus da Polônia em ritmo diferentes dos franceses. O imigrante descobre no arquipélago também aquela ilha que corresponde à sua própria origem, e vivencia o choque da decadência, da provincialização e da primitivização, o que facilita para ele a ruptura dos elos que o ligam à sua origem.
As ilhas são banhadas pelo mar proletário e subproletário composto de descendentes da população rural brasileira, de descendentes das populações das próprias ilhas, e irrigado por constante e crescente imigração do interior brasileiro. Há, nesse mar, também descendentes de escravos africanos libertos no fim do século passado, que formam porcentagem elevada (o que impressiona o imigrante), mas porcentagem não decisiva. A imigração do interior faz com que as cidades cresçam rapidamente e extravasem seus limites. Trata-se de massa humana desenraizada, que perdeu suas estruturas arcaicas, inadaptáveis à vida urbana, sem criar novas, a não ser a estrutura da máquina e o ritmo do aparelho. Esta massa humana é alienada de tal modo que o capítulo reservado ao problema neste ensaio nunca poderá esgotá-lo.
Desse mar começa a cristalizar-se uma camada relativamente estreita de pequena e média burguesia, que por sua vez dá origem a uma finíssima camada intelectual e acadêmica, uma espécie de elite. Pois serão estas as pessoas que formarão o mundo vital do imigrante, o campo do seu engajamento, seus amigos e inimigos, seus prazeres e sofrimentos, e o desafio para os seus atos. Diferem da burguesia européia e, comparados com ela, causam impressão agradável, talvez devido à sua origem diferente, já que não descendem, como a burguesia europeia, de artesãos e proletários, mas de imigrantes, tanto europeus quanto brasileiros, em geral campesinos. O desenraizamento da população proletária se transforma neles em abertura, relativa falta de preconceitos e espírito aventureiro, o qual, aliado à típica moral burguesa de produção, cria um clima reminiscente dos anos da fundação de empresas na Europa. Esta camada é a principal portadora da responsabilidade pelos destinos do país (na medida em que esses destinos são decididos no próprio país), configurando-se praticamente na única fonte do seu progresso econômico, social e cultural. Passa a ser, também, portadora das tendências políticas, tanto das revolucionárias, quanto das conservadoras. Mas, a despeito disto, o desenraizamento é nitidamente constatável também nessas pessoas. São, no fundo, homens perdidos, que não se encontraram nem enquanto indivíduos, nem muito menos enquanto grupo, e que buscam identidade por vezes desesperadamente. Uma densa névoa de ideologias europeias dificulta ainda mais o encontro consigo mesmo.
Finalmente o imigrante descobre na massa urbana um ínfimo grupo de noveaux-riches que vegeta em luxo oriental sem jamais sequer contemplar o papel de elite que poderia desempenhar estruturalmente. Inteiramente alienado de si mesmo e de sua sociedade, tal grupo aparece ao imigrante apenas em forma de palacetes kitsch, de apartamentos opulentos e de notícias "sociais" na imprensa de segunda categoria; serve apenas para salientar, por contraste, a miséria das cidades.
O segundo contato do imigrante com o ambiente brasileiro ocorre muito mais tarde, e é com o homem rural, que forma a base das cidades e grande maioria da população. Ao contrário da massa urbana, o homem rural se opõe ao imigrante. Todas as suas categorias europeias para captar a realidade falham perante essa gente, inclusive categorias sociais aparentemente tão fundamentais como "família" e "aldeia", ou categorias psicológicas como "alegria" e "raiva". Porque aqui o imigrante se dá conta de ter abandonado não apenas o terreno do Ocidente, senão da história toda. É verdade que essas pessoas descendem em parte (talvez em maior parte) de europeus, a saber, portugueses – mas há tempo perderam qualquer contato com o Ocidente, não apenas por causa de sua mistura com indígenas e negros (isto seria o de menos), mas principalmente por causa da sua enorme solidão, do clima difícil e da natureza cruel que os cerca. Perante tais homens o imigrante se da conta da falta de fundamento da população urbana, que repousa sobre tal infra-estrutura. A população rural não é nem "nova" nem "jovem" (embora seja constituída em grande parte por crianças), mas é tão antiga e imemorial quanto o é o neolítico no qual vive mentalmente. A saber: joguete na mão de forças superiores benignas ou, na maioria dos casos, malignas, a serem constantemente propiciadas. Mas não se trata de autêntica magia nem de autêntico neolítico, porque não se trata de indígenas, senão de europeus decadentes. A inautenticidade dos ritos exprime num sincretismo caótico (ritos índios e negros e costumes europeus, superficialmente informados pelo catolicismo e pelo protestantismo americano, com leve dose de um curiosíssimo positivismo), e mais ainda ao trágico fato de que a magia não abriga essas pessoas como abriga verdadeiramente "primitivos". Pois esses homens não tomaram posse nem da sua terra nem de si mesmos, mas flutuam, tomados de um atordoamento secular chamado "saudade", nas suas imensas planícies, quais destroços nas ondas. Não que sejam nômades (como o eram os índios, seus antepassados parciais), mas no seguinte sentido: não possuem o chão que cultivam de maneira arcaica, não brotaram raízes nele, e quando ocorrem catástrofes naturais ou outras (infelizmente comuns), abandonam a terra em ondas. São alheios a si mesmos e à sua terra, e olham espantados o mundo, inclusive o imigrante.
Pode no entanto perfeitamente ser o caso de tudo o que ficou dito não passar de engano de um ocidental que procura interpretar fenômenos incompreensíveis (e "ocidental" não significa apenas imigrante, mas também cientista brasileiro). Os fenômenos, o ficar parado na esquina olhando o nada, o ficar acocorado nos calcanhares, as filas índias de descalços ao longo das estradas, a mulher descalça e vestida de camisa de algodão montada em mula, as crianças sujas brincando com vira-latas em chão batido das casas de lama, tudo isto engana. Porque o caboclo que sofre de todas as doenças imagináveis é capaz de resistência e esforço surpreendentes. Embora seja analfabeto e ignorante, dispõe de inteligência e ironia que formam uma fonte ainda nem sequer aproveitada para uma autêntica cultura do futuro. Porque o caboclo ainda não criou cultura comparável com verdadeiras culturas "primitivas" (aquilo que passa por "cultura primitiva" no Brasil ou é feito por primitivos deliberados ou é kitsch), mas dispõe de uma cultura do coração que se manifesta em cortesia quase cavalheiresca. A sua proverbial paciência é igualmente enganadora, já que pode explodir repentinamente em violência individual e coletiva, para sossegar igualmente de repente. A sua aparente submissão esconde um orgulho e sentimento de dignidade inacessíveis a um "civilizado". Tudo isto prova que o imigrante é incapaz de compreender essa gente, e deve se fiar em literatura que consegue, raras vezes e graças à empatia, captar essa mentalidade (por exemplo, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa).
Esse mundo a-histórico e arcaico é penetrado ultimamente pela história de forma violenta. Principalmente em forma de alto-falantes berrantes que comunicam algo inteiramente alheio ao mundo dessa gente. Mas também na forma de estradas, de colônias rurais (por exemplo, japonesas), na forma da decadência do latifúndio, e na forma de um Estado que procura, um tanto tardiamente, tomar a iniciativa no seu território. O caos mental e espiritual que disto é consequência não começou sequer a ser analisado. O imigrante não sente nem motivo nem incentivo para tentar assimilar-se a essa população, nem poderia fazê-lo, dada a estrutura fechada dessa sociedade, mas ela continuará formando o horizonte de todo futuro engajamento seu, um horizonte infelizmente nem sempre consciente. Porque é perante essa gente que ele será, em última análise, responsável por seus atos.
O último contato do imigrante com o ambiente brasileiro (um contato que nem sempre se dá) é com aquele grupo de pessoas que se toma por "verdadeiramente brasileiras". Trata-se de uma pequena minoria de pseudo-aristocratas, descendentes, em teoria, dos primeiros colonizados do país no século XVI, com personalidade nítida (variante da cultura portuguesa), nível intelectual e moral alto, e que forma uma sociedade endógama e fechada. Vive na maioria dos casos nas cidades (e é indiferenciável da burguesia, para um observador superficial), mas ainda se fundamenta em parte na propriedade rural (na atualidade, decadente). Ainda que se trate de grupo pequeno com influência decrescente, é importantíssimo para a compreensão do país, já que: (a) representava até há bem pouco tempo a sociedade toda, (b) criou ou possibilitou praticamente toda a cultura passada, e (c) deteve o poder político, do qual se separa atualmente com dificuldade. É um grupo trágico, porque imigrante no próprio país; ao contrário do imigrante europeu, não admite a sua própria situação para si mesmo. Toma-se, a despeito de provas óbvias, pelo contrário, como elite decisiva, e luta por um Brasil que existe apenas na sua memória e nas obras culturais por ele criadas.
A tragédia do grupo é reforçada pelo fato de que ele tem razão em chamar-se "o verdadeiramente brasileiro". Se algo é brasileiro, esse algo é a mentalidade dessa gente. Uma mentalidade aberta e sedutora (embora se trate de sociedade fechada), influenciada não apenas por Portugal, mas também pela França e pela Europa toda. Por isso, existe uma ideologia oficial que tenta identificar tal mentalidade com a mentalidade da sociedade toda. Porque, se for admitido oficialmente que tal mentalidade nada representa atualmente, admite-se o fato de que não existe mentalidade brasileira – admissão penosa.
Não há quem pudesse assumir o lugar dessa elite deposta. Disto é forçoso concluir que toda futura tentativa de criar uma mentalidade brasileira deve partir desse grupo enquanto modelo, embora não deva necessariamente contar com sua colaboração ativa. O engajamento do intelectual imigrante na nova pátria será, de uma forma ou de outra, sempre tingido pela decadência dessa elite, que lhe será sempre desafio. Logo, a ambivalência que o ambiente brasileiro representa para o imigrante pode assim ser resumida: é um ambiente de fácil penetração (já que a massa urbana, campo do imigrante, não oferece obstáculo digno de nota). Mas é um ambiente de difícil integração (já que a massa urbana não integra, mas decompõe, a massa rural é impenetrável, e a elite é decadente e fechada). Em outros termos: é fácil viver-se no Brasil enquanto imigrante, e desesperadamente difícil integrar-se nele.
No início deste capitulo foi proposta a tese de ser a situação imigratória exemplo extremo da situação humana. Agora a tese será submetida ao teste da situação do imigrante brasileiro.
Que imigrante seja pessoa que abandonou uma situação para integrar-se em outra, portanto pessoa que se abre a uma nova situação a fim de alterar-se e a fim de alterá-la. A imigração é processo dialético, no qual o imigrante recebe o impacto do ambiente e o ambiente o impacto do imigrante. O resultado do processo, se coroado de êxito, é a alteração de ambos os fatores. Claro: quanto mais forte a personalidade do imigrante, tanto mais penoso e demorado o processo da sua alteração, e quanto mais bem estruturado o ambiente, tanto mais superficial a alteração efetuada nele pelo imigrante. Igualmente claro: quanto mais flexível e aberta a personalidade do imigrante, e quanto mais maleável o ambiente, tanto maior o feedback entre ambos. Em outros termos: a complexidade do imigrante (tradição, grau de cultura, preconceitos) dificulta a integração, e sua flexibilidade (abertura, liberdade, universalidade) a facilita. Esta é a dialética interna da integração do ponto de vista do imigrante. Pois o ambiente brasileiro (desconsiderando a população rural e a aristocracia decadente, pois ambos não representam campo de integração) é de tal forma maleável, que não evidencia dialética interna, e a integração dependerá muito mais da dialética interna do imigrante que da dialética externa entre imigrante e ambiente. Se a complexidade do imigrante for igualada com seu nível cultural, e a sua flexibilidade com seu nível de inteligência, então a dialética entre cultura e inteligência no imigrante será decisiva para sua integração no novo ambiente. Este fato não pode ser estendido em regra geral, já que é especificamente brasileiro, e isto prova um rápido golpe de vista na direção dos Estados Unidos, esse país imigratório por excelência, no qual a situação é outra.
O imigrante aos Estados Unidos não toma contato com a massa amorfa, mas com uma hierarquia, na qual os vários níveis correspondem à origem étnica do imigrante, e sua ordenação à data original da entrada de cada etnia, de forma que o nível superior é formado por anglo-saxões, e o inferior por porto-riquenhos. O conjunto dos níveis perfaz a população urbana americana, e a população urbana perfaz a grande maioria da população americana. Isto quer dizer que ser americano significa no fundo pertencer a um desses níveis. Pois todo nível, aberto para o seu país de origem, representa esse país na América e a América no país de origem. Portanto, esses níveis não se dissolvem (como o fazem as ilhas brasileiras), mas entram em toda a sua complexidade na síntese americana. Por isso os Estados Unidos não são "melting pot" como o é o Brasil, e por isso exercem aquele poder assimilatório extraordinário que os caracteriza. Porque, quando o imigrante chega, é recebido pelo nível correspondente, é imediatamente enquadrado nele, e torna-se americano automaticamente. O abandono da sua prévia identidade não é exigido, mas, pelo contrário, é exigido dele que procure manter sua identidade e sintetizá-la com as outras existentes. Portanto a integração não se dá por ação do imigrante, mas pela sucção enquadradora do ambiente. O nível cultural do imigrante não se opõe à integração; assiste a ela. Em outros termos: ser americano significa sê-lo para o seu país de origem (europeu), a América é um país para a Europa (no sentido de modelo para sociedades europeias, e no sentido de alternativa para o europeu individual), e o americano se assume desta forma. Quanto mais decididamente europeu for o imigrante, tanto mais fácil sua integração nos Estados Unidos. É preciso, no entanto, completar o que ficou dito pelo seguinte: por cima de todos os níveis mencionados que estruturam a sociedade americana existe um nível cosmopolita, composto de cientistas, artistas e intelectuais, cuja americanidade é este seu cosmopolitismo. Trata-se de uma camada relativamente pequena, mas absolutamente numerosa e decidida para a humanidade toda, porque se é verdade que o mundo se americaniza, é esta a camada responsável por isto. Pois se o imigrante for de nível cultural alto, não será enquadrado pelo seu nível étnico, mas por este outro nível. Não apenas enquadrado, mas sugado do seu próprio país de origem. A sua integração não será neste caso feita por qualquer alteração sua, senão pela simples troca de sua universidade por uma americana, sua orquestra sinfônica por uma americana, seu laboratório e estúdio por um novaiorquino. A rigor, se o cosmopolitismo é americanismo, o imigrante já foi americano antes de ter emigrado a conseqüência dessa especificidade americana é que lá a dialética do imigrante não se articula, e a regra lá é esta: quanto mais inteligente for o imigrante, tanto mais facilmente e rapidamente será integrado.
Voltando ao Brasil, deste excurso norte-americano pode-se formular assim a regra da integração aqui vigente: imigrantes inteligentes de baixo nível cultural se ambientam rapidamente na massa urbana, perdem sua identidade, e se diluem; imigrantes pouco inteligentes de baixo nível cultural dificilmente se ambientam, re-emigram muitas vezes e, se não o fazem, sentem-se decepcionados pelo novo país e derrotados pela vida; imigrantes pouco inteligentes de alto nível cultural se fecham nas estruturas trazidas, fingem desprezo pelo novo país (o qual não compreendem nem conhecem), e vegetam como uma espécie de funcionários coloniais sem função no exílio pelo qual são eles os únicos culpados; e imigrantes inteligentes de alto nível cultural procuram, a despeito de toda dificuldade, integrar-se no ambiente e engajar-se nele.
Ficou dito que viver como imigrante no Brasil é fácil, mas difícil é integrar-se. Isto agora deve ser melhor formulado. Para pessoas inteligentes é fácil viver no Brasil, já que não encontram obstáculo, desde que se decidam romper com sua origem. Mas isto não as transforma em brasileiros em não importa que sentido positivo do termo. Apenas as transforma em elementos da massa amorfa. Para dar um sentido positivo ao termo "brasileiro", o imigrante deve superar uma difícil tarefa, na qual não deve contar com a ajuda do ambiente, mas, pelo contrário, com sua resistência passiva. Esta é a ambivalência do ambiente brasileiro: não oferece obstáculo nem incentivo, e esta ambivalência é desafio existencial incomparavelmente maior que todo desafio americano. Tal desafio ilustra a situação imigratória exemplarmente, e precisa ser elaborado.
Tornar-se brasileiro significaria alterar a estrutura dos pensamentos, desejos, sentimentos e atos para dar-lhes nova dimensão, que supere e substitua uma dimensão sociocultural mais antiga. E significaria também vivenciar o ambiente brasileiro como mundo vital (Lebenswelt), por coincidência da nova dimensão com a estrutura do ambiente. Pois o ambiente brasileiro se caracteriza por pobreza de estrutura, e pelo fato de serem as estruturas existentes subterrâneas, soterradas por ideologias que dificultam o seu descobrimento (tais ideologias assumiram ultimamente nova virulência, em forma de conversas fiadas sobre a "brasilidade" da burguesia, em forma de exibicionismo de bandeiras, e em forma de festas alienantes como o são acontecimentos esportivos, e envolvem tanto a burguesia dita revolucionaria quanto a genuinamente conservadora). Em outros termos: tornar-se brasileiro é difícil, porque as estruturas brasileiras estão escondidas, e ninguém é brasileiro (exceção feita da elite decadente, que o é em sentido superado). Portanto pode-se tornar brasileiro apenas quem primeiro dá sentido a este termo. E, para poder dar esse sentido, precisa primeiro descobrir a realidade. E, para poder descobrir a realidade, precisa primeiro alterar o ambiente. Em outros termos: se dar sentido, descobrir realidade e modificar ambiente é viver, então tornar-se brasileiro é tarefa para uma vida.
A pergunta "que significa ser brasileiro" poderá ser formulada de duas maneiras. Uma é perguntar pelo mínimo necessário para chamar alguém de brasileiro. Assim formulada é passível de fácil resposta (por exemplo, a formalmente legal), e é efetivamente assim que a pergunta é formulada por aqueles que aqui vivem sem engajar-se. A outra é perguntar pelo melhor significado possível do termo "brasileiro". É nesta formulação que adquirirá o sabor do engajamento. A primeira formulação é desprezível por razões elaboradas na introdução a este ensaio. A segunda formulação será agora considerada.
Ao longo do excurso aos Estados Unidos ficou dito que ser americano é ser para a Europa, portanto não um ser para si, mas um ser para o outro (também no sentido que Sartre dá a este termo). O americano vive no projeto existencial europeu, e deve no fundo justificar a sua existência perante a Europa (no sentido de oferecer segurança para a Europa, coletivamente em caso de perigo, e individualmente como país no qual é possível refugiar-se, e no sentido de oferecer modelos para a Europa, para que a Europa saiba o que europeus são capazes de fazer e como podem viver em sociedade). O americano sempre sabe que vive perante a observação crítica, admiradora e invejosa da Europa, que é responsável perante ela e por ela, e que tem na Europa a sua derradeira realidade. A América é o "segundo sexo" da Europa, no sentido no qual Simone de Beauvoir emprega o termo.
Pois é possível afirmar que ser brasileiro é de alguma maneira também ser americano? Jorge Luís Borges parece responder afirmativamente, em nome de todo o continente americano. Isto prova que na argentina o problema da busca de identidade é mais claro que no Brasil (embora não pareça que o argentino se tenha encontrado melhor que o brasileiro). Pois a maneira como o ambiente brasileiro se apresenta (e como este ensaio começou a descrevê-lo) parece exigir uma resposta negativa à pergunta. Isto por uma série de razões, algumas das quais serão consideradas. Mas primeiro é preciso considerar as razões que parecem motivar Borges.
O Brasil, tal qual os Estados Unidos, tem população preponderantemente europeia (embora essa população se origine mais na área mediterrânea, e menos no Norte e Leste europeus, e embora se assuma muito menos européia). O Brasil tal qual os Estados Unidos, tem mãe-pátria europeia (embora Portugal não tenha desempenhado o mesmo papel que a Inglaterra desempenhou nos Estados Unidos). O Brasil é determinado por pensamentos, coisas, atos e decisões europeias, com efeito mais determinado que nos Estados Unidos. O brasileiro culto participa quase exclusivamente da cultura europeia, passivamente (e em grau pequeno, também ativamente) tal qual o americano culto. E outras razões para sustentar a tese de Borges poderiam ser mencionadas.
E, no entanto, a tese não pode ser mantida. A primeira razão disto é: a grande massa da população brasileira não descende, como a americana, de pessoas que conquistaram um grande território em nome da Europa, e aniquilaram os indígenas ou empurraram seus restos insignificantes para um canto. Mas descende de pessoas que em luta centenária contra uma natureza terrível perderam seus laços com a Europa, que se misturaram durante a luta com a população indígena, e que decaíram, durante o processo, para um estágio pouco superior à situação do indígena, portanto para um secundário primitivismo. Perderam, portanto, a sua historicidade. Uma população assim não é americana no sentido proposto, já que não vivencia na Europa a sua realidade, não se sente responsável perante a Europa nem muito menos pela Europa, e não pretende lhe ser modelo. Toma conhecimento da Europa apenas na forma de um centro irradiador de influências que a manipula e explora, e não consegue distinguir nisto entre a Europa e os Estados Unidos. Este ponto é importante para a compreensão do brasileiro. Não se sente mais sujeito da história, mas objeto sofredor da história (inclusive da europeia), um objeto que começa a não querer sê-lo.
A segunda razão contra a tese de Borges é esta: o Brasil tem sido o país imigratório tanto quanto os Estados Unidos, mas em sentido diferente e com consequências diferentes. Quem colonizou os Estados Unidos foram dissidentes e contestadores, portanto gente que se opôs com plena consciência contra a ordem estabelecida na Europa, e procurou erigir uma nova ordem na América para servir de modelo à Europa. Depois, é verdade, veio a torrente de imigrantes oprimidos e fracassados econômica e socialmente, e de escravos africanos que vieram forçados. Mas sempre houve, nessa torrente, indivíduos que migraram para os Estados Unidos por perseguição política, religiosa e racial, porque acreditavam poder viver livremente na América, e efetivamente assim foram recebidos pelo americano. A consequência disto é que a América tem um traço original radical, e conserva, a despeito de muitas peripécias, este traço até hoje. Em outros termos: os Estados Unidos sempre tem sido americanos no sentido proposto. Mas o Brasil foi colonizado por aventureiros portugueses que visavam a enriquecer (sem consegui-lo). Depois serviu de área de escape para a superpopulação portuguesa. Mais tarde, surgiu uma torrente de fracassados e de escravos, semelhante à torrente norte-americana, mas aí a estrutura do pensamento brasileiro já estava projetada. Não se pode negar que existia também uma pequena imigração de perseguidos e contestadores, mas vieram não porque esperassem liberdade da mentalidade brasileira, mas sim da vastidão da terra. E, com efeito, esta gente nunca foi recebida de braços abertos, senão tolerada. O Brasil nunca tem sido americano no sentido proposto, e continua não sendo.
A terceira razão contra a tese de Borges tem a ver com o caráter problematicamente latino da sociedade brasileira. Ser americano é uma espécie de ser europeu moderno. E a Europa moderna é, em certo sentido, a vitória da parte germânica (e eslava) sobre a parte latina. Não apenas geograficamente, transferindo o centro do Mediterrâneo para o Atlântico norte, mas, mais fundamentalmente, ameaçando – e depois minando – a posição da Igreja latina. Neste sentido mais profundo o americano é protestante, não apenas porque protesta contra a latinidade e contra Roma, mas contra toda a autoridade, contra a tradição e contra a Idade Média em todos os seus aspectos. Não se pode querer romper a ligação entre americanismo e protestantismo, e o Brasil não é, nem será protestante. Não apenas por ser superficialmente católico, latino e descendente do Mediterrâneo, mas por ser alheio a todo antidogmatismo. Pelo contrário, não há campo aqui para o desenvolvimento de um autêntico empirismo. Racionalismo e dogmatismo caracterizam tudo, desde o Estado e a Igreja até o planejamento de cidades como Brasília e Belo Horizonte. Há ortodoxias positivistas e marxistas, e há uma tendência geral de crer em teorias e agarrar-se a elas. Pois racionalismo e dogmatismo são muito próximos do misticismo (embora não pareçam sê-lo). Por isto, movimentos místicos são tão profundamente enraizados na mentalidade brasileira e tão alheios à mentalidade americana (quanto mais gritam lá, mais ridículos se tornam). Em suma: se o americanismo e o protestantismo vão juntos, é porque o protestantismo permite a manipulação e a rejeição, tão tipicamente americana, de modelos.
Outras razões contra a tese de Borges poderiam ser oferecidas com facilidade. Por isso a pergunta o que significa "brasileiro" deverá ser formulada em contexto que nada tem a ver com a América, embora posteriormente pontos de confluência possam ser constatados.
Muito se tem falado, na tentativa de descobrir a essência brasileira, nas "três raças tristes". Obviamente trata-se de uma ideologização romântica da realidade, e os termos "raça" e "triste" o provam. Ideologização, porque cala o fato de que a síntese das três raças foi conseguida pela escravização do negro e pelo abuso do índio. E romântica, porque parece valorar a tristeza positivamente. Mas há, na famosa sentença, uma centelha de verdade que pode servir de ponto de partida. A saber: a síntese tem algo a ver com a essência brasileira. Porque síntese é mistura superada, e o Brasil é obviamente um país de misturas em todos os níveis. Na economia e na política, na arquitetura e na filosofia, e principalmente no nível humano, como tipo. A palavra "raça", por exemplo, que ocorre na sentença citada, não significa no Brasil, como na Europa e Estados Unidos, critério para distinguir entre homens, mas critério para distinguir entre vários traços do mesmo homem. O resultado surpreendente de misturas raciais inacreditáveis (por exemplo, nórdico-negro-japonês, ou árabe-indígena-eslavo) é a beleza. Muito se tem falado da graça, da beleza e da elegância da mulher brasileira, mas nunca o suficiente. Em parte alguma (isto pode ser afirmado sem exagero), a feminilidade se apresenta em formas tão perfeitas e sedutoras. Parece que a mistura de raças conseguiu alcançar uma síntese graças à qual o especificamente racial cede ao genericamente humano em novo nível (no caso: ao genericamente feminino). Não pode haver argumento melhor para reforçar que o Brasil seja contra o racismo.
Mas síntese não é mistura. A diferença óbvia é esta: na mistura os ingredientes perdem parte de sua estrutura, para unir-se no denominador mais baixo. Na síntese, os ingredientes são elevados a novo nível no qual desvendam aspectos antes encobertos. Mistura é resultado de processo entrópico, síntese resulta de entropia negativa. Obviamente o Brasil é país de mistura. Mas potencialmente, por salto qualitativo, é o país da síntese, como sugere o exemplo da raça. O importante a ser notado nesse processo é o seu caráter não deliberado. Não é o caso, como por exemplo nos Estados Unidos, de existir programa para síntese ou mistura, programa este a ser realizado. Pelo contrário, o processo brasileiro despreza programas. Ao longo deste ensaio aparecerá o problema da mistura e da síntese em muitos níveis. Aqui basta permanecer no exemplo da raça. Não é o caso de não existirem preconceitos raciais em várias teorias. Pelo contrário, estes preconceitos aparecem, como espectros, nas névoas das várias ideologias importadas, e às vezes se materializam durante bate-papos de forma surpreendente. Mas existencialmente são alheios ao país, e nunca penetram das alturas teóricas na vida concreta. Para manter o paralelo com os Estados unidos: lá existe a teoria oficial da igualdade das raças, e a incapacidade existencial de traduzi-la para a realidade. Aqui existem as mais fantásticas misturas de teorias e pseudoteorias, mas a realidade as despreza e visa, inconscientemente, à igualdade das raças. De maneira que o país é caracterizado por mistura autêntica e, potencialmente, por síntese igualmente autêntica, porque não deliberada.
O segundo aspecto da sentença quanto às três raças tristes a ser considerado é o da "tristeza". Trata-se de três elementos – o português, o negro e o índio – que foram todos desprezados pela história, e quiçá por isso são "tristes". Por diferentes que sejam os elementos entre si, eis o que têm em comum: ou foram eliminados da história, ou nunca a penetraram. Com efeito: os processos que ocorrem no Brasil se dão à margem da história, e se história significa "tornar consciente", os processos em curso no Brasil se dão à margem da consciência inclusive, ainda, do próprio brasileiro. Há uma sentença que afirma que o Brasil se desenvolve durante a noite, quando dormem seus administradores. Pois só a inconsciência dos processos pode explicar tal sentença.
O aroma do ahistórico e do inconsciente, aroma este que envolve o imigrante desde o primeiro dia, tem algo de doce e inebriante e lembra o clima visado pelo LSD e pelos hippies. No curso da última geração, é verdade, parece querer evaporar-se e parece que o gigante adormecido em berço esplêndido está despertando. Mas na realidade o processo da evaporação é um fenômeno epidérmico, que apenas consegue tornar a superfície do país mais feia, mas não consegue lhe modificar o âmago. Porque continua válido para o Brasil que nele se concede um terreno muito amplo ao inconsciente, ao emotivo e ao intuitivo, e que persiste uma desconfiança generalizada do "mero" intelecto. O brasileiro é homem do palpite genial, e não do planejamento.
Mas esta afirmativa parece contradizer em muito um fenômeno observável. Por exemplo, a mencionada tendência para o racionalismo e o dogmatismo, e a violenta tendência da administração para o planejamento. Contudo a contradição é apenas aparente. O pensamento racional e dogmático, o agarrar-se a teorias e esquemas majestosos, a maneira cartesiana e positivista de racionar, não passam de tentativas de construir contrapesos contra a tendência mais fundamental para o misticismo. Isto faz com que, por exemplo, o pensador brasileiro pendule constantemente entre a atração mágico-mística e um escolástico academicismo. E quanto ao planejamento, Brasília e a Estrada Transamazônica são exemplos gigantescos de como funciona. É verdade, são projetos planejados e espelham o planejamento em todos os seus aspectos, mas, no fundo são fantásticos e podem ser defendidos racionalmente com dificuldade.
Pode-se objetar que o palpite genial é, em última análise, um elemento empírico, e que, afinal de contas, o brasileiro não se distingue tanto assim do americano. Muitos assim argumentam, mas estão errados. A atitude empírica é a aplicação consciente do método da tentativa e do erro, e isto é o núcleo do pragmatismo americano. E o palpite genial faz o homem seguir uma voz interior, proveniente do inconsciente, e que se cala e morre quando tornada consciente. Como ficou dito: racionalismo e dogmatismo são próximos da magia e do misticismo, e opostos ao empirismo e ao pragmatismo. Uma consequência disto é que não raro aparece aqui um tipo humano que reúne em si nacionalismo tecnológico e abertura para o inconsciente, numa síntese que pode ser indicadora de futuro.
A meta destas considerações é aproximar-se da essência brasileira. Em outros termos, a tarefa revela-se contraditória: trazer essa essência à tona, tirando-a do inconsciente no qual se abriga espontaneamente. Pois essa tarefa contraditória é a tarefa da filosofia. O passo filosófico para trás nada é senão a tentativa do conscientizar o inconsciente. E tal tarefa filosófica pode ser cumprida com maior facilidade pelo pensador imigrado do que pelo nato. Porque o imigrante se encontra em “transcendência” do problema pela sua própria situação, desde já e automaticamente. Este é um dos aspectos do extraordinário desafio brasileiro, para o imigrante, de que se tem falado. Pois o que pode significar ser brasileiro no melhor dos casos? Pode significar um homem que consegue (inconscientemente, e mais tarde conscientemente) sintetizar dentro de si e no seu mundo vital tendências históricas e não históricas aparentemente contraditórias, para alcançar uma síntese criativa, que por sua vez não vira tese de um processo histórico seguinte. Portanto pode significar uma maneira concreta e viva de ser homem e dar sentido à sua vida, fora do contexto histórico, mas nutrido por este. Neste melhor dos casos, pode significar o "novo homem" do Marx, sem no entanto continuar a ser determinado dialeticamente. Pode significar viver no "terceiro império do Espírito Santo" de Schelling, sem que tal império signifique a plenitude dos tempos. Pode, em outros termos, significar que aqui está surgindo um homem que supera a história e se transforma em lugar no qual a história é criativamente absorvida.
É isto que pode significar ser brasileiro no melhor dos casos. Não é necessário dizer que isto não é o que ser brasileiro significa na realidade, mas não é necessário fazê-lo. Porque faz parte da essência do brasileiro não ser real (estado), mas virtual (processo). A essência brasileira não é uma maneira de ser, mas uma maneira de buscar. O Brasil não é perfeito (no sentido de "realizado" e, portanto, "passado"), mas é assumido (no sentido de, olhando para a frente, arriscado e apenas esboçado). Não tem sentido portanto perguntar o que significa ser brasileiro na realidade, por que este ser é em vias de, projetável no futuro e não totalmente resultante de passado. Apenas tem sentido perguntar o que pode significar ser brasileiro no melhor dos casos. É assim que sua essência se revela. A situação na qual o Brasil se encontra pode deste ponto de vista ser assim formulada: a virtualidade de ser brasileiro, que a burguesia procura abafar, se articula na população rural desenraizada e no proletariado alienado. Esta burguesia é o grupo decisivo para o futuro previsível. E isto significa, para o imigrante que procura engajar-se, que a situação isola o seu ponto de vista e o afasta sempre mais dos pontos de vista dos seus próximos, que são os burgueses brasileiros, que se tornam coletivamente vítimas da ilusão de dever abandonar a sua essência para penetrar, como no Japão, o palco da história e nele desafiar – para com eles competir – os poderes estabelecidos. Isto, a despeito das vozes alarmadas dos anos 50, as quais, como Guimarães Rosa e Vicente Ferreira da Silva, apontavam a essência brasileira no sentido exposto. E a despeito das tendências que ocorrem no próprio palco histórico e que procuram sair de lá a todo custo. Dividida em dois campos que se digladiam sangrentamente, a burguesia se precipita cegamente rumo ao progresso, como para provar a famosa sentença que afirma serem os progressistas atualmente possíveis apenas no subdesenvolvimento. O campo revolucionário, representado por parte da juventude acadêmica, dirá que o ponto de vista aqui defendido é reacionário e desprezível. E o campo conservador, que detém o poder, dirá que se trata de ponto de vista estrangeiro e, tomado de recém-adquirido chauvinismo, recusará o ponto de vista rejeitando-o como um imiscuir-se indevido.
A corrida em direção ao progresso é facilmente explicável. Em primeiro lugar, pelo fato concreto da intolerável miséria na qual vive grande parte da população e que efetivamente pode ser sanada apenas pelo progresso da tecnologia (este argumento é justo e será considerado no devido contraste). Em segundo lugar, por ideologias europeias do século XIX, ideologias estas em parte compreendidas, mas não vivenciadas, e que fazem crer aos burgueses que a única saída para o país são as sociedades neocapitalistas (que não seriam socialistas?). Em terceiro lugar, enganados pelo tamanho geográfico do país e o elevado número da população, crêem os burgueses que, alcançada a história, o Brasil poderá dela participar decisivamente. Mas a defasagem da burguesia em relação à história torna para os burgueses difícil a leitura e a compreensão correta da atualidade.
O resultado de tudo isto é: por parte da burguesia conservadora no poder, esforços enormes são feitos para o desenvolvimento econômico, esforço coroado parcialmente de êxito, mas inteiramente desvinculado de meta de tornar o Brasil potência decisiva. Simultaneamente, procura essa parte da burguesia congelar a situação social e cultural do país, e suprimir o campo revolucionário com métodos há muito provados pela história como sendo ineficientes. A parte revolucionária da burguesia busca, sob a forma de levantes romanticamente incompetentes e atos de violência isolados, assumir o poder – tarefa impossível, mas que, se fosse conseguida, resultaria praticamente no mesmo método seguido atualmente. Acrescente-se a isto que ambos os campos não sabem, ou não querem saber, que não passam de joguetes de forças históricas externas, e que o único resultado palpável da luta intestina seria a transferência do campo da batalha, entre o neocapitalismo e o socialismo, dos países históricos para a periferia brasileira.
Isto é situação trágica e ameaça o engajamento do imigrante por desespero. Tal desespero e tal desorientação são, conforme ficou dito na introdução, os motivos deste ensaio. E iluminam a tarefa do imigrante dramaticamente. Pois o imigrante não pode contar com seu ambiente na tentativa de encontrar-se e encontrar caminho. Deve abrir a sua própria picada, dentro do seu novo mundo vital, para permitir a saída aos seus próximos e a si mesmo. Mas, ao dizer isto, já foi dado o primeiro passo em direção a um encontro consigo mesmo.
Se a essência do brasileiro for vista mais ou menos corretamente, então deverá vir o momento da dissipação das ideologias tanto da direita quanto da esquerda, e o aparecimento da verdadeira maneira de ser brasileiro. A saber: da sua capacidade ímpar de sintetizar opostos por métodos espontâneos, que se chamam "amor" em outros contextos. Até lá é tarefa do imigrante manter essas tendências vivas na sua própria mente.
Pois é assim que o Brasil se apresenta ao imigrante intelectual no último terço do século XX: um ambiente que não lhe opõe obstáculo digno de nota, nem incentivo para engajar-se nele. Se quiser viver neste ambiente como homem livre, deve abrir sua própria picada. "homem livre" significa homem que vê sua própria situação de fora, projeta um mapa sobre ela e age de acordo, que dá sentido ao seu ambiente, vive de acordo com este sentido, e assim o transforma num mundo da sua vida. E, para que este sentido dado não seja mera fantasia, procura desvendar a realidade da situação em que vive. Portanto: pronto a altera-se, a fim de alterar o mundo. Assim se apresenta a situação do imigrante no Brasil, como exemplo extremo da situação humana. E assim tem ela significado para todos.
Em largos traços o esboço do país foi desenhado. Agora serão tomados setores específicos, a fim de aprofundar o desenho e dar-lhe plasticidade. Assim surgirá uma visão possivelmente aplicável a outras situações do homem desorientado neste final de século XX.
3. Natureza
Parece que se sabe o que se pretende quando se recorre a este termo, mas, diante do desafio de defini-lo, surgem dificuldades. A causa disto não é apenas o fato de o termo "natureza" ter vários significados que se cruzam, mas principalmente o fato de esses significados esconderem um dos problemas da atualidade.
Se, por exemplo, definirmos "natureza" como conjunto de coisas que não evidenciam projeto humano (em oposição à "cultura" como conjunto de coisas que o evidenciam), então teremos dificuldade em apontar "coisas naturais" no ambiente que nos cerca. Se definirmos "natureza" como aquela parte do ambiente que nos determina (em oposição à "cultura", que seria a parte do ambiente que nos atesta), descobriremos que a distinção (que é base de todo engajamento em cultura) é inteiramente inoperante, já que tudo pode passar a nos determinar. Se definirmos "natureza" como o conjunto dos dados (em oposição à "cultura", que seria o conjunto dos feitos), teremos que definir "história" como processo que transforma dado em feito, e aí descobriremos que a "cultura" de uma geração (e de um indivíduo) é "natureza" para a seguinte (e para o outro), já que o feito por um é dado para o outro. As tentativas de definir provam que "natureza" é atualmente problema num sentido revolucionário, que pode ser assim formulado: se engajamento em história é engajamento em liberdade (porque, ao transformar dado em feito, transforma condição em utilidade), e se utilidade de um passa a ser condição para outro, então o engajamento na história é absurdo. Este problema esconde uma das raízes da crise da história e do historicismo.
Uma ilustração dessa dificuldade teórica (e não apenas teórica), de distinguir entre natureza e cultura, é fornecida pela paisagem brasileira. Em parte, ela é coberta de montes feitos por térmitas, parcialmente habitados (os avermelhados), parcialmente abandonados (os cinzentos). Além disso, é coberta de casas de barro habitadas por caboclos. Os homens procuram destruir os montes, e os térmitas procuram destruir as casas (há um dito que reza, aproximadamente, que ou os térmitas acabam com o Brasil ou o Brasil acaba com os térmitas). O problema teórico é este: o que justifica chamar os montes "natureza" e as casas "cultura"? Obviamente o fato de as casas, e não os montes terem sido projetadas por homens. Mas tal justificativa óbvia traz complicações inesperadas. Por exemplo esta: os montes têm estrutura mais complexa que as casas, de forma que neste caso, excepcionalmente, a natureza é mais negentrópica (= feita) que a cultura – assim, tenderemos a dizer que a "cultura habitacional" dos térmitas é superior à humana. Podemos passar pela dificuldade dizendo que é preciso ver as casas dinamicamente, que elas representam um estágio decadente de um processo trópico histórico, e ainda permitem descobrir elementos índios e portugueses, enquanto a estrutura dos montes é rígida e inalterável. Mas poderemos responder que seria lícito falar em "natureza de segundo grau" no caso das casas. E seria lícito considerar a luta entre homem e térmita não como luta entre homem e natureza, mas como processo natural determinado ecologicamente. Como podemos falar neste caso em "cultura", já que os homens não "trabalham", mas "laboram" (no sentido de Hannah Arendt)? Isto é: já que não produzem bens duráveis de "cultura", mas apenas alteram a natureza para formar bens rapidamente decompostos em natureza, sejam ou não consumidos (por exemplo: alimentos) e, ao fazer isto, não fazem nada mais do que os animais e as plantas? E, afinal, não é esta a razão por que estes homens aparecem nas estatísticas populacionais, mas não nas estatísticas econômicas e, assim, reprimem a renda per capita artificialmente? A pergunta é mais que teórica, e aponta para uma essência da não-historicidade: no nível não-histórico faz pouco sentido distinguir-se entre natureza e cultura, a não ser que se queira chamar a cultura primitiva de “natural”, e a histórica de "artificial" – o que seria absurdo.
Estas considerações, que pretendem abrir caminho rumo ao problema da natureza no Brasil, visam a apontar desde já um fato importante. O brasileiro não está ligado à natureza. Ou vive nela e é difícil distingui-lo dela (como no exemplo dado), ou avança contra ela a ferro e fogo. Em ambos os casos não se pode falar em "ligação", que supõe afastamento e retorno posterior. A ligação na natureza, tão importante nos países históricos (na forma, por exemplo, do amor à gleba) e tão em crise hoje (pode o turismo substituir o amor à gleba?), no Brasil ela é ausente. E isto é característico da essência brasileira. O Brasil mostra, como será demonstrado, que a ligação histórica à natureza não passa de traição sorrateira do espírito humano.
O acima afirmado provocará contestação indignada. O burguês brasileiro não afirma, acaso, que ama a sua paisagem? Não considera, acaso, o Brasil um país abençoado pelas belezas naturais, onde canta o sabiá e onde os prados têm mais flores? No entanto, a análise provará que tal amor é pretenso, que se trata, nesse caso, de ideologia romântica importada defasadamente, e que o contrário é a verdade. A primeira parte deste capítulo será dedicada à tentativa de remover tal ideologia, para desimpedir o campo.
Que pretendemos ao falar em beleza da natureza? Qual a justificativa de aplicar medidas estéticas à natureza, como se fosse obra humana? E, se há justificativa, quais as medidas estéticas "objetivas" (em não importa que sentido do termo)? Este não é o lugar para aprofundar-se em tal problema, mas apenas constatar, primeiro, que quem vê a natureza esteticamente já não pode vê-la ontologicamente. Quem acha a natureza bela (ou feia) já não acha natureza (no sentido de dado), mas acha obra. Possivelmente obra de alguém inteiramente diferente, mas obra. A atitude estética pressupõe um outro por detrás da natureza; a ligação estética com a natureza é de segunda ordem. A segunda constatação é: as medidas estéticas são determinadas pela cultura, isto é, historicamente, já que se transforma natureza em obra de arte, e apenas culturas históricas produzem obras de arte no sentido rigoroso do termo. A prova disto é que, para o Iluminismo, os vales eram belos e os picos alpinos feios, sendo para o romantismo, todo o contrário.
Esta problemática não se articula na Europa, por que lá toda natureza é impregnada de cultura (até os picos montanhosos e os mares, não por manipulação, mas por associação histórica), de modo que lá a beleza da natureza não passa de beleza da cultura (e do mesmo modo a feiúra, que indicia dissonância entre natureza e cultura). Mas em paisagens não-históricas o problema se articula nitidamente. No Brasil, por exemplo, a atitude estética perante a natureza deve realmente procurar transformar a natureza em obra de arte. Qual o resultado de tal atitude?
Ao transformarmos natureza em obra, devemos distinguir entre dois fatores. O primeiro afirma que uma obra é tida por "bela" se contiver alto grau de informação (articulação, variedade); do contrário, é avaliada como "feia". O segundo afirma que o hábito encobre os fenômenos, deixando perceber apenas, e até de maneira nítida, as modificações no fenômeno habitual, sem permitir enxergar-se o que não seja modificação de superfície. De maneira que, combinando os dois fatores, deve ser dito que uma obra habitual é tida por "bela" ou "feia" não pela informação contida na sua estrutura, mas pelos fenômenos acidentais que nela por ventura ocorrem. Isto explica porque uma determinada paisagem é vivenciada esteticamente de uma maneira pelos que a habitam e a ela se habituaram, e de outra pelo turista. O turista vê a estrutura da paisagem e a julga "bela" ou "feia" de acordo. O habitante vê apenas os acidentes (que são sempre informativos), e acha a sua paisagem portanto invariavelmente bela.
O turista, no Brasil, vê a estrutura da paisagem e a acha, em sua monotonia, mais ou menos "feia". O habitante não vê a estrutura, mas apenas acidentes; só que, a estes, ele vê com nitidez inalcançável alhures, e portanto acha a sua paisagem extremamente bela. Prova disto é o trecho mencionado dos prados com suas flores. O imigrante toma tal trecho por pose, enganadamente. Porque de fato há muito poucos prados no Brasil, e estes têm poucas flores. Mas esta raridade é justamente a razão por que o habitante neles repara.
Primeiro, descrevo a impressão estética causada pelo Brasil no imigrante (inautenticamente transformado em turista): o país promete muito, sem quase nada cumprir do prometido. A maior culpa disto está nos preconceitos turísticos que podem ser resumidos sob o título "tropicalidade". Pois as praias brasileiras parecem querer confirmar tal preconceito, que tem a ver com paraíso no sentido de inocência, de ausência daquele suor do rosto causado pelo trabalho, e no sentido de pecado original gostoso, isto é, sexualidade. As praias brasileiras parecem confirmar tudo isso, tanto as nordestinas beiradas de palmeiras, quanto as sulinas beiradas de serras. Com sua areia mole e morna, com o sussurrar das suas ondas, e com os seus pescadores aparentemente ingênuos e a-históricos, formam efetivamente paraísos. Mas cedo vem a decepção do turista, aliás bem merecida. Vem na forma da inacreditável monotonia da natureza brasileira. A pressão atmosférica é uniformemente alta e amortece os movimentos; o conteúdo da água no ar, constantemente alto, provoca suor; no Nordeste só há verão e dias e noites são de duração constante; no Sul é problemática a distinção entre verão e primavera (mas primavera que não representa um despertar do inverno); as praias se estendem em linhas retas por quilômetros, e a costa brasileira prima por falta de articulação (se comparada, obviamente, com a européia). O alheamento brasileiro da natureza favorece a que, nas praias, em determinados lugares, surjam amontoados de prédios altos (espécies de favelas da pequena burguesia), e são estes lugares horríveis os únicos realmente acessíveis ao turista. Outra conseqüência de tal alheamento é o fato de o turista poder degustar nos restaurantes das praias cerejas argentinas, uvas californianas e bacalhau português, mas terá dificuldade em obter os peixes da própria praia. O fundamental alheamento que o brasileiro sente pela natureza faz com que a procure derrubar (em vez de salientá-la artificialmente, como promove o europeu para o deleite de turista), e prova disto são por exemplo o Cristo do Corcovado ou o Elevador da Bahia (dois dos poucos lugares nos quais a natureza é “bela”, isto é, bem articulada). E isto sem falar em coisas como a torre de televisão no Pão de Açúcar.
Mas quando o turista abandona as praias para penetrar o interior (a contragosto, como o prova a transferência compulsória dos diplomatas do Rio para Brasília), a coisa se torna muito mais terrível. Paisagem inarticulada, com no máximo cinco tipos de vegetação para um país do tamanho de continente, e a maioria de vegetação rasteira, abre-se perante o turista que percorre a pista a cem quilômetros por hora (não apenas para escapar ao tédio insuportável das planícies monótonas, mas também para vencer distâncias desumanamente extensas. Não há lagos, nem riachos, nem vales escondidos, nem picos majestosos, nem geleiras, nem vulcões, apenas acidentes gigantescos isolados (como a Cachoeira das Sete Quedas), que continuam tediosos devido ao gigantismo e isolamento. Não há mamíferos visíveis (exceção feita de lugares nos quais não são contemplados, mas caçados), poucos pássaros além de urubus, e a fauna é representada principalmente por formigas, térmitas, moscas e mosquitos. Desolação completa. Há obviamente, em terreno tão amplo, ilhas que contradizem o exposto, por exemplo as serras próximas ao Rio, São Paulo e Porto Alegre, e é lá que se refugia o imigrante sedento de "natureza", se não consegue viajar para a Europa. Mas tais ilhas podem ser desprezadas, já que são o que há de menos brasileiro na paisagem brasileira.
Quem quiser, a estas alturas, defender a "beleza" da paisagem brasileira, poderá fazê-lo apontando o fato de que grande redundância pode resultar em informação da segunda ordem. Este salto dialético transforma a monotonia do mar e do céu em "beleza", e o mesmo pode se dar com o planalto brasileiro, já que as suas dimensões são oceânicas, e igualmente o é a sua monotonia. Mas tal defesa da “beleza” seria inteiramente inapropriada, porque a tese aqui defendida é que o brasileiro não se importa com tal aspecto da natureza e que, pelo contrário, o despreza.
O brasileiro nato não vê nada naquilo que ficou descrito, porque a monotonia acrescentada de hábito faz desaparecer a paisagem por inteiro. É difícil para um europeu captá-lo, mas o brasileiro não vivencia, literalmente, a sua natureza enquanto paisagem. Ignora, mesmo culto, os nomes das plantas e dos animais, não se interessa pelo seu ritmo biológico (a não ser que seja biólogo ou fazendeiro), não coleciona flores, nem borboletas, nem cogumelos, não faz excursões escolares na "natureza", não passeia. Pelo contrário, andar a pé quando se tem automóvel lhe parece ridículo, como lhe parecem ridículas todas essas atividades mencionadas. Com toda razão, alias, porque quem se dedica a elas degrada a dignidade ontológica da natureza, e com isto do espírito humano.
Se o brasileiro se digna dirigir seu olhar para a paisagem, vê apenas os acidentes. As arvores periodicamente em flor, as borboletas gigantescas, as lagartixas, as tempestades majestosas, a cachoeira mencionada. E, quando se digna a olhar, acha o que vê extremamente belo, e não vê o resto. Portanto nem sequer acredita que a descrição é fiel, já que não se pode crer no invisível, a não ser que se mobilize para tanto forças internas inteiramente desproporcionais ao caso. Uma consequência curiosa disto é que o brasileiro, transformado em turista na Europa, fica confuso. Lá ele vê a estrutura da paisagem, mas não a compara com a estrutura, senão com os acidentes brasileiros. Não compara abelha com térmita, mas com borboleta, lago alpino não com represa mas com cachoeira, e afirma ser a paisagem brasileira mais bela. Mas no fundo ele sabe que algo está errado, a saber: o seu pretenso amor pela paisagem brasileira.
Porque o amor pelas palmeiras e pelos sabiás, pelos prados e pelas flores, e em geral pelo berço esplêndido, não passa de subliteratura (descendente tardio e defasado de um romantismo francês que, ele próprio, já é pose), de uma subliteratura que faz parte da ideologia burguesa e ameaça transformar-se em chauvinismo (a parte paisagística do chauvinismo se chama, ultimamente, "tropicalismo"). Que se trata de subliteratura, prova-o a verdadeira literatura: na maioria das vezes nem sequer contempla a natureza enquanto paisagem (Machado de Assis, por exemplo, cujos romances se passam no Rio, nem sequer contempla o mar, a não ser para transformá-lo em palco de uma morte). A aparente grande exceção, Guimarães Rosa, prova a tese aqui defendida. Não canta ele a natureza enquanto paisagem, mas descreve pelo contrário como homem e natureza se fundem em todo místico, de maneira que plantas e animais passam a ser antropomorfos, e homens passam a ser animais e plantas.
No fundo, o brasileiro não pode assumir atitude estética perante a natureza, porque se trata de atitude decadente, quase final da história, atitude que pronuncia o fim de um ciclo. Dada a defasagem do burguês brasileiro, ele brinca de turismo, já que semelhante comportamento corresponde ao espírito do nosso tempo, mas no fundo despreza tudo isto. Porque para o brasileiro natureza é obstáculo, futuro, aventura, perigo, tarefa, sacralidade, mistério tremendo, e pode ser captada apenas com categorias éticas, epistemológicas e religiosas, nunca com categorias estéticas minimizantes. É preciso lutar contra a natureza com armas físicas e com as armas do espírito, e quem se alia à natureza trai a dignidade humana. O colecionador de cogumelos europeu, que coleciona não para comer, mas por amor à arte, é boa demonstração do ridículo que tal traição representa. E quando se dá plenamente conta de tudo isto (raras vezes, dada a sua tendência para perder-se na inconsciência), então despreza a sua própria pretensa admiração da paisagem.
O presente ensaio considera a atitude estética perante a natureza como sendo inteiramente inapropriada para a situação brasileira. Com efeito, em lugar nenhum o turista é tão inapropriado como nesta terra. Se for estrangeiro, o turista é desprezível no Brasil, porque é acompanhado de clima paternalístico que completa a atitude imperialista (imperialistas são sempre uma espécie de turistas, e turistas uma espécie de imperialistas). E mais desprezível ainda, se for brasileiro, porque articula um sentimentalismo falsamente romântico, copia ideologias externas, e torna-se porta-voz de um patriotismo inautêntico e perigoso.
O brasileiro vive com sua natureza de duas formas: dentro dela e sem distância, ou contra ela, enquanto lutador pela dignidade humana. Obviamente, o exemplo do caboclo é exagerado (o leitor ficou advertido que o exagero é um método deste ensaio). Todo homem é essencialmente antinatural, não pode haver homem natural, e menos o caboclo, esse decadente. De maneira que a sua união mística com a natureza não pode ser tão perfeita quanto o exemplo sugere. Já foi mencionada a dificuldade de captar a mentalidade do caboclo com categorias ocidentais, e no presente contexto se desistirá da tentativa. Apenas é preciso dizer que no caboclo vem projetada uma vivência da natureza que espera ser revelada e cultivada pelo “brasileiro no melhor dos casos” – uma entre as muitas tarefas de uma futura cultura verdadeiramente brasileira. O que nos leva à segunda maneira brasileira de vivenciar a natureza, isto é: enquanto lutador pelo espírito humano.
Ao espírito humano lutador, e aos seus tentáculos materializados, os instrumentos, a natureza brasileira oferece um inimigo terrível. Quando Marx falava em perfídia da matéria, não imaginava a perfídia sorrateira da natureza brasileira. Uma perfídia que se apresenta como aparente submissão e plasticidade, e como real subterfúgio, na forma de uma massa que sempre escapa. Não se opõe ao homem como bloco de granito que faz recuar o espírito e rompe os instrumentos, mas como parede de algodão, na qual o espírito se perde sem eco e os instrumentos se perdem sem nada terem agarrado. Este caráter pérfido pode ser demonstrado no caso mais óbvio, na agricultura.
A sentença famosa "plantando dá" pode ser tomada literalmente. Basta abrir campo, trabalhá-lo superficialmente e esperar por duas colheitas por ano. Pois a perfídia da natureza faz com que essas duas colheitas sejam as últimas a serem esperadas. Esta afirmativa horrível (o quão horrível ela é pode ser captado se consideramos que se trata de terra que se recusa a alimentar o homem), se estende sem grande exagero à maior parte da superfície brasileira. Se tomarmos a bacia amazônica (a parte mais horrível, mas muito característica) por modelo, dará no seguinte: lá a terra não é colo das plantas (e portanto da vida), um colo no qual se abrigam e que as alimenta, mas não passa de base mecânica na qual se apóiam. O ciclo vital despreza a terra e circula entre planta e céu. A atmosfera de estufa e a quantidade disponível de água possibilitam o crescimento e o desenvolvimento de árvores gigantescas das madeiras mais nobres que formam a Floresta Amazônica, mas não possibilitam praticamente outra flora, e a capa formada pelas copas dos gigantes esconde o roteiro da sombra da morte.
Quem quiser abrir esse reino à vida (por estrada, ou lago) terá a seguinte alternativa: conservar a floresta e procurar aproveitá-la, ou derrubá-la e procurar fazer agricultura. No primeiro caso constatará que, a despeito das madeiras, a floresta é inaproveitável, dada a mistura caótica das espécies botânicas, impossibilitando o aproveitamento econômico, de forma que é mais racional, em caso de construção, importar madeira da Finlândia que tirá-la da floresta na proximidade imediata. No segundo caso constatará que este aparente último paraíso da flora na terra, uma vez despido de sua cobertura vegetal, se transformará rapidamente em deserto de pedra. Quem lhe tirar a máscara vegetal descobre a realidade: pedra morta. Eis um exemplo impressionante da perfídia da natureza.
Obviamente, a Amazônia é exemplo extremo, mas não o único disponível. Outro seriam vastas regiões do Nordeste que sustentam, em anos de chuva, dezenas de milhões de pessoas (embora precariamente), mas que estão sujeitas a secas periódicas que as transformam em desertos, seus grandes rios e vales, e sua população em mendigos sedentos e desesperados. Ou as estepes do Planalto que florescem paradisiacamente durante poucas semanas para depois se transformarem em arbustos mortos a sustentar penosamente muitos milhões de vacas magras e vaqueiros igualmente magros. Ou os rios gigantescos, os quais, como o São Francisco, transportam massas inacreditavelmente grandes por regiões sedentas, ou os rios sulinos que têm a falta de vergonha de correrem todos na direção contrária (do oceano para o continente), e não formam portanto artérias de transportes (como no resto do mundo), mas obstáculos ao transporte. Os exemplos da perfídia da natureza brasileira poderiam ser multiplicados facilmente.
Há vastas regiões nas quais a natureza se comporta um pouco menos malignamente, mas em geral, para trabalhar a terra, é preciso trabalhá-la com a mobilização de todos os esforços e utilizando todos os truques de uma técnica avançada. E isto também é malícia: um território extenso que só permite agricultura intensiva – não como as pradarias americanas, mas como os vales de um Japão superpovoado. De maneira que não é o trator americano que caracteriza a agricultura brasileira, mas a enxada japonesa, e é possível afirmar-se deste país vazio que está superpovoado.
O que falta aqui é o aspecto materno e maternal da terra que projeta as suas dádivas exuberantes sobre uma humanidade grande, o aspecto etônico, Gaia, Magna Mater, e é este o aspecto que une profundamente gente tão diferente quanto o é o camponês provençal, o felakha nilótico, o kolkhosnik soviético, o coletivo chinês e o hindu de casta baixa. O que falta aqui é a possibilidade de mergulhar a mão na terra viva, fazer com que se derrame entre os dedos, e sentir o parentesco íntimo entre homem e terra. O imigrante sente sempre essa saudade neolítica da terra, este sentimento – és terra e voltarás a ser terra – que se articula desde a Gênesis até Rilke, e que aqui falta. Quiçá a saudade brasileira não é no fundo senão de não mais ser terra e de não poder voltar a ser terra.
Pois a perfídia é fundamentalmente o fato de a natureza se comportar aparentemente como mãe (em todos os aspectos, não apenas no da agricultura), e ser realmente inimiga. A natureza aqui é madrasta (para continuar com a terminologia arquetípica), e o brasileiro é o enteado par excéllence da natureza. A essência brasileira é incompreensível sem este aspecto. Para salientar o caráter "madrasta" da natureza, que sejam dados mais alguns exemplos.
O Brasil é terra quente e não exige proteção do frio, e por isso tanta criança morre de frio em noites que nunca caem debaixo do ponto frio. No Brasil há montanhas inteiras compostas de minério de ferro que basta arranhar superficialmente, mas não há carvão mineral, e o carvão pobre que existe acha-se à distância de milhares de quilômetros do ferro. O Brasil possui três dos maiores sistemas fluviais do mundo e portanto um sistema ideal de canais naturais, mas um dos sistemas, o amazônico, cobre o inferno mencionado, e os outros dois (o do São Francisco e o do Paraná) são interrompidos por cachoeiras gigantescas (Paulo Afonso e Iguaçu), tornando o país uma das poucas regiões sem navegação fluvial digna de nota. As oscilações anuais de temperatura são ínfimas, de forma que parece existir condição para construções grandes (estradas, aquedutos, estradas de ferro), que desprezam a temperatura, mas as oscilações diárias são tão acentuadas (às vezes na ordem de 20 graus) que, pelo contrário, dificultam enormemente este tipo de obras.
Exemplos mais brutais do caráter “madrasta” da natureza poderiam ser fornecidos com facilidade. Este caráter "madrasta", combinando bondade e riqueza aparente com maldade e pobreza real, tem conseqüências profundas na mentalidade brasileira. A maioria dos brasileiros tem dificuldade em reconhecer o verdadeiro caráter da natureza, e dificuldade ainda maior em vivenciá-la. E, mesmo se no curso de sua luta antinatural, o brasileiro descobrir a situação real, terá dificuldade de admiti-la. A natureza assim mascarada convida a ideologias que a encobrem. Aqui não é o caso (como na Europa, em que a práxis rompe automaticamente ideologias, e em que o trabalho automaticamente se aliena, porque a alienação estaria na própria atitude da natureza ( se for permitido antropomorfizá-la um pouco), e para rompê-la é preciso que a práxis seja completada com esforço adicional do intelecto, um esforço que torne consciente o trabalho realizado. Logo, o marxismo não pode ser transferido para cá, nem sequer no caso do trabalho, sem adaptação prévia.
Mas se a ruptura da alienação for conseguida, isto é: se e quando o brasileiro se der conta do caráter real da natureza e de sua posição real perante ela, surge uma personalidade provavelmente sem igual no resto do mundo, a saber, uma personalidade que se empenha conscientemente no espírito enquanto dignidade sobrenatural (por antinatural), dignidade esta que se manifesta em opor ao mero ser-assim da natureza o seu dever-ser de maneira imperiosa, corajosa e aventurosa. Isto não é nem realismo nem idealismo, mas superação espontânea (por concreta e existencial) dessa antinomia nefasta que aflige a humanidade e a história há centenas de anos. No Brasil pode surgir um tipo humano que cria uma síntese viva entre idealismo e realismo, a qual, por se configurar maneira concreta de viver, não passa a constituir nova tese a ser contradita. Um novo homem está surgindo; em sua virtualidade ele pode representar, se alcançado, um modelo para uma humanidade em crise.
Pois até agora não se falou no aspecto mais importante do problema da natureza brasileira. Já que a natureza é inimigo maligno que exige mobilização de todas as forças (tanto das forças intelectuais, quanto das do sentimento e da intuição), para se viver aqui digna e significativamente, não restam forças para serem mobilizadas contra o outro homem. O que acaba de ser dito, de maneira seca e como formulação de um fato concreto, pode ser formulado de maneira um pouco mais lírica dizendo que o brasileiro verdadeiro é um homem incapaz de odiar e invejar o outro, porque toda a sua capacidade para o ódio, toda a sua energia para a vitória, e toda direção da sua ação é mobilizada contra a natureza. E este traço fundamental da essência brasileira merece ser melhor iluminado.
O europeu (e outros "desenvolvidos") vive em sociedade que domina definitivamente a natureza (pelo menos a natureza que cerca a sociedade). Por isso pode assumir perante ela a atitude estética do turista. Por isso, dispõe ele também de enorme quantidade de energia não gasta, de ódio não consumido, de impulso não realizado para a luta e para a vitória, de vontade de agir insatisfeita, e dirige tudo isso contra o outro homem. Isto significa, ontologicamente, que o outro homem passa a ser objeto, resistência, problema, e substitui ontologicamente uma natureza vencida e transformada esteticamente em obra. Deste caldo surgem as ciências humanas, que se tornam sempre mais exatas e rivalizam com as ciências da natureza. Por isso cresce a dificuldade de o homem reconhecer-se no outro transformado em objeto conhecido e manipulável, já que reconhecimento exige descoberta do sujeito ativo, e sofredor, no outro. Conseqüência disto é a crescente solidão humana (porque a verdadeira comunicação é o diálogo do reconhecimento, e não o discurso científico e antropológico sobre o "homem"). Outra conseqüência é a tendência do homem de tornar-se a si mesmo como objeto e destarte autocoisificar-se. Este fato terrível não pode ser mascarado por muito tempo por não importa que tipo de progresso, porque é exatamente o progresso que tem provocado e provoca o fato. Todos os movimentos de contestação (não apenas os hippies) e toda a crise da história têm sua última explicação neste fato terrível, e atualmente parece não existir saída.
O brasileiro culto sabe de tudo isto graças a livros, à imprensa, e a viagens para os países desenvolvidos, mas não consegue vivenciar o problema. É verdade que o problema interessa e se espelha sempre mais nos seus escritos e nas suas discussões, e com razão, já que é preciso tentar compreender a história que determina em alto grau o brasileiro. Mas o problema não é seu, e não lhe diz respeito imediatamente. A dialética interna da sua defasagem com relação à história (da qual este ensaio tratará mais tarde) se manifesta da seguinte forma: de um lado procura, inautenticamente, porque especulativamente, tornar o problema seu, mas o problema serve para encobrir ideologicamente sua situação verdadeira. Por outro lado prova existencialmente que não compreendeu o problema, já que procura desesperadamente penetrar a história na qual o problema domina de maneira nefasta.
Se, no entanto, conseguir romper tal ideologia, sua situação se lhe apresenta, sob este aspecto, da seguinte forma: a sociedade brasileira luta, inconscientemente (e, em pequena parte, conscientemente) contra uma natureza pérfida e madrasta, e todo homem individual é aliado óbvio e espontâneo nessa guerra contra a natureza. Se diálogo for democracia, então a sociedade brasileira é autenticamente democrática, muitas vezes a despeito das instituições que procuram estruturá-la. O brasileiro é democrático existencialmente. A despeito de todas as diferenças enormes (maiores que alhures) entre classes, raças, níveis culturais e ideológicos, a sociedade brasileira é profundamente unida enquanto sociedade dos que procuram impor a marca de dignidade humana sobre uma natureza maligna. Desde o caboclo analfabeto até o cientista, desde o proletário desenraizado até o filósofo igualmente sem fundamento, está-se formando aqui uma solidariedade humana, solidariedade esta raras vezes conscientizada pelo brasileiro, mas óbvia para o imigrante, por contraste com a Europa.
Muitas vezes foi dito que a cordialidade caracteriza o brasileiro. Aqui este traço se torna claro e merece a denominação, talvez melhor, de “amabilidade”. Esta gente merece ser amada, já que não sabe ser odiosa. Nem lhes ocorre odiar o outro, já que tomam por óbvia a sua tarefa de estabelecer a dignidade humana (a dignidade de todos os homens) perante a natureza. A atmosfera odiosa dos países históricos lhes é incompreensível; embora saibam da luta competitiva, da inveja burguesa e do carreirismo feroz que lá impera, tendem a interpretar tais fenômenos como manifestações de ideais políticos e outros, em vez de interpretá-los como manifestações de uma situação existencial terrível, provocada justamente pelo progresso.
A solidariedade brasileira não implica sentido de mútua responsabilidade e, embora isto possa surpreender, é facilmente explicável. A responsabilidade pelo outro é responsabilidade coletiva por grupos (por exemplo "os pobres", "os vietnamitas", "os aposentados"), isto é, por grupos com os quais não se tem contato existencial, e é resultado da objetivação do outro. Assume-se responsabilidade por grupos (e aqui não é o lugar de questionar a sinceridade desse assumir), porque se crê saber como manipulá-los, e porque se crê saber que estão sendo manipulados de forma errada. Mas o brasileiro não visa a manipular pessoas, já que para ele pessoas são sujeitos, não objetos, e portanto cada qual é responsável apenas por si, nunca por outros. No fundo, assumir responsabilidade pelo outro é atitude contrária à essência brasileira.
Estas explicações não pretendem minimizar a falta de responsabilidade que reina na sociedade brasileira. Ela se manifesta em toda parte: por exemplo, na forma do vandalismo com que são tratados edifícios e lugares públicos (para não falar em privados), e na forma de uma inacreditável consciência tranqüila perante injustiças que gritam para os céus. Estas explicações não pretendem minimizar o problema, mas colocá-lo no seu contexto a fim de torná-lo solucionável. É preciso compreender o seguinte: o sentido europeu e americano da responsabilidade é resultado de objetivação do outro, transformou a Europa em “Mãe das Revoluções” (para falarmos como Heer), e contribuiu poderosamente para as guerras. E a falta de responsabilidade é chaga social que aflige o brasileiro. Superar a falta de responsabilidade por algo que não seja responsabilidade (e aqui a palavra “amor” se imiscui de novo) é uma das tarefas gigantescas que esperam pelo “brasileiro no melhor dos casos”.
A solidariedade fundamental e irresponsável tem o caráter de uma conspiração subterrânea, largamente inconsciente, contra a natureza. Tem-se a impressão de que até em lutas sangrentas entre os dois campos da burguesia um pisca para o outro, a fim de não esquecer a solidariedade. A solidariedade não consegue evitar derramamento de sangue, mas, embora o brasileiro pareça disposto a oferecer a própria vida e a vida de outros na luta em prol de ideais (por tolos que sejam), nunca será lobo do outro. Para evitá-lo ainda restam feras animais de sobra nos matos, lembrando ao homem que é preciso unir-se na luta contra elas. A ideologia dominante tende a chamar tal solidariedade de "tradição cristã", mas esta tradição não é lá grande coisa no Brasil (como este ensaio mostrará) e, aliás, a história provou de que ferocidades são capazes cristãos "verdadeiros". Na realidade se trata de uma autêntica relação intra-humana que caracteriza a essência brasileira, e a distingue de outras.
Pois este fato, a saber, que o brasileiro tem relação autêntica, concreta e cordial com o seu próximo, é um dos motivos mais poderosos para o engajamento em prol desta terra. Infelizmente, no presente momento, muitos tenderão a renegar tal espécie de engajamento. Muitos pregam o ódio (inclusive sacerdotes), mas pregam, esta é a esperança, perante surdos. Muitos se vangloriam do ódio recém-adquirido e chamam a isto "politização das massas". Mas, a despeito, até agora as ideologias e os métodos trazidos da Europa não conseguiram modificar fundamentalmente a cordialidade e amabilidade brasileiras, já que a ameaça da natureza continua mais temível que a ameaça humana. É possível que, no futuro, a situação mude e o ódio penetre, e neste caso a essência brasileira desaparecerá; é possível, porque essa essência é mera virtualidade.
Se isto se der, será uma perda não apenas para o país, mas para toda a humanidade. Porque o que este capítulo procurou mostrar é que o novo tipo humano, em desenvolvimento aqui, pode representar elemento importante para a superação da crise da humanidade.
4. Defasagem
Se a história for considerada desenvolvimento (digamos, desenvolvimento de virtualidades armazenadas no espírito ou na informação genética), constataremos surpresos que certas formas se repetem ao longo do processo. Há semelhança curiosa entre a arquitetura helenística e a rococó, ou entre templos hindus do século VI e igrejas espanholas do século XVII, ou entre as construções persas do século VI a.C. e as construções fascistas do século XX.
Seria difícil querer reduzir tais semelhanças para alguma relação causal entre os fenômenos semelhantes. Obviamente, é fácil "explicar" a semelhança, recorrendo, por exemplo, a teorias cíclicas, mas afinal tudo é explicável. Mais razoável que explicar parece ser aceitar o fato simples de que a aparente riqueza de formas no mundo não é tão enorme. Para dar outro exemplo no mundo da biologia, aparentemente tão rico em formas, aparecem semelhanças inteiramente surpreendentes, como entre certos peixes e certas borboletas, e entre certos animais marítimos e certas plantas terrestres. Parece pois que a natureza dispõe de repertório limitado de formas (talvez limitado pela própria estrutura da matéria), e que o espírito humano é igualmente limitado no seu repertório de formas a serem impostas sobre a natureza (quiçá por razões semelhantes). Por isso as formas tendem a se repetir (o que não passa de "explicação", afinal de contas). Em outros termos, o espírito humano enquanto ator no palco da história dispõe de número limitado de máscaras que reaparecem à medida que o espetáculo se desenvolve.
Duas coisas não devem ser negadas com isto: que sempre aparecem máscaras novas (isto é, máscaras cujo uso anterior ignoramos) e que, toda vez que uma máscara reaparece, adquire novo significado. O que importa aqui é apenas manter em mente que há "fases" na história, ou seja, formas comparáveis, sem que se possa explicar a comparabilidade. Na tentativa de uma aproximação do problema da defasagem este fato deve ser constatado, mas pode ser posto de lado provisoriamente, a fim de abrir uma segunda avenida de acesso ao problema.
A todo instante histórico o espírito do tempo (ou como queiramos chamar aquilo que se manifesta) se manifesta em todos os fenômenos culturais, desde a língua até os instrumentos, desde a moda até os sonhos. Isto significa que naquele instante o espírito humano assumiu uma máscara determinada. Mas isto não significa que todos os homens contemporâneos tenham assumido tal máscara, nem sequer todos os homens ativamente empenhados. Apenas significa que uma elite decisiva (a "vanguarda") conseguiu impor tal máscara à sociedade, mas que a grande maioria pode perfeitamente continuar usando máscaras superadas, até muito superadas. Uma análise da sociedade francesa no final do século XVIII poderia perfeitamente resultar no seguinte: elite tênue de máscara romântica, elite mais numerosa com máscara iluminista, massa rural com máscara neolítica, e várias camadas intermediárias com máscaras variadas. E, no entanto, não tivesse a população neolítica se comportado de determinada maneira, e a revolução romântica francesa teria fracassado, a despeito dos esforços da elite. De forma que a população neolítica é co-responsável pela revolução romântica, fato perturbador que igualmente deve ser mantido em mente quando for posta em questão a "defasagem", isto é, a história da sociedade brasileira.
Porque no Brasil fala-se em história, e não apenas se fala nela, mas ela é cultivada desde o curso primário até o clássico em detrimento da história universal; uma torrente contínua de escritos acadêmicos trata dela nos seus mínimos detalhes, torrente essa comparável apenas com os tratados relativos à gramática portuguesa. Como sabe todo aquele quem tem conhecimentos superficiais de psicologia, este é um sintoma péssimo para a história brasileira. Que seja fornecido, para ilustrar tal supercompensação, um único exemplo: por ocasião da descoberta da costa brasileira, um certo Pero Vaz de Caminha escreveu uma carta ao Rei de Portugal, e essa carta persegue a juventude brasileira dos seis aos dezesseis anos (seja ela autêntica ou não, e tenham ou não os portugueses descoberto o Brasil como primeiros). Esse renascentista obscuro avançou pois para ser companheiro constante de inúmeros jovens desde tenra idade até a puberdade. Que significa isto para a história brasileira?
Uma maneira superficial de resposta a esta pergunta seria dizer que o Brasil tem história curta e relativamente pouco importante, mas história não obstante, e que o renascentista mencionado é uma espécie de Vercingetorix, ou Armínio, o Cherusco, que apareceu com certo atraso. Mas tal resposta ignoraria o fato fundamental de que o brasileiro não tem história nem senso histórico, e que este fato surpreende o imigrante de novo. O brasileiro pensa a-historicamente, até e especialmente se se interessa por história, e isto se torna especialmente claro nos filósofos brasileiros que se consideram "historicistas". Tal fato pode ser observado diariamente, mas basta citar apenas um único exemplo. O imigrante aprende que o Brasil se chamava "império" durante o século XIX, e isto evoca nele hilaridade, até que aprenda que a hilaridade é fruto de mal-entendido. A hilaridade é consequência de um pensamento historicamente explicável: o título "Imperador" tem raiz persa, pretende universalidade ("rei de todos os reis e senhor de todos os arianos e não-arianos"), passou pelo banho romano e cristão, tem caráter nitidamente sacral, e pode ser sorvido na sua derradeira decadência nas patéticas figuras de Viena e Petersburgo. Os Bonapartes e Hohenzollern ilustram no século XIX a tentativa de profanar o título e pô-lo a serviço de uma pretensão universalista profana (revolução burguesa e missão germanizadora). Até no México o titulo pode ser interpretado como tentativa (embora inautêntica) de recorrer a uma pretensão universalista asteca, mas no Brasil não passa de título de opereta. No caso, o pensamento histórico está enganado. Para o pensamento a-histórico o título simboliza o tamanho geográfico do Brasil, a superação de Portugal, e a virtual potência brasileira.
O exemplo ilustra bem a diferença entre os dois pensamentos. Para o pensamento histórico a sociedade humana é tomada de processo superador que se inicia em origens mágico-míticas (na pré-história), conserva tal origem em todas suas fases e visa a meta (a plenitude dos tempos), na qual as virtualidades originais serão totalmente realizadas. Por isso até figuras como a de Napoleão III permitem ver nitidamente em direção passada Ciro, Constantino e Carlos Magno, e em direção futura o reino divino zoroástrico, a Paz romana e Jerusalém celeste na Terra. Para o pensamento a- histórico a sociedade humana é uma forma de romper a trágica solidão do homem que enfrenta sua morte, dar forma e sentido à sua vida única, incomparável, irrevogável e irrepetitível. Para tal pensamento Napoleão III não passa de representante de uma burguesia vitoriosa mas ameaçada, e a tentativa de nele querer projetar Ciro e Jerusalém não passa de demonstração de ideologia burguesa alienada. Não tem sentido perguntar quais das duas maneiras de pensar capta melhor a realidade, porque não importa que resposta a tal pergunta é necessariamente dada por uma das duas mentalidades. Uma coisa no entanto é certa: há atualmente nítidas tendências nos países históricos em direção ao pensamento a - histórico (fenomenologia, existencialismo, estruturalismo, positivismo lógico), e tais tendências são sintomas do abandono da história e têm semelhança com o pensamento brasileiro. Mas apenas o pensamento a - histórico brasileiro é espontâneo, e tais tendências são deliberadas, e portanto duvidosas.
Os dois horizontes do pensamento histórico, a saber a origem mágico-mítica e a meta escatológica, distinguem nitidamente esta mentalidade da outra. Pero Vaz de Caminha não se dá no mito, e Pedro II não pretende Milênio, de forma que Pero Vaz de Caminha é Vercingetorix defasado, e Pedro II Carlos Magno defasado. Torna-se necessário explicar a diferença mais concretamente. Meninos brasileiros tendem a perguntar quando a Itália foi descoberta e a resposta de que nunca foi descoberta ou sempre esteve descoberta não satisfaz por ser mágico-mítica, portanto sem sentido no contexto brasileiro. O imigrante pergunta pelo Brasil antes da descoberta e a resposta de que não havia Brasil não satisfaz por ser a-histórica e sem sentido no contexto do imigrante. É claro que ambas as perguntas podem ser respondidas satisfatoriamente em nível mais refinado, por exemplo apontando as tribos vitálicas e a população "primitiva", e apontando as migrações karibé e tupi, mas tal refinamento apenas obscurece a diferença. E a mesma diferença poderia ser demonstrada com igual nitidez do ponto de vista da escatologia. No fundo se trata do seguinte: o homem histórico se torna inconsciente e espontaneamente por elo de cadeia, portanto por portador de forças imemoriais que nele agem, pelas quais é responsável perante seus maiores, as quais deve modelar para dar sentido à sua vida, e transmitir remodeladas aos seus descendentes perante os quais é igualmente responsável. Se conseguir dar-se conta disto conscientemente, a dialética entre determinação e liberdade aparecerá para ele como tensão entre determinação histórica e liberdade de transcendê-la, e tal transcendência será a tarefa da sua vida. O homem não-histórico se toma inconsciente e espontaneamente por existência irrevogável e única que se encontra em ambiente natural e social que o determina. Se conseguir dar-se conta disto conscientemente, a dialética entre determinação e liberdade aparecerá para ele como tensão entre determinação do ambiente e possibilidade de transcendê-la, e tal transcendência será a tarefa da sua vida, porque, ou poderá decair na determinação do ambiente, ou em a-história primitiva, ou se imporá sobre o ambiente em a-história digna.
Isto exige ser um pouco elaborado. O homem a-histórico é primitivo se aceitar a determinação do ambiente em estruturas rígidas e bem adaptadas ao ambiente (é o que os etnólogos têm em mente quando falam em "primitivos"), e o a-historicismo do brasileiro culto é tudo menos primitivo, já que visa a modificar o ambiente, já que não é adaptado a ele, e já que é a-histórico em nível mais elevado. E o homem histórico, em sua capacidade de transcender a história, visa a alcançar este mesmo nível (por exemplo, pensando formalmente, ou existencialmente). Mas tal tentativa resulta apenas na absorção do formalismo e do existencialismo pela história, ou na destruição da história enquanto dimensão da existência humana. Finalmente é preciso dizer que o pensamento a-histórico brasileiro é constantemente tentado a historicizar-se, porque visa a abrir "futuro", e sabe que futuro só há aonde há passado (como o provam as tentativas de criar artificialmente uma "história brasileira"). Trata-se de um erro trágico, que confunde liberdade existencial a-histórica com liberdade histórica, arriscando-se a perder a primeira. Este erro é responsável pelo engajamento mencionado da burguesia e encerra todo o problema da defasagem.
Praticamente todas as ideologias importadas, desde a judaico-cristã, passando pela romântico-burguesa até o marxismo, são historicizantes. Os jornais e demais meios de comunicação têm fontes históricas e transmitem acontecimentos históricos; as influências econômicas, políticas e culturais provêm da história e nenhuma quantidade de neblinas ideológicas consegue encobrir o fato doloroso de que as decisões históricas manipulam o brasileiro. A conseqüência disso é que o brasileiro se sente, perante a história, injustiçado, impotente e castrado, vendo na história posição que o objetiva por interesse científico, por paternalismo e por manipulação brutal ou encoberta, procurando afirmar, perante isto, a sua dignidade humana. Infelizmente a burguesia escolheu para tanto o método da penetração da história e da inversão de termos. Infelizmente, porque em sua defasagem a burguesia não nota que os habitantes dos países históricos são igualmente determinados e manipulados, e que os poucos que determinam e manipulam adquiriram tal posição pelo preço da perda da liberdade existencial, da autêntica liberdade. Não sabem estes burgueses que o Brasil concede a tal liberdade terreno inacreditavelmente amplo se comparado com os países históricos, terreno este ameaçado pelas suas próprias tentativas. O que o burguês brasileiro arrisca é justamente aquilo que os homens históricos almejam sem poder alcançá-lo. Tal tendência historicizante encobre para o brasileiro sua essência não-histórica, e torna impossível para ele encontrar-se. Não obstante, a essência não-histórica continua ativa a despeito de todas as poses em sentido contrário, e é visível para o pensador distanciado, permitindo diagnosticar o fenômeno da defasagem.
Como primeiro exemplo disto vejamos um fenômeno não da atualidade, mas do passado. Logo depois da irrupção da Revolução Francesa, aproximadamente em 1791, acontece em Ouro Preto, a então capital de Minas Gerais, uma tentativa de levante para derrubar o governo português e estabelecer uma independência brasileira. Este Ouro Preto é tomado naquele momento por onda criativa sem paralelo no passado brasileiro, resultando em obras de arquitetura, escultura, música e literatura incomparavelmente mais realizadas que não importa que posteriores, exceção feita à atualidade. Pois o levante tem traços românticos, e efetivamente as escolas ensinam que seus motivos são trazidos das revoluções românticas americana e francesa. Suas obras culturais são chamadas, em praticamente todos os livros, barrocas. Portanto, tratar-se-ia de política romântica em situação barroca – ora, algo deve estar errado. Obviamente, errados são os rótulos "romântico" e "barroco". Errados no sentido de denominarem fases da história ocidental, fases estas que aparecem em contexto brasileiro de forma deturpada, a saber: defasada. Que tais tentativas de rotular fenômenos brasileiros não explicam, mas encobrem a realidade, pode ser muito bem ilustrado no caso do "barroco mineiro".
A essência do barroco pode ser visualizada como elipse cujos dois focos são "natureza" e "razão" num sentido muito específico (a saber: natureza enquanto mecanismo e razão enquanto racionalismo). Tal essência se manifesta nas ciências da natureza como cosmovisão mecanicista, na política como sistemas racionais (por exemplo: absolutismo, na teologia como misticismo racionalizante, na música como composição exata, na pintura como tensão entre luz e sombra, na escultura e arquitetura como elipse, espiral, e labirinto exatamente calculado, e no teatro como gesto amplo, redondo, e bem estudado). Esta última manifestação, a teatral, que cria a ilusão da grandiosidade a ponto de tornar-se grandiosa em segundo grau, caracteriza todo barroco. Há a algo do grandioso cerimonial frio espanhol em tudo, e por isso o material da escultura e da arquitetura é o frio mármore, a sua cor é o púrpura, e o seu método é a ilusão da grandiosidade. De tudo isso em Ouro Preto nada pode ser encontrado a não ser a espiral e a elipse. O material é madeira ou pedra mole, a cor é o ouro ingênuo, e as igrejas são pequenas e acanhadas. O imigrante que visita a cidade pretensamente barroca, principalmente se for nativo de cidade barroca europeia, sente a tentação de cair na risada porque a comovente ingenuidade mineira contrasta violentamente com a refinada técnica ilusionista do barroco. Os profetas do Aleijadinho são para as estátuas de Bernini como meninos que brincam de bola para mestres de xadrez. Aliás, já faz 150 anos desde Bernini, e a música mineira é contemporânea de Beethoven, não de Vivaldi. Portanto, defasagem.
Mas a risada sossega e vira admiração desde que o imigrante se liberte do rótulo barroco. Porque então descobre um fenômeno sem paralelo, no qual elementos portugueses, orientais (hindus e chineses) e negros conseguem formar uma síntese na qual é possível descobrirem-se os germes de um novo tipo humano. É verdade que o elemento português tem máscara aproximadamente barroca (daí as elipses e espirais), e é verdade que o elemento hindu tem algo barroco (pelo menos para o observador ocidental), mas isto é o que menos importa. O que importa é: inteiramente fora da corrente histórica, em canto perdido do mundo, surgiu um homem que impõe a sua vontade sobre a matéria em forma de beleza. Surge aqui uma maneira de informar e organizar matéria, e portanto afirmar a dignidade humana, em síntese espontânea e não pretendida. Surge aqui uma cultura não histórica, a qual, embora ingênua, é tudo menos primitiva - portanto, um acontecimento de primeira ordem. Pois o curioso é que o brasileiro atual, ao ver tal fenômeno, não se descobre a si próprio nele como sendo uma das suas raízes e potencialidades, mas, obcecado pela ideologia, pretende ver barroco e, se for chauvinista, até barroco excepcionalmente bem elaborado, um ponto alto do barroco.
Quanto à intentona aparentemente romântica no meio de tal situação, é fácil recolocá-la em seu verdadeiro contexto, porque consequência de uma ideologia de burgueses alienados do seu ambiente que procuram impor sobre ele um espírito romântico americano e francês, um espírito que talvez compreendem, mas certamente não vivenciam, e portanto estão condenados ao fracasso. Prova de que os homens estão prontos a sacrificar a vida em prol de uma pose. Com efeito, a realidade passa por este episódio com indiferença (embora queira, posteriormente, glorificar sentimentalmente a figura principal, Tiradentes), e busca seu caminho no mencionado Império, do qual um príncipe português é o imperador, de forma que é um caminho que pode ser tudo menos revolucionário, no sentido dos insurretos. A falta de eco da intentona prova tratar-se de alienação e de pose romântica, e não de acontecimento histórico (já que não foi “superado”). Este fato os burgueses atuais deveriam notar com atenção, para retomarem contato com a realidade, em vez de brincar com ideologias.
O exemplo dado do passado torna evidente a essência da defasagem. No Brasil se dão processos que visam espontaneamente a síntese de tendências históricas e a-históricas contraditórias que podem resultar em cultura, atestando um homem a-histórico não primitivo que empresta sentido novo à vida humana. Há outros processos que procuram impor sobre este fases ultrapassadas da história ocidental, cuja conseqüência é não apenas encobrir os processos autênticos, mas sufocá-los. Se forem vitoriosos, transformarão o Brasil em sociedade histórica atrasada, mimética e falsa, na qual viver careceria de sentido.
É tempo de retomar os dois fatores históricos mencionados no início do capítulo presente: a repetição de formas no curso da história, e a circunstância de que a cada instante histórico apenas uma pequena elite é portadora do espírito do tempo, mas sincronizada problematicamente com o resto da sociedade. Ambos os fatores dificultam sobremaneira o problema da defasagem, e devem ser considerados honestamente. Permitem o seguinte argumento, que parece depor em favor do engajamento atual da burguesia: as fases históricas que aparecem com atraso no contexto brasileiro (entre elas o barroco e a revolução industrial) têm aqui significado novo pelo simples fato de serem atrasadas. E a elite vanguardista, embora viva com espírito diferente da massa (a saber: historicamente), não está alienada da massa, mas, pelo contrário, arrasta o povo consigo história adentro, e é por isso que ela é vanguarda.
Os argumentos são capciosos e devem ser eliminados.
O primeiro argumento afirma: quando dois fazem a mesma coisa não é a mesma coisa. Pois no caso do helenismo e do rococó isto é verdade, e não o é no caso da defasagem. Não o é, porque no primeiro exemplo não há relação aparente entre as duas fases, e no segundo se trata de deliberada transferência de fase esgotada. O argumento afirma que o barroco mineiro tem significado diferente do barroco europeu, simplesmente por estar atrasado. Errado. Tem efetivamente significado diferente, mas não por ser barroco atrasado, mas por não ser barroco, e neste caso não se trata de defasagem. E o argumento afirma que a revolução industrial brasileira tem significado diferente da européia por dar-se na segunda metade do século XX e não na primeira metade do século XIX. Errado. Trata-se de forma defasada que terá exatamente as mesmas consequências que teve no seu primeiro aparecimento, e a alienação da sociedade urbana brasileira desde já o prova. Dizer que o atraso permite "aprender dos erros passados" é querer enganar-se, já que as mesmas coisas provocam os mesmos efeitos. Há uma história que conta de uma entrevista entre um ministro da Fazenda brasileiro e seu colega americano. Teria dito o brasileiro que a inflação no Brasil terá conseqüências diferentes da europeia, já que as leis econômicas não se aplicam a ela. "Um dia serão aplicadas", teria respondido o americano, e tinha razão, obviamente. A dificuldade é distinguir entre fenômenos autênticos como o é o "barroco mineiro", e fenômenos defasados como o é a industrialização, e isto é tarefa para analisadores sérios, uma das gigantescas tarefas a serem resolvidas pelo pensamento brasileiro.
O segundo argumento afirma que a história sempre tem sido feita por pequena minoria, e que portanto o fato de a massa brasileira viver a-historicamente não impede que a minoria vanguardista a historicize. Mas a comparação entre a Revolução Francesa e a intentona mineira prova tratar-se de erro perigoso. Igualmente o prova a comparação entre a revolução européia de 1848 e a luta atual entre os dois campos burgueses. É verdade que a população rural francesa vivia tão neoliticamente quanto a mineira. Não menos verdade que se tratava de população infimamente ligada à História, cuja elite sempre mantinha contato com ela. Em Minas o caso é oposto: a elite não teve suas fontes na massa rural, senão na elite europeia. Isto explica a indiferença da massa mineira e a marcha para Versalles dos sans-culottes parisienses. E isso explica também porque atualmente tanto conservadores como revolucionários devem contar com a indiferença da massa (por mais que procurem escondê-la), e porque o famoso espectro do comunismo que assustava a burguesia européia em 1848 se materializou desde então de forma a movimentar e modificar a massa. O argumento erra não apenas porque a elite brasileira está efetivamente alienada da massa, mas muito mais ainda por ela estar alienada de si mesma. Trata-se de cego engajamento no qual se manifestam apenas tendências externas das quais a dita “elite” não passa de instrumento.
O engajamento em história sempre tem sido no Brasil acompanhado de perda de identidade, e continuará assim no futuro previsível. É por isso que se trata de engajamento defasado, mesmo se disposto a oferecer sua própria vida e a vida do outro em holocausto.
Esta circunstância não obriga que a essência brasileira deva fechar-se à influência histórica para conservar-se. Muito pelo contrario afirma que é da essência brasileira abrir-se para tal influência, não para copiá-la, mas para assimilá-la. Um exemplo disso é a industrialização, será discutido neste ensaio, quando a miséria for o tema. Torna-se necessário agora iluminar mais de perto o fenômeno da defasagem.
A revolução atual dos meios de comunicação parece ter influenciado profundamente a defasagem, porque sincronizou a fonte da informação (a história) com o receptor (o Brasil), aumentou em muito a quantidade disponível de informações e facilitou a decodificação das mensagens. Na realidade, no entanto, o fenômeno da defasagem permanece o mesmo. Pelo contrário, aquela revolução ajuda a remover o erro que afirma ser a defasagem conseqüência da morosidade, dificuldade e custo da comunicação entre o Brasil e a Europa e os Estados Unidos. A remoção de tal erro revelará o fenômeno verdadeiro de forma mais clara.
Quando a comunicação entre história e Brasil se dava quase exclusivamente por via marítima, os burgueses literalmente se aglomeravam nos portos para receber e sorver as últimas notícias (principalmente parisienses), como para matar uma sede terrível. Provavelmente a curva da filosofia, da política, da arte e da moda brasileiras do século XIX espelharia a curva da chegada de navios nos portos de Salvador, Rio e Santos, com atraso de poucos dias. Trata-se de fenômeno que caracteriza o exílio, e na Ilha do Diabo e em Papete deve ter sido o mesmo. Que não é assim, prova-o a atual defasagem brasileira, que continua defasada a despeito da facilidade comunicativa. Porque a defasagem tem causas mais profundas e interessantes que as comunicativas, e o Brasil não é nem Papete nem a Ilha do Diabo.
Não é preciso insistir no fato conhecido (embora nem sempre compreendido) de que atualmente todos os acontecimentos do globo (e não apenas do globo) se dão simultaneamente. Não apenas acontecimentos decisivos, mas também epidérmicos e passageiros. Não apenas toda catástrofe natural e social e toda expedição à Lua, mas também todo acontecimento esportivo e todo caso amoroso de ator de cinema é presenciado pelo proletariado brasileiro no instante mesmo em que ocorre. O burguês brasileiro pode sem grande dificuldade jantar em São Paulo e tomar seu souper no dia seguinte na Rive Gauche parisiense. Não se nega que tal revolução nas comunicações teve importantes conseqüências no Brasil, como alhures. Nega-se, isto sim, que tenha modificado fundamentalmente o problema da defasagem.
O essencial da defasagem é: ser tentativa de traduzir o comunicado para o mundo concreto e vivido do receptor da mensagem. Pois fatos comunicados não são fatos vivenciados pelo receptor, já que vivências (o “concreto”) podem ser comunicadas. A comunicação se dá por símbolos convencionados (códigos) que significam o concreto, e portanto se dá sempre na teoria. Já Wittgenstein disse ser possível comunicar pelo telefone a notícia de que tenho sarampo, mas ser impossível comunicar sarampo pelo telefone. Este aspecto da comunicação ilustra o limite do pensamento humano, a sua incompetência para captar a vivência toda, e é aproximadamente este o problema da relação entre razão teórica e prática no sistema kantiano. A revolução na comunicação tornou ainda mais claro que na época de Kant o fato de que mensagens comunicadas não são vivenciáveis, e quando retransferidas para a vivência são deturpadas. Não fosse assim, e reagiríamos violentamente a cenas televisionadas de combates africanos, por exemplo, em vez de assumirmos poses vazias. A tese de Shaw, de que o paraíso na Terra surgirá quando as pessoas chorarem ao lerem estatísticas econômicas, é conseqüência da sua falta de compreensão da comunicação enquanto canal não vivenciável. A defasagem é a tentativa, condenada ao fracasso, de vivenciar mensagens, e o fracasso não pode ser evitado com facilidade e reversibilidade dos meios de comunicação disponíveis. Pelo contrário, tal facilidade pode em certos casos até intensificar a defasagem.
Há uma infinidade de exemplos para prová-lo, e serão dados dois que parecem ser ilustrativos. O imigrante acha revoltante a reação de muitos burgueses brasileiros ao nazismo, até que compreenda a diferença entre o vivenciado e o comunicado. A vivência do nazismo é a do kitsch vulgar, e é esta vivência que dá colorido ao movimento todo. A fundamental mentira que foi o nazismo é vivificada imediatamente como abismo entre o kitsch e as demais poses, manifestações e atos do nazismo, e essa vivência é incomunicável (nem sequer pela sentença que acaba de ser escrita). Pois o brasileiro, não tendo tal vivência, interpretava o nazismo ou como barbárie brutal ou como vertigem nietzscheana, e perdeu em ambas as interpretações a essência do nazismo. E isto não a despeito, mas por causa da comunicação intensa na forma de irradiações radiotelegráfïcas, de filmes Ufa e de jornais que chegavam com pouco atraso.
O nazismo é exemplo inócuo, uma vez que seus aspectos teóricos (se é que tem teoria e não apenas pretensa mitologia) se opõem à essência brasileira, se tratando de tendência efêmera demais para poder ter sido transplantada. Mais importante é o outro exemplo, de uma tendência bem melhor fundada teoricamente, bem mais condizente com a essência brasileira, e bem mais sólida: o marxismo. Nesse exemplo se manifesta a trágica dialética da defasagem plenamente. Falta ao brasileiro a vivência da tendência, tanto na sua forma vitoriosa quanto na sua forma oposicionista, e tanto na sua forma revolucionária quanto na sua forma acomodada. Assim marxismo passa a ser para ele ou monstro mítico sangrento (que lembra com seu "materialismo ateu" o monstro ainda não vivenciado da burguesia européia do início do século) ou utopia paradisíaca (que lembra o marxismo romântico da juventude burguesa européia dos anos XX até a guerra espanhola). De forma que se aplica no Brasil a conhecida sentença: nada é mais terrível do que o marxista, a não ser o antimarxista. O outro lado da dialética é que o marxismo prega o apego à situação concreta, mas a situação concreta não pode ser captada, no Brasil, por categorias marxistas. Resumindo a dialética da defasagem, neste caso, pode ser dito que, para ser marxista no Brasil, é necessário deixar-se de ser marxista.
Os dois exemplos podem ser multiplicados em inúmeros campos e revelarão não apenas que a defasagem é resultado da falta de vivência, mas também da estrutura histórica da mensagem comunicada, inaplicável e não vivenciável em contexto brasileiro. Vale para modelos econômicos, sociais, culturais, artísticos, filosóficos e religiosos, inclusive para o catolicismo. A despeito da sua "catolicidade", trata-se de sistema informado pelo pensamento historicista judeu, comunica mensagem em "história sacra" e se transforma aqui em magia.
Entretanto, o exemplo do marxismo oferece a visão de uma possível ruptura da defasagem, ruptura essa que-está se dando em vários campos. O marxista brasileiro procura captar e alterar a situação brasileira com categorias marxistas e está condenado ao malogro, e que seja apenas por razão oferecida pelo próprio marxismo (já que este afirma dialética entre modelo e realidade na qual ambos se alteram, e no caso brasileiro o modelo se altera a ponto de deixar de ser marxista). Há outra atitude perante o marxismo, a de não engajar-se nele mas procurar absorvê-lo como informação importante para uma síntese em nível diferente. Tal ruptura da defasagem toma os elementos concretos da situação brasileira como base vivificada e acrescenta-lhe várias comunicações históricas para sintetizar os ingredientes em estrutura nova, e pode ser observada em muitos lugares da cena brasileira, especialmente na arte e literatura. Mas, antes de se falar nesse autêntico despertar de uma cultura brasileira, é preciso considerar um perigo latente. A diferença entre mistura e síntese e a predominância da mistura sobre a síntese no Brasil já foi mencionada. No presente contexto a mistura se manifesta na forma do eclectismo, e este não é ruptura da defasagem, mas defasagem violenta. Para oferecer apenas exemplos do ecletismo brasileiro em filosofia: positivismo mágico, análise lógica espírita, cabalismo marxista, zen catolicismo, vitalismo espinozista (o autor está pronto, sob desafio, a nomear os respectivos autores). É possível chamar-se tais ecletismos de loucuras, não no sentido estritamente clínico do termo, senão no sentido de evidência de alienação violenta de uma burguesia defasada. A tendência para o ecletismo se manifesta também na prontidão de aceitar o "mais novo" (no sentido de: último a ser comunicado) e tomá-lo como mais um retalho a ser acrescentado na colcha. Isto é: a prontidão de gritar o dernier cri com veemência maior é menos recalcada do que nos países históricos, já que aqui não se trata, como lá, de digeri-lo. Isto explica o aspecto aparentemente "moderno" e "avançado" que o Brasil oferece ao observador incauto. As cidades brasileiras parecem extremamente modernas, até que se descubra que são muito mais "velhas" do que as cidades européias, e depois que não tem idade, já que não têm história no sentido estrito do termo.
Embora ecletismo não seja ruptura da defasagem, mas defasagem violenta, há surpreendente abertura da mentalidade brasileira, abertura essa que, quando tornada consciente, pode passar a ser criativa e resultar em síntese verdadeira. Em Os sertões Euclides da Cunha descreve o esmagamento de um levante místico-messiânico por um exército técnico que funciona friamente, e sugere que o Brasil do futuro será síntese entre o elemento místico-messiânico e o elemento técnico frio. Desde Euclides da Cunha a situação brasileira se tornou mais complexa, a síntese deixou de ser tão simples, mas em compensação passou a ser muito mais rica em potencialidades. Desde então veio a onda imigratória da Europa e do Oriente próximo e extremo, o centro do país se deslocou rumo ao Sul em direção a São Paulo, e o proletariado se tornou numeroso a ponto de rivalizar com a população rural e deixar de ser classe privilegiada. Isto significa, do ponto de vista de uma possível síntese, que aumentou o número dos elementos a serem sintetizados. E que a síntese deve se dar em nível bem mais elevado do que o imaginado por Euclides da Cunha. Para ele, os elementos não históricos (mágicos-messiânicos) eram representados pela magia negra, o ritual índio e o sebastianismo português, mas a estes devem ser acrescentados agora outros, igualmente não históricos, mas em sentido radicalmente diferente. Por exemplo: shintoísmo, zen budismo, tai-chi, cozinha cantonesa.
Para ele, os elementos históricos (técnicos frios) eram representados pela cultura portuguesa, o positivismo francês, um pouco de idealismo alemão e pragmatismo americano, mas devem ser acrescentados agora numerosos outros elementos. Por exemplo, música napolitana, futurismo norte-americano, irridenta polonesa, ortodoxia russa, calvinismo holandês, ironia judia, misticismo espanhol, abstracionismo árabe e, como três elementos muito característicos: condottierismo industrial italiano, agricultura e arquitetura japonesa, e intelectualidade judia. É possível imaginar-se síntese tão complexa?
Não é preciso imaginá-la, se já está ocorrendo. Na Politécnica de São Paulo um professor judeu com alunos japoneses está elaborando projeto de física nuclear a ser realizado com métodos americanos por operários mulatos. Um arquiteto de origem alemã e outro de origem brasileira, junto com paisagista de origem judia, sob orientação de um presidente de origem tcheca, procuram uma nova capital de acordo com dois planos a serem sintetizados, e que está sendo realizado por operários de origem cabocla. Um pintor de origem italiana tornou-se portador da mensagem cabocla graças à técnica francesa; um pintor de origem judia sintetizou concretismo geométrico com abstracionismo, recorrendo a cores brasileiras; um pintor de origem japonesa usou técnica zen para um abstracionismo americano com cores igualmente brasileiras. Um poeta de origem árabe usou idiomatismos portugueses empregados por operários italianos para alcançar composições pseudocorânicas em concretismo americano; um poeta de origem grega conseguiu o mesmo concretismo graças a rítmica grega e métrica alemã em língua portuguesa; um poeta de origem brasileira em colaboração com um filólogo de origem judia traduziu Maiakovski para torná-lo modelo de poesia brasileira. Um propagandista de origem italiana usou técnica americana e teoria marxista para transformar propaganda comercial em canal de comunicação com a população rural, e um escritor de origem brasileira recorreu à língua do interior para enriquecê-la com elementos europeus para pô-la na boca de um caboclo que leu Plotino, conhece Heidegger e Camus e tem visão kafkiana do mundo. Um compositor de origem brasileira tomou estruturas bachianas, harmonias schoenbergianas, melodias portuguesas e ritmos africanos, e tal composição foi apresentada por regente de origem belga, cantora mulata e coro japonês perante um público entusiasmado de origem italiana. Tais exemplos podem ser continuados ad nauseam - provavelmente os mais complexos sequer foram mencionados.
Com que direito se afirma tratar-se nesses exemplos de sínteses e não de misturas? Para sustentar tal direito seria a rigor necessário analisar cada obra individual do ponto de vista estético, ontológico, para constatar a sua carga de informação (originalidade). Tarefa gigantesca a ser ainda realizada pela filosofia brasileira (uma das inúmeras tarefas que esperam por uma filosofia merecedora do nome). É de se recear que tal análise revelaria tratar-se, na maioria dos casos, de obras pouco originais e pouco importantes (embota certamente haja também obras importantíssimas entre elas). Mas isto não significaria que não se trata de ruptura da defasagem. Não tem sentido falar-se em tais obras como defasadas, já que não há fase histórica que espelhem. É claro: espelham aspectos de fases históricas (e às vezes o fazem de modo inepto e como mera cópia), mas todas contêm também elementos inexistentes nas culturas históricas, e neste sentido elementos "originais" para a cultura da humanidade. Se isto for verdade (e não é possível ver como se possa negar o fato), então estamos presenciando o despertar de uma nova cultura, isto é: a manifestação de uma nova personalidade cultural, a qual, embora amplamente irrigada por fontes históricas, tem estrutura própria não histórica, e embora possa ser personalidade ainda não bem articulada, é certamente tudo menos primitiva. E era isto que o presente capítulo visava a transmitir como essência da situação brasileira.
Do ponto de vista da defasagem, a situação brasileira no último terço do século XX se apresenta da seguinte forma: a grande massa da população, tanto rural quanto proletária, vive a-historicamente. A massa rural vive a-historicamente, no sentido de ter degenerado em segunda primitividade (se for permitida contradição), e estruturada por magia e ritual não inteiramente verdadeiros. A massa proletária vive a-historicamente, no sentido de ter perdido o contato com a história e a capacidade de pensar historicamente. Este fato não é desmentido pelo constante martelar da massa pelos meios de comunicação, já que tais meios transmitem mensagens não vivenciadas, nem pelo fato de estar a massa em grande parte determinada por métodos técnicos e por instrumentos técnicos (portanto históricos), já que tais métodos e instrumentos são vivenciados como estranhos à própria massa. A burguesia vive, no fundo, tão a-historicamente quanto o resto da população, embora não queira admiti-lo e embora uma série de ideologias dificulte para ela a descoberta desse fato. É igualmente incapaz de um pensamento autenticamente histórico, e as manifestações defasadas em sua cultura, política e economia o provam.
A isto a burguesia reage de duas maneiras: ideologicamente e autenticamente.
Quem observa o país pela superfície vê apenas as reações ideológicas, quer dizer, as tentativas desesperadas da burguesia de transplantar fases superadas (inclusive as recentíssimas) para a realidade brasileira. As tentativas são desesperadas, a burguesia não vivencia tais fases, ainda que as compreenda intelectualmente (também duvidoso, em muitos casos). Mas quem se engaja no país e procura ser "brasileiro no melhor dos casos" observa além disso uma ruptura da defasagem em muitos lugares, nos quais se articula uma identidade autêntica, na forma de uma cultura a-histórica que é síntese de elementos próprios e assimilados.
Ruptura da defasagem não é pois, como crêem os burgueses alienados, irrupção para dentro da história, pois esta própria irrupção é defasada. Dá-se (ou procura se dar) no momento exato no qual há tendências na própria história que visam romper a historicidade. Ruptura da defasagem é pelo contrário assumir consciente e decididamente a sua própria identidade não histórica, transformando-a criativamente, com abertura em cultura. Isto é: de forma tal que semelhante identidade altera a situação natural e social criativamente, para dar sentido à vida. Participar de tal empresa, oferecer a própria identidade para tanto, é engajamento no verdadeiro sentido do termo. Viver significa desprezar a morte e tirar-lhe o ferrão, portanto visar a imortalidade no imanente.
No caso: deixar a marca da sua própria identidade sobre uma cultura que desponta, e destarte imortalizar-se. Sobre uma cultura que, se realizada, contribuiria com uma nota específica e extraordinariamente original para a cultura humana.
5. Alienação
O conceito da alienação, elaborado por Hegel e transformado por Marx em um dos problemas centrais da atualidade revela, além dos aspectos ontológicos e epistemológicos originais, aspectos éticos, psicológicos e religiosos. Isto ocorre pelo pensamento histórico e tomado como que naturalmente por problema histórico, não apenas porque tal pensamento tende a tomar todos os problemas em sua historicidade, mas também porque se origina em sistemas historicizantes (embora o hegelianismo seja mais sistema especulativo debruçado sobre o passado, e o marxismo mais sistema revolucionário encarando o futuro).
Mas a alienação não é necessariamente assim historicizável, como o prova o existencialismo. No historicismo ela aparece como aspecto da contradição que propele todo processo e transforma toda história em história sacra. Vista a partir da origem, a alienação aparece como sistema da perda de um estar abrigado original no Ser (seja este Ser espírito absoluto ou Natureza), e vista escatologicamente como método, por superação, para a volta ao Ser abrigante. A situação atual da humanidade, caracterizada por alienação individual e coletiva, aparece como situação nefasta. Basta isto para mostrar que todo pensamento histórico tem base teológica, a saber, judia, e que o Ocidente continua basicamente cristão, não a despeito mas por causa do marxismo.
Isto sugere que a transmissão do marxismo para territórios extracristãos (como China e índia) resultará na transformação das suas categorias fundamentais, a alienação inclusive. O fato de o pensamento histórico ter estrutura judaico-cristã é aliás reconhecido por seus grandes opositores, como Nietzsche, Husserl, Heidegger, Wittgenstein e os estruturalistas, e isto explica porque sempre surgia para eles a questão do seu possível “humanismo” (leia-se “cristianismo”). Por isso também a afirmação da morte de Deus tem na boca de Nietzsche maior radicalidade que na boca de Hegel, pois, se for verdade que o pensamento brasileiro não é histórico, deve também ser verdade que aqui o problema da alienação se apresenta de forma radicalmente diversa pela qual se apresenta na Europa e nos Estados Unidos.
Embora isto seja generalização muito grande, não é provável que alguém queira contestar a afirmativa de que o brasileiro é alienado, desabrigado, exilado, e não habita, que se sente recusado, que a realidade lhe é difícil (ou qualquer que seja a formulação que se prefira). Um aroma de irrealidade, de sonho, de fata morgana, impregna aqui todos os fenômenos, e nada é sólido e definitivo. Um belo exemplo disto é a vivência das cidades, principalmente da maior, São Paulo. Aglomeração colossal que supera de longe, com seus subúrbios, os seis milhões de habitantes, espalha-se qual doença de pele ou câncer pela planície ondulante, abre com seus tentáculos chagas avermelhadas no mato verde escuro, e não obedece, nesse processo, a nenhum plano, mas a impulsos momentâneos, quais sejam: especulação imobiliária, instalação acidental de indústria, ou aglomeração igualmente acidental de imigrantes nordestinos. A conseqüência disto é que está surgindo uma formação que nem sequer merece ser chamada de “formação”, dada a sua pobreza de estrutura. Tal pobreza não lhe é externa, verificável apenas sob perspectiva de pássaro, mas lhe é geneticamente inerente. O exemplo São Paulo serve como ilustração introdutória ao problema da alienação brasileira.
Durante séculos não passava de cidadezinha interiorana com poucas dezenas de milhares de habitantes, ponto de partida das bandeiras e ligada ao seu porto, Santos, por caminho de mulas íngreme e difícil. Formava triângulo cuja hipotenusa ligava os mosteiros de São Francisco e São Bento, e cuja ponta apontava a Sé, como que para traduzir a contenda dos universais medievais em geografia. Depois da primeira, e mais ainda depois da segunda guerra, iniciou-se enorme aglomeração de imigrantes externos e internos que desprezavam o triângulo e enchiam vales e leitos de correntes de uma maneira que toma pálido o respectivo termo romano “plebe” para denominá-la. Para dentro de tal aglomeração se intrometiam em curvas aventurosas caminhos e ruas, seguidos com grande atraso de instalações de canalização, água, força e telefone, de forma tão mal sincronizada que o feito pela Companhia Telefônica era desfeito pelo Departamento de Águas e Esgotos. Isto resultou em caos infernal manifestado por transito desumano, meios de comunicação em colapso e pandemônio geral, e a Municipalidade decidiu tardiamente (quando dispunha de capital para tanto) impor uma certa ordem. A ordem tomou o aspecto de quarteirões demolidos, viadutos em construção, abismos abertos na espera de uma futura comunicação subterrânea, e avenidas largas sem casas.
Tudo isto acompanhado de barulho intolerável, atmosfera irrespirável e frio insuportável. Ninguém, e menos ainda o paulistano, consegue orientar-se em tal situação caótica, já que o trajeto entre morada e lugar de trabalho deve ser literalmente redescoberto de mês em mês, os ônibus mudam de rota mensalmente, lojas e repartições desaparecem para reaparecerem de surpresa em lugar inadivinhável, bairros bem conhecidos desaparecem para dar lugar a desconhecidos, e o centro (se é que tal coisa existe) é tomado de fissão nuclear que faz aparecer pequenos centros em lugar que não fazem sequer parte da cidade. “Se habitar” tem a ver com habituar-se, ninguém habita São Paulo, e a engrenagem toda tem nítido ar de irrealidade do tipo “pesadelo”.
Cidades européias (e americanas) passaram no fim do século XIX por expansão semelhante, como Paris, Viena e Berlim, mas sempre conseguiram conservar um núcleo e dar estrutura e apoio aos habitantes. A Ile de la Cité, a catedral de Estevão, a Igreja Andacht garantiram, pela sua permanência, uma atmosfera humana, razão porque a última foi conservada até em ruínas. E o mesmo pode ser afirmado de Roma e Londres, Nova Iorque e Boston, e até (embora problematicamente) de Los Angeles e Chicago. Mas o paulistano não tem apoio, nem sequer um rio, é estranho na cidade que estranha não consegue formar elos humanos com vizinhos e coisas, e, para exagerar um pouco, não ficaria muito surpreso ao constatar de manhã que a cidade desapareceu na noite precedente.
O exemplo São Paulo é extremo, mas não demasiadamente extremo, já que aglomera nas redondezas uns 10% da população brasileira, já que se torna sempre mais decisivo para o Brasil todo. Há outras cidades de alienação comparável, e a alienação das cidades pequenas, embora diferente, é igualmente acentuada. O exemplo sugere a diferença entre a alienação européia e americana e a alienação brasileira. Nos países históricos o homem se alienou da realidade e de si próprio, porque se perdeu para um aparelho transumano industrial, cultural e administrativo, tornando-se roda de engrenagem que funciona sempre mais eficientemente. A sua transformação em funcionário, e as conseqüências ontológicas, éticas, estéticas e religiosas decorrentes disto foram exaustivamente analisadas por pensadores europeus e americanos e não precisam ser discutidas. O brasileiro alienou-se da sua realidade e de si próprio porque não conseguiu firmar-se e abrigar-se em nada, porque não é tomado de movimento histórico, qual grão de poeira de movimento browniano, e porque carece de fundamento. Uma é alienação enquadrada (sensação de estar preso), a outra alienação exilada (sensação de ter sido expulso), e ambas se manifestam de forma diferente, embora às vezes convergente.
A alienação do caboclo é de difícil análise, já que carecemos de categorias para captá-la. Não há dúvida, no entanto, que existe. Trata-se de pessoas de tal forma alienadas que não apenas não conseguem relacionar-se com seus próprios ritos e magias, mas nem sequer com o seu clima. Ao contrário do índio, cuja alienação é perfeitamente adaptada ao ambiente, é a alimentação do caboclo inteiramente inapropriada (feijão, mandioca, carne seca), para não falar na total incapacidade do caboclo em assumir-se em sua situação social, econômica e cultural real, coisa que garante a impossibilidade de uma verdadeira revolução (a despeito dos esforços insinceros de uma burguesia alienada que desejaria empurrar o caboclo nesta direção). Mas continua verdade que a compreensão profunda de tal alienação é inacessível, e não será ensaiada. Este capítulo restringirá sua atenção à alienação do proletariado e da burguesia.
O proletário e o subproletário, isto é, o caboclo urbanizado, vivem em situação superficialmente semelhante à do proletário europeu e americano, isto é: em função de aparelhos. Isto cria uma dificuldade de compreensão inversa à da dificuldade com relação ao caboclo. Lá carecem de categorias, aqui dispomos de categorias aparentemente aplicáveis, mas na realidade inaplicáveis. Querer chamar o caboclo de “camponês” ou “trabalhador rural” ou “servo” é óbvia impossibilidade. Mas querer chamar o proletário de “não-especializado” ou “contramestre” ou “de colarinho branco” parece indicado. Somente depois de contato mais íntimo verifica-se a distorção dessas categorias no caso brasileiro. As categorias transpostas de contextos históricos sofrem defasagem e passam não a explicar mas a encobrir a realidade. É pois necessário primeiro discutir porque se adaptam aparentemente e, depois, porque não se adaptam realmente.
Tal qual o proletário histórico vive o brasileiro em função de aparelhos de complexidade crescente, composto de máquinas, instituições e meios de comunicação mais ou menos sincronizados, aparelhos que há muito não têm dono autêntico e que obedecem decisões inteiramente inacessíveis para o proletário (tais decisões se automatizam de tal forma que até o burguês tem dificuldade em acompanhá-las). O proletário ignora o projeto de acordo com o qual ele próprio transforma natureza em cultura, raras vezes vê o produto do seu trabalho, mais raras vezes ainda passa a possuí-lo, e se o vê não capta nem sua função nem sua finalidade. De forma que o proletário dá um sentido à natureza que não é o seu próprio sentido, e a sua vida carece pois de sentido. As coisas que o cercam, e das quais aparentemente se serve, na realidade o condicionam, e os instrumentos que aparentemente escolhe na realidade lhe foram impostos. Estes fatores alienam o proletário do seu trabalho, do seu mundo e de si próprio, e isto tem sido discutido amplamente na Europa e nos Estados Unidos. Parece adaptar-se perfeitamente à situação brasileira.
Na realidade não se adapta, porque o proletário brasileiro se distingue do histórico no fundamento. Serão mencionados uns poucos fatores da diferença. Os projetos que aqui transformam a natureza em cultura são de procedência preponderantemente externa, e não provêm do próprio aparelho. As decisões sobre o aparelho são tomadas em grande parte alhures. Partes do aparelho são trazidas de fora, em forma física, ou modelar, ou de capital, e parte do resultado é eliminado em forma de royalty, ou lucro. O governo participa de maneira crescente na administração do aparelho, mas não como os governos históricos, que o fazem, em tese, para representarem o proletário, mas sim para tentar eliminar decisões externas. Trata-se pois não de “socialização”, mas de "nacionalização”, como se diz aqui excepcionalmente de forma correta (excepcionalmente, porque em geral reina uma tendência para o double-talk oficial encobrir a realidade). Esta é uma espécie de diferença.
O proletário dos países históricos luta há quase dois séculos contra a burguesia, e tornou-se, no curso da luta, parcialmente consciente da sua situação verdadeira. Embora a sua alienação persista, encontrou certas formas (sindicatos, partidos políticos, cooperativas de consumo) que articulam de alguma maneira a sua identidade. Um dos problemas dos países neocapitalistas é o esvaziamento dessas formas pelo aburguesamento do proletariado (para não falar nos problemas ainda mais nefastos que estão surgindo, neste sentido, nos países socialistas). Até aquela curiosa mistura de pequena burguesia em decadência e subproletariado que é o fascismo embora procure encobrir a realidade, contribuiu negativamente para despertar o proletariado. Mas no Brasil todas estas formas foram importadas em forma ideologizada e defasada pela própria burguesia, impostas de cima para baixo sobre o proletariado, para depois serem parcialmente retiradas sem protesto por parte do proletariado. A consequência é que o proletário não se assume proletário, portanto não é proletário em sentido subjetivo, mas se assume pequeno-burguês (em certo sentido o é efetivamente, se comparado com o caboclo), aceitando ideologias burguesas com facilidade muito maior que o proletário verdadeiro. Não pode ser captado, portanto, por categorias provenientes de fora. Para dar um único exemplo: família e propriedade lhe dizem respeito ainda menos que ao proletário histórico, já que têm menos tradição familiar e já têm muito menos propriedade. Mas a despeito disto empenha-se em construir casa para sua família (embora a pague em prestações que objetivamente equivalem a servidão, e embora a casa possa ruir antes da última prestação), e o faz gostosamente, já que visa, qual burguês, status. Esta é a segunda espécie de diferenças.
O Brasil vive, há uma geração, em economia inflada. Isto equivale, obviamente, à tributação mascarada do proletário (embora se possa argumentar que no Brasil o proletário forma classe privilegiada, e que a tributação beneficia o caboclo). Em todo caso a inflação representa véu ideologizante que contribui para encobrir a realidade. Um dos elementos desalienadores nos países históricos é o ordenado, já que mede objetivamente a situação real de assalariado. Tal medida objetiva aqui não existe, e o salário aumenta sempre para criar a ilusão do “avanço” do proletário rumo à burguesia. E esta é a terceira espécie de diferença.
Se o exposto for mais ou menos correto, as categorias ocidentais para captar a situação do proletariado, sejam liberais ou marxistas, aqui não podem ser aplicadas sem grave risco de falsificação da realidade. Trata-se, no caso do proletário brasileiro, de um homem tão afastado de si mesmo e do seu mundo que sua alienação se manifesta, não como claustrofobia (como nos países históricos), mas como agorafobia. E tal fobia se manifesta em forma de fugas que são basicamente diferentes da clássica alienação européia e americana. As fugas resultam em choques com a realidade, mas tais choques devem ser interpretados também de forma diferente. As fugas são mais óbvias que os choques, por serem públicas, e os choques privados. Serão discutidas três formas de fuga — o futebol, a loteria e o carnaval –, por serem excepcionalmente significativas. Depois será considerado brevemente o choque. Não se considerará a fuga clássica, a religião (embora seja ela sumamente interessante, com a adoração mágica de Nossa Senhora Aparecida, com o curandeirismo e o espiritismo), porque a inflação é ópio do povo de grau suficientemente forte.
Do ponto de vista histórico, seria fácil dizer que o futebol no Brasil é o equivalente do circo romano, com a diferença de que lá ofereciam circo e pão, e aqui futebol apenas. Tal ponto de vista insistiria no fato de ser o futebol instituição importada e financiada pela burguesia a fim de dirigir energias para canais inofencivos e até sustentadores da situação, como prova o campeonato mundial recente. Seria fácil se argumentar isto, mas então se perderia a essência do fenômeno a ser evidenciado. O ponto essencial é que o futebol é muito bem estruturado, com acontecimentos previsíveis, com participação emocional violenta, mas sem engajamento nem risco. Faz parte de um mundo autônomo, mas com pontos de contato suficientes com o outro mundo para permitir projeção de frustrações e sua sublimação. Trata-se de um mundo consistente e permanente que rivaliza com vantagem, nestes aspectos, com o primeiro. Mundo hierárquico (clubes formam regiões, regiões países, países um universo), que permite valoração, portanto ética e regras de comportamento; mundo no qual os atores são profissionais (portanto assalariados pagos), que portanto não passam de objetos manipuláveis, até quando transformados em ídolos e mitos (como deuses do paganismo). Tudo isto permite ao proletário que foge para tal mundo e nele se abriga estabelecer laços concretamente humanos com o seu próximo – laços de conhecimento, emoção e valores. Com efeito: permite estabelecer esses laços com intensidade e autenticidade não alcançável em não importa que outro mundo. Laços que não se restringem, em sua autenticidade, apenas a este mundo, mas extravazam, como o prova o fato de o governador de São Paulo ter sido nomeado não apenas por ser banqueiro, mas também por ser presidente de um dos clubes. O quanto tal mundo invade os outros, o campeonato mundial recente o demonstra.
Do ponto de vista histórico pode ser argumentado que a onda de entusiasmo popular que o campeonato provocou manifesta manipulação e organização deliberada de cima, mas não se captaria o fato. Trata-se de uma onda espontânea que rompeu as fronteiras do futebol para se alastrar pela cena inteira. O termo “euforia” é ultimamente empregado com sentido positivo (não se sabe bem como). Pois no caso se tratava de euforia no verdadeiro sentido do terno, a saber: capacidade de suportar bem um fardo pesado. E se a felicidade tem a ver com suportar bem a realidade, aqui se põe um problema ontológico da primeira ordem, e muito significativo para a compreensão da essência brasileira. Merece ser discutido levemente.
O futebol brasileiro (e de outros países não-históricos) é ontologicamente diferente do futebol europeu. Lá não passa de fuga alienada aberta ao proletariado. Aqui serve de canal para relação autêntica intra-humana. Lá faz esquecer uma dura realidade. Aqui é realidade (aconteceu uma guerra de futebol na América central no passado recente). Isto prova que o termo alienação é termo relativo, aspecto este óbvio no Brasil, e encoberto na Europa. Alienação tem significado relativo à realidade, e estar alienado significa estar separado da realidade. Pois a realidade não é problema concreto na Europa (embora seja problema especulativo), porque há consenso quanto à realidade: o processo histórico objetivo. Não se quer negar com isto que tal consenso ameaça ruir atualmente, graças à alienações violentas do tipo LSD e hippie, que tornam concretamente duvidosa a fronteira entre história e vivência privada. Mas o consenso ainda persiste precariamente. No Brasil a realidade é problema concreto (embora talvez não seja problema especulativo). Se o proletário se realiza existencialmente no futebol, de forma que tal realização extravase as fronteiras do futebol e invada todos os campos e dê sentido à sua vida, como negar-lhe realidade? E como falar em alienação no caso? Mais adequado ao fenômeno seria dizer o seguinte: a alienação que propele o proletário rumo ao futebol dá um salto qualitativo e resulta em verdadeiro engajamento. Por este salto o proletário abandona uma realidade para descobrir nova realidade, a realidade do futebol, pelo menos tão real quanto a abandonada. Pelo menos tão real, porque é nela que o proletário pode persue happiness, vale dizer, buscar a felicidade. E trata-se, no caso do futebol, de uma realidade no jogo.
De modo que o salto dialeticamente qualitativo de alienação em engajamento resulta em nova forma de vida real, a saber: vida real no jogo. É verdade, o jogo em questão é relativamente simples e pouco elaborado, e a vida nele portanto relativamente pobre. Outros jogos há que permitem vida muito mais rica. Não importa. O que importa é que está surgindo no Brasil um autêntico, espontâneo, não-deliberado homo ludens. Um homem que trocou a realidade social e econômica por outra, igualmente real, mas de estrutura e de vivência inteiramente diferente. Que significa “novo” homem senão homem que vive em realidade diferente do “velho”? Um homem não mais condicionado por economia, para falarmos marxisticamente. Um homem para o qual arte é melhor que verdade, para falarmos niestzscheanamente (aliás, o parentesco entre Marx e Nietzsche está se tornando sempre mais patente). De modo que é possível afirmar-se que no Brasil se dá um processo (não apenas no futebol, mas também nele) no qual, por alienação de uma realidade esgotada, é descoberta outra: a realidade do jogo. É um dos sentidos da afirmação de que no Brasil está surgindo um novo homem. E é um dos sentidos da afirmação que a alienação é no Brasil fenômeno incomparável com a alienação europeia e americana.
Há muito há loteria no Brasil, por exemplo o jogo do bicho, e este teria semelhança com o Totó italiano tanto quanto o futebol brasileiro com o italiano. Recentemente, o governo instituiu uma loteria esportiva que liga estruturalmente, de forma genial, o jogo da loteria com o jogo do futebol. Trata-se de um apostar sobre resultados de jogos de futebol, cujo principal ganhador é o próprio governo. Quem argumenta historicamente diria que se trata pois de um imposto sobre a alienação, cobrado pelo governo. Mas tal argumento perde, como no caso do futebol, a essência do fenômeno a ser descoberta. O essencial é que em numerosos lugares das cidades brasileiras estão surgindo lojas, na frente das quais se formam longas filas de operários (homens, mulheres e crianças), que esperam a vez de fazer apostas. Um observador ingênuo poderia concluir, dada a pobreza dos que esperam, que se trata de filas de pão ou de racionamento. Seria erro crer que essa gente aposta porque espera ganhar, pelo contrário, não espera ganhar — mas quer deixar o ganho no terreno do inesperado, portanto da esperança. O sacrifício da espera na fila é sacrifício ritual, e tem o caráter de um rito. Porque o jogo dá ritmo e significado à vida. O proletário vive doravante de semana para semana, no sentido de viver de tiragem para tiragem, porque toda semana doravante traz nova aventura. Viver passa a ser esperar (em português, muito característicamente, wait e hope são o mesmo verbo), e portanto passa a ler clima religioso. E isto prova que se deu no caso da loteria o mesmo salto qualitativo de alienacão para engajamento que foi observado no futebol, a saber: alienação passa a ser, dialeticamente, descoberta de nova realidade. De realidade, no caso, também de jogo, mas em nível mais elevado. Porque a participação na loteria envolve risco, logo, cria clima de engajamento imediato, e porque a loteria combina, enquanto jogo, o elemento de previsibilidade com o elemento do acaso. O homo ludens se realiza de maneira um pouco mais sofisticada no caso da loteria.
O carnaval tem sido comentado muitas vezes de vários ângulos, na maioria das vezes daquele pomo de vista paternalístico que caracteriza as pesquisas "objetivas" dos fenômenos erótico-exóticos brasileiros por parte dos cientistas europeus e americanos. Com efeito, trata-se de fenômeno complexo que sintetiza, entre outros elementos, ritos africanos com elementos da commedia dell´arte veneziana. Embora atualmente em aparente decadência, abriga muita tendência viva inaproveitada por uma cultura que queira assumir-se verdadeiramente brasileira. É caracterizado por improvisação dentro da estrutura dada, por "abertura" (no sentido de Eco), por espontaneidade, e por engajamento no jogo (embora se diga "brincar" e não "jogar", no caso). Trata-se de happening em sentido muito mais radical do termo que nos países históricos, e supera de longe não importa que Living Theater ou psicodrama. No presente contexto será considerado exclusivamente do ponto de vista da alienação.
Quatro dias representam, para grande parte do proletariado (especialmente, mas não exclusivamente, negro e mulato) uma epokhé que põe, graça a gestos e máscaras, o resto do ano entre parênteses, de forma que desapareça existencialmente. Surge novo mundo vital que transforma ruas em palcos, automóveis em carruagens, vendedoras em bacantes, mecânicos em príncipes, carregadores em acrobatas, e a vida em orgia. Tal fantástico reino de Momo não é, como parece ser para uma análise historicista, um terreno de fuga alienada que visa fazer esquecer a realidade mas é, pelo contrário, um recorte festivo no tempo (temenos) que dá sentido ao ano. O ano todo tem o sentido de preparação do carnaval que vem e de rememoração do carnaval passado. As preparações envolvem o ano todo na forma do inventar e realizar fantasias, do compor, ensaiar e comparar sambas, do propor e elaborar temas carnavalescos, do projetar passos e elevá-los a níveis de perfeição acrobática, e do investir capital econômico e sentimental no carnaval vindouro. Para o pensamento histórico o fenômeno se torna mais acessível se for comparado com o sábado judeu. Ambos são rupturas festivas do cotidiano, rupturas periódicas que dão sentido sacral ao profano. Mas as semelhanças são menos interessantes que as diferenças. O sábado é irrupção do eterno na história, e a princesa Sábado é santa no sentido transcendental no qual Deus é santo. E o carnaval é uma suspensão não-histórica de um cotidiano igualmente não histórico, e é sacro no sentido imanente da hierofania do corpo. É “jogo” em sentido religioso: encenação do sacro no imanente, portanto paganismo, no entender de Otto.
Sob análise historicista o carnaval é alienação radical, porque afasta da realidade econômica e social e mergulha em vertigem coletiva na qual os homens se esquecem de tudo. Mas tal análise perde a essência do fenômeno a ser desencoberta. Porque o essencial é que no carnaval os homens não se esquecem da realidade, senão se descobrem a si mesmos e descobrem a realidade profunda não histórica que os sustenta, passando a viver nela. Passam a ser autenticamente, a saber: passam a ser atores em mundo absurdo e dar sentido ao absurdo, como pretendia Camus ao tratar do ator, apenas em sentido muito mais radical que o camusiano. O salto de alienação em engajamento resulta, no caso do carnaval, em desalienação, por redescoberta de fundamental realidade, a saber: realidade sacral e portanto religiosa. Está surgindo, no carnaval, o jogo sacro, portanto o homo ludens no sentido mais fundamental deste termo. Um "novo" homem, porque o carnaval, sendo síntese de elementos inclusive históricos, não é primitivo. Uma fenomenologia do carnaval ainda está por ser feita. Eis mais uma tarefa para uma filosofia verdadeiramente brasileira.
Outras fugas alienadas do proletariado brasileiro poderiam facilmente ser oferecidas, algumas fascinantes como a televisão, o rádio portátil e as revistas ilustradas, e a análise revelaria, em todos os casos, tratar-se de alienação inteiramente diferente da do proletariado europeu e americano. Sempre poderia ser apontado o salto qualitativo para engajamento, porque a realidade da qual o proletário brasileiro se aliena não é "a realidade", mas uma realidade. O proletário nunca vive para o seu trabalho e sua situação econômica, social e política, mas sempre vive, fundamentalmente, para o jogo. Se "felicidade" significa abrigo na realidade, então o brasileiro a busca em outra realidade. Aliás, também na Europa e nos Estados Unidos começa a despertar a consciência de que a felicidade não está necessariamente ligada ao processo histórico, e que o progresso não traz necessariamente aumento de felicidade. Isto explica porque, no rosto do proletário brasileiro alienado e miserável, aparece um sorriso feliz muito mais prontamente do que no rosto do proletário aburguesado do Ocidente.
O que não implica a negação do choque que esta gente sofre quando se vê forçada a voltar do jogo para a economia. Todo carnaval é seguido de quarta-feira de cinzas. As cinzas que se depositam sobre os ombros do proletariado assumem a forma da mortalidade infantil, das condições desumanas de habitação e transporte, dos hospitais superlotados com falta de médicos, do sistema jurídico moroso e indiferente, e em geral na forma de um abandono por parte do aparelho administrativo ineficiente e displicente. Só que isto não prova, como diria o pensamento historicista, que no final das contas a economia é a "realidade". Prova apenas que o homem, sendo, entre outras coisas, mamífero, não pode ser feliz se não forem satisfeitas as necessidades básicas fisiológicas, e que, não satisfeitas tais necessidades, não tem sentido falar-se em dignidade humana. Mas, não sendo apenas mamífero, a sua dignidade não reside apenas na economia. O fato é este: o proletário brasileiro tende a buscar sua felicidade no jogo antes de ter satisfeitas as suas necessidades básicas, e isto problematiza o processo todo. Uma vez satisfeitas tais necessidades (podem sê-lo apenas aplicando os métodos da tecnologia histórica), poderá passar a viver autenticamente no jogo e para o jogo, isto é, ser autenticamente "novo homem".
Eis pois a conclusão a ser tirada da alienação do proletariado: vive inteiramente alienado de si mesmo e de seu mundo enquanto trabalha, e tal mundo nem sequer consegue satisfazer as necessidades básicas de mamífero humano. Mas a despeito disto consegue realizar-se, por fuga que vira dialeticamente autodescoberta, na realidade dos jogos. Se não for satisfeita a necessidade básica, tal realização continuará pseudo-realização; mas, se for satisfeita, poderá vir a constituir a base para um novo homem. O perigo é este: se forem aplicados modelos ocidentais para forçar o progresso econômico (inevitáveis no presente estágio, mas perniciosos em estágio seguinte), o proletariado pode perfeitamente perder sua capacidade lúdica e passar para uma alienação histórica, com toda a infelicidade que isto acarreta, e da qual o Japão atual é exemplo. As recomendações de Hermann Kahn neste sentido devem ser tomadas muito a sério, embora lidas de trás para frente. São estas as alternativas que se oferecem atualmente: ou serão satisfeitas as necessidades básicas por métodos tecnológicos enquanto métodos, não metas, e surgirá o novo homem, ou serão satisfeitas tais necessidades e criadas outras em nível econômico mais elevado, por terem os métodos tecnológicos sido aplicados enquanto metas, e surgirá uma cópia atrasada e mímica do proletariado europeu e americano – só que uma cópia infeliz, por se haver perdido a essência brasileira.
Um aspecto da alienação burguesa, o da defasagem, foi tema do capítulo precedente. Não é o único, no entanto (embora possivelmente o mais nefasto). Esta parte procurará, em primeiro lugar, apresentar alguns outros, e depois apontar alguns sintomas de sua ruptura. A dificuldade aqui é inteiramente diversa das dificuldades no caso do caboclo e proletariado. É esta: o próprio autor faz parte da burguesia.
Três aspectos devem ser distinguidos: o que o burguês afirma ser, o que é, e o que pode vir a ser (e, em certos casos, já é). No primeiro aspecto é preciso distinguir entre burguês culto e pequena burguesia. O burguês culto afirma ser algo sem realmente assumir-se assim (como prova o sorriso sínico que acompanha a afirmativa). O pequeno burguês não afirma muito consistentemente o seu ser, mas assume a afirmativa do burguês culto. O que o burguês diz que é pode assim ser formulado: é elite decisiva de uma sociedade jovem, enérgica e em pleno desenvolvimento. Tal sociedade começa a romper as algemas seculares da miséria e ignorância (impostas sobre ela imperialisticamente), e abrir seu território imenso à cultura e ao progresso. Toma posse desse território (integra-o a fim de não entregá-lo), se um mundo invejoso pretende roubá-lo, e passa a elevar sua voz altiva no coro admirado das nações como voz da primeira civilização poderosa tropical e latina. Passa portanto tal sociedade a assumir o papel que o destino lhe reserva. Com entusiasmo e energia incomparáveis já deu os primeiros passos decisivos em direção da nobre meta: represas e barragens fornecem eletricidade em abundancia, uma nova capital arranca a população da costa e transplanta o centro para o interior, estradas estão sendo abertas em terreno há pouco habitado por tribos primitivas, surgiram indústria pesadas, siderúrgicas, fábricas de automóveis, complexos mecânicos e químicos e o país se tornou praticamente independente de importação de matéria-prima, produtos manufaturados passam a ser exportados, o país está sendo coberto por rede de estradas asfaltadas, o analfabetismo está sendo combatido, universidades estão surgindo até cm cidades interioranas, a higiene faz diminuir a taxa da mortalidade sem diminuir a da natalidade, de forma que o número majestoso de 100 milhões de habitantes será alcançado em breve, as metrópoles do tipo São Paulo e Rio, Belo Horizonte e Porto Alegre, levantam seus tentáculos rumo ao céu, e em todos os cantos do país é possível sentir-se a musculatura do gigante que desperta. Tal milagre brasileiro provoca admiração e inveja universal, e o mundo não quer admitir o fato óbvio, criticando maliciosamente os pequenos defeitos em vias de serem superados que ainda persistem. Especialmente o estrangeiro que aqui está tende a criticar assim destrutivamente, portanto: "Brasil, ame-o ou deixe-o". O verdadeiro brasileiro, no entanto, sente a euforia de um povo prestes a assumir seu destino e está pronto a provar, mediante esforço construtivo, ao estrangeiro (especialmente ao americano), de que feito é capaz uma sociedade jovem que se assumiu. Até o campo revolucionário, embora lamente os erros atuais, concorda com tal visão, e até as lutas intestinas da burguesia provam a sua maturidade. Quem, em tal situação, não se engajaria com entusiasmo, e quem não concederia a tal situação toda confiança e todo esforço?
Pois o primeiro a não fazê-lo é o próprio burguês brasileiro. Não tem confiança no futuro, receia o futuro e sente saudade do passado. Não se esforça em prol do país, mas em prol da família e de si mesmo. Como poderia ser diferente, já que o burguês (como todo burguês) é razoável? A despeito do progresso econômico gigantesco, a renda per capita não ultrapassou os US$ 400 e, embora a renda nacional aumente em mais de 8% por ano, também aumenta a população à razão dos 8%, de modo que a renda aumenta uns US$ 20 por ano, por brasileiro. O Brasil continua miserável e será miserável, no futuro previsível. Embora as construções sejam gigantescas, igualmente gigantesco é o país e a sua vacuidade, e foram compradas pelo preço de uma inflação que persiste há 25 anos. Embora a educação se acelere geometricamente, o abismo que a separa do Ocidente aumenta em termos absolutos, de forma que economia, tecnologia, cultura e ciência se tornam sempre mais dependentes de modelos e decisões estrangeiras. Especialmente o burguês, em posição decisiva em todos estes campos e no governo, sente-o diariamente no próprio corpo.
Mas o pior não é isto. Se porventura o progresso conseguir efetivamente levantar o nível do povo de maneira significativa e arrancá-lo da letargia, a posição da burguesia estaria minada, e os primeiros que correriam perigo seriam exatamente os burgueses progressistas. Este perigo sempre acompanhava sotto voce uma burguesia escravocrata do século XIX, e agora apenas assume nova intensidade. Mas há outro, mais iminente. A posição da burguesia depende da posição da burguesia ocidental (a qual pretende desprezar), de modo que se esta estiver periclitando, desapareceria a brasileira (como desapareceu a chinesa). O pequeno burguês tem apenas vagas noções do perigo em momentos fugazes (como na leitura dos acontecimentos chilenos ou peruanos), e sufoca a angústia com argumentos tipicamente ideológicos, como: nunca é tão grave quanto se receia, ou: aqui não acontecerá por nunca ter acontecido. Mas o burguês culto sabe perfeitamente de tudo isto, embora não o queira admitir e embora não aja de acordo (por inércia burguesa, e pela dificuldade de dissipar ilusões), mas há noites nas quais ele não dorme. Porque o que o burguês é, na realidade, pode assim ser descrito: deve a sua posição de elite muito raramente à própria competência, mas ao dinheiro dos pais, à manipulação de uma economia inflada, à amizade, e principalmente à incompetência dos outros. Visa em todas as atividades a lucro imediato, e tem na economia confiança menor que os capitalistas estrangeiros que aqui investem. Isto explica porque todas as empresas de renda baixa e demorada devam ser empreendidas pelo governo, e explica também a crescente participação governamental na economia. Trabalha muito e intensamente (mais que o burguês europeu e americano), e a corrida americana atrás do dinheiro não mais caracteriza Nova Iorque e Chicago, mas São Paulo e Beto Horizonte.
Embora trabalhe muito, não visa a construir (embora o faça), mas lucro rápido, e, se for assalariado, visa a aposentar-se para passar a ganhar em novo emprego. Tal ideal de aposentadoria (especialmente em cargos públicos), que não pretende descanso mas lucro, é tipicamente brasileiro. Se for da burguesia alta, especula com tudo, na Bolsa, com terrenos, aluguéis, mercadorias e produtos agrícolas (e o fazendeiro não é camponês, senão especulante com café, algodão e milho). Se tiver profissão liberal especula com sua fama e seu tempo e, ser for acadêmico, exerce além do ensino duas ou três profissões para lucrar rapidamente. Troca de profissão com facilidade, e tudo para ele é vendável e comprável, já que em nada se firma. Quer ter fortuna antes que a catástrofe chegue.
Há uma geração nova na alta burguesia que se distingue da acima esboçada. São tecnocratas, administradores e managers, educados no estrangeiro, que visam friamente a manipular a sociedade e imprimir sobre ela os esquemas científicos e isentos de valores (Wertfrei), e estes não são brasileiros no sentido estrito do termo, já que a rigor não são homens (não tendo valores). São fenômenos da auto coisificação (funcionários) que caracterizam a atualidade em toda parte, e neles o resto da burguesia investe a esperança para contornar a catástrofe ameaçadora. E eles, por sua vez, desprezam a burguesia brasileira.
O burguês procura esconder para si uma situação intolerável, e o patriotismo descrito é uma das maneiras de fuga. É preciso admitir que tal patriotismo ainda não alcançou (e quiçá não alcançará) a virulência do patriotismo europeu entre as guerras. Dada a defasagem, corresponde aproximadamente ao patriotismo europeu antes da primeira guerra (tanto da direita, quanto da esquerda). É perfeitamente possível que a abertura e cordialidade brasileiras consigam superar o patriotismo, mas é necessário registrá-lo.
Todavia, há métodos mais elegantes de fuga. A Igreja fornece excelentes exemplos. Não que o burguês tenha problemas teológicos e por isso busque a Igreja, nem que se refugie nas igrejas, nem que se refugie nas igrejas ou na prece para conjurar um perigo. Na verdade, a Igreja é parte da tradição do país sustenta família, propriedade e posição, mas as conversas cristãs não passam de parafernália. No ano de 1964 as damas de São Paulo, com maciça assistência burguesa, organizaram passeata de solidariedade com Deus contra o marxismo ateu. Pois é importantíssimo observar como tal alienação tipo “catolicismo à la Pétain” vira, propor salto qualitativo, engajamento verdadeiro (como no caso do proletariado). Perante os olhos atônitos da burguesia estão surgindo jovens burgueses que fazem do seu cristianismo escândalo, em conseqüência, cristianismo no verdadeiro sentido do termo. Estão prontos para sofrer em testemunho do Cristo. Tais mártires podem ter importância radical não apenas para uma cultura brasileira a ser criada, as para o cristianismo no mundo, injetando nele uma dose brasileira. Possivelmente estejam surgindo os primeiros santos brasileiros, e isto seria mais importante que o primeiro prêmio Nobel (até quando se trata de prêmio para sacerdote que prega para televisões européias).
Outra fuga elegante é em direção da sabedoria do Oriente. Obviamente é importação ocidental, nada tem a ver com oriente, mas com os discursos da Vivekaananda, das mil ilhas norte-americanas, e com os hippies. As damas que cercam gurus carismáticos (chamem-se ou não de gurus) são tão ridículas quanto as londrinas e as californianas. Mas neste terreno também pode dar-se o salto qualitativo, por duas razões diferentes. Uma tem a ver com o fato de a mentalidade brasileira ser autenticamente mágico-mística, propensa para uma vivência verdadeiramente mística do mundo, e que pode articular-se inclusive em canal tão pretenso quanto o é tal orientalismo. A outra tem a ver com o fato de existirem no Brasil verdadeiros pensadores orientais, imigrados do Japão e da China, e que podem entrar em contato com esta burguesia alienada. Dados estes dois fatos, a cultura brasileira pode, efetivamente, por salto de alienação para engajamento, absorver elementos orientais e sintetizá-los com os elementos não-históricos dormentes na essência brasileira. Sintomas que apontam para isto podem ser vivenciados principalmente nas artes e na literatura. Assim, o que é mera alienação nos países históricos, pode aqui vir a produzir nova realidade, e a filosofia brasileira tem campo vasto para explorar tal fato.
O burguês, tal qual o proletário, na medida em que for verdadeiramente brasileiro, tende para o jogo. A sua tendência aventureira tem caráter lúdico, que se articula não apenas na Bolsa, mas nas apostas em corridas, em jogos de baralho e na sua saudade pelos cassinos perdidos. Mas como todo burguês, também o brasileiro é sério (no sentido pejorativo do termo) e tende a sê-lo mais, de forma que a abertura lúdica é mais característica do proletariado. A alienação mais importante, no entanto, e a mais promissora para o futuro, é a tendência da burguesia para a fuga na direção da "cultura". Obviamente é mimética e importada (como aliás tudo na burguesia ideologizada), e assume a forma clássica das filhas da boa sociedade que estudam matérias nobres (inúteis), e assim aumentam o número dos estudantes universitários, lotando as faculdades humanísticas e semelhantes. Assume também a forma de grupos de estudos, a forma de poetisas e pintoras aos milhares (esposas e filhas de industriais um tanto prosaicos), e em geral a forma vitoriana das moças educadas que tocam piano. Mas aqui é preciso intercalar um dedicado à mulher burguesa.
A família burguesa espelhava a vitoriana até a última guerra pelo menos quanto à posição da mulher nela. Pois isto mudou radicalmente. Está surgindo novo tipo de burguesa, sem igual no resto do mundo, e que alia a feminilidade de boneca, herdada da mãe e da avó, com abertura, liberdade, espírito de independência empreendimento, e forma um tipo humano muito superior ao burguês masculino. Nunca haverá um women's lib no Brasil, porque, se e quando surgir uma autêntica cultura brasileira, a mulher assumirá automaticamente papel de liderança.
Entretanto, o diletantismo cultural (especialmente feminino) é sério perigo para tal cultura. Trata-se de irresponsabilidade incompetente, isenta de tradição e sedenta de sensação, que se derrama na forma de exposições, representações teatrais, concertos e publicações, e inunda o ambiente. O perigo não é a própria onda, já que ela é típica alienação e igual no mundo inteiro, mas sim que tal onda ameace sufocar as verdadeiras manifestações de nova identidade que aqui ocorrem. Tais manifestações ocorrem (já foram levemente discutidas, e o serão novamente), e é tarefa da crítica consciente (praticamente inexistente) salvaguardá-las da onda. Aqui serão consideradas apenas do ponto de vista da alienação.
O fenômeno pode ser descrito da seguinte forma: o burguês foge da situação econômica, social e política insuportável na direção da cultura e, por salto repentino, descobre uma nova realidade, a do espírito criador humano. É um terreno que lhe oferece desafio inteiramente diferente do desafio do qual está fugindo. Nele pode realizar-se autenticamente, livremente, e humanamente. É verdade que tal realização é acompanhada de surda má consciência quanto à realidade abandonada, mas é igualmente verdade que existe a justificada esperança do feedback posterior entre ambos os terrenos da realidade. Se o burguês descobre que seu verdadeiro engajamento é no terreno da cultura, seria trair não apenas a si mesmo, mas também a sociedade, se quisesse desistir por causa da situação da qual estava, originalmente, fugindo. Pelo contrário, a situação da qual fugia se beneficiará de seu novo engajamento. E este fato (incontestável) mostra bem como a alienação no Brasil é inteiramente diferente da histórica, e como aqui categorias marxistas são inaplicáveis.
Pode perfeitamente acontecer que no Brasil economia não seja infra-estrutura num sentido dialético, e cultura não seja superestrutura, mas que exatamente o contrário seja o caso. Depõe a favor de tal tese não apenas o fato de que a originalidade e a criatividade brasileiras se articulem muito mais na cultura do que na economia, e que a cultura absorve e engaja os melhores brasileiros, em detrimento da política, por exemplo, mas principalmente o seguinte: a única verdadeira revolução brasileira, a “Semana de 22”, se deu na cultura. É ela que revolveu a estrutura inteiramente alienada da cultura anterior, formando a base de toda cultura futura, seja positivamente, seja negativamente. De forma que engajamento em cultura pode perfeitamente ser no Brasil engajamento no que há de mais fundamental, e mais significativo para o futuro. Será na cultura que se dará o novo homem, ou não se dará em parte alguma.
Para resumir o que se tratou da burguesia alienada: o burguês pretende ideologicamente ser elite de uma sociedade em rápido progresso, e tão forte é tal ideologia que por vezes vira engajamento de segunda ordem. Em momentos de angústia a periculosidade da sua situação se torna patente, e para sufocar a angústia o burguês foge em toda direção possível. Mas no curso da fuga acontece que sua alienação vire engajamento, e que o burguês descubra e altere novas realidades. Assim está surgindo um novo cristianismo, uma nova religiosidade não-histórica, e uma cultura a articularem um novo tipo de burguês sem igual no resto do mundo.
A análise assumidamente fugaz da alienação no Brasil tem por resultado: a população vive em alienação impenetrável e fundamentalmente inexplicável, com a qual é necessário contar-se no futuro previsível, e isto problematiza todo o processo brasileiro. O proletário vive alienado por fatores semelhantes aos que alienam o proletariado universalmente, e por outros, especificamente brasileiros. Da situação econômica e social foge para os jogos, e neles, surpreendentemente, para o pensamento histórico, onde consegue realizar-se. É claro que tal realização é duvidosa enquanto não estiverem satisfeitas as suas necessidades básicas. Mas, se satisfeitas, pode surgir um novo tipo de proletário que evita a alienação histórica por tomar por realidade a vida no jogo, a não ser que a tendência violenta rumo ao progresso histórico sufoque esta virtualidade para o homo ludens. O burguês vive envolto por ideologias que não permitem que se encontre consigo mesmo e o fazem arrastar o país na direção japonesa, ou na direção do próprio suicídio. Mas há sintomas que apontam um autêntico encontro do burguês consigo mesmo, e estes permitem a esperança do surgimento de um novo tipo de burguês, não histórico em sua cultura e religiosidade.
Para resumir tudo isto: a tendência chamada alienação (se for interpretada com categorias históricas) pode perfeitamente ser, no Brasil, autêntica tendência para o encontro do brasileiro consigo mesmo, isto é: com sua verdadeira essência brasileira. Se tal tendência não for sufocada e transformada em alienação histórica, pode surgir aqui um novo tipo de homem, com novo tipo de religiosidade, cultura, jogo e, posteriormente, com novo tipo de vida em sociedade.
6. Miséria
O termo “miséria” tem, em muitas línguas, inclusive em português, uma conotação que aponta avareza. Em alemão, no entanto, significa, em uso antigo, “viver alienado” – Im Elend leben. Línguas são, entre outras coisas, tesouros de sabedoria das gerações, e não é o pior dos pontos de partida para resolver um problema consultar línguas a respeito.
Mas, no presente caso, como interpretar "miséria" enquanto alienação e avareza? Por exemplo, assim: avareza é resultado da auto-entrega alienada a coisas (Selbstentaeusserung), que passam a ser acumuladas para reencontrar-se nelas, e isto é miséria humana. Mas tal miséria não é o que o termo pretende, via de regra. De modo que a sugestão lingüística deve ser arquivada para uso posterior, embora notada.
O termo significa, via de regra, em contexto econômico, carência acentuada. O aparente contrário seria excesso. Mas desde já a sugestão lingüística adverte: há miséria do excesso. A misère noir da riqueza excessiva, a couleur grise de l'argent que marca os rostos dos capitalistas, visível até na face, queimada pelo sol, dos playboys. De forma que excesso não é o contrário da miséria, mas sua outra forma. É importante notá-lo. O excesso é miséria, porque tem a ver com dependência de coisas. Tem a ver com reversão da relação "homem-coisa", na qual a coisa deixa de funcionar em função do homem e o homem passa a funcionar em função da coisa.
De forma que o homem deixa de possuir coisas e passa a ser possuído e possesso por elas. Este tipo de miséria é alienação por excesso. Portanto a miséria por carência, por ser miséria também, deve ter estrutura semelhante. A saber: também deve estar relacionada com dependência de coisas, com falta de liberdade. A estrutura pode ser assim formulada: na carência o homem é miserável, porque coisificado e apertado por coisas que lhe faltam, e neste sentido radicalmente escravo. No excesso o homem é miserável, porque coisificado e apertado por coisas em excesso, e neste sentido (embora secundário), tão escravo quanto.
As ontologias inspiradas pelo existencialismo, especialmente Heidegger, analisam tal estrutura cuidadosamente. O existencialismo tenta romper o pensamento historicista, até porque o pensamento historicista, até se colorido existencialmente (como acontece atualmente, e não raras vezes), tende a menosprezar a miséria por excesso, e afirmar que falar nela implica querer minimizar a miséria por carência, a única verdadeira. Isto se explica: para o pensamento histórico, a plenitude dos tempos (seja ela paraíso na terra, a sociedade perfeita de consumo, ou a sociedade comunista) é base do engajamento histórico e é situação na qual reina excesso. Quem apontar o fato de poder existir miséria inclusive na plenitude dos tempos, miséria não menos terrível que a outra (quem até insistir que tal miséria é inevitável), estará minando o engajamento histórico em prol do progresso, o único concebível para o pensamento historicista. Será “reacionário” num sentido muito nefasto do termo. Tal tipo de reação se articula nos países que se aproximam da plenitude dos tempos em nível econômico, porque lá se manifesta, nefastamente, a miséria do excesso. E atesta o "fim próximo da história”, do qual tanto de fala. As defesas do historicismo contra este tipo de ataque “reacionário” são tentativas de passar do nível econômico para outro “histórico”, por exemplo, para o da libido, como o prova a própria Califórnia na qual Marcuse ensina.
Mas, se o problema da miséria for discutido no Brasil e não na Califórnia, falar em miséria por excesso parece demonstrar falta de gosto, para dizer o menos. Porque aqui, aparentemente, se trata de miséria por óbvia carência em todos os campos, e de miséria brutalmente acentuada. Parece pois que falar em miséria por excesso beira a alienação criminosa. Parece, mas não é, e o presente capítulo pretende mostrá-lo. Pretende mostrar que, pelo contrário, aqui é o lugar e agora é o momento de considerar a miséria em seus dois aspectos. Porque, se for verdade que o Brasil pensa não historicamente, então deve ser igualmente verdade que o problema da miséria aqui é existencial, e não-histórico, e que apenas assim pode ser compreendido a fim de ser atacado. E, se isto for verdade, então a miséria brasileira deverá revelar, quando analisada, exatamente aqueles aspectos que são salientados pela análise existencial, e ter portanto importância para a humanidade toda.
Como se sabe, na análise heideggeriana (e não apenas nela) aparece a questão da angústia e da preocupação intimamente ligada à questão do tempo. Simplificando muito, o complexo todo pode ser assim resumido: há uma maneira de ser da existência, na qual esta se rende ao mundo e se aliena progressivamente de si mesma, e esta maneira Heidegger chama de "decadente". Mas é perfeitamente lícito chamá-la de "existência miserável". Pois se a existência se der conta da sua miséria, será tomada de angústia, a saber, da sensação de estar empurrada para um canto, coisificada, apertada, e isolada. Pois tal angústia abre para a existência a possibilidade da liberdade, ou seja, a possibilidade de existir no indeterminado, portanto no futuro. E esta possibilidade aberta pela angústia se realiza na preocupação, que é uma forma de ser da existência tipicamenete humana. Porque preocupação é um preocupar o futuro, um apresentar o futuro, um existir para o futuro. É claro que este conceito do futuro nada tem em comum com o futuro do historicismo. O historicismo toma futuro como tendência de um processo objetivo e universal, e o existencialismo o toma como possibilidade aberta para a existência humana, tipicamente humana. Pois, como se sabe, o Brasil é chamado em toda parte “país do futuro”. Tal lugar comum é interpretado, aqui e fora, apenas no seu significado histórico — por exemplo, como país que tende a transformar-se em grande potência. Sob tal leitura a sentença é provavelmente falsa. Mas pode ser também lida existencialmente, por exemplo assim: país miserável, tomado de angústia, e que dá sinais de preocupar-se. Sob tal interpretação a sentença passa a ser altamente significativa, porque aí o Brasil passa a ser, não apenas país do seu próprio futuro, mas do futuro da humanidade. O presente capítulo procurará mostrar o quanto tal interpretação é e não é correta, isto é, o quanto o brasileiro é realmente angustiado e preocupado, e o quanto ele é "eufórico", no sentido recomendado pela burguesia alienada.
Há observadores do Brasil (não necessariamente os piores) que falam em um “traço oriental” que o caracteriza (aqui não é o lugar de criticar o termo, praticamente vazio, "oriental", já que procura ingenuamente reunir sob denominador comum fenômenos díspares como “Islão” e “Xintoísmo”). É verdade: no Brasil há elementos orientais, por exemplo, japoneses e chineses (e árabes, desde que se decida, muito problematicamente, chamá-los de “orientais”). Mas não é isto que os observadores mencionados pretendem. Pretendem aquele aspecto chamado peto século XIX teeming millions (isto, antes que os milhões passassem a formigar também nos Estados Unidos), ou seja, o aspecto que expõe a miséria das massas compactas na forma de sujeira, doença, mendicância, deformação física, e também na forma de indiferença fatalística, e que a expõe nas ruas das cidades e nas estradas do país impudicamente. É sob este aspecto que chamam o Brasil de a "Índia sul-americana", quando justamente a Índia é um dos poucos lugares que não contribuíram com imigração para a massa brasileira, e portanto, neste sentido, não se pode falar em influência hindu sobre o caráter brasileiro. Mas não é isto que pretendem os observadores. Pretendem constatar uma semelhança superficial entre os dois países, semelhança esta notada por turista. Para enumerar alguns traços de tal semelhança: ambos possuem população de raça mista, e de mistura comparável, já que ao arya hindu corresponde o europeu brasileiro, ao dravida hindu o negro brasileiro, e ao mongol hindu o índio brasileiro. Em ambos os países predomina o elemento branco nas classes superiores (embora, em ambos os países um branco misto), e em ambos os países predomina o tipo negróide nas classes baixas (embora, em ambos os países um negróide de traços caucasianos). Em ambos a promiscuidade da população miserável é salientada pela presença de numerosos animais a meio domesticados (na Índia as vacas “sagradas”, no Brasil os vira-latas igualmente “sagrados”, já que protegidos por tabu inconfesso). Em ambos os países numerosas pessoas são deformadas por incompetência de curandeiros ou pelo simples abandono do doente. Em ambos os países a miséria é ressaltada pela proximidade do luxo, que atesta falta de vergonha de ambas as partes (por exemplo, os hotéis e as favelas da Copacabana). Em ambos os países existe um típico aroma adocicado proveniente da rápida decomposição causada pelo clima, a atestar a promiscuidade existente, causando no turista a sensação meio inconsciente de sexualidade prostituída. E as semelhanças superficiais podem ser multiplicadas.
São, no entanto, inteiramente enganadoras, tanto cada uma por si, quanto no significado que têm para a compreensão dos respectivos países. A mistura racial hindu é antiqüíssima e congelada em castas, enquanto a mistura brasileira tem pouco mais de 300 anos e está em plena plasticidade. As semelhanças são deturpadas pelo fato de a Índia manifestar os traços semelhantes com muito maior destaque. Mas o importante é que as semelhanças são enganadoras, porque encobrem a diferença fundamental dos dois países, a saber: a sua atitude perante a miséria. E é esta a diferença que merece ser analisada.
Partamos para tanto da camada mais universal do homem. É mamífero, e como tal vive na dependência de certos materiais que lhe devem ser fornecidos em determinadas quantidades e qualidades e praticamente sem interrupção, ou, do contrário, morre. Tais materiais têm a ver com o ar, a água e com proteínas, gorduras, sais, vitaminas, armazenados em animais e plantas. Para conseguir tais materiais o homem dispõe, como todo mamífero, de certas estruturas do comportamento geneticamente transmitidas, que podem ser chamadas "instintos" ou "impulsos", e que se manifesta, por exemplo, como fome e sede. Se o fornecimento dos materiais for suficientemente intenso para manter a vida, mas não suficiente para fazer sossegar os impulsos por períodos consideráveis, o homem é miserável. Aliás, ser miserável é um estado “natural”, e todos os animais, salvo os domésticos, são miseráveis neste sentido. Mas o homem é mamífero cuja estrutura de comportamento não é transmitida exclusivamente por métodos genéticos, senão também culturalmente. Assim, tal comportamento manifesta igualmente "instintos" ou "impulsos" de outra espécie (como impulsos éticos, estéticos, gnoseológicos e religiosos). De forma que o homem pode ser miserável inclusive depois de ter satisfeitos os impulsos geneticamente transmitidos, e neste sentido é o mais miserável dos animais conhecidos. Por outro lado, o homem possui a curiosa capacidade de sair de si mesmo e contemplar-se a si próprio e a miséria na qual se encontra de fora, e tal capacidade reflexiva o torna o único animal capaz de reagir contra a miséria e eliminá-la. De forma que o homem é o único animal que não vive necessariamente na miséria.
Pois a reação humana contra a miséria tomou, até o presente momento (o quanto saiba o autor deste ensaio), praticamente três, e apenas três, formas: a "primitiva", a "ocidental", e a “oriental”, sendo a primeira e a última não-históricas e a segunda histórica no sentido estrito do termo. O propósito deste capítulo é mostrar que no Brasil está-se esboçando uma quarta reação, diferente das três mencionadas.
A reação "primitiva" (que abrange formas tão díspares quanto o são as culturas melanésia e maia) pode, não obstante, assim ser esboçada: a miséria mamífera é tomada como dado (digamos como dado ecológico da natureza). Aceito o dado, é imposta sobre o ambiente e sobre o comportamento humano estrutura rígida e exata que transforma o ambiente de natureza em mundo vital, e o homem de mamífero em existência humana. Tal estrutura dá sentido preciso a todo ato e todo sofrimento humano, e isto significa que os impulsos mamíferos, embora não satisfeitos, são subordinados a impulsos de espécie diferente (ética e religiosa). O resultado é que a carência persiste, mas a miséria acaba, já que a própria carência é vivificada como satisfazendo impulsos de outra ordem (sofrer sede ou dor passa a ter sentido determinado e a satisfazer determinados impulsos). A vida “primitiva” vem dar sentido à carência, já que a carência passa a ser vivenciada como prova da liberdade humana em aceitar um dado. Foi assim que os gregos definiam a virtude, arete, em oposição à soberba, hybris, que procura recusar o dado, o que prova terem os gregos sentido saudade de sua primitividade perdida. Por isso é falso chamar “primitivos” de miseráveis; os indígenas brasileiros não são miseráveis (a não ser que passem a se “civilizar”), embora os indígenas vivam em carência maior do que a população cabocla, esta sim, miserável. Isto explica também a admiração que os românticos (inclusive os românticos brasileiros, embora estes defasadamente) professavam sentir pelos "selvagens", que eram tidos por "bons" (no sentido de arete). A rigidez da estrutura primitiva pode ser interpretada como prova da adaptação perfeita da cultura ao ambiente, em oposição às culturas históricas, que provariam, por constantemente mudarem as estruturas, não serem adaptadas. E se inadaptação ao ambiente for alienação (infelicidade), os primitivos podem ser considerados homens felizes.
A reação "ocidental" à miséria, a qual se iniciou inconscientemente há 8.000 anos, à beira dos rios históricos, e que se tornou inteiramente consciente desde o Renascimento, pode ser resumida da seguinte forma: a miséria mamífera do homem é inaceitável, já que degrada a dignidade humana. Por isso é preciso transformar carência em abundância, e assim acabar com a miséria humana. Tendo tal meta em mira é preciso modificar o ambiente natural e forçá-lo a satisfazer os impulsos mamíferos do homem, para que esses impulsos possam ser "sublimados" em níveis superiores. A manipulação da natureza (como a canalização dos rios e a fissão nuclear) transforma ambiente em mundo vital, e suas fases constituem os verdadeiros feitos históricos decisivos. E as ciências da natureza são, desde o Renascimento, o método consciente e disciplinado para perpetrar tais efeitos. Pois o curso da história traz à tona uma dialética da carência no seguinte sentido: quando carência em determinado nível histórico for transformada em abundância passa a ser, por salto, carência em novo nível. E se carência resulta em miséria, o processo histórico pode ser interpretado como processo que eleva a miséria humana de nível para nível. E, se for admitida a miséria por excesso, pode ser acrescentado que em todo nível histórico dado há miséria por carência e miséria por excesso. Por exemplo: em dado nível histórico leite de vaca é desconhecido. Por manipulação da natureza, a fim de produzir abundância, é introduzido o leite (graças à pecuária) e o leite passa a ser luxo. Para classes privilegiadas pode, em tal nível, surgir miséria por excesso de leite (e outras gorduras), como o provam certas estátuas egípcias de homens excessivamente gordos. Depois é dado um salto, e falta de leite passa a ser fenômeno que a testa miséria por carência muito pronunciada. Um exemplo paralelo será o da corrente elétrica, e não precisa ser elaborado. Outro exemplo é a informação, de maneira que em determinado nível não há informação universitária, depois passa a ser luxo que pode ser excesso para uma classe privilegiada que sofre a miséria de excesso de informação universitária, para depois dar o salto dialético para outro nível, no qual a impossibilidade de freqüentar universidade passa a ser sintoma de miséria por carência aguda.
A dialética da carência pode ser interpretada otimisticamente como "elevação do standard de vida", e como mola que propele o progresso. Mas é preciso notar que, depois de alcançado um nível determinado, de difícil definição, tal otimismo deixa de ser convincente. Tal nível está sendo alcançado atualmente na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. O característico do nível é: a aceleração geométrica do progresso faz com que parte considerável dos habitantes do nível sofram miséria por excesso, e a conscientização que acompanha o progresso faz com que parte considerável dos habitantes do nível se dê conta do salto que transformará abundância em carência e criará miséria nova. O resultado é um salto dialético na própria atitude humana perante o processo histórico, salto esse chamado "crise da história e do historicismo”, o que explica o repentino interesse dos países históricos pela “sabedoria do Oriente”. Mas continua inegável que a reação histórica ocidental à miséria é ainda modelo de países não históricos como o é o Brasil, talvez por não terem tais países alcançado o nível crítico no qual a crise ocorre. Uma das ironias da atualidade é o fato de que a reação ocidental à miséria é almejada sem crítica apenas por gente vive no Ocidente.
A reação "oriental", que se iniciou há 4.000 anos na Índia, pode esboçada da seguinte maneira: a miséria mamífera do homem não é dado objetivo, e não pode ser medida objetivamente em calorias, quilowatts e automóveis estatisticamente constatados. Não o é, porque o homem não é apenas mamífero, e portanto se vê de fora. Pelo contrário, a miséria mamífera é no homem também humana, subjetiva. Miserável é apenas aquele que se assume miserável. Isto não implica que os impulsos mamíferos não existam no homem, mas implica que no homem tais impulsos são controláveis. A capacidade humana de sair de si próprio e tornar-se seu próprio objeto torna possível um controle de tais impulsos, controle este que beira o fantástico, já que o homem pode existir retendo a respiração por muitos minutos, não tomando líquidos durante semanas e alimentos durante meses (para não falar em feitos ainda mais inacreditáveis). Para conseguir tal controle, no entanto, é preciso que seja elaborada uma disciplina rigorosa, comparável em exatidão e grau conscientização à ciência do Ocidente. De forma que é preciso reagir à miséria aplicando a disciplina não contra a natureza (como o faz o Ocidente), rnas ao próprio homem. E isto pela razão seguinte: miséria é dado subjetivo, porque a natureza toda não passa de dado subjetivo. Com efeito: natureza não passa de ideologia, do véu (maia) que encobre a realidade, e quem a toma por objetiva tornou-se vítima da alienação de si mesmo. A realidade é o núcleo do próprio homem, e tudo mais é mero sonho. A miséria (seja por carência ou por excesso) é sintoma de alienação humana, prova de que o homem perdeu a realidade no sentido de ter-se perdido de si próprio, que é a única realidade. Quem se encontra a si próprio não pode ser miserável, e para fazê-lo é preciso aplicar as disciplinas mencionadas. Quem procura modificar a natureza (ilusória) a fim de combater a miséria (igualmente ilusória) torna-se mais miserável, e o Ocidente o prova. Não se pode matar a sede bebendo sempre mais, mas apenas não bebendo.
As três reações contra a miséria acima esboçadas não podem ser encontradas em estado puro em lugar algum na Terra. Toda cultura primitiva tem aspectos ascéticos e progressistas. Deve-se conceder ao Ocidente muitos aspectos primitivos, bem como perceber instantes históricos nos quais os aspectos ascéticos predominam (por exemplo, no franciscanismo medieval e no movimento hippie da atualidade). Na própria Índia o ioga não passa de disciplina de pequena elite, a massa vive primitivamente, e uma recém-formada burguesia propele o país rumo ao progresso em variante socializante. Mas, não obstante isto, as três reações podem ser descobertas enquanto atitudes em grau mais ou menos nítido em toda parte.
Para retomar o fio da meada: o Brasil não pode ser comparado com a Índia, porque aqui a reação ascética à miséria praticamente não existe. Neste sentido a sociedade é tudo menos "oriental", "fatalística", ou praticando ascese. Embora a miséria das massas brasileiras possa lembrar a miséria das massas hindus (sem atingir a mesma intensidade, exceção feita no Nordeste), o papel da miséria é inteiramente diferente em contexto brasileiro, e pode provocar reação de um tipo não comparável com as três reações mencionadas.
Seria inteiramente desprezível querer minimizar a miséria brasileira. Ficou dito no curso deste ensaio que a massa rural brasileira forma um horizonte constante para todo engajamento brasileiro, e que todo engajamento em cultura é sempre acompanhado de má consciência com relação a essa massa (por injustificada que tal má consciência seja). Viver comodamente no Brasil a rigor é possível apenas porque a imaginação humana é limitada. Não se imagina sempre a miséria simultânea dos milhões, e vive-se comodamente. Aliás, tal miséria é realmente inimaginável.
Mas quem procura imaginá-la descobre imediatamente que se trata de várias formas de miséria, incomparáveis entre si, e causadas por fatores incomparáveis. Serão dados quatro exemplos. A miséria do caboclo que vegeta no deserto à beira do rio São Francisco é o primeiro. Come feijão preto podre em lata de gasolina, bebe água verde-escura do rio, e sua mulher foge ao aproximar-se um jipe, por medo de jagunço. A miséria da família nordestina cm São Paulo é o segundo. Acampa sob viaduto, vive de refugos da cidade e de mendicância, a roupa mal lhe cobre a nudez, seus incontáveis filhos expõem barrigas inchadas, suas mulheres de idade inadivinháveis esperam outros filhos, e todos executam os gestos mais íntimos e fisiológicos publicamente, como se não existissem os transeuntes (comerciantes e juventude escolar), os quais em certo sentido realmente não existem, já que os dois mundos se esforçam por não tomar nota um do outro. Esta gente foge de uma patrulha da polícia pouco provável como foge a mulher do caboclo de jagunço igualmente pouco provável. A miséria da mulher proletária é o terceiro exemplo. Carregada de compras duramente ganhas e exatamente calculadas procura passar ela por entre o caos de automóveis que buzinam loucamente para alcançar sua fila de ônibus sob calor inclemente, ônibus este que a transportará aos trancos e comprimida entre dezenas de sofredores como ela até a periferia da cidade. A miséria da mãe proletária é o quarto exemplo. Espera ela em delegacias inacreditavelmente sujas e desorganizadas para saber do filho que se perdeu possivelmente nos labirintos de um aparelho policial e judicial supercomplexo e mal administrado, e pede tal informação de um funcionário semi-alfabetizado, indolente e indiferente, que manifesta seu desprezo cavucando os dentes com palito e emitindo obscenidades. Obviamente, os quatro exemplos se dão em níveis diferentes, e têm causas incomparáveis.
Max Brod distingue entre miséria digna e indigna, e chama de "digna" a miséria causada por fatores não imediatamente remediáveis. Prova, com isto, ser inteiramente estruturado por pensamento historicista. Embora a distinção se encontre aberta à contestação, serve como ponto de partida. Permite distinguir entre miséria causada por fatores naturais e miséria causada por fatores culturais, por mais difícil que seja distinguir-se entre natureza e cultura. Tomando tal critério se poderia dizer que os quatro exemplos fornecidos formam uma série na qual o primeiro explica miséria predominantemente natural, e o último predominantemente cultural, e os demais ocupariam lugares intermediários na escala. Assumindo tal critério poderíamos chegar à cômoda conclusão de que "ninguém" é responsável pela miséria do caboclo, e "todos" são responsáveis pela mãe proletária, de forma que em todo caso "eu" não sou responsável. A conclusão, por cômoda que seja e por mais que a tiremos todos os dias, não é sustentável.
A miséria do caboclo não é causada por fatores naturais irremediáveis, mas irremediados. O caboclo tem disto prova na mão, na forma da lata de gasolina. Por saber da remediabilidade da sua miséria ele é miserável, e não o é o indígena, para o qual remediar não teria sentido. E o burguês sabe mais: sabe que a miséria do caboclo é causada por fatores naturais não remediados, porque existe lista de prioridades na manipulação da natureza, na qual o caboclo ocupa o último lugar, e o burguês o primeiro. De maneira que a miséria do caboclo é responsabilidade da sociedade. Mas sociedade não significa “todos”, senão apenas os que podem agir, portanto os não miseráveis. Relativamente poucos, portanto. E o mesmo se aplica ao último exemplo. De forma que os poucos que podem agir são tomados, em momentos de honestidade, de angústia e preocupação, e perdem toda a euforia alienante.
Varias coisas devem ser ditas neste contexto. Em primeiro lugar deve ser lembrada a afirmativa de que a responsabilidade é sentimento alheio à essência brasileira. Já que o brasileiro toma o seu próximo por sujeito, não por objeto, toma-o como existência responsável por si, responsabilidade essa intransferível. De modo que a angústia e a preocupação que tomam posse dele ao dar-se conta da miséria do próximo não brotam do sentimento de responsabilidade, mas de um sentimento bem mais profundo (“amor”, se quiserem). Na medida em que o brasileiro começa a angustiar-se e preocupar-se com a miséria do outro, porque o "ama" em sentido concreto e não romântico, nessa medida o Brasil é país do futuro.
Em segundo lugar é preciso dizer o seguinte: a miséria do caboclo está como que automaticamente inserida na mentalidade brasileira. É miséria causada por natureza, contra a qual é preciso lutar, e o caboclo é aliado espontâneo na luta contra a doença e a sede. O exemplo demonstra muito bem dois aspectos da essência brasileira: o caboclo é tomado existencialmente como o outro, isto é, como igual no qual é possível reconhecer-se, mas a despeito disto ele tem sido relegado para o último lugar na lista, porque a luta contra a natureza exige hierarquia de prioridade. A miséria da mãe proletária, no entanto, não se enquadra bem na mentalidade brasileira. Trata-se de miséria não por carência, mas por excesso (a saber: excesso de burocracia), e é difícil para o brasileiro digerir este fato, a não ser que faça um esforço penoso de superação de si mesmo. Nesse esforço descobrirá que a luta contra a natureza não estabelece automaticamente a dignidade humana, mas que existe outra indignidade, a indignidade por excesso da luta. Tal consciência começa a despertar no brasileiro “no melhor dos casos”. A saber isto: um progresso material contínuo superará a carência da qual sofre a mãe proletária, mas aumentará sua miséria, já que fará desaparecer seu filho kafkeanamente ainda mais, no labirinto de um aparelho ainda mais poderoso.
O terceiro ponto a ser salientado é: o critério de distinção entre miséria causada por natureza e miséria causada por cultura é deficiente. Melhor seria distinguir entre miséria causada por insatisfação de impulsos fisiologicamente básicos (os impulsos mamíferos) e miséria causada por outros fatores. Tomando tal critério, o exemplo do caboclo seria o de uma miséria quase puramente fisiológica, e os demais exemplos, embora tenham todos também fatores fisiológicos, progressivamente evidenciam outros fatores. E a conclusão de tal critério seria esta: o progresso material elimina definitivamente a primeira espécie de miséria, e cria progressivamente misérias de espécies novas. Para dar um exemplo muito característico: a maioria dos negros no Brasil é miserável no primeiro sentido do termo. Nos Estados Unidos, a maioria dos negros eliminou, graças ao progresso, praticamente tal espécie de miséria definitivamente, e agora é vítima da segunda espécie de miséria, e o é de forma violenta. De maneira que é lícito dizer que existe problema do negro nos Estados Unidos, mas no Brasil existe apenas como virtualidade a ser realizada por progresso continuado. Em outras palavras: se o progresso continuar no Brasil além do nível fisiológico, e se a população negra for arrastada por ele, necessariamente surgirá o problema do negro, embora não necessariamente com a estrutura norte-americana. Mas há outra possibilidade: se for descoberta em tomada de consciência autêntica a diferença básica entre miséria fisiológica e a outra, se a angústia e preocupação que está-se articulando atualmente se transformar realmente em clima brasileiro, então o problema do negro não surgirá necessariamente.
Com tal afirmativa foi formulada a palavra-chave perante a miséria brasileira. O Brasil não é “oriental”, porque não propaga a atitude ascética perante a miséria humana. Pelo contrário, praticamente todos aqui estão de acordo que a miséria humana é inaceitável (neste sentido o Brasil é tudo menos primitivo), e praticamente todos estão de acordo que a miséria humana pode ser eliminada apenas por manipulação da natureza (e o Brasil é ocidental neste sentido). O desacordo no Brasil surge no seguinte ponto: a grande maioria dos brasileiros professa fé no progresso ilimitado. Mas a grande maioria sente, que uma pequena minoria o afirma, que o progresso ilimitado é perigoso. Isto se explica da seguinte forma: ao contrário do europeu e do norte-americano, o brasileiro tem lembrança direta ou indireta de uma situação a duas ou três gerações, que era de carência muito maior que a atual, mas na qual a miséria era incomparavelmente menor que atualmente. Tratava-se de situação estável e rígida, a-histórica e quase primitiva. A vida doce que tal situação permitia pode ter sido conseqüência da falta de responsabilidade (sob análise historicista), mas existencialmente era verdadeira, e inclusive os escravos a desfrutavam em certo sentido (por mais que se queira insistir na revoltante injustiça da escravidão e nas brutalidades por ela provocadas). Pois praticamente ninguém procura restabelecer tal situação a-histórica, e os monarquistas são grupo insignificante. O fato é outro: sobre uma base a-histórica primitiva, o Brasil vivenciou, no curso das últimas gerações, a infiltração do progresso histórico não como corrente que tudo arrasta (como ele é vivenciado na Europa e nos Estados Unidos), mas como infiltração de influência a ser assimilada. De forma que para o brasileiro o progresso não é o elemento dentro do qual ele vive e se realiza, mas é mais um elemento com o qual ele pode realizar um possível "projeto brasileiro". E neste sentido o Brasil não é ocidental, por mais que a maioria da burguesia se queira tomar por ocidental e progressista. Por isso tem sido dito neste ensaio que a elite pseudo-aristocrática em decadência atualmente deve necessariamente ser tomada por modelo de não importa que projeto brasileiro.
A afirmativa acima elaborada pode ser assim formulada: há consenso inconteste no Brasil de que o progresso ocidental, com sua disciplina científica, é o único método para eliminar a miséria fisiológica, e assim deve ser rápida e energicamente aplicado. Isto pode ser feito perfeitamente, porque tal progresso não é estruturalmente alheio à mentalidade brasileira, como o é a mentalidades primitivas. Pelo contrário, faz parte orgânica da mentalidade brasileira. Faz parte, mas não a estrutura. A consequência disto é que o progresso não é vivenciado, como na Europa e nos Estados Unidos, por meta da vida, mas é vivenciado como um dos métodos, quiçá na situação o mais importante, para alcançar meta que está no além do progresso. Tal meta supra-histórica é síntese de vários elementos dos quais a história é apenas um, e não necessariamente o mais importante. O verdadeiro engajamento brasileiro portanto não é no progresso, mas em meta não-progressista alcançável apenas se o método do progresso for aplicado até certo ponto. O que acaba de ser dito é utopia, mas não no sentido histórico do termo. O "lugar nenhum” (utopia) não é, como no caso do pensamento histórico a plenitude dos tempos dentro do qual a história desemboca, mas é um lugar fora do tempo irrigado pelo tempo, um lugar exemplificado pelo carnaval e outros fenômenos brasileiros.
O que acaba de ser dito é muito problemático, e o é por razões diversas. Que duas sejam mencionadas. A primeira tem a ver com a dificuldade de definir o limite desejável do progresso, a saber, constatar em que ponto do progresso a miséria fisiológica foi eliminada. E a segunda razão tem a ver com a dificuldade de que todo progresso tenha a sua própria inércia que o torna automático a partir de certo ponto (quiçá a sentença "ninguém segura este país" não seja ainda rigorosamente verdade no caso do Brasil, embora no caso dos países desenvolvidos seja rigorosamente verdade). Ambas as dificuldades se articulam no Brasil com nitidez crescente. Obviamente a grande maioria dos fenômenos brasileiros ainda está marcada pela miséria fisiológica, de forma que obviamente o progresso continua necessário e desejável. Mas já há setores nos quais o progresso se tornou (para quem tiver olhos para ver) excessivo.
Mas quem pode assumir autoridade de dizer que sabe quando e onde parar o progresso? E mesmo se este alguém fosse possível, como e com que direito poderia ele parar o progresso? Para dar um único exemplo: o país é marcado pelo analfabetismo, e de certa forma razoável se pode argumentar que se trata da miséria “fisiológica”, já que é fundamental para o homem informar-se. De maneira que neste campo o progresso parece necessário e não é contestado. Mas o país já vem sendo inundado por publicações "populares" que infestam a atmosfera, que vivem da alfabetização, e que criam miséria de segunda espécie igualmente nefasta. Pois quem pode decidir até que ponto o progresso da alfabetização é desejável, a partir de que ponto maior onda de informação passa a ser nefasta? E, mesmo se pudesse dizê-lo, como poderia interromper o progresso sem interromper a liberdade (no caso: da imprensa)? Um tal Platão não-histórico será possível, ou mesmo imaginável?
Este não é o lugar de resolver o problema, pelo simples fato de faltar autoridade e conhecimento ao ensaio. Basta apontá-lo. O projeto brasileiro, se visto corretamente, é extremamente problemático e arriscado. Mas, para ter alguma chance de êxito, deve pelo menos ser vislumbrado. O problema fundamental Iene projeto é: o projeto é extremamente utópico, e não corresponde em nada às ideologias progressistas que inspiram a burguesia brasileira. Dados esses dois fatores, e dado o sadio senso comum de toda burguesia, a tentativa de vislumbrá-lo provoca a reação imediata, por parte dos burgueses, de que se trata de projeto irracional e irrealizável. O contra-argumento é polêmico e negativo, mas é decisivo: a Europa, os Estados Unidos, e ultimamente o Japão, demonstram nitidamente no que o senso comum sadio tem resultado. O projeto brasileiro, que apareceu como sendo um projeto fundamental da essência brasileira, embora esteja quase inteiramente encoberto por ideologias, pode ser formulado da seguinte forma: a reação autêntica do brasileiro em confronto com a miséria é a de querer liquidá-la graças à manipulação da natureza, se for miséria fisiológica. Mas, uma vez eliminada tal miséria, o brasileiro não tende para novo progresso, senão para abandonar todo progresso e penetrar outra realidade (a dos jogos, da religiosidade, da cultura). A avareza burguesa que caracteriza os países históricos, e que lá é fonte do progresso (chamada então poupança) aqui não existe. O brasileiro não pretende progredir infinitamente, "avançar na vida" ou "fazer carreira", mas pretende, alcançado um mínimo necessário (de difícil definição), abandonar o progresso, o avanço, a carreira e “gozar a vida". É esta uma reação que não é nem “primitiva”, nem “ocidental”, mas brasileira. Enquanto for mero esboço de projeto, realizado raras vezes por indivíduos isolados, não passa de marginalismo. Mas se for conscientizado e transformado em projeto coletivo consciente, poderá vir a ser uma reação à miséria de extrema importância para a humanidade toda.
Na primeira parte deste capítulo foi feita a tentativa de desencobrir a essência da miséria, e durante essa tentativa deu-se a distinção entre a análise histórica e existencial da miséria da seguinte forma: para o pensamento histórico a miséria é falta de liberdade por determinação pelo ambiente, falta esta superada pelo progresso, já que progresso transforma determinação em liberdade. Mas tal superação revela uma dialética da miséria caracteristicamente histórica, dialética que se revela como sendo a superação da miséria para determinado nível da história que estabelece a miséria em nível diferente (síntese vira tese). Tal dialética, agora conscientizada, problematiza todo engajamento em história na atualidade. Cria crise histórica que se manifesta de muitas maneiras, por exemplo, pelo movimento hippie, agora teorizado no livro de Reich, The Greening of America.
Para o pensamento existencial a miséria é sintoma da decadência da existência, entregue ao ambiente condicionante, e superada na angústia e pela preocupação, abrindo a possibilidade do futuro. O futuro deixa de ser abismo irreal (por não presente) que devora o tempo objetivo, e passa a ser terreno real (por pré-ocupado, portanto apresentado), com efeito terreno típico da existência humana. O futuro concebido assim é o conjunto de tudo aquilo que preocupa o homem, portanto o conjunto de todos os problemas, e neste sentido o futuro é o campo da ação humana. A vida humana passa a ser concebida como um devorar o futuro para transformá-lo em passado, resolvendo problemas. De maneira que o pensamento existencial inverte a relação homem-futuro proposta pelo historicismo. No historicismo o futuro devora tudo, inclusive o homem, e neste sentido o futuro tem o homem. No existencialismo o homem devora, vivendo e agindo, o futuro, e neste sentido é o homem quem tem futuro. Pois tal futuro como propriedade humana (ao contrário do historicismo no qual é possuído pelo futuro) pode ser conquistado, se e quando o homem se der conta da sua miséria decadente, for tornado pela angústia e projetar-se, preocupado.
Tal análise existencial, quando exposta em contexto histórico, tem sabor inteiramente diferente do que quando exposta em contexto brasileiro. Isto explica, diga-se de passagem, porque Heidegger tem efeito mais profundo (e mais constante) no Brasil do que no contexto europeu. Em contexto histórico a análise existencial tem sabor nitidamente reacionário, porque articula a descrença de uma burguesia decadente que se "angustia" e se "preocupa" consigo mesma, já que será impiedosamente devorada pelo futuro. Os argumentos da esquerda e da nova esquerda contra este tipo de existencialismo são perfeitamente justificados em tal contexto, porque a própria estrutura do contexto é histórica. Isto não impede que, para o indivíduo isolado (portanto miserável), a análise existencial seja perfeitamente válida e aceitável. E isto não impede tampouco que a maioria dos habitantes dos países históricos sejam indivíduos assim isolados e miseráveis.
Mas no Brasil este tipo de análise tem sabor autêntico, porque aqui não se analisa apenas a miséria individual, mas a situação da sociedade toda. Assim enforcada, a análise pode ser reformulada da seguinte maneira: o Brasil é país miserável, no sentido de entregue ao ambiente condicionante, tanto natural quanto cultural, já que empurrado e determinado pela natureza e pelas forças históricas que sobre ele incidem, e ameaçado de decadência na forma do deixar empurrar-se (inclusive deixar empurrar-se no sentido do progresso). Mas podem ser constatadas no Brasil tendências profundas, embora até agora em grande parte inconscientes, e que penetram vagarosa, mas constantemente, o consciente, apontando nitidamente para um projeto brasileiro. Essa lenta mas nítida transformação da decadência em projeto se manifesta como angústia que, em momentos da honestidade, aperta a garganta do brasileiro. Uma angústia que não teme algo, mas que se angustia pelo Brasil e pelo mundo, abrindo para o Brasil inúmeros problemas - portanto, o futuro. No instante mesmo no qual se vislumbram os problemas gigantescos do futuro gigantesco, tal angústia se transforma em preocupação que apresenta os problemas e realiza o futuro. O caráter colossal dos problemas e a impossibilidade de prever soluções é caráter igualmente colossal de tal futuro.
O curioso em tudo isto é que a angústia e a preocupação são fenômenos que ocorrem na solidão e, no entanto, no Brasil têm aspectos nitidamente sociais e atestam a solidariedade humana. Resultam, angústia e preocupação, da tentativa do homem de dar-se conta de si próprio na solidão do isolamento. E no entanto, tal tentativa de dar-se conta, cada um por si, é sintoma do acordar da sociedade brasileira. De forma que solidão não significa, no Brasil (como nos países históricos), alienação, mas significa, pelo contrário, salto de alienação para engajamento. O Brasil se encontra a si próprio no encontro do indivíduo consigo mesmo, e o futuro depende, sem frase vazia, de todo brasileiro. É isto que torna tão emocionante viver no Brasil atualmente.
Tal interpretação da análise existencial da miséria passa a transformar a análise de individual em coletiva, e passa a revelar o surgir de uma nova identidade e de novo projeto, a saber: de um novo homem. De um homem que por ora vive na miséria, mas que prepara, angustiado e preocupado, a forja dessa miséria num futuro provavelmente sem igual na história e na não-história da humanidade. Sem igual, porque esboçando um tipo de reação à miséria que ainda não foi ensaiada.
O futuro do historicismo é futuro que será passado, e os países históricos se dirigem para tal futuro. Possivelmente o Brasil não se dirige em tal direção, e é por isso que, visto historicamente, o Brasil pode ser interpretado por muitos (inclusive burgueses brasileiros) como tendo fracassado. Mas o futuro do existencialismo é futuro já presente, porque apresentado pela preocupação humana. Tal concepção concreta do futuro nada tem a ver com o “fluxo objetivo do tempo”, e portanto não tem sentido dizer que tal futuro será passado. Continuará sendo sempre futuro, na forma de problemas não resolvidos e, neste sentido concreto, futuro presente. Pois todo aquele que vive atualmente no Brasil se angustia e se preocupa, tem futuro em tal sentido do termo, e desde já viver no Brasil tem este sentido. Porque viver no Brasil com angústia e preocupação significa ter-se engajado. Alguns afirmam com ironia ser o Brasil o país do futuro eterno. Sob a leitura proposta, tal sentença pode ser lida sem ironia.
7. Cultura
Fenômenos culturais parecem conter dois “espíritos”, o do tempo e o do espaço, já que, ao contemplarmos tais fenômenos, somos capacitados a indicar aproximadamente quando e onde surgiram. O espírito do tempo parece permitir distinguir entre fases históricas, e o espírito do lugar regiões de cultura. Mas a realidade é bem mais complexa, e o fenômeno cultural se relaciona com o tempo de maneira bem diversa da sua relação com o espaço.
Tem sentido nítido falar-se em história da filosofia, e distinguir entre filosofia barroca e filosofia do Iluminismo, mas falar em geografia da filosofia é bem mais difícil. E se quisermos falar nela, devemos falar em filosofia iluminista na Espanha, ou em filosofia espanhola no Iluminismo? O problema é este: o tempo permite ordenar os fenômenos culturais em hierarquia (milênios, séculos e décadas), embora tal hierarquia não seja rígida (há décadas e séculos mais importantes, culturalmente, do que outros), embora exista a tendência para a aceleração geométrica do tempo na cultura. Mas o espaço não permite hierarquia neste sentido. Ao contemplarmos um crucifixo, faz sentido dizermos tratar-se de fenômeno europeu, e alemão, e austríaco, e salzburguense, e do Pinzgau (de maneira que há hierarquia); mas ao contemplarmos partitura de fuga não faz muito sentido falarmos em lugar, a não ser, no máximo, em Europa e França.
Pois os exemplos dados sugerem o seguinte: há vários tipos de fenômenos culturais, e uns revelam nitidamente a hierarquia do tempo (como filosofia e partitura de fuga) e outros revelam, além disso, nitidamente a hierarquia do espaço (como crucifixo). A tentação é grande de chamar o primeiro tipo de fenômenos "cultura de elite", e o segundo tipo "folclore", e dizer que o folclore está mais perto da terra que a cultura da elite. Todavia, deve-se resistir à tentação, porque é conseqüência de um enfoque historicista dos fenômenos da cultura. Tudo isto funciona bem apenas se aplicado a fenômenos de culturas históricas, mas falha se aplicado a outros. Por exemplo: o enfoque historicista distingue na cultura egípcia entre vários reinos, na cultura centro-americana entre Maia I, II, e III, e na cultura paleolítica entre arcaica, clássica e decadente. Os exemplos provam, em medida crescente, a dubiedade do critério historicista e da hierarquia do tempo. No caso do Egito (e, em grau ainda maior, no caso do Yakatan), o característico do fenômeno não é o período histórico (embora indubitavelmente exista), mas a estrutura constante que despreza o tempo e afirma o espaço. E no caso do paleolítico os três períodos parece que são simultâneos, o que é uma contradição insuportável. E não teria sentido nenhum chamar de folclore as três culturas mencionadas. Melhor talvez seria distinguir entre dois tipos de cultura: a histórica, que permite hierarquia nítida do tempo (e cujo exemplo melhor seria a cultura da elite do Ocidente), e a não-histórica, na qual tal hierarquia se confunde, mas cujo espírito do espaço se manifesta nitidamente (e o melhor exemplo é a cultura neolítica), e admitir que há culturas do tipo misto (como o folclore ocidental e a cultura do Egito). A língua inglesa distingue em tal sentido entre culture e civilisation, de maneira que culture significa aproximadamente “cultura não-histórica” mas no sentido de “primitiva”, prova da base historicista do pensamento anglo-saxônico (o que dificulta a compreensão do problema).
Se o Brasil for realmente, como afirma o presente ensaio, sociedade não-histórica constantemente irrigada pela história, o problema aparece aqui de maneira especialmente complexa. Para abrir um caminho rumo ao problema torna-se necessário remover um obstáculo formidável. Os pensadores brasileiros em geral (e especialmente os da esquerda) tendem a distinguir no Brasil dois tipos de cultura: a da elite e a da massa. Tal distinção, produto de categorias ocidentais, não coincide com a distinção mencionada entre cultura da elite e folclore, mas afirma aproximadamente: há uma cultura que se derrama por canais comunicativos largos e de fácil acesso (como o rádio, a televisão, o filme, a revista barata), e esta é a cultura da massa. E há outra que se derrama por canais mais estreitos e de acesso difícil (como teatro, concerto, livros caros), e esta é a cultura da elite. A cultura da massa é manipulada e programada pela elite e contribui para a alienação da massa, e a cultura da elite contribui para a separação entre massa e elite. Não se nega que tal maneira de ver a cultura brasileira é muito importante, e que a teoria da comunicação é indispensável para a captação de muitos fenômenos culturais brasileiros. Mas a razão do propósito de remover tal atitude do caminho é dupla: a primeira é que categorias históricas como estas tendem sempre a encobrir, ern vez de revelar, a essência dos fenômenos brasileiros. A segunda é que as categorias deixam no caso, grande parte dos fenômenos culturais brasileiros no além do campo da pesquisa.
O presente capítulo propõe distinguir entre três tipos de cultura brasileira. Um nível cultural não-histórico básico, que tem semelhança estrutural com culturas do tipo paleolítica e maia. Um nível intermediário para-histórico, que tem semelhança estrutural com a cultura ocidental da elite, e que inclui tanto a “cultura da elite” quanto a “cultura da massa” acima mencionadas. E um nível superior não-histórico que tem estrutura incomparável e que é o nível da verdadeira cultura brasileira, no sentido de "cultura do novo homem". Pois os níveis propostos não passam de meras abstrações didáticas e não afirmam que servem de critério para distinguir entre fenômenos da cultura. Afirmam apenas que podem servir de critério para distinguir entre vários traços de um fenômeno dado, de forma a poder-se dizer, aproximadamente, qual nível cultural predomina em fenômeno dado. Afirmam portanto que uma crítica consciente tem tarefa imensa no Brasil, a saber elaborar suas próprias categorias (das quais as propostas não passam de simples tentativas), e aplicá-las a cada caso que se apresente. Por enquanto não existe infelizmente, o menor sinal de que uma crítica assim esteja surgindo.
Quanto ao método a ser seguido no capítulo presente: as categorias propostas não serão impostas sobre os fenômenos, mas são, pelo, contrário, resultado do esforço de permitir aos fenômenos que revelem as suas próprias categorias (se tal afirmativa é ou não é verdadeira será tarefa de crítica posterior constatar, e a esperança do presente capítulo é provocar tal indispensável metacrítica). Portanto, o método implica lançar uma rede das três categorias sobre a cena cultural brasileira, a fim de captar a essência dessa cena. As próprias categorias não foram trazidas de fora, mas tecidas do contexto brasileiro, de modo que elas próprias não passam de fenômeno cultural brasileiro.
O nível básico não-histórico é dominado por elementos negros. Isto é surpreendente, já que era para se supor que em tal nível houvesse síntese entre elementos indígenas, negros e Portugueses. A dominância do elemento negro e a recessividade dos demais (para recorrer a terminologia genética bem apropriada ao caso) é constatável não apenas aqui, mas igualmente na America Central e nos Estados Unidos. É surpreendente, também, porque no nível biológico parece que o elemento branco é o dominante. Este não é o lugar de analisar o fenômeno, e menos ainda o lugar de querer afirmar a “superioridade" da cultura negra. Embora no Brasil tese de que black is beautiful não tenha encontrado eco, existe a tendência para um racismo invertido (especialmente por parte de uma elite branca cuja consciência não é lá muito boa). O fato da dominância negra será simplesmente constatado.
Depende a compreensão deste nível cultural da compreensão da forma como o elemento negro entrou e como se manifesta. O termo "negro" é obviamente vazio (significa aproximadamente "não branco"), tão vazio quanto o é o termo "branco" (de passagem seja dito que o fato de o movimento americano chamar-se black power prova para o observador brasileiro, conhecedor existencial do problema, que se trata de movimento alienado). No Brasil, a tentativa de dar sentido ao termo "negro" resulta no seguinte: Homem que descende em alto grau, mas não exclusivamente, de escravos importados desde o século XVI até o século XIX da África, entre os desertos do Saara e Kalahari. Naquela região imensa há grande número de etnias, vagamente cobertas pelos termos lingüísticos “sudaneses” e “bantus”. Ambas as etnias participam da colonização negra do Brasil, mas parece que os bantus predominam, pelo menos no Norte. A dificuldade é que a estrutura étnica, social e cultural dos negros (por exemplo, aristocratas africanos e gente já escrava na África) era ignorada pelos escravocratas e mantida em segredo pelos africanos, até cair em esquecimento. Igualmente esquecidas foram as línguas africanas, e conservadas apenas como elementos absorvidos pelo português, e como língua litúrgica semelhante ao latim da Igreja, isto é, compreensível apenas para o sacerdote.
Mas o importante para a cultura brasileira é outro aspecto. As culturas africanas têm, praticamente todas, um método complexo de transmissão de geração a geração, uma complexa paideia, que pode ser assim descrita: a nova geração recebe da antiga obras como modelos (máscaras, estátuas, barcos), e lhe são ensinados os métodos técnicos para copiá-las. Simultaneamente, a nova geração é incentivada para não copiar os detalhes dos modelos (o repertório), mas apenas o essencial (a estrutura). A conseqüência disso é que as culturas africanas têm estrutura rígida (não-histórica), mas grande abertura para a articulação de fortes individualidades. Com efeito, é tal articulação que dá vida aos fenômenos culturais africanos. Acresce-se a isto que nas culturas africanas as obras não são de "arte" (no sentido ocidental), mas são obras úteis e utilizadas na vida diária, inclusive no culto religioso. São "instrumentos", nos quais não se pode distinguir arte e técnica, e enquanto instrumentos articulam o homem todo, inclusive aquelas camadas inconscientes chamadas "arquetípicas" em certos contextos. De maneira que as culturas africanas a um tempo articulam o sentido da vida do homem e dão sentido ao ambiente humano, que transformam em ambiente de vida.
Os negros chegaram aqui de mãos vazias, isto é: sem modelos e sem a possibilidade de aprender técnicas de fazer modelos. Chegaram apenas munidos de sua identidade cultural e da memória dos modelos. No novo ambiente, degradados a serem objetos, as obras culturais não teriam função, já que a vida não tinha sentido, e já que o ambiente tinha sentido imposto sobre ele por outro. Havia, no entanto, a seguinte possibilidade: conservar a tradição cultural por gestos estruturados (na dança, por exemplo) e pela música, e dar portanto sentido à vida em terrenos limitados. E elaborar rapidamente modelos e de fácil construção (tais como instrumentos musicais), antes que a memória falhasse. Este aspecto tornou-se decisivo para a cultura brasileira.
Para falar primeiro nas suas conseqüências negativas: toda cultura africana que depende de modelos elaborados e caros (arquitetura, escultura, navegação, máscara, trabalhos em metais) ou não existe no Brasil, ou se existe manifesta decadência e infantilidade. Um belo exemplo disto é a escultura. Tudo que passa por escultura africana no Brasil não passa de kitsch, se comparado com a escultura africana. A explicação é esta: não havia modelos, e os que procuravam articular-se esculturalmente (especialmente na Bahia), para dar forma à sua mentalidade africana (muito modificada pelo ambiente brasileiro), não dispunham da técnica tradicional, nem de mestres. Além disso a estátua não linha função africana no ambiente brasileiro. Se, a despeito disto, surgiu na Bahia escultura original inspirada por elementos africanos, tal escultura não pertence ao nível cultural ora discutido, mas ao terceiro nível. A soit-disant pintura negra “primitiva” no Brasil (tão apreciada atualmente pela burguesia, mas por razões fundamentalmente erradas) merece ser mencionada neste contexto. Em primeiro lugar, pintar quadros não é fenômeno africano, e se há pintura atualmente na África, isto prova o quanto a “negritude” é movimento europeu. Em segundo lugar, quadros se destinam a ser pendurados em paredes (da burguesia branca), e tal função antiafricana prova a alienação do pintor da sua origem. Em terceiro lugar, a ingenuidade “do pintor” não é tradição africana (que não é ingênua mas sofisticada), mas é incompetência do pintor em técnicas européias. E em quarto lugar, a pintura “primitiva” não segue modelos africanos mas franceses e norte-americanos. Isto não exclui que elementos africanos não se articulassem poderosa e criativamente na pintura brasileira, mas tal pintura não pertence ao nível cultural discutido, e não é necessariamente executada por negros.
Para passar agora a considerar as conseqüências positivas de tal aspecto, o termo-chave é "ritmo". A teoria da comunicação distingue entre fenômenos diacrônicos e sincrônicos na cultura, e revela estruturas fundamentais em tais fenômenos que podem ser classificadas seguindo estas categorias. O ritmo é um aspecto diacrônico, no sentido de permitir dissolver as estruturas em seqüências organizadas. Pois há um ritmo nitidamente africano e que pode ser constatado em praticamente todos os fenômenos culturais, no nível agora considerado. É este o fato principal que o corre quando se fala em cultura brasileira no estrangeiro, embora o estrangeiro se concentre sobre manifestações acrobáticas (neste sentido: prostituídas) do ritmo. Por exemplo, o ritmo de um Pelé, de uma dançarina, ou de uma orquestra em night club (aliás, o fato de o burguês brasileiro aceitar tal interesse de estrangeiro como sendo "positivo" atesta a alienação da burguesia). Na realidade o ritmo fundamental não se manifesta principalmente em acrobacias, nem necessariamente em “obras" (as quais, como sambas e lutas lúdicas, não passam de epifenômenos), mas nos gestos do dia-a-dia, gestos estes que injetam um elemento ritual e sacral no cotidiano que distingue radicalmente o ambiente brasileiro de outros. O andar rítmico das meninas e moças, os passos de dançarino dos rapazes na rua (acompanhados de olhar e sorriso interiorizados, como que para manifestar o poder do ritmo sobre o espírito), o constante bater em caixas de fósforos e com colheres, o uso das máquinas de escrever nos escritórios como se fossem tambores, a transformação de martelos em atabaque, a graça dos gestos dos moleques que jogam futebol, até a elegância dos movimentos nas brigas de rua, tudo isto é manifestação de uma profunda cultura. O vulgar e o cinzento que caracterizam o cotidiano nos países históricos são substituídos aqui por elemento estático e religioso que permeia o ambiente todo de forma que todos não apenas negros e mulatos são arrastados pelo ritmo. A síncope africana e a alta organização (sofisticada) do movimento do corpo atestam que se trata de cultura em sentido radical, e faz com que viver no Brasil seja vivenciar ininterruptamente cultura, embora nem sempre o fato esteja presente. E isto prova por sua vez, que a sociedade não pode ser chamada de “cristã” no verdadeiro sentido do termo. Religião não é o que se crê, mas como se vive. O brasileiro vive o ritmo sacral do corpo e dos sentidos do corpo, e vive a beleza do corpo e dos sentidos ritualizada, portanto sacralizada. A sua vida é constante hierofanização do imanente. E, para o cristianismo, o corpo não passa de vaso da alma, desprezível e sacrificável em relação com a alma.
É óbvio que tal cultura profunda se realiza em obras, música e dança, cozinha e traje, contos e histórias, e principalmente em ritos religiosos. É óbvio, mas não é necessário analisar tais obras, já que o essencial foi descoberto. Apenas é preciso apontar a força sincrética dessa cultura, como se manifesta nos cultos religiosos. O panteon africano com seus deuses e diabos da natureza e da cultura, e que pode ser provocado ritmicamente para baixar e cavalgar os possessos por ele, assume para proteção própria uma tênue máscara católica, e o efeito não é mudar o rito africano mas, pelo contrário, penetrar a estrutura da Igreja. O carnaval é um dos exemplos possíveis disto, mas a africanização da Igreja (que é o seu modo de tornar-se brasileira) se manifesta em muitos aspectos. Tão forte e poderosa é esta cultura, que resiste a toda tentativa de banalização por parte dos meios de comunicação, com sua comercialização alienante e, pelo contrário, injeta em todas estas manifestações uma dose de autenticidade ausente na Europa e nos Estados Unidos. Deste ponto de vista, o Brasil é bem mais culto do que estes países. A vulgarização, banalização e kitschização que marcam a vida europeia e americana é em larga medida evitada, embora exista também como preço que o pais paga pelo “progresso”. O atual aumento desse fenômeno é inquietante.
A cultura fundamental não resulta apenas em obras, mas também em personagens características da cultura, prova que se trata de autêntica cultura. Será apenas mencionada uma única personagem: o malandro. O seu arquétipo mítico é o Exu, e se manifesta na forma de um desprezo cínico pelos valores da sociedade (leia-se: valores ocidentais), de uma inteligência viva mascarada em ingenuidade, e de uma criminalidade acompanhada de humor e graça. Um diabo tipo Svejk (da literatura tcheca), e que é bailarino. Certamente trata-se de personagem cultural que mais dia menos dia será transformada, pela cultura brasileira do terceiro nível, em figura comparável a Don Juan e Fausto. Mais uma das colossais tarefas que esperam tal cultura.
É verdade que, no nível fundamental, o elemento negro predomina. Mas não exclui os outros elementos. Na cultura cabocla (se é que merece tal termo), manifestam-se também elementos indígenas e europeus. Para dar um único exemplo: o imigrante se comove pelo espetáculo da dança cabocla, na qual distingue nitidamente, nos passes comedidos e formais, o elemento feudal cavalheiresco da Idade Média européia - se comove quando compara tal elemento com a decadência dos que a ele recorrem (aliás, Guimarães Rosa articula bem esse motivo do cavalheiro do Santo Graal, do cavalheiro andante, no caboclo). Tais elementos díspares na cultura fundamental ainda esperam por serem desencobertos pela cultura brasileira, para serem transformados cm elementos de outra cultura. Não apenas no sentido um tanto romântico de o burguês brasileiro inclinar-se sobre a cultura fundamental a fim de aproveitá-la e nela inspirar-se. Mas, principalmente, no sentido mais radical de ele reconhecer-se a si próprio nela, em método extrospectivo e introspectivo.
Para resumir o resultado da tentativa de desencobrir a essência da cultura fundamental brasileira: é não-histórica, e isto significa que ela não se manifesta principalmente em obras datáveis, mas em estrutura concreta e espacial, especialmente em gestos cotidianos. Significa anonimato, participação global, e religiosidade. Não tem sentido querer historicizá-la e distinguir épocas nela. A cultura das massas, cinzenta, feia e uniforme, encobre esta verdadeira cultura, mas o uniforme tem abertura pelas quais a verdadeira cultura transparece e resplandece, e consegue, com a força da sua autenticidade, mergulhar a cena brasileira toda em clima de sacralidade. O essencial do clima é o ritmo africano.
O nível cultural a ser discutido agora, e aqui chamado de "pseudo-histórico", é o nível no qual o imigrante intelectual vive, do qual participa ativa e passivamente, que ele conhece melhor, no qual está inserido pelo seu trabalho, por laços de amizade, e no qual investiu parte considerável da sua vida. É duro, portanto, admitir que se trata de cultura constantemente ameaçada de decair em provincianismo e provocar tédio insuportável. É cultura importante, mas em forma defasada da Europa e dos Estados Unidos, aqui tornada medíocre e pouco produtiva. Basta comparar tal cultura em São Paulo com não importa que cidade europeia, para verificar que São Paulo, com seus 6 milhões de habitantes, ocupa nele posição correspondente a cidade europeia de uns 300 mil habitantes. O consolo é: o engajamento em tal cultura visa não tanto mantê-la e fazê-la progredir, como alterá-la profundamente e transformá-la em tipo de cultura inteiramente diversa. E isto torna o engajamento potencialmente muito mais significativo que o engajamento paralelo na Europa e nos Estados Unidos. Em outras palavras: a marginalização do intelectual por esta cultura em relação à cultura ocidental é compensada pelas virtualidades revolucionárias dormentes em tal engajamento.
Na descrição dessa cultura (que é complexa a despeito da sua pobreza), será empregado o método seguinte: a fim de evitar generalidades, será primeiro oferecida uma imagem muito superficial dessa cultura, e depois serão escolhidos uns poucos aspectos, iluminados um pouco mais claramente.
É cultura "defasada" não apenas porque repete fases esgotadas pela cultura ocidental, mais ainda porque não vivencia as fases. Esta falta de vivência confere à cultura um aroma de papel impresso, embora às vezes de papel impresso em tinta forte e com cabeçalhos berrantes. E é "histórica" no sentido de articular o espírito de um tempo, apenas não o próprio espírito, nem do próprio tempo. Consequência dos dois fatores é um curioso preciosismo e academicismo. "Mentira" é o termo correto, desde que se entenda por mentir articular o espírito de outrem, não o próprio. A postura da mentira pode ser observada bem em dois fatores distintos. O primeiro reside num constante olhar pelo rabo de olho na direção da Europa e dos Estados Unidos, não apenas para espiar modelos a serem copiados, mas mais ainda para ser "aceito" lá e assim adquirir legitimidade. Isto não é diálogo, como alguns pretendem, mas submissão abjeta. O segundo reside na relação entre os homens que participam da cultura ativamente, e que desmente a verdadeira relação humana brasileira. Formam-se turmas e panelinhas de pessoas profundamente vaidosas, que se entreolham com inveja e procuram mutuamente eliminar-se graças a essas intrigas, que mascaram com ideologias. Desmente-se, aqui, a própria essência brasileira. O fenômeno pode ser observado nas universidades, nos bastidores dos teatros e nas exposições de arte na Europa e nos Estados Unidos; apenas, aqui, é copiado e provincializado.
A falta de tradição vivida e a incompetência dela decorrente são muitas vezes compensada por inteligência brilhante e fantasia fecunda, e assim resultam em obras que não raras vezes revelam originalidade. Uma crítica merecedora do nome poderia apontar nessas obras esforços disciplinados e inspirados que em contexto histórico seriam bem-sucedidos, mas aqui murcham por falta de raiz e por falta de eco. Mas a falta de tal crítica parece condenar essa cultura toda a permanecer, pelo menos para o futuro previsível no limbo. Porque o crítico que vegeta em tal cultura tem apenas duas atitudes: ou a atitude de profunda reverência, para mostrar quão bela é esta cultura e sua própria cultura, ou a atitude de violento insulto, para mostrar que ele é um dos poucos que não permite ser enganado por tal cultura. Se de vez em quando ocorrer uma crítica honesta e interessada no assunto, mas não na pessoa do criticado, este e sua panela reagem como se se tratasse de ofensa pessoal ou ofensa à ideologia que a panelinha professa.
Em tal ambiente malsão ocorrem, não obstante, fenômenos culturais que atestam ruptura autêntica da alienação e defasagem. Tais fenômenos fazem parte do terceiro nível cultural a ser considerado mais tarde, mas é preciso dizer que tais fenômenos devem necessariamente passar pelo nível agora considerado para afirmar-se. E felizmente é possível dizer-se que um número crescente de obras culturais da atualidade, embora não consigam desvincular-se, pelo menos denotam a tendência rumo a uma verdadeira cultura.
Não tem muito sentido querer distinguir nesse campo entre cultura da e da massa. Ambas participam das características aqui esboçadas, embora cada qual manifeste essas características à sua maneira.
(a) Ciências da Natureza: trata-se de disciplinas universais, de modo que parece não ter sentido incluí-las em considerações cujo tema é cultura especificamente brasileira. Não obstante, engajar-se em ciência natural no Brasil tem aspectos específicos que ilustram toda a cultura brasileira. A pobreza da sociedade tem por consequência pobreza de equipamento laboratorial e de pesquisa, de maneira que o cientista não pode dialogar com seu colega estrangeiro em pé de igualdade. E a pobreza tem por outra consequência que a relação numérica entre professor e aluno é desfavorável a ponto de dificultar enormemente a criação de novos cientistas. Tais fatos trazem vários resultados importantes para o engajado: o bom cientista tende a dedicar-se à teoria que exige equipamento menos caro. Tanto cientista quanto aluno vivem em constante tentação de ir para fora, já que é difícil aproveitar cientistas no contexto brasileiro. O rápido progresso da pesquisa no estrangeiro aumenta anualmente o abismo que separa o cientista brasileiro do centro (e isto a despeito das viagens para estudo e participação em congresso), de forma que este se sente progressivamente marginalizado. Sofre o cientista brasileiro, de maneira ainda mais aguda que o europeu e o americano, a contradição entre engajamento científico (isento de valores) e o engajamento prático, já que em contexto brasileiro ou teoria não terá consequência prática alguma, ou consequência inteiramente imprevisível e inteiramente afastada do poder decisório do cientista. Em outras palavras: o que é “desafio americano” na Europa não chega a constituir desafio para o cientista brasileiro, apenas frustração progressiva. Se for verdade que as ciências da natureza passarão sempre mais decisivamente a marcar os destinos da humanidade, o cientista brasileiro deve forçosamente desesperar quanto ao seu engajamento. A não ser que consiga ser apenas cientista isto é, monstro frankensteiniano.
(b) Filosofia: também ela é universal, mas em sentido oposto. A ciência é universal porque recorre a simbolismo universalmente convencionado e, porque trata de fenômenos para a ciência, deve ter estrutura universalmente idêntica. A filosofia é universal porque disciplina a capacidade universalmente humana para a reflexão por métodos universalmente aceitos, elaborados pelos gregos e apenas refinados ao longo do tempo. Tais métodos distinguem a filosofia das várias sabedorias. Uma tal universalidade significa apenas que homens podem filosofar em não importa que lugar e em não importa que momento. Mas não significa que o resultado de um tal filosofar seja uma filosofia universalmente significativa (muitos tendem a esquecer isto). A capacidade para a reflexão é capacidade para afastar-se de si mesmo e ver-se a si e a sua situação de fora; sendo a situação diferente caso a caso, diferente será também a filosofia. A rigor o exposto implica ser filosofia apenas disciplina ocidental (não universal), e que não se deve falar, por exemplo, em filosofia do Oriente. Porque o passo para trás, que é a reflexão filosófica, se dá a partir da história e neste sentido é histórico, mesmo sem resultar em formalismo. A crise da filosofia atual não passa de crise da história no seu aspecto “filosofia”. Pois se for verdade que o Brasil é não-histórico, seria lícito esperar-se que a crise da filosofia revelasse aspectos muito importantes em contexto brasileiro. A esperança não se cumpre, porque, sendo o pensamento brasileiro não-histórico, não tende para a filosofia, embora tenda para várias espécies de sabedoria. Os que sentem dentro de si a chama da filosofia (e existem, dada a parcela histórica no pensamento brasileiro) sentem também a atração das ditas sabedorias, e procuram sufocá-la. De forma que se “disciplinam” e restringem a sua atividade a comentários de textos que não deixa de ser escolásticos por chamarem-se a si próprios, obedecendo à moda, “estruturalistas”. Outros cedem à tentação e produzem sistemas sincréticos grandiosos e sem interesse.
O filosofar é, para Ortega, atividade que envolve carne e osso. Um tal filosofar provocaria no Brasil a descoberta da essência do próprio pensador e da situação na qual se encontra. Forneceria plataforma para uma decolagem do Brasil mais significativa que a decolagem econômica da qual se afirma anualmente que acaba de ser feita. Porque significaria que um pensamento não-histórico conseguiu assimilar a filosofia do Ocidente e deu um salto que transforma não apenas o pensamento não-histórico, mas a própria filosofia. Para ilustrar o que esta afirmativa pretende: os pré-socráticos conseguiram assimilar à sua nova estrutura mental o pensamento mágico-mítico de tal maneira que este deu um salto e resultou em filosofar. A mentalidade grega era mentalidade nova, e graças à superação dialética da mentalidade prévia criou um novo tipo de pensar, a filosofia. A mentalidade brasileira é igualmente nova, e a filosofia não passa, para ela, de elemento externo a ser assimilado – logo, poderia repetir a façanha grega em nível diferente (o exemplo não passa de ilustração fantasiosa, mas sugere o pretendido). Mas quem procura em cena brasileira por novos Heráclito ou Parmênides, procurará, provavelmente, debalde. Provavelmente, porque dada a situação é perfeitamente possível que um Pitágoras esteja atualmente ensinando em cidade interiorana, sem ter sido descoberto. Tudo isto não nega o fato de existirem esforços sérios no sentido de romper a defasagem alienada. Quem tem faro poderá afirmar que já sente no ar o repentino despertar de uma filosofia brasileira. Apenas é muito pouco provável que um tal despertar ocorra nas faculdade de filosofia (que surgem quais cogumelos depois da chuva em inúmeras e improváveis cidades), já que lá, como aliás no resto do mundo, apenas um número crescente de papéis eruditamente impressos enche gavetas. E lá, se surgir e quando surgir uma verdadeira filosofia no Brasil, esta será profissionalmente combatida, como cumpre a toda academia no mundo inteiro. Até que não surja tal filosofia, não se poderá falar no despertar do gigante esplêndido do seu sonho dogmático (ou não importa que outro tipo de sonho).
(c) Cultura Humanística: A despeito de C. P. Snow, é difícil dizer o que isto é, a não ser que se diga que ela é o contrário das ciências da natureza. Mas no Brasil, curiosamente, é extremamente fácil dizer o que tal termo significa. Cultura Humanística é cultura, composta de elementos jurídicos e literários, que habilita o portador a assumir papel de destaque na política e na sociedade. É acompanhada do título de “doutor” (geralmente em Direito), fornece ao possuidor grande riqueza vocabular e de oratória e capacita-o a externar opiniões aparentemente originais, mas na realidade com imprimatur da direita ou da esquerda tal peste em forma de cultura se restringe é verdade a uma geração em vias de desaparecer, e horror de tal cultura está se tornando generalizado. Mas existe o constante perigo de ela passar a derramar-se de novo por sobre a cena em forma mais bem mascarada (por exemplo: demagógica), e voltar a ser nefasta. Trata-se no fundo de dupla defasagem: cópia do advogado francês no fim do século XVIII, e do gênio universal do Renascimento. A ela se deve o “positivismo” no Estado e no Exército, no Ensino e na Administração, nas formalidades e nos cartórios, e em geral no mar de papéis oficiais e semi-oficiais que gera um mar de funcionários públicos aposentados e semi-aposentados.
(d) Modas: O termo não pretende apenas a maneira como se vestem as damas e os cavalheiros da boa sociedade (e, seis meses mais tarde, as senhoras da pequena burguesia), nem o tipo de carros, móveis, expressões idiomáticas e opiniões políticas e religiosas dos quais estas pessoas se servem. Pretende muito mais a maneira como essas pessoas se comportam. Será fornecido um único exemplo de moda, a saber: o comportamento da juventude. O comportamento módico da juventude constitui cultura de múltiplos aspectos. As contestações universitárias européias e norte-americanas passam por aqui para se transformarem em moda. Lá são protesto contra estruturas arcaicas universitárias, no sentido pedagógico e social (já que as universidades não seguem com suficiente rapidez a revolução pedagógica, nas formas da cibernética e do ensino programado, e já que lá continuam burguesas, embora os estudantes não o sejam em grande parte). Mas as mesmas “reivindicações” aqui passam por caricaturas, se reestruturar o ensino significaria, no Brasil, copiar um desenvolvimento que aqui não se dá, e se ensino gratuito significa, no Brasil, o financiamento de alunos burgueses pela sociedade toda. O movimento hippie europeu e americano passa por aqui para se transformar em moda. Lá representa o protesto da juventude contra uma sociedade que se afoga em consumo excessivo para não se dar conta da realidade. Aqui os rapazes e moças de cabelo comprido e roupa suja concorrem, sem esperança de poder vencer, com os miseráveis nordestinos que ocupam a esquina do outro lado da rua. E o mesmo fator “moda” poderia ser constatado na cultura da juventude me outros campos, por exemplo se compararmos os “estudantes para um sociedade democrática” com a “esquerda festiva”. Admita-se que é terrivelmente duro ser jovem em cultura como aquela que aqui está sendo esboçada, e a tentação da moda é extremamente grande. Mas trata-se de alienação que precisa ser rompida, e alguns entre os jovens precisam procurar assumir-se honestamente, sob perigo de serem tachados e pixados de "alienados" e "quadrados" pela direita e pela esquerda vitima de modas. E há indícios que tal rompimento está se tornando sempre mais freqüente. Parte da juventude representa, desde já, um tipo humano sem igual em abertura e flexibilidade (embora não em informação), no resto do mundo. São estes os jovens que sempre renovam a vontade para o engajamento.
Torna-se necessária uma explicação do critério de escolha dos quatro setores da pseudocultura citados. O primeiro critério foi: foram escolhidos dois setores (o da ciência e o da filosofia), nos quais pode ser observada a situação trágica dos que participam de tal cultura honestamente, e dois setores (o da cultura humanística e da moda), nos quais a situação tragicômica dos participantes pouco sérios pode ser observada. O segundo critério é este: todas as quatro faces da cultura pseudo-histórica foram pintadas do ponto do "produtor" de cultura. Porque o consumidor de cultura tende para o kitsch atualmente em toda parte, e isto não distingue o consumidor brasileiro. O terceiro critério é: foram escolhidos alguns entre os "piores" setores da cultura, no sentido de mais difíceis de serem rompidos, e no sentido de menos aptos a serem transformados em cultura verdadeira. Foi um esforço de honestidade, porque entre os setores escolhidos acha-se também o setor no qual o próprio autor está engajado.
A exposição da cultura pseudo-histórica, tal como acaba de ser oferecida, é caricatura (caricatura é esboço que por exagerar o essencial provoca hilaridade). O método é pouco acadêmico (logo, o contrário do seu tema), e visa desesperadamente a fazer os outros ver o que o caricaturista viu. O nível da caricatura é portanto o desespero.
Para resumir o exposto: a cultura básica e autêntica brasileira é encoberta por outra, falsa e pseudo-histórica, feita por burgueses alienados para burgueses alienados e para uma massa alienada. Tal cultura é comparável em muitos aspectos com a cultura burguesa ocidental, por exemplo no aspecto da inflação de informações e das sensações inúteis, no aspecto da sua tendência para kitschização, e no aspecto da vulgarização (ou divulgação, sinônimo) de valores. Tais aspectos, por não característicos, não foram mencionados. Mas há outros aspectos que distinguem a cultura brasileira das outras. O aspecto de ela manifestar espírito alheio, o aspecto de ela tender para o provincianismo e a incompetência, e o aspecto de ela poder servir de veículo para a articulação de uma nova identidade. Pois é este terceiro aspecto, e que falta na maioria das demais culturas, que é a meta deste capítulo todo.
No capítulo que tratou da alienação foi feito um rápido esboço do engajamento burguês em cultura. Avançou-se a tese de acordo com a qual o interesse do burguês em culturas é fuga de realidades insuportáveis, mas fuga que pode, em momentos decisivos, virar dialeticamente engajamento em nova realidade, com efeito, talvez, engajamento dos mais decisivos na situação atual brasileira. A experiência aqui descrita é tanto individual, confessada por numerosos agentes engajados em cultura, quanto coletiva, visível nos fenômenos brasileiros. Vamos tentar desencobri-la em alguns setores.
(a) Poesia: que poemas não são compostos de pensamentos, ou sentimentos, ou visões (ou de outros elementos igualmente nobres), mas de palavras, é fato hoje reconhecido universalmente. E quem diz que poemas são compostos de palavras afirma que permitem três níveis interpretativos. O sintático (no qual se constata a estrutura ordenadora das palavras), o musical (no qual se constam o ritmo e o som das palavras), e o semântico (no qual se constata o significado das palavras, inclusive os pensamentos, sensações, visões e os demais aspectos nobres a que se aludiu). Pois uma coisa é admitir o fato, e outra, inteiramente diferente, é vivenciar o fato na práxis. O poeta brasileiro, queira ou não queira, vivencia o fato praticamente sem teoria alguma, porque a língua brasileira que lhe é matéria bruta é bruta a tal ponto que exige manipulação consciente. Ser poeta no Brasil é praticamente sinônimo de ser poeta verdadeiro. Embora isto seja assim, a alienação da burguesia brasileira era tão forte que até a “Semana de 22” conseguiu encobrir até a língua, tomada como última flor de Lácio, inculta, bela e a ser cultivada. O cultivo deu em galicismos e preciosismos, em cópias defasadas da poesia francesa, e em torrente de críticas literárias e de gramáticas de alto academicismo. Desde então, no entanto, a alienação foi rompida.
Quando os véus ideológicos foram retirados da língua, esta desvendou uma estrutura aproximadamente latina (embora em fase de decomposição), e um repertório do qual participaram línguas das mais variadas origens. Em suma, um sistema tomado de interna violenta que permitiu manipulação profunda sem alteração do espírito da língua, situação esta sem igual no resto do mundo. Um campo aberto e incrivelmente fértil para uma práxis linguística em múltiplas direções, portanto para a poesia (no sentido verdadeiro: criação de língua). Tamanho era o desafio que a fronteira duvidosa entre poesia e prosa foi posta de lado com desdém, e começavam a surgir "obras". Nem todas "grandes" (embora também estas), mas isto não importa. O que importa é que os esforços ensaiados eram revolucionários em vários sentidos.
O repertório da língua foi enriquecido de elementos de todas as línguas disponíveis por imigração em terra brasileira. Este método não apenas enriqueceu a língua (isto seria o de menos), mas modificou os significados das palavras originais em novo contexto, de forma que tornou pensável o até então impensável. Tal introdução forçava o poeta a alterar a estrutura da língua que se recusava a absorver os novos elementos, e tal alteração da estrutura resultava em novas formas a tornar pensáveis situações até então impensáveis. O ritmo português foi enriquecido por ritmos completamente incongruentes, e isto resultou em nova melodia, portanto nova postura vital e nova vivência do mundo. A lienaridade discursiva da língua foi rompida, e com isto foi rompido o “homem unidimensional" do historicismo. Tal rompimento foi conseguido graças a estruturas índias e bantu, a ideogramas japoneses, e à tendência árabe para valorar a letra, mas tudo isto adquiria significado novo em novo contexto. Tal poesia se dava em isolamento, mas em contato constante, e em diálogo desta vez autêntico, com o Ocidente e o Oriente. A revolução é fundamental e manifesta o "novo homem”. O processo é dialético no seguinte sentido: a poesia brasileira manifesta um novo homem, e por manifestá-lo contribui para estabelecê-lo.
(b) Música: parece tratar-se de linguagem universal que liga todos os homens e possibilita comunicação impossível por outros meios. Mas isto não passa de preconceito ocidental, porque a música não passa de linguagem universal do Ocidente. As músicas extra-ocidentais são de compreensão tão difícil e de tradução tão difícil quanto todas as línguas, e basta abrir o rádio no Brasil para constatá-lo concretamente. Pois a alienação burguesa fechou os ouvidos para o fato concreto, até para o fato de na cultura básica haver surgido uma música que conseguiu sintetizar melodia e harmonia portuguesas com ritmo e instrumentalização africanos, e passou a compor em país sem casas de ópera (óperas italianas defasadas). A burguesia contínua construindo estátuas defasadas de compositores defasados em praças defasadas, mas estes são restos superados e a situação da música mudou radicalmente. A revolução atual no campo da música é quase tão complexa quanto o é no campo da poesia, e ainda mais ignorada pela filosofia brasileira. Serão apontadas apenas quatro tendências atualmente em curso. A primeira procura sintetizar, sobre estrutura musical ocidental, elementos de música extra-ocidentais existentes no Brasil, e recorre para tanto a teorias musicais do Ocidente. Esta tendência começa a ter efeito maior fora do Brasil que aqui, por falta de uma crítica merecedora do nome. Uma segunda procura tomar por base a música "de protesto" norte-americana e a declamação em público russa e injetar tal base na música básica popular, por exemplo a carnavalesca e a dos "choros", recorrendo neste esforço também à poesia brasileira. O resultado, conhecido no mundo inteiro por vários nomes (por exemplo, "bossa nova”), está mudando o comportamento da elite brasileira, estabelecendo um primeiro canal verdadeiro entre elite e massa, e tem efeito de bomba no Ocidente. A terceira tendência, muito mais formal, procura voltar até as bases da música ocidental para lá descobrir uma origem que possa ser sintetizada com outras estruturas. Esta ainda não começou a realizar as suas virtualidades, mas por ser a mais "musical" é a mais radical, e grupos significativos de jovens se engajam nela. A quarta procura tomar o carnaval como modelo de verdadeiro happening, no qual a música (inclusive eletrônica) não passa de elemento de jogo. Tal tendência talvez não seja estritamente musical, mas por ser lúdica pode ser aquela que mais violentamente mude a cena.
Tudo isto, no fundo, não passa de promessa, e há tendências na Europa e nos Estados Unidos que parecem ser semelhantes. Mas, se a análise ensaiada for correta, trata-se na realidade dos primeiros sintomas musicais de manifestação da nova mentalidade; as tendências ocidentais seriam, em certo sentido, reflexos de acontecimento brasileiros.
(c) Artes plásticas: Neste campo há, no mundo inteiro, corrida entre produtor e consumidor, na qual ninguém é vencedor e todo mundo é perdedor, já que a oferta de "novidade" não pode satisfazer, apenas atiçar, a demanda. As artes plásticas são o campo no qual a crise atual se manifesta mais claramente, e por isso talvez o campo na qual será superada mais rapidamente. Pois tal caos é tão grande em São Paulo e no Rio quanto em Nova York e Paris, apenas aqui acrescido da onda de amadores incompetentes na qual já se tem falado. Tudo que ocorre no Ocidente ocorre aqui em original durante exposições, e seis meses mais tarde na forma de cópias incompetentes. Mas a despeito disso há fenômenos que provam que também no campo plástico o novo homem começa a articular-se. Tais fenômenos são de tão difícil análise, e exigem tamanha dedicação, que seria leviandade ainda maior no caso dos dois exemplos precedentes querer tratar deles. Uma das mais lamentáveis falhas da filosofia brasileira é a de não se dedicar a estes fenômenos com disciplina (embora existam exposições, como a Bienal de São Paulo, Simpósios e Escolas de Arte que parecem provocar a filosofia). Em vez de dedicar-se a estéticas de Hegel (ou Bense), e analisar textos academicamente, urge analisar tais obras. Aqui basta (e infelizmente precisa bastar) apontar apenas dois fatores. Um tem a ver com o clima lúdico que universalmente penetra as artes plásticas, mas aqui adquire um caráter inteiramente diferente, já que se baseia sobre um traço profundo da essência brasileira. O outro tem a ver com o rompimento da unidimensionalidade do pensamento, graças ao emprego de material transparente, e graças a um nível semântico não discursivo (como desculpa da maneira leviana pela qual este assunto está sendo tratado, o autor aponta trabalhos que publicou a respeito em outro contexto).
(d) Arquitetura: trata-se de ruptura de alienação em dimensão material tão grande que é conhecida até no estrangeiro, de forma que permite uma discussão ligeira. No fundo o processo revolucionário brasileiro procura dar ao termo "habitar" e "abrigar-se" um significado brasileiro, tarefa gigantesca, já que o brasileiro é homem que a rigor não está abrigado, nem habituado com nada. A oposição fundamental do brasileiro com relação à natureza, a vivência brasileira da natureza como mistério tremendo de "madrasta”, sintetiza-se neste campo com elementos japoneses, ocidentais e coloniais em obras gigantescas como a remodelação do Rio de Janeiro, obras essas que ainda não podem ser consideradas “originais”, no sentido de manifestarem uma nova identidade, mas que permitem em inúmeros detalhes (por exemplo, aterros) visualizar essa nova identidade – digamos, na atitude, radicalmente oposta à ocidental, perante o problema da ecologia.
A despeito da superficialidade desta descrição, o caso extremamente ilustrativo de Brasília não pode ser calado de todo. Porque se trata de obra que visa conscientemente ao "novo homem”. É verdade que surgiu de projeto defasado, a saber, do projeto de transformar o Brasil em potência grande - mas tal projeto lhe serviu apenas de pretexto. Para captar a essência de Brasília, que sejam indicados apenas dois aspectos. O primeiro tem a ver com o desdém pela natureza que a cidade manifesta. Impõe-se ela sobre o planalto de forma se diria sarcástica e, embora cercada pelo planalto imenso por todos os lados, vira-lhe as costas. Não há exemplo de tal desprezo da natureza, em semelhante escala, no resto do mundo. O segundo tem a ver com a qualidade curiosamente simbólica da cidade. Trata-se de símbolos altamente "denotativos", já que são símbolos tecnológicos (o plano da cidade tem a forma de avião), ou da teoria política (a praça central simboliza os Três Poderes de uma teoria setecentista). Mas, sorrateiramente, tais símbolos passam de denotativos para conotativos, e lembram, em contexto inteiramente inesperado, macumba. Quem negará, por exemplo, que o Palácio da Alvorada conjura a alvorada? Para encontrar paralelo de uma arquitetura tão não-histórica e tão sofisticada, tão avançada e tão enraizada em fundo mágico-religioso, precisará remontar até as Pirâmides egípcias, ou, melhor ainda, mexicanas.
(e) Técnica: a técnica brasileira (e o técnico brasileiro) merecem um estudo em profundidade não apenas por parte da filosofia brasileira, mas por parte de toda filosofia, porque são fenômenos simplesmente inacreditáveis para quem não os conhece. Conseguem sintetizar teorias científicas, métodos e práxis tecnológicos ocidentais avançados, com a instituição do “palpite genial”, já mencionada. Avançam violentamente contra a natureza de uma maneira que se apresenta para o técnico estrangeiro (sempre presente em empresas importantes), como brincadeira irresponsável. É verdade que tal síntese falha em muitos casos e redunda em fracasso. Mas não é menos verdade que há casos nos quais a síntese resulta em vitórias inesperadas.
É claro que o pensamento ocidental se dá conta do imenso papel do inconsciente em toda atividade humana, inclusive da aparentemente mais racional, como a tecnologia. Sabe disto teoricamente e por depoimento de inúmeros cientistas e técnicos que confessam terem sido "inspirados". Sabe disto e quer tirar disto partido, por exemplo nas experiências chamadas brainstorm nos Estados Unidos. Mas a atitude do técnico brasileiro é inteiramente diferente. Não procura tirar proveito do inconsciente conscientemente, e portanto não cai nesta dialética. O inconsciente nele está quase à tona, a despeito da sua racionalidade disciplinada enquanto técnico, e oferece-se espontaneamente. O resultado é que aqui está surgindo um novo tipo de técnico e tecnocrata, o qual, embora especialista, não perde a sua qualidade humana. Este novo tipo humano pode ter importância imensa para um mundo que tende sempre mais a transformar-se em aparelho e transformar a humanidade em funcionário sub-humano. Em outras palavras: está surgindo no Brasil um homem que supera a falta de valores, a Wertfreiheit da tecnologia.
Para resumir sem cair em "euforia": há, no Brasil, um nível cultural que conseguiu romper a cultura pseudo-histórica e no qual se manifesta um novo homem. Tem ele suas raízes na cultura básica, é irrigado pela cultura ocidental, e está conseguindo síntese de vários elementos que resultam em nova maneira de viver e impor-se ao mundo. Poderá fornecer respostas significativas às perguntas angustiadas de uma humanidade em crise.
O Brasil é sociedade não-histórica, constantemente irrigada pelo Ocidente. O quanto é não-histórica, uma cultura básica caracterizada pelo ritmo africano o prova. Tal cultura tem por efeito um clima festivo e sacralizado que permeia o cotidiano e dá sabor à vida brasileira. O quanto é irrigada pelo Ocidente, uma falsa cultura histórica o prova. Tal cultura encobre com sua vacuidade e seu gosto de mata-borrão a cultura básica, e torna trágica a vida dos que nela se engajam. Tal cultura banha a vida da burguesia em clima de falsidade, de pose, e de articulação de um espírito alheio. Mas tal cultura permite também ser rompida pelos que se encontraram consigo mesmos e passaram a criar um novo tipo de cultura, síntese da básica com elementos ocidentais, mas fundamentalmente não histórica, não obstante.
Tal nova cultura, se bem sucedida, poderia finalmente saciar a fome voraz do espírito do tempo. O sucesso de tal cultura depende de muitos fatores, e grande número desses fatores está além do horizonte brasileiro. Mas alguns deles encontram-se no próprio Brasil, e tem sentido, embora limitado, dizer-se que o sucesso de tal cultura, portanto o estabelecimento do novo homem, depende, entre outras coisas, também de cada homem individual que se engaja nela. Se a tentativa de tal cultura falhar, tudo isso não passará de mais uma esperança utópica a provocar desilusão. Mas, se não falhar, abre horizonte. Tal esperança justifica engajamento, inclusive o engajamento que se infiltrou sorrateiramente, no capítulo presente.
8. Língua
Não importa que coisa a língua possa articular (e somos tomados de vertigem se consideramos quanta coisa pode articular), articula ela também a essência (consciente e inconsciente) do grupo que a ela recorre para comunicar-se. Ela é, entre muitas outras coisas, também espírito de tal grupo tornado objeto. E quem admitir o fato (embora não necessariamente na formulação proposta), deverá concordar que a contemplação de uma língua é um método excepcionalmente apto a revelar o espírito do grupo que a fala. A vivência concreta prova que não pode haver real compreensão do grupo (povo, etnia, ou não importa que nome queiramos dar a grupo linguístico) sem real compreensão, isto é, domínio, da sua língua.
Que três exemplos ilustrem a vivência concreta: a visita a um país cuja língua é ignorada, a pesquisa de uma cultura morta cuja escrita é ignorada, e a leitura de texto antigo cuja língua é conhecida, mas a respeito da qual há dúvida quanto a possíveis modificações de significado. O primeiro exemplo ilustra que a experiência da situação concreta não substitui o conhecimento da língua. O segundo exemplo ilustra que o conhecimento de outros sistemas simbólicos (como a arte) não substitui o conhecimento da língua. E o terceiro exemplo ilustra que a língua tem dinâmica (“vida”), e que seu conhecimento em instante dado não substitui o conhecimento em outro instante. A explicação da importância da língua para a compreensão dos que a ela recorrem é possivelmente esta: línguas são sistemas complexos compostos de símbolos convencionados, e os convênios estabelecedores dos símbolos (e das regras que os ordenam) são antiqüíssimos e inconscientes. O resultado é que línguas, embora ordenadas e portanto de fácil decodificação, podem articular as mais profundas camadas do inconsciente individual e coletivo. São elas expressão do homem inteiro, e do grupo inteiro, e quem as domina participa dos convênios mais íntimos do grupo, de forma que pode compreender o grupo intimamente.
Tais considerações, por si só, já justificam a inclusão de um capítulo dedicado à língua em ensaio que tem por meta descobrir a essência de um grupo. Mas, no caso específico do Brasil, é preciso considerar que não se trata de grupo que é grupo por falar língua comum, mas de multidão que vive em conjunto por razões extralingüísticas, e pode tornar-se grupo apenas se encontrar língua comum a todos. Assim, quem vive atualmente no Brasil é testemunha do processo estabelecedor de convênios profundos, sejam conscientes ou inconscientes, e do estabelecimento de fundamentos complexos. Tais momentos são raros, e o processo é emocionante a ponto de cortar a respiração daquele que se dá conta disto.
O método a ser seguido no presente capítulo é este: será lançado olhar sobre a língua portuguesa, será esboçado o processo pelo qual o português está dando origem a uma língua brasileira, e será ensaiada a tentativa de concluir alguns aspectos da observação do processo.
Todos sabem ser o português língua românica, isto é, língua surgida de um latim vulgar por absorção de elementos bárbaros e manutenção aproximada da estrutura latina, e ser o latim ramo do tronco lingüístico indogermânico chamado kentum, resultado de síntese de dialetos falados no Lácio no início do primeiro milênio antes de Cristo. Pois tais fatos sabidos não são menos complexos por serem sabidos, e implicam série grande de conseqüências importantes. Por exemplo: línguas indogermânicas são línguas que formam sentenças com palavras de vários tipos, tais como substantivos, verbos e palavras "vazias”, e isto tem por conseqüência que as sentenças de tais línguas têm sentidos específicos, a saber: situações nas quais digo algo (representado na sentença por substantivo) se relaciona com algo (representado na sentença por outro substantivo) de alguma ma maneira (representada na sentença por verbo) sobre determinada estrutura (representada na sentença por símbolo lógico, isto é, palavras "vazias"). Em outros termos: tais línguas podem falar apenas a respeito de situações estruturadas mais ou menos logicamente, nas quais algo se relaciona com algo de alguma maneira (Sachverhalte), e não podem falar sobre mais nada. Tais situações perfazem o universo de discurso dos que falam tais línguas.
O latim desenvolve este caráter indogermânico em direção que torna as situações a respeito das quais fala excepcionalmente claras e distintas, e consegue isto graças à manipulação específica do substantivo e do verbo. É isto que se pretende quando se fala em "mentalidade latina". A clareza e distinção latina é comprada ao preço da pouca profundidade, conseguida por outras línguas indogermânicas (como o grego e o alemão) por colagem de substantivos.
O português surge de um latim vulgar (isto é, latim que sacrificou parte da clareza à maior facilidade comunicativa), por assimilação de elementos germânicos e celtas (como toda língua românica), e de elementos semitas (como apenas as línguas da península espanhola). E germânico e celta são igualmente indogermânicos (embora desenvolvam as virtualidades em direção diversa do latim), e de absorção relativamente fácil. As línguas semíticas, no entanto, embora formem sentenças comparáveis com as indogermânicas, manipulam verbos de acordo com regras estritas de maneira que estes passem a ser, imperceptivelmente, substantivos. A conseqüência é que as situações que são o sentido das sentenças das línguas semíticas não são tão rígidas, e portanto muito mais plásticas, do que as situações das sentenças indogermânicas e, principalmente, latinas. Captar tais situações, captando em conseqüência o aroma do universo semítico, passou a ser tarefa da língua portuguesa.
Línguas são resultado de convênios conscientes e inconscientes, isto: de convênios feitos por poucos (poetas e academias) e por muitos (surgem "espontaneamente" do povo). A dialética entre os dois tipos de convênio é a dinâmica da língua, e a literatura (convênio consciente) mostra-se indispensável para a compreensão da dinâmica da língua. No caso do português, a literatura tem história atípica: na Idade Média é comparável às literaturas ocidentais, no Renascimento floresce, para depois decair rapidamente. A consequência é que a dinâmica portuguesa é excepcionalmente fraca no curso da Idade Moderna, e textos renascentistas portugueses são de compreensão incomparavelmente mais fácil que textos contemporâneos alemães e ingleses. Isto confere ao português um caráter arcaico, nítido para quem aprende a língua. O caráter arcaico do português salientou-se no Brasil de duas maneiras. Na boca dos pioneiros, dos índios e de seus descendentes comuns, as formas portuguesas sofreram processo de endurecimento (por falta de contato) e de empobrecimento (por queda de nível). Este tipo de arcaísmo pode ser observado também no inglês dos Estados Unidos. Na boca da população urbana, que se formava lentamente, as formas portuguesas sofreram congelamento proposital, graças a gramáticas, retóricas e academicismos (como defesa contra infiltração do tupi e do bantu). Este tipo de arcaísmo é defasagem.
As duas tendências arcaizantes se davam em oposição a uma tendência simultânea de barbarização, comparável à barbarização européia nos séculos finais da Idade Antiga, mas mais violenta. Elementos tupi (e de outras línguas indígenas) e bantu (e outras línguas africanas) penetravam a língua. Embora não exista o mínimo parentesco entre os dois tipos de língua (indígenas e africanas), e quiçá nem sequer entre as línguas indígenas entre si, todas essas línguas têm estrutura inteiramente diversa da indogermânica e semítica, a saber: aglutinante. A rigor não formam sentenças, mas blocos de palavras aglutinadas por sufixos, prefixos e infixos. As situações que dão o sentido a tais blocos podem ser captadas por línguas ocidentais apenas aproximadamente e de maneira deturpada, e o universo de tais línguas é a rigor impensável ocidentalmente. O português conseguiu absorver elementos tão exóticos apenas graças à sua pobreza.
Esta pois é a situação do português no final do século XIX brasileiro: de um lado uma língua arcaica e barbarizada no interior do país, potencialmente muito rica, mas desprezada pela burguesia. Do outro lado uma língua arcaica e acadêmica, defasada e improdutiva. Ocorria uma situação inteiramente inepta para absorver a onda imigratória prestes a dar-se.
Os primeiros imigrantes falavam quase exclusivamente línguas românicas (português, castelhano e italiano). O resultado é curioso: línguas próximas da materna não exigem esforço para serem aprendidas, o esforço não é mobilizado, e a língua aprendida perde pois caráter. Assim surgia na boca do imigrante um terceiro português, uma espécie de esperanto. Em outros termos: língua de fácil apreensão e facílimo manejo, e canal de comunicação ideal para um proletariado em formação lenta. Mas língua de pouca profundidade, elasticidade e acento, e péssimo canal de comunicação entre indivíduos que procuram comunicar pensamentos e sentimentos mais complexos. A conseqüência é que tal língua comunicava bem entre grupos de imigrantes de várias origens, mas que no seio das famílias continuavam prevalecendo as línguas maternas européias, embora empobrecidas e decadentes.
Tal situação não pode durar, por duas razões diferentes. A primeira é que os descendentes dos imigrantes não podem satisfazer-se com surrogate languages (em português, aproximadamente, "línguas emprestadas"). A segunda é que chegavam imigrantes de terreno lingüístico variado - polonês, iídiche, árabe e japonês -, para os quais o novo esperanto não oferecia sequer a vantagem da facilidade. Pois é fácil dizer que tal situação não pode durar, e difícil imaginar como pode ser alterada. A língua não se baseia apenas em convênios conscientes, como a Constituição ou o Bridge, e não pode ser alterada deliberadamente. Quando Wittgenstein fala em "jogos lingüísticos", sempre recorda o fato de tratar-se de jogos parcialmente não deliberados. A situação brasileira foi alterada, efetivamente, mas não apenas deliberadamente. Tal autêntica revolução se explica pelo seguinte: o problema não envolveu o país todo, mas apenas o Sul imigrado. Portanto a situação era esta: a população rural falava o português arcaico e bárbaro em todo o imenso terreno, sem diversificação dialética digna de nota (exceção feita à castelhanização nos extremos). O proletariado das grandes cidades sulinas falava o português-esperanto, que tomava conta rapidamente do rádio e da imprensa, e em casa falava as mais variadas línguas barbarizadas (há excelentes estudos do alemão e do iídiche brasileiros). E a burguesia falava o português acadêmico, fortemente adubado no Sul pelo português-esperanto. A dialética lingüística em tal situação funciona da seguinte forma: todo processo em uma das três variantes do português ou afeta as demais e provoca reação, ou sossega. Mas como a variante rural e burguesa está em situação de rigidez arcaica, os processos partem do português-esperanto, para afetar as outras variantes. O português-esperanto, tomado pela infiltração violenta de elementos sintáticos, léxicos e musicais incongruentes, ameaça desfazer-se em caos babilônico, e é apanhado assim pelo português da burguesia. A burguesia procura, em parte conscientemente, absorver a quantidade colossal de ruídos e torná-los redundantes, e descobre no curso do esforço que sua própria língua não basta para tanto. Recorre portanto à variante rural, e descobre a riqueza virtual dessa variante. Os elementos heterogêneos na variante rural abrem tal língua para absorver outros, e a língua não se desfaz graças ao academicismo da língua burguesa. Assim a burguesia cria, quase conscientemente, uma síntese das três variantes, a língua brasileira in statu nascendi. Tal língua a burguesia lança, enquanto canal comunicativo, na direção do proletariado que a apanha rapidamente, já que sedento da verdadeira língua. Passa a manipulá-la inconscientemente, e a devolve manipulada à burguesia. E esta continua o processo digestivo, agora tomada da vertigem de criação, e acrescenta ao processo elementos deliberados, como neologismos. A tal processo imenso se abrem ate as academias (onde se incluem homens como Guimarães Rosa e Drummond de Andrade), de maneira que a nova língua em formação inunda inclusive repartições e livros de ensino. Este pingue-pongue criativo é limitado, no entanto, pelo seguinte fato: a variante rural dele participa apenas passivamente, enquanto fonte para a burguesia. Não se altera, ela própria, e, até que não seja tomada pelo processo, não se pode falar ainda em língua brasileira. Trata-se do mesmo problema fundamental que acompanha este ensaio todo: enquanto a população rural não participar dos processos revolucionários que ocorrem no Brasil, estes processos todos carecerão de fundamento.
A relação entre língua e pensamento é tão forte que tem pouco sentido querer distinguir-se entre ambos. É duvidoso se pensar existe sem língua, e se pensar não passa, no fundo, de um falar baixo. Mais duvidoso ainda é se existe um falar desacompanhado de pensamento. Este não é o lugar de participar da polemica a respeito. Basta constatar que a maneira de se falar manifesta a maneira de pensar, e que toda modificação da língua implica modificação do pensamento. A estrutura da língua corresponde à estrutura do mundo vital de tal maneira que é possível dizer-se que a língua lança sua estrutura sobre o ambiente e o transforma assim em mundo da vida. Isto explica porque quem fala várias línguas vive em vários mundos, e porque o mundo se modifica quando se modifica a língua (acontecimento raro, observável não apenas no Brasil, mas no Japão de hoje). Se for assim, então a modificação da língua no Brasil implica a modificação do pensamento brasileiro, e a modificação do estar no mundo brasileiro. E isto implica que ser brasileiro não é estado, mas processo, que o brasileiro é tomado de sensação de irrealidade, e que está surgindo aqui um novo homem.
A discursividade é propriedade das línguas indogermânicas e semíticas, e diz que tais línguas alinham sentenças linearmente, tanto as faladas quanto as escritas. Apenas as indogermânicas escrevem mais linearmente que as semíticas, já que estas, não notando vogais, permitem maior abertura. A conseqüência é que o universo de tais línguas é composto de situações organizadas linearmente, e é isto que se pretende por "historicidade". O habitante de tal universo é o "homem unidimensional", e ele está se tornando problema na atualidade. Um aspecto formal do problema é: a linearidade de tais línguas é "aritmética" (aliás, Descartes acreditava ser isto característico de todo pensamento), mas permite desenvolvimento formal em mais dimensões (por exemplo, na forma das equações de grau variado). A Física atual tende a articular-se em equações do quarto grau, e o sentido de tais equações não pode ser traduzido sem distorção para as línguas discutidas. Em outras palavras: se as línguas transformam com sua estrutura o ambiente em mundo vital, a Física e outras ciências da natureza comunicam algo do ambiente que não faz parte do mundo vital do homem unidimensional e, embora possa ser pensado, não pode ser vivenciado imediatamente. O resultado é que o homem unidimensional, embora condicionado pela ciência e suas conseqüências, participa delas vivencialmente, e é coisificado.
A discursividade linear não é propriedade de todas as línguas. Não tem sentido falar-se em linearidade do tupi, do bantu, nem, a rigor, da língua japonesa. O universo de tais línguas não consiste de situações organizadas linear e historicamente, mas de situações organizadas de outra maneira. Acrescente-se que nas línguas orientais é preciso distinguir entre fala e escrita, e a escrita tem nitidamente duas dimensões, como os retângulos dos ideogramas. Em tais universos o homem unidimensional não existe.
No momento, restringe-se a observação a um único aspecto da modificação da língua no Brasil, o aspecto da ruptura da unidimensionalidade. Outros aspectos igualmente revolucionários são tema para uma filosofia brasileira merecedora do nome. O processo da ruptura não é simples, e não consiste simplesmente na absorção de elementos multidimensionais (tupi ou ideogramas). Tais elementos existem há séculos, e são aceitos inclusive pela língua acadêmica na forma de nomes (Anhangabaú, Pindamonhangaba). Os elementos bantu igualmente multidimensionais foram manipulados, tomando-se o "-o" final por masculino, e o "-a" final por feminino (mocambo, umbanda). O processo da ruptura, entretanto, tem origem diferente.
O pensamento ocidental, em sua tentativa de romper a unidimensionalidade, recorreu aos porte-manteaux sugeridos pelo grego e alemão (Donaudampfschiff-fahrtsgesellschaft, kallokagathia), e aos ideogramas japoneses (em Ezra Pound, por exemplo). A burguesia brasileira, alienada e voltada para o Ocidente, tomava conhecimento destes esforços. Pois repentinamente descobria que, para buscar porte-manteaux não precisava viajar até a Grécia, e para buscar ideogramas não precisava viajar até Pound, mas que, em ambos os casos, bastava tomar um ônibus municipal de São Paulo. A alienação virou dialeticamente engajamento, porque uma nova realidade se abria, a saber: a realidade lingüística brasileira. E esta oferecia obstáculos tremendos. Era necessário, em primeiro lugar, romper a estrutura arcaicamente latina da língua portuguesa, e admitir que a "latinidade" brasileira não passava de ideologia. Tal ruptura foi conseguida pelo desprezo pela interpunção e dos acentos, pela introdução de nova interpunção, e pelo uso da antiga interpunção de forma nova. Em segundo lugar era necessário encontrar nova grafia, nova disposição da página impressa, e nova atitude perante a letra. Em terceiro lugar tornou-se necessária nova atitude perante fenômenos unidimensionais como o são o livro, a revista, o jornal (que já têm aspectos de duas dimensões) e do filme Os exemplos podem ser multiplicados, mas o curioso f que o semi-analfabetismo da sociedade facilita enormemente todos estes processos.
Pode parecer, à primeira vista, que tendências paralelas às aqui enumeradas ocorrem nos Estados Unidos e na Europa, e que tudo isto portanto não passa de defasagem. Seria um erro. Nos países históricos trata-se de tentativa deliberada de romper a linearidade do discurso, mais um sintoma da crise da história mencionada ao longo deste ensaio. E no Brasil trata-se da tentativa de descobrir a própria identidade, que é identidade não-histórica, portanto não-linear, e não-discursiva. A prova da diferença é pragmática: as tentativas ocidentais começam a tomar as brasileiras por modelo.
Obviamente, a revolução lingüística ora em curso no Brasil não pode ser captada tomando apenas este único aspecto. Se filosofar é refletir, e se língua é pensamento objetivado, não resta dúvida que a revolução lingüística brasileira é campo óbvio para ser arado pela filosofia brasileira com o suor do rosto. Para tanto seria necessário não esquecer as teorias lingüísticas ocidentais, mas ter a coragem de pô-las de lado para permitir que a situação concreta da língua no Brasil, com sua enorme fertilidade, sugira novas categorias do seu conhecimento. A práxis já existe. Não será práxis digna do nome, se não for seguida e informada por teorias.
O novo homem, qualquer que seja a definição que queiramos formular a seu respeito, é homem que pensa de forma diferente do velho e vive em mundo vital diferente do velho. A revolução lingüística brasileira atesta, no seu aspecto mais profundo, o surgir do novo homem, a saber, de um homem não-histórico (multidimensional), para o qual a história (o discurso) não passa de uma das dimensões nas quais pensa e vive - portanto, um homem que sintetiza história e não-história em síntese que não é tese de um processo seguinte. A revolução lingüística atesta o surgir de tal homem, mas não a existência de tal homem. Não há aqui língua brasileira, no sentido de língua que possa ser aprendida e utilizada como canal de comunicação em todos os níveis. Se tal língua existisse, o novo homem estaria existindo. O que há é apenas situação que convida o engajado a colaborar ativamente na elaboração de uma tal língua do "futuro" (este é o problema apresentado). Por isso o presente ensaio afirmou, em outro contexto, que carece de sentido perguntar o que é ser brasileiro, mas apenas o que pode ser o brasileiro. Ser brasileiro é tarefa da poiesis, do engajamento criativo.
Resumindo: no Brasil está ocorrendo um processo em muitos níveis que tende a transformar um substrato arcaico e primitivo em estrutura complexa e sofisticada, pelo método de elaboração consciente e absorção maciça de elementos históricos do Ocidente. O processo se dá mais significativamente no nível lingüístico, prova que se trata de processo autêntico, porque grandemente não deliberado. Se e quando o processo alcançar sua meta, terá surgido um novo homem sem igual no resto do mundo.
9. Diagnóstico e prognóstico
A introdução deste ensaio discutia a razão do trabalho. Agora retoma o assunto. Nada é mais afastado do presente trabalho do que a atitude nobre que despreza um possível consumidor por considerar-se auto-suficiente e visar à perfeição acabada. A atitude é, pelo contrário: todo trabalho ou comunica ou não passa de pose. Todo trabalho é dialógico no sentido de “para o outro” e no sentido de "esperar por resposta". É dialógico no sentido radical de não ser nada, se não respondido. Isto vale até para trabalho cientifico, o qual. embora vise "objetividade", isto é, discursividade, não obstante tem o outro por horizonte. Mas vale muito mais para este ensaio, que não quer ser científico, nem objetivo, mas dialógico e até polêmico, já que parte de ponto de vista determinado. Quer ser portanto "digno de interrogação" (fragwuerdig), vale dizer: duvidoso a ponto de ser suspeito. Daí os elementos altamente subjetivos, e as óbvias incorreções e injustiças que o penetram. Não que tenham sido deliberadas: ocorreram. Prova da atitude. Pois agora se põe a questão: com quem dialoga este ensaio?
Em primeiro lugar, com o brasileiro, que tem papel duplo neste ensaio: é o objeto enfocado, e é o sujeito que enfoca. Isto não passa de reformulação da dialética da imigração elaborada no primeiro capítulo deste ensaio. Em outros termos: o brasileiro é visto de fora e de dentro. Mas "de fora" significa, no caso: da Europa. De maneira que o europeu é tácito (ou explícito) ponto de referência para o ensaio, em que se visam dois parceiros: o brasileiro e o europeu. Para o brasileiro, quer ser espelho, altamente distorcido por ponto de vista específico, portanto espelho quiçá a ser quebrado. Para o europeu, quer ser depoimento de situação que se dá no seu horizonte (sem ser notada, ao menos com o devido interesse), depoimento distorcido pelo engajamento, portanto a ser retificado. A duplicidade da mensagem presente abriga perigo: ser inaceitável para o brasileiro por excessivamente europeia, e para o europeu por excessivamente brasileira. E uma vantagem possível: permitir tanto ao brasileiro quanto ao europeu se ver a si próprio de fora. A vantagem, se for real, não exige comentário, já que se oferece no próprio ensaio - ou não existe. Mas o perigo merece ser comentado.
O brasileiro reluta em aceitar pontos de vista europeus, porque tem experiências e preconceitos a respeito. As experiências têm a ver com o fato de o Brasil ser para europeus individuais campo de manipulação econômica e campo de ilusão turística, e para sociedades europeias campo de manipulação econômica e política - em todos os casos, campo objetivado. Os preconceitos têm a ver com o fato de o brasileiro tender a ver na Europa a pátria perdida que o abandonou; enquanto filho recusado, ou a idealiza ou a minimiza.
Para o europeu, que tem imagem nebulosa do Brasil (se é que tem imagem), a ambivalência é outra. De um lado assume-se centro do mundo (dada a sua historicidade), centro portanto de todos os fios, inclusive o brasileiro. Tal assumir-se é reforçado pela constatação de ser a Europa lugar de acontecimentos decisivos para toda a humanidade. De outro lado, o europeu sabe da tendência para o deslocamento do centro, desde a Europa, para outros lugares ocidentais, e sabe da outra tendência mais profunda, do deslocamento do centro, desde o Ocidente, para lugar desconhecido. Tal ambivalência tem por consequência a seguinte atitude do europeu perante o Terceiro Mundo: sente-se responsável pelos acontecimentos que lá ocorrem (como o provam demonstrações públicas em determinados momentos), mas não quer se informar profundamente a respeito de tais acontecimentos (porque receia descobrir que os acontecimentos se dão, parcialmente, por culpa dos europeus, e que tendem a escapar à decisão europeia). Em outros termos: enquanto o Terceiro Mundo permitir interesse "objetivo" (no sentido do interesse que se manifesta em manipulação e bons conselhos), tudo vai muito bem, mas se o Terceiro Mundo exigir interesse "subjetivo e inter-subjetivo" (isto é, diálogo), a coisa se torna um tanto perigosa.
O perigo do presente ensaio é ser vítima do fogo cruzado de mal-entendidos e preconceitos. O perigo deve ser assumido, na tácita esperança de que o próprio ensaio possa contribuir um pouco para esclarecer mal-entendido e explodir preconceitos.
Isto sugere um método possível de leitura deste ensaio por parte do "outro": procurar reconhecer-se, tanto brasileiro quanto europeu. Porque uma coisa é fundamental e não deve ser esquecida: o ensaio visa descobrir a essência brasileira no brasileiro, mas tal essência não passa de aspecto do genericamente humano. Em outros termos: se for verdade que no Brasil está em formação um novo tipo humano, este tipo, por ser humano, diz respeito a todos os homens, ou não diz respeito a nenhum, e será somente assim que será porventura realizado, e não necessariamente apenas no Brasil. É verdade, este é somente um dos possíveis métodos de leitura. Mas tal método sugere os seguintes prognóstico e diagnóstico da humanidade.
O termo "prognóstico" exige esclarecimento: é tentativa de ver o futuro que nada tem em comum com profecia ou com futurologia - com profecia, porque não visa descobrir o futuro, mas preocupar-se com ele; com futuração, porque não projeta curvas e não planeja. Pelo contrário, a futuração será, a seguir, considerada produto de mentalidade histórica, portanto, não brasileira. Diagnose e prognose não passam de tentativa de se ver um fenômeno dinamicamente presente.
Quem tentar ver o globo do ponto de vista de astronauta na Lua (de astronauta interessado não na Lua, mas na Terra, e equipado com instrumentos que permitem observar a Terra), terá a seguinte visão da humanidade: ela não está distribuída uniformemente, mas vive em oito aglomerações, das quais seis no hemisfério norte e duas no hemisfério sul, e são estas: no leste norte-americano, na Europa, no norte da Índia, na península malaia, no arquipélago da Sonda, no leste chinês (incluindo o Japão), no ocidente africano e no sudeste sul-americano. As aglomerações se unem entre si por numerosos canais comunicativos, exceção feita à primeira e à última, que são isoladas. Isto sugere que as duas aglomerações não surgiram "espontaneamente", mas deliberadamente, por salto. Mas, se o telescópio do astronauta for realmente bom, descobrirá que a aglomeração norte-americana está ligada por inúmeros fios tênues à européia, enquanto que a sul-americana está isolada. O astronauta concluirá o seguinte: a humanidade composta por mais de três bilhões de indivíduos vive em aglomerações ligadas entre si, exceção feita a um grupo, com aproximadamente 120 milhões de indivíduos, que foi expulso da comunhão dos homens. Esta conclusão despertará no astronauta um interesse especial pelo grupo expulso.
O presente ensaio compartilha desse interesse. Apenas concentra-se na parte maior do grupo, a brasileira, e despreza a parte menor, a uruguaia e argentina. A explicação desse fato curioso é: embora se trate de grupo compacto, as duas partes quase não se comunicam, embora se comuniquem, cada uma por si, precariamente, com o resto da humanidade. Tal explicação torna no entanto o grupo ainda mais curioso, já que sugere tratar-se de gente que nem sequer assume a situação geográfica na qual se encontra. E tal sugestão é efetivamente um bom ponto de partida para a consideração dessa gente.
A hipótese é esta: trata-se de pessoas de tal forma atordoadas pelo seu exílio que vagueiam, tontas, na imensidão vazia do seu espaço. A hipótese é boa, e numerosas observações feitas ao longo do presente ensaio a sustentam, mas por si só não basta. Múltiplos indícios existem que essas pessoas começam a acordar e dar-se conta de si mesmas. E este acordar se dá em momento crítico, a saber em momento no qual o resto da humanidade parece tomado de delírio, precipitando-se rumo a um abismo. Este, o diagnóstico proposto pelo presente ensaio.
Podem ocorrer dois, e apenas dois, desfechos: ou a humanidade arrastará consigo o grupo atordoado no progresso rumo ao abismo, ou o grupo acordou o suficiente para resistir ao impulso, salvar-se e possivelmente contribuir para sustar o progresso da humanidade. Em outros termos: ou o Brasil é um país em pleno desenvolvimento (vale dizer, à beira daquele abismo), ou o Brasil é país que dá origem a uma nova maneira de estar no mundo. Este, o prognóstico proposto no ensaio.
Falemos, em primeiro lugar, do delírio que aparentemente tomou conta da humanidade. Uma elite decisiva da sociedade ocidental crê que a liberdade e a dignidade humana residem na aceitação consciente da tentação dialética entre sujeito humano e mundo objetivo, tensão esta que se desenvolve historicamente. Crê nisto, embora tal desenvolvimento tenha demonstrado ultimamente resultar em escravidão e indignidade. Tal elite dispõe de poder para imprimir esta sua ideologia sobre a humanidade toda. A conseqüência é que a humanidade toda (embora não acompanhe as complexidades da ideologia) é arrastada por ela. Uma parte da humanidade, para a qual a ideologia é alheia, até passa a inverter os métodos de ideologia (ciência e tecnologia), a fim de depor a elite, mas continua progredindo rumo ao abismo.
Este não é o lugar para aprofundar-se na origem platônica-judaica da ideologia, e no seu desenvolvimento pelo cristianismo e pelo humanismo. Basta mostrar que se trata efetivamente de ideologia. Tal demonstração tem sido elaborada repetida vezes, pelo menos a partir de Nietzsche, e de maneira sempre mais clara. Tem portanto sentido a afirmativa que reconhece Platão como o primeiro pensador e Nietzsche como o último, em tal ideologia - o Zarathustra nietzschiano seria a inversão do sábio platônico na caverna. Que se trata efetivamente de ideologia, no sentido de haver ocorrido um erro nefasto na raiz de tal pensamento, tornou-se consciente em Husserl, que exige desmontar Kant, Descartes e Aristóteles (nesta ordem), e em Wittgenstein, que abandona a estrutura toda para vê-la "de baixo" e compará-la com outras.
O erro fatídico, que se esconde em alguma parte da raiz da ideologia ocidental, e que durante milênios continuava escondido, surge à tona atualmente, em muitos contextos. Na epistemologia como o pseudoproblema "sujeito conhecedor/objeto conhecido", e portanto como dicotomia "idealismo/realismo". Na ética como pseudoproblema e dicotomia "corpo/alma". Na estética como pseudoproblema e dicotomia "belo/bom". Na matemática como pseudoproblema "aritmética/geometria", e portanto, nas ciências da natureza, como dicotomia "quanto/contínuo". E na técnica (esse derradeiro, e o mais importante, produto da ideologia toda) como pseudoproblema "homem/instrumento" e como dicotomia "aparelho autônomo/homem funcionalizado", e é na forma de tal dicotomia nefasta que o erro fatídico sacode atualmente a ideologia toda.
Os exemplos sugerem o lugar aproximado no qual o erro ocorreu: na antropologia. A ideologia imagina o homem como ente na natureza, mas não da natureza. Como ente histórico e alienado do seu ambiente. Tal antropologia funcionou na sua prática maravilhosamente bem durante milênios (graças à ciência e à tecnologia), e tal funcionamento encobria o seu caráter ideológico e abstrato. Mas agora se torna óbvio tratar-se de imagem do homem que encobre a sua realidade concreta, a saber: o seu estar aqui e agora. A ideologia não vê o homem concreto com suas alegrias e sofrimentos, seus sentidos e seus sonhos, sua vida e sua morte, mas apenas vê o homem que não existe em nenhuma parte e nunca. Tal desprezo do concreto se vinga (como dizemos, atualmente, com a sabedoria do profeta invertido) e ameaça a humanidade com a catástrofe do abismo entre as várias dicotomias.
Tudo isto, aqui exposto de maneira sumamente superficial, é elaboração é sintoma das tentativas desesperadas de romper o delírio e reencontrar o concreto. Mas, embora assim seja, todas essas tentativas do Ocidente para reencontrar a realidade se dão no seio da própria ideologia, embora contra ela, e são portanto “reacionárias” (conforme afirmam, com razão, marxistas e neomarxistas, os defensores mais típicos da ideologia, com respeito ao existencialismo, ao positivismo lógico, ao estruturalismo, e com respeito ao movimento hippie). São reacionárias no sentido de que toda verdadeira revolução, no seio de tal ideologia, necessariamente resulta em mais um passo rumo ao abismo. Tal afirmativa apenas significa que atualmente o progresso se automatizou a tal ponto que despreza as meras relações humanas. A “revolução americana”, que dizem estar ocorrendo atualmente, nada modifica a este respeito, por ser antiprogressista, portanto fadada ao malogro. A revolução chinesa, esta sim (por parcas que sejam as informações a seu respeito), parece querer tirar as últimas conseqüências da ideologia, e o abismo então se aproxima mais rápido a cada dia que passa. Mas, no Brasil (e quase que apenas no Brasil), estão surgindo tendências que se opõem a tal ideologia sem serem reacionárias, porque não são “contra”, mas estão “acima”.
A ideologia progressista tem, no Brasil, papel diferente do que em outras terras não-históricas tais como a China. Não se trata de ideologia importada como na China, mas de parcela da própria mentalidade brasileira, trazida pelos primeiros imigrantes e constantemente reforçada por outros. Neste sentido o Brasil é efetivamente “cristão”. Mas a ideologia progressista não é substrato de todo pensar, esperar, sonhar e agir, como na Europa, não passando de um dos elementos da sua mentalidade a determinar grande parte do pensar, sim – mas não o resto. Nesse sentido, o Brasil não é “cristão”, afinal de contas. Por isso, o brasileiro pode assumir atitude muito mais independente perante a ideologia que o europeu (embora termos como “acima” e “embaixo” sejam apenas relativos, não deixa de ser sintomático que Wittgenstein afirme estar “abaixo” da ideologia, os estruturalistas se percebam “de fora”, e o brasileiro tenha a sensação de estar “acima”).
Pois tal estar au dessus de la melée é extremamente problemático, e tem sabor de uva azeda. Se esta atitude fosse assumida apenas por pensadores brasileiros (e por pequena minoria entre estes) seria desprezível. Não provaria nada a não ser a tentativa de transformar um defeito (estar eliminado) em vantagem (estar por cima). Só que tal “estar acima dos acontecimentos” não é atitude do pensador, mas sim gesto concreto do dia-a-dia. Por exemplo, na forma do jogo. Por exemplo, na relação cordial entre as pessoas, e que despreza “atos”. Por exemplo, na atitude assumida perante a miséria do outro. Por exemplo, na arte e na tecnologia. E, por exemplo, mais significativamente, na língua. Todos estes exemplos provam concretamente que, no Brasil, o “estar acima dos acontecimentos” não é pose, mas atitude autêntica, e que pelo contrário, “participar” aqui é pose. Para tirar tal afirmativa de um possível opróbrio historicista, o primeiro exemplo, o dos jogos, será iluminado um pouco mais intensamente.
O termo “jogo” passou a ser central na atualidade, e é característico do momento em que estão surgindo, ao lado de outras teorias formais (como a da decisão, a da informação, a dos sistemas complexos), e estreitamente relacionadas com elas, também teorias de jogos. É característico, por duas razões diferentes. A primeira é que isto prova que o pensamento formal se opõe ao histórico, e a segunda é que isto prova que “jogo” não mais é tido por função de outras atividades, mas outras atividades é que são tidas por função de jogos. Esta segunda razão significa que a seriedade e a moral de trabalho do burguês estão sendo superadas. “jogar” não significa mais apenas atividade preparatória para o trabalho, ou atividade restauradora de forças depois do trabalho, mas, pelo contrário; ciência, economia, técnica e guerra não passam agora de variantes de jogos. Consequência da nova atitude é nova terminologia, portanto novo pensamento. Fala-se em regras do jogo da ciência, em estratégia no jogo da economia, e o enfoque wittgensteiniano da língua como jogo redobra significado.
É possível engajar-se de várias maneiras nos jogos. Por exemplo: jogar para ganhar, arriscando derrota. Ou jogar para não perder, para diminuir o risco da derrota e a probabilidade da vitória. Ou jogar para mudar o jogo. Nas duas primeiras estratégias o engajado se integra no jogo, e este passa a ser o universo no qual existe. Na terceira estratégia o jogo não passa de elemento do universo, e o engajado está "acima do jogo". Se ciência for jogo, o técnico se engaja nela pela estratégia um ou dois, e o cientista pela estratégia três (procura mudar o jogo, alterar suas regras e introduzir ou eliminar elementos). Se língua for jogo, o participante da conversação se engaja nela pela estratégia um ou dois, e o poeta pela estratégia três (pelas razões indicadas). O mesmo pode ser assim formulado: quem aplica estratégia um ou dois esqueceu que está jogando (por exemplo: técnico, participante de conversação, industrial, político, general e líder estudantil esqueceram que estão empenhados em jogo). Quem aplica estratégia três sempre conserva distância suficiente para dar-se conta do aspecto lúdico da sua atividade (por exemplo: cientista teórico, poeta filósofo e futurólogo). Também a história pode ser considerada jogo. Sob tal enfoque, quem pensa historicamente esqueceu que está jogando. E quem aplica estratégia três à história não pensa historicamente, por estar distanciado.
Pois um tal enfoque lúdico da história não é novidade. Omar Khayan diz, pela boca de Fitzgerald, que its all a checquerboard of might and davs, whereon faith with ourselves for pieces plays, há quem considere a vida humana jeu de l'amour et du hasard. O enfoque lúdico da história é resultado do próprio jogo histórico, como o prova a teoria dos jogos que surgiu no Ocidente. Embora assim seja, tem sentido a afirmativa de que o verdadeiro homo ludens (ou, quem aplica a estratégia três) não habita o historicismo, e nele não se sente abrigado. O Brasil é prova disto. O brasileiro aplica estratégia três sem qualquer teoria, é homo ludens espontaneamente, e com isto se torna o oposto exato do jogador de Dostoievsky.
Em português, de modo característico, existem dois verbos para significar o play inglês, o spielen alemão, o jouer francês: o futebol é "jogado", enquanto que o carnaval é "brincado". Os termos "brincar" e "brincadeira" são de difícil captação para quem não fala o português, já que não significam apenas "jogar alegremente e sem regra", nem significam apenas "fazer graça", mas, também. "agir com facilidade". Este profundo significado do verbo aparece na expressão "o brasileiro trabalha brincando e brinca trabalhando". Semelhante significado não aponta apenas a estratégia três, mas também um desprendimento quase alegre, espontâneo, e quase sacro. Significa o homo ludens.
Percebê-lo nos coloca no lado contrário da futurologia, pensando a aplicação da teoria dos jogos à história humana. Procura ela descobrir as regras do jogo, os elementos do jogo, a situação atual do jogo, e os lances possíveis. Se todos os lances possíveis no jogo resultarem em situação indesejável, propõe a futurologia que sejam mudadas as regras, ou os elementos, ou ambos. Tal proposta parece provar estar a futurologia "acima da história", tendo superado o pensamento historicista. Não descobre ela o futuro (qual profecia, que é um dos berços do historicismo), mas manipula o futuro. Pois quem brinca não pode fazer futurologia. Porque quem brinca não está empenhado em futuro histórico (porque o futuro da futurologia é histórico, apenas história manipulada), mas em futuro existencial que a própria brincadeira estabelece. Não se preocupa com o futuro, e neste sentido é o homo ludens, um homem despreocupado. Mas avança contra o futuro, e neste sentido pré-ocupa o futuro. É despreocupado, portanto pré-ocupa. O exemplo do técnico brasileiro, discutido no capítulo "Cultura", ilustra o caso. Quem tem palpite genial trabalha brincando. Tal atitude permite que os problemas (o futuro existencial) se apresentem e, ao se apresentarem, revelem aspectos insuspeitos. O técnico, enquanto homo ludens, está acima dos problemas, porque não apenas interessado na sua solução, mas nos próprios problemas. Não mergulha neles qual homem histórico, já que não os toma inteiramente a sério, e tal distância permite novo tipo de engajamento. Estratégia três é o nome desse engajamento na teoria dos jogos. Quem pois resolve problemas brincando e brinca com problemas, não para resolvê-los mas para tê-los, tem futuro, possui futuro, não é possuído, não é possesso por ele, e pode recorrer à futurologia como apenas um dos seus instrumentos disponíveis.
O técnico é exemplo de homo ludens tomado da elite brasileira. Que seja completado por outro muito mais modesto. O imigrante nota surpreso a total indiferença do brasileiro com relação ao barulho. Choferes de táxi ligam o rádio num volume tal que desespera o passageiro. Nas lojas e nos restaurantes reverberam músicas ignoradas por todos em decibéis incontáveis, e nos cinemas a fita sonora praticamente ensurdece. Este fenômeno pode ser interpretado de duas maneiras. Pode se dizer que isto prova a solidão do brasileiro, e os rádios portáteis, que acompanham o proletário constantemente, deporiam a favor de tal tese. Mas se pode dizer também que o brasileiro está acima do barulho. Tal leitura do fenômeno implica a constatação de que o brasileiro, ao contrário do europeu, não está banhado pelo barulho e engajado nele, mas brinca com o barulho e brinca de fazer barulho. É homo ludens em forma assumidamente primitiva.
No capítulo sobre a alienação, várias formas de jogos foram discutidas, como o futebol, a loteria e o carnaval, portanto formas que fazem parte do nível cultural aqui chamado "básico". Tais formas provam ser o brasileiro basicamente homo ludens. O exemplo do técnico ilustra como este traço básico pode romper a pseudocultura histórica e estabelecer-se em nível elevado e complexo. Não é o único exemplo possível. A literatura, as artes plásticas a música já provam outras realizações no mesmo sentido, e há virtualidades ainda inaproveitadas. O homo ludens consciente está surgindo em toda parte, e ele é aspecto importante do novo homem.
Os países históricos são vítimas de ideologia que começa a revelar-se delírio, delírio este que ameaça não apenas a liberdade e a dignidade humanas, mas talvez até a existência física humana. No Brasil a ideologia progressista opera, e opera com maior justificativa, porque aqui ainda não foi alcançado o nível que torna o delírio evidente. Mas, a despeito disso, a ideologia não permeia o ambiente brasileiro, apenas o encobre superficialmente. Sob tal manto se prepara nova identidade humana, que em certos lugares já rompeu a cobertura e surgiu à tona.
Isto não significa ser o Brasil o único lugar no mundo no qual o processo ocorre, nem que o Brasil seja a única esperança para a humanidade. Se fosse assim (considerando-se a situação atual do Brasil), a humanidade estaria em maus lençois, a ponto de desesperarmos todos. Não se defende aqui uma atitude messiânica quanto ao Brasil. A tese defendida é aproximadamente esta: o homem dispõe de capacidades incríveis de não apenas safar-se de situações aparentemente sem saída, mas até de enriquecer-se com tais experiências adquiridas. Isto ele tem provado no curso da história, e provavelmente ainda melhor no curso da pré-história que ignoramos. Atualmente ele se encontra mais uma vez em situação difícil. O fato de ter sempre se safado no passado não prova que conseguirá o mesmo atualmente. No entanto, em vários lugares surgem sintomas que tornam possível nutrir-se esperança de que a humanidade se salvará ainda uma vez, e afirmará sua dignidade perante o absurdo que é o mundo. E um dos vários lugares (não de muitos lugares) é o Brasil da atualidade.
Eis o diagnóstico e o prognóstico para o brasileiro atual do ponto de vista de um imigrante que se engaja nele e com ele: o Brasil é país miserável, há fome e há doenças, grande parte da população vegeta em primitividade secundária, encontra-se condicionado por natureza pérfida e forças externas. Em tal situação de miséria, porém, existem germes de um projeto brasileiro, o qual, mediante síntese de elementos heterogêneos, visa a uma nova maneira de vida humana, digna, lúdica e criadora. O sabor dessa nova maneira de vida impregna a situação, a despeito da miséria reinante, e torna a existência no Brasil empresa significativa. O projeto, embora apenas germe, está aqui, não é mera fantasia, por mais que várias ideologias o queiram negar porque o projeto se opõe ao progresso por elas visado. Não é mera fantasia tal projeto, nem é utopia querer descobri-lo, porque, no final das contas, se não fosse tal projeto, a vida não teria sentido. Fazer mais automóveis, ou mais um livro, seria tão absurdo quanto o é na Europa e nos Estados Unidos. A sensação do absurdo não caracteriza o Brasil justamente porque existe o projeto.
Pode perfeitamente ser que os sintomas do projeto, apontados ao longo deste ensaio, sejam todos eles falsos. Pode perfeitamente ser que todos tenham sido mal interpretados. Mas, em tal caso, deve haver outros sintomas que este ensaio ou não notou, ou, se os notou, não captou corretamente. Porque, quanto ao projeto, não pode haver dúvida existencial: a falta do absurdo o prova. Prova-o a curiosa sensação: quem se engaja nele poderá dizer, na hora da morte, que não viveu inteiramente sem sentido - embora tal afirmativa vá passar pelo crivo da hora da morte, cheirando, no momento, perigosamente, a demagogia.
O problema é este: no fundo, quando se trata de dar sentido à vida, quando se trata de engajar-se, quando se trata de "um novo homem", é da religiosidade que se trata. E quem quer falar em religiosidade (em vez de vivê-la ou não vivê-la) cai na demagogia. Inclusive, quiçá, o subtítulo do presente ensaio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário