Ossos, sangue, carne
Em diálogo com o erotismo escancarado da poesia de Hilda Hilst, a paulista Paula Cabral apresenta conjunto de fotografias sobre o tema do desejo.
Por: Camille Dornelles
Publicado em 01/05/2013 | Atualizado em 08/05/2013
A fotógrafa trabalhou com materialidades para expressar a união de fluidos corpóreos e decompostos que expressassem a dor, o fim e a morte, dialogando com diversas passagens do livro ‘Do desejo’, de Hilst. (foto: Paula Cabral)
As imagens não buscam ‘traduzir’ os poemas; o que acontece é uma conversa apaixonada entre uma leitora atenta e uma escritora considerada das mais singulares e complexas no país. De um lado, a pesquisadora e fotógrafa Paula Cabral; do outro, Hilda Hilst (1930-2004), que, além de poesia, escreveu crônica, ficção e teatro.
No meio de campo, os poemas do livro Do desejo, que inspirou a dissertação de mestrado defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – Imagens da poesia erótica de Hilda Hilst – e um conjunto de fotos criado a partir de fragmentos da obra.
Além do desejo refletido na poesia de Hilst, a fotógrafa procurou explorar suas próprias impressões e experiências sobre o assunto. “Conversei também com o desejo de quem está lendo. Esse diálogo criou uma poética nova a partir do meu olhar de leitora”, diz.
“Conversei também com o desejo de quem está lendo. Esse diálogo criou uma poética nova a partir do meu olhar de leitora”
Do mergulho na obra de Hilst resultou uma coleção de 30 imagens, selecionadas por Cabral junto com seu orientador, Joaquim Brasil Fontes, da Unicamp. Sobre o trabalho, ele escreveu: “As fotos não ilustram os poemas, propositalmente reduzidos a fragmentos; completam-nos e, às vezes, colidem com eles, transformam-nos, porque derivam daquilo que punge o olhar: o ponto cego, dolorido e doce, do desejo”.
Na poesia de Hilst, o erotismo aparece interligado à ideia de decomposição e morte – “Ossos, sangue, carne, o agora / E tudo isso em nós que se fará disforme?”, ela escreveu num dos poemas do livro.
Campo sagrado
De início, Cabral cogitou concentrar-se na obra de Clarice Lispector – “uma escritora que admiro muito e que já é muito presente na minha vida”. Mas acabou se decidindo por Hilda Hilst. “Ela fala dos desejos de forma escancarada”, justifica. Antes mesmo do mestrado, a fotógrafa já trabalhava com a temática do corpo humano e da sexualidade.
A pesquisadora vê a obra poética de Hilda Hilst como integrante do ‘campo sagrado’ dos grandes escritores. Mesmo assim, não se intimidou em tomá-la como base para apresentar suas próprias questões. “[O filósofo italiano] Giorgio Agamben define a profanação como a restituição ao uso humano de algo que antes pertencia ao mundo dos deuses. Nesse sentido, me senti profanando a obra de Hilda”, comenta.
“Buscava, antes de tudo, uma aproximação efetiva com a obra de Hilda Hilst; não uma produção baseada em teorias, mas em subjetividades artísticas – as da escritora e as da leitora”
Outros pensadores, como Friedrich Nietzsche e Roland Barthes, a ajudaram a entender o processo criativo e a percepção do observador. Cabral estudou ainda o romantismo alemão. “Essa filosofia defende a fragmentação como forma de expressão poética. Coincide com minha opção de fazer imagens a partir dos fragmentos da poesia e não da obra como um todo”, explica.
As fotografias, entretanto, vieram antes de qualquer estudo teórico. “Buscava, antes de tudo, uma aproximação efetiva com a obra de Hilda Hilst; não uma produção baseada em teorias, mas em subjetividades artísticas – as da escritora e as da leitora”, destaca Cabral.
Algumas imagens foram planejadas, feitas em estúdio; outras ocorreram de forma mais espontânea. Por vezes, durante passeios pela cidade, cruzava com imagens que lhe despertavam associações com os poemas lidos. Também resgatou fotos produzidas antes, que apresentavam elementos próximos à poesia de Hilst.
Ao final, percebeu que poderia dividir as imagens em quatro categorias – Corpos e rastros, Restos e rastros, Estátuas e rastros e Águas e rastros. “Na primeira relaciono corpos de modelos com imagens da história da arte que me dizem algo sobre minha própria construção de desejo; na segunda construo a representação a partir de fluidos e de materialidades; na terceira foco expressões de estátuas femininas; e na última exploro a simbologia da água como nascimento, desejo e morte”, especifica.
Em fevereiro, as fotos foram expostas na Galeria de Artes da Unicamp. A fotógrafa situa seu trabalho no campo da leitura de obras de arte. “Essa leitura pode se transformar em imagens, texto, vídeo. Afinal, nossa produção é sempre uma reunião de fragmentos do que vemos e vivemos, dos nossos rastros e repertórios.”
Camille DornellesCiência Hoje/ RJ
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