quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Eu quero que a esperança vá tomar no olho do cu ! - Abujamra


Abu! 

Depois de aceitar conceder esta entrevista, Antonio Abujamra recusou falar sobre sua vida. Respondeu apenas o necessário. Com ele é assim: quando as coisas dão erradas é um sinal de que elas estão no rumo certo. Não poupou palavrões. Chamou os jornalistas de babacas, rebolou o gravador, disse ter sido a entrevista mais chata de sua vida. Ao final, ergueu os braços e gritou "aleluia!"
Pedro Rocha e Tiago Coutinho
da Redação


09/11/2008 - 17h52


Ele estava sentando em um sofá no hall de um hotel na Beira Mar, sozinho como uma esfinge de cabelos cinza e impaciente: decifra-me ou eu te fodo. Um velhaco a coser labirintos de enigmas. "Daqui eu não me levanto", falou dando nome aos bois, o que naquela hora pareceu certa extravagância para arrefecer tensões - engano. "Se quiser tirar foto, te vira", disse ao fotógrafo Rodrigo Carvalho, a quem mostraria ao longo da entrevista seu lado demoníaco em caretas debochadas. Um bruxo corcunda de suspensórios ou, com menos firula, Abujamra.
Aos 76 anos, esperava o café da manhã. Depois de uma noitada longa, acordou numa manhã de sexta para fazer uma das coisas que mais odeia: ser entrevistado. Ao menos é o que sempre diz nas que concedeu. Não poupa vitupérios aos inquiridores, fazendo questão de deixar claro os papéis a serem interpretados. O dele, o do humor, nunca perde.
Antes mesmo de chegar a Fortaleza, havia gentilmente confirmado por e-mail a entrevista: "OK.", apenas. Chegamos com o recato de um respeito medroso, depois de conversas em que tentávamos remediar pela imaginação as prováveis respostas, incontornáveis, becos sem saída. Além dos dois repórteres e do fotógrafo, a estudante Natasha Farias acompanhava a equipe. Mais um pretexto para Abujamra tripudiar sobre a imaturidade, como se se vingasse da juventude, enquanto reclamava do sanduíche e das batatas fritas frias.
No começo da noite anterior, ele havia apresentado na cidade seu monólogo O Provocador, espetáculo em que faz uma versão teatral de seu programa de mesmo nome na TV Cultura, no ar há 8 anos. Um dos maiores diretores e atores do Brasil (para pôr-lhe no pescoço dois de seus superlativos), Abujamra foi aplaudido de pé pela platéia presente ao teatro:
"Ontem, depois que terminou o espetáculo, as pessoas tavam aplaudindo demais, me deu uma vontade de falar assim: 'De joelhos! De pé eu não quero mais!', mas não tive coragem. Era muito bonito, nera?"
O POVO - Por que você queria que te aplaudissem de joelho?
Antonio Abujamra - Humor! Humor! Você conhece essa palavra? Vem de humour. Queria fazer isso só por humor mesmo. Gritar 'De joelhos, de pé eu não quero mais!'. Olha aqui, se você fizer perguntas babacas, eu te arrebento e caiu de pau em você. Você já fez uma. Essa pergunta 'por que você queria que te aplaudissem de joelho?' é babaca. Você não entendeu a piada! Se a pessoa não entende a piada, eu posso cair em cima. Você pode ficar vermelho, constrangido. Pode se abanar. Mas você deve perguntar só coisas boas. A juventude tem que ter talento, tem que ter coragem e ser boa, mas podem perguntar o que vocês quiserem. (Se dirige para a Natasha e aponta o dedo: 'você pára de ser imprensa marrom e ficar escrevendo essas coisas aí. Isso aqui é uma conversa sexual entre homens).
OP - A gente veio no carro discutindo o medo que a gente sente em entrevistar o senhor...
Abujamra - Eu não acredito nisso! Não tenham medo! Não tenham medo de errar! Caminhem no incerto. Aí vocês me vêm com essa de ter medo de entrevistar um cara igual a vocês? Um velho acabado, sem ter onde cair morto. E vocês querem ficar impunes? Que não aconteça nada com vocês? Como vai ter medo de me entrevistar, meu amor? Explica para mim! Se você tiver medo, eles vão te estraçalhar. Estão todos procurando os medrosos para jogar em cima deles as suas frustrações irremediáveis. Não tenham medo de nada! Não tenham medo! Vão para puta que pariu! Vamos passar para um outro assunto.
OP - Você tem medo de alguma coisa?
Abujamra - Blá! Blá! Blá!
OP - O seu personagem provocador não tenta um pouco assustar as pessoas?
Abujamra - Fala mais alto! Eu sou surdo. Além de tudo isso, eu sou surdo.
OP - O seu personagem provocador não tenta um pouco assustar as pessoas?
(O garçom serve o café da manhã de Abujamra: misto quente, com batata-fritas e suco de laranja)
Abujamra - Pode servir! A única coisa boa da entrevista até agora é isso aqui... O provocador na televisão tem oito anos. Já não agüento mais aquela minha cara dizendo poemas. Eu já chego e nem leio mais poemas. Já mando colocar no teleprompter e pronto! Eu faço provocações como qualquer programa de televisão. Se vocês perguntarem quem foi que você entrevistou melhor nesse tempo, eu respondo: a rua. Sempre na rua são os melhores entrevistados. Você vai na rua e eles falam coisas maravilhosas, sem nenhum erro. Vocês estão servidos? (Oferece o café da manhã). Eu acordei agora. Bora! A entrevista é de vocês, coragem! Marchem!(Se dirige ao fotógrafo) Não fotografe enquanto eu mastigo.
OP - Voltando ao programa Provocações, você sempre se diz ser muito provocado. Você se lembra quando você foi provocado pela primeira vez?
Abujamra - É só andar pela rua. Ande em seu país e veja o que acontece. Pegue um ônibus! Veja a camisa suada do cara na sua frente. Que tecido era a camisa? De onde era? Por quê? Tudo isso me provoca. Pega um jornal e abre. Nós somos provocados constantemente. O país finge que está bem. Todo mundo sabe disso. Não sei... Talvez em Fortaleza vocês estejam bem mesmo. Ser provocado é isso. É só sair na rua. É só olhar para as pessoas. É só perguntas para as pessoas, assim: o que você faz? Pronto! Você nunca percebeu isso?
OP - Percebo.
Abujamra - Então para que você está me perguntando?
OP - Mas a pergunta era para saber se houve uma primeira provocação? 
Abujamra - Teve sim! Eu tinha um ano de idade, eu acho. Hoje eu tenho 77. De lá até aqui, eu só vi provocações. Eu vejo que as coisas não andam. Veja, por exemplo, a educação. As coisas não mudam em mais de 30 anos. Isso é uma provocação! Como é que nunca foi feito um projeto de educação neste País? Nunca! Tanto dinheiro que não vai para a educação. Isso tudo é batido, meu amor! Você não acha? Faz assim. Escreve o que você acha e diz que fui eu que falei.
OP - O Abujamra provocador existe desde muito antes do que o programa?
Abujamra - Eu passei 25 anos pensando em fazer esse programa. Ele começou com uma entrevista com um cara, um físico, ele chegou e perguntou para mim: você não acha erótico um setentão soltar uma bomba? Não! Eu acho mais erótico fazer outro tipo de trabalho. Arrebentei com o cara. Então eu tive a idéia de fazer um programa com essas pessoas que acham que sabem tudo para a gente desmontar isso.
OP - Mesmo assim as pessoas topam participar do programa?
Abujamra - Eu sei lá porque isso acontece. Tem uma fila querendo participar do Provocações. Tem gente que não acaba mais. Acho que eles vão com a ilusão de resolver os seus problemas. Ou os meus. Ou os do mundo. Sei lá. Eu não perco mais tempo com eles. Mas tomara que ninguém leia isso em São Paulo. Se eu perder o emprego, eu dou uma porrada em vocês.
OP - Seria mais um emprego que você perderia, né?
Abujamra - Já me expulsaram três vezes da TV Cultura, quatro vezes da bandeirante, cinco vezes da Globo. E agora eu vou fazer novela na Record. Não posso mais falar mal do Bispo Macedo. E ontem, no meu espetáculo, eu falei mal dele. Não consigo. Eu vou ser um mafioso nessa nova novela. Um mafioso! É muito chato ficar comendo e dando entrevista.
OP - Você quer parar a entrevista para poder comer?
Abujamra - Eu queria mesmo que vocês fossem embora. O que vocês querem ainda saber de mim?
OP - Sobre esse mafioso que você fará na Record...
Abujamra - Não tem nada certo ainda. Eu só sei que eles vão me contratar, agora o que eu vou fazer eu não sei ainda.
OP - Como é essa sensação de você a voltar a fazer novela?
Abujamra - Eu sou um ator! Faço cinema, televisão, teatro, michê. Eu sou ator. Vou lá e faço o trabalho. Na televisão, é todo mundo igual, né? Tem coisa diferente na televisão?
OP - Por que o senhor começou a fazer televisão, então? 
Abujamra - Porque é do meu tempo! As coisas do meu tempo eu tenho que usar. Não sei. Eu não posso ficar longe dessa comunicação de massa. Vamos fazer! E subverter quando estiver lá. A Globo não me agüentou! Não é assim, vocês são maquiavélicos. Eu incomodo, entendeu? Por isso eu sou expulso. Vamos ver o que acontece na Record agora. Você vai fazer uma exposição, para quando eu morrer, é isso? (Pergunta para o fotógrafo)
OP - E por que você acha que a televisão ainda vai atrás de você?
Abujamra - O achismo me enche muito o saco! Eu acho, eu acho, eu acho! Me enche o saco também a palavra importante. Eu sempre tento tirar essas palavras das pessoas que conversam comigo. Eu não quero saber do achismo. Eu sou um ator! Quando eu sou diretor de uma emissora, como eu fui diversas vezes, havia várias pessoas na minha sala pedindo emprego. Por que eu, ator desempregado, não vou pedir também? Eu vou pedir! Se não me dão emprego, o problema é deles. Mas eu vou pedir sempre emprego. Na televisão eu peço: quero fazer novelas! Não deixam. Viadinho! (Dirigi-se ao fotógrafo) Uma frase para do Dostoiévski para você: "O casamento é a morte de qualquer alma". Não fala isso para a sua mulher! (Dirigi-se para a Natasha) Vou falar uma para você para consolar. "O mais importante não é o amor. O mais importante é a gentileza". Bonito, né? Já chega! Vão embora!
OP - Abujamra, você se considera um homem de frases feitas?
Abujamra - O que quer dizer frases feitas? Por exemplo, se eu falo "ser ou não ser, eis a questão". É uma frase feita? Ou é uma das melhores a que a gente pode falar numa conversa, em vez de perguntar "como você vai?". O que é melhor: você ter as grandes frases dos grandes autores ou falar da mesmice que a gente fala todo dia? O que é melhor: você descobrir frases onde a sua vida está incluída ou você ficar falando "ih... o preço do tomate aumentou". O que é melhor? Vou dizer uma frase que define isso. Tudo o que foi bem escrito ou dito é meu. Eu posso usar o que eu quiser. Frase feita é uma agressão na pergunta. Essa foi uma pergunta agressiva. Eu uso frases feitas no meu espetáculo? Eu não sei! Se usei frases feitas é porque eu precisava usar. Não sei o que significa uma frase feita. O que é uma frase feita para você? 

OP -
 Frases decoradas...
Abujamra - Uma frase decorada? Eu sei muito texto de Shakespeare, do Tennessee Williams (dramaturgo estadunidense, 1911-1983, autor de clássicos do teatro como Gata em Teto de Zinco Quente e Um Bonde Chamado Desejo), do Fernando Pessoa. Eu sei decorado esses textos, que são bem melhores do que eu falo, na verdade... E bem melhor do que a fala de qualquer jornalista babaca.
OP - Mas você não acha que o Abujamra se repete quando diz não conseguir completar um minuto de coisas boas feitas por ele na televisão? O Abujamra seria um fingidor ou um repetidor?
Abujamra - Sei lá. Eu dirigi muito tempo televisão. Dirigi demais. O que você tem de bom na televisão? Alguns segundos: só! Alguns segundos. A televisão está virgem. Ela tem que ser descoberta. Tem que acreditar na comunicação de massa. Tentar melhorar as pessoas. Mas a televisão quer piorar as pessoas sempre.
OP - E o teatro tenta melhorar as pessoas?
Abujamra - O teatro? (pausa) Não sei. Faço isso só há 58 anos. Eu acho melhor do que britar pedras na rua, né não? Então eu prefiro fazer teatro. Não sei se isso é uma frase feita. Televisão é uma coisa, teatro é outra coisa, cinema é outra coisa. Eu sou ator de teatro, televisão, de cinema, de michê. (Risos) Não sei se a palavra michê existe em Fortaleza!
OP - Na hora de uma entrevista, você é um ator também?
Abujamra - Vai tomar no teu cu, antes que eu me esqueça. Eu sei lá se eu sou ator ou se eu não sou. Se eu sou isso ou se eu sou aquilo. Você acha o que você quiser que eu não dou a mínima importância. Fale o que você quiser. Ele finge! Ele não finge! Eu sei lá o que eu sou. Sei lá. Tenho 77 anos de idade, eu sei lá o que eu vou fazer depois. Tem horas que eu trabalho, tem horas que eu não trabalho. Eu sou um fudido privilegiado, que pensa em fazer o Rei Lear, mas não faz. Sou um fodido privilegiado, porque de repente me chamam para fazer um trabalho. Vocês são insuportáveis. E ainda me perguntam as coisas que me perguntam há 50 anos. As mesmas coisas. Eu queria que vocês caminhassem no incerto, como pede Pascal. Tudo bem, vocês nunca leram Pascal, mas saiam aí nas ruas e sintam-se mais inseguros. Agora vocês chegarem para mim e perguntar essas coisas que vocês me perguntam. Eu se fosse chefe de vocês colocava vocês na rua. Tem que ser outra coisa. É outro conceito. Tem que mudar. Pegar essas informações da internet e usar. Tem que fazer isso. Eu estou agredindo muito vocês. Eu espero que essa agressão mereça uma atenção, para quando vocês forem falar com outras pessoas, não façam perguntas vulgares e ridículas como essas que vocês estão fazendo para mim. Estou sendo chato?
OP - Não!
Abujamra - Não é possível que eu não esteja chato! Vocês vieram aqui mesmo para apanhar. São masoquistas, é isso?
OP - Qual seria uma boa pergunta para fazer para você?
Abujamra - A que vocês descobrissem.
OP - O que foi que o senhor sonhou esta noite?
Abujamra - Sonho não deve passar de uma noite, meu amigo. Sonho não me interessa. Não quero que ninguém sonhe na minha frente. Sonho não deve passar de uma noite e acabou! Não tem importância. Ninguém tem que sonhar. Sonho só dá esperança, e a esperança já fodeu com a América Latina inteira.
OP - Você não tem mais esperanças?
Abujamra - Nenhuma. Eu quero que a esperança vá tomar no olho do cu dela. Não tem mais nenhuma.
OP - Acabou em 68? 
Abujamra - Principalmente. Acho que nem tinha já naquela hora. Tchau! Vocês podem ir embora. Vão! Eu ainda não comi esse meu café. Vocês ainda me fazem comer frio. Olha a crueldade.
OP - A entrevista está chata?
Abujamra - Uma das piores que eu já dei na minha vida. O que essa menina faz? (Aponta para a Natasha. Ela responde: eu sou aprendiz de jornalismo). Belos professores você tem. Ouça mais a mim do que eles. Falem, seus viados.
OP - Quando você percebeu que estava velho?
Abujamra - Eu devia ter uns 15 anos. Eu sou um velho. Eu lia demais. Eu ficava lendo, lendo. Por isso envelheci. Eu sei lá quando eu era velho. Velho é quando começa a baixar o pau. Sei lá, um dia eu sentei nas bolas e percebi que estava velho. Eu sei lá quando a gente fica velho. Eu levo a minha vida. Faço as minhas coisas. Agüento uma porção de gente. Acabou a entrevista?
OP - Ainda não! 
Abujamra - Então, escreve tudo o que você quiser no seu jornal. Para mim, não tem a menor importância o que você vai escrever. Fale tudo o que você quiser e diga que eu falei. Isso não me importa. (Olha para o fotógrafo) O Cartier Bresson, você vai encher muito meu saco ainda? (Pega uma batata-frita e a coloca na altura do pênis e posa para o fotógrafo). Gosto de fazer caretas.
OP - Por que você odeia tanto as coisas?
Abujamra - Quem disse que eu odeio? Não é assim, eu odeio as coisas. Eu sempre fui bem claro. Eu odeio tudo. Não é algumas coisas. Odeio o mar, o ar, vocês. Acho tudo uma bosta nesse país, um lixo. Eu acho odiar uma coisa bem menor do que a vingança. Eu devia me vingar das coisas que acontecem nesse país. Eu só digo que odeio porque as pessoas acreditam que eu odeio.
OP - Quem odeia ama?
Abujamra - Mas é cada pergunta! Vocês tão querendo, né? Vocês vão piorando cada vez mais. Quem odeia ama sim. Ama, trepa, odeia. Ama de novo. Exatamente o que você acha da vida é o que acontece. Gostou? Porra! Tem muita coisa que a gente não sabe responder. Dá para vocês irem embora? A melhor coisa da entrevista até agora foi a batata frita. Geralmente me fazem só três perguntas. Vocês trouxeram um livro. Vão embora!
OP - A gente combinou ser uma hora de entrevista...
Abujamra - Então eu vou dormir aqui. Quando der o tempo, vocês me acordam. Vai seu viadinho, pergunta logo!
OP - Queria voltar ao Provocações. Você disse que é um personagem que você não suporta mais...
Abujamra - Eu sou o rei da incoerência. Eu adoro o Provocações. Eu também odeio o Provocações. E agora? Tô louco para faze-lo de novo. Sexta-feira, eu gravo. Adoro provocações. Entende? Não façam perguntas em que as respostas sejam definitivas. Nada o que eu falo é definitivo. Eu idolatro a dúvida. Não dá. Você acha que eu vou falar claro e eficiente para os jornais, respondendo as perguntas? Não falo! Perguntam se eu odeio, eu respondo: odeio. Eles publicam "O Abujamra odeia". Aí, no outro jornal, eu respondo: eu adoro. Aí o pessoal publica: "O Abujamra adora". Isso não quer dizer nada. O jornalismo brasileiro não tem ética. Você vai chorar com isso? Agora acabou mesmo!
OP - Você se acha superior a outras pessoas?
Abujamra - Acha? Eu não quero achismo.
OP - Desculpa. Você se considera superior a outras pessoas?
Abujamra - Superior? Eu não sou superior a nada. Eu sou um bosta igual a todos. Só que eu vejo as coisas que não me agradam e eu falo. Fui jornalista, fui crítico, fiz tudo na minha vida. Trabalhei em todas as televisões. Fiz 127 peças de teatro. Eu lá vou saber responder essas coisas. Vocês são muito metidos. Aliás, o Ceará é muito metido, sabia? E não tem porra nenhuma. Chega alguém e diz: esse escritor escreveu esse livro recente e é melhor que o Guimarães Rosa. Aqui no Ceará se escreve um poema e acham que mudaram a poesia. Aí eu viajo e comento com alguém. Os caras lá no Ceará escrevem um livro e acham que mudaram a literatura. Alguém responde: "Eles estão certos". (risos)
OP - Você falou da precisão da palavra. De eliminar o achismo...
Abujamra - Eu fiz um dogma. Tinha um grupo chamado os Fodidos Privilegiados, no Rio de Janeiro. Vamos fazer um dogma. Vamos parar de falar a palavra importante. Nada é importante. Vamos parar de falar a palavra humano. A barbárie tem o gosto humano. Vamos deixar de falar achismos. Eu acho é uma chatice. Vamos parar de falar uma porção de palavras. No final, a gente quis tirar o verbo ser e a gente se perdeu. Não dava mais para conversar.
OP - Essa experiência com a palavra veio da convivência com o João Cabral de Melo Neto?
Abujamra - Claro! Esse sabe as coisas. Esse é um gênio. Esse é o melhor poeta da poesia brasileira. E daqui a 20 anos todo mundo vai dizer que ele foi o maior poeta do Brasil. João Cabral é fantástico. Era a palavra precisa. Ele era capaz de escrever um verso, deixar na gaveta seis meses e tirar para saber se ainda cabia num poema. É outra coisa, né meu amigo? Toda palavra é fascista, já dizia Roland Barthes. Será que é? Será que a palavra não é uma coisa muito clara? As pessoas não sabem falar. Elas falam de coisas que não sabem falar e não buscam. Não lêem. Não estudam. Peguem um grande livro, um Joyce, um Kafka, um Proust, um Beckett. Aprendam a ler! Se não dá para não ir ao passado, pega o presente. Existem novos filósofos brasileiros? Não têm! Ou seja, fodam-se. Não me encham o saco. (Pega o gravador e joga longe do local da entrevista. O repórter o recolhe de volta). Levantem-se. Vão embora. Estagiária, vai também. Tchau. Não vou responder mais nenhuma pergunta.
OP - Por que você topou dar essa entrevista, então?
Abujamra - Canalhas! Eu disse "não" 40 vezes. Aí me encheram o saco. "Precisa dar entrevista. É Fortaleza. Blá Blá Blá". Eu odeio, recusei outra entrevista. Não sei onde apaga essa porra do teu gravador. (Joga de novo o gravador)
OP - Existe alguma...
Abujamra - Vai tomar no cu. Acabou a entrevista. Eu agora só vou responder assim: vão tomar no cu!
OP - Mas tem uma frase...
Abujamra - Vão tomar no cu!
OP - Mas acabou mesmo a entrevista? Queria perguntar mais. 
Abujamra - Vai tomar no cu! Nunca falei tanto para jornalista. Lê as outras entrevistas, copia. Tchau! Você é um ridículo fazendo essas perguntas.
OP - Você mesmo disse que tinha ir no incerto, errar?
Abujamra - Deve usar, inclusive só as erradas.
OP - Essa entrevista deu certo ou deu errada?
Abujamra - Você começou a entrevista de novo? Você pode ir embora, eu quero ler os jornais. Tenho 77 anos e não tem entrevista próxima. Eu vou morrer.
OP - Te incomoda a morte?
Abujamra - Eu não agüento vocês. Me incomoda muito. Não, não! Não me incomoda nada. As duas estão certas e aí? Eu não quero responder essas coisas. Tudo o que eu falar, pode escrever o contrário. Não tem importância. Vieram me provocar, então podem ir embora. (A equipe se levanta e segue para fora do hotel. Abujamra grita com os braços erguidos Aleluia! Aleluia! Por favor, terminem a reportagem assim. Aleluia! Aleluia! Aleluia!)
>> Durante a infância, Antonio Abujamra morou em Porto Alegre, onde estudou para se tornar padre ou militar. Possivelmente não foi um bom aluno de matemática. Ele afirmou ter 77 anos, mas nasceu em 15 de setembro de 1932, na cidade de Ourinhos, interior de São Paulo.
>> Em Porto Alegre, graduou-se, em 1957, em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul de Porto Alegre. Era o curso mais curto que existia. Logo em seguida, iniciou a trajetória de crítico.
>> O programa Provoações vai ao ar, às sextas-feiras, às 22h10, na TV Cultura. Há uma reprise, na madrugada de sexta para sábado, às 2h30. Talvez seja um dos motivos para a baixa audiência.
>> No espetáculo A Voz do Provocador, em cartaz no dia 02 de outubro em Fortaleza, após divagar sobre educação, ele lança para a platéia a seguinte provocação: "cadê essa juventude para nos desrespeitar e dizer que nós não servimos mais para nada?".
>> A entrevista aconteceu na manhã do dia 03 de outubro. Na mesma noite, ele apresentou, ao vivo, o Provocações, no teatro Celina Queiroz. Abujamra entrevistou o ator Ricardo Guilherme. A primeira pergunta para o teatrólogo cearense foi: "o que é a vida?".
>> Após a apresentação a apresentação do Provocações, ao vivo, na sexta-feira, Abujamra fez o que não teve coragem no dia anterior. Pediu para a platéia aplaudi-lo de joelho. "De joelhos, de pé eu não quero mais", pediu.
>> Apesar de ser mais conhecido como ator do que diretor, Abujamra, quando voltou da Europa, influenciou nomes do teatro brasileiro que ganharam projeção na divulgação de seus trabalhos. São eles: José Celso Martinez, Augusto Boal e Oduvaldo Viana Filho.
>> Abujamra, ao longo de toda a entrevista, sem estar teorizando sobre o "achismo", conjugou o verbo achar 17 vezes.
>> Abujamra não cansa de repetir algumas frases. Entre as suas prediletas estão de a televisão ainda é virgem e precisa ser descoberta. Ele sempre diz também que odeia tudo. No entanto, afirma gostar do seu neto. É o único homem que mexe com a sua cabeça.
>> Atualmente, Antonio Abujamra atua e dirige o espetáculo Começar a Terminar, em cartaz, em São Paulo, no Teatro João Caetano. O texto traz como tema a velhice. Uma crítica na revista Bravo! deste mês, comenta que "o melhor e o pior da peça se devem ao egocentrismo do ator principal".
Ele não cabe em um texto
O ator, diretor e produtor Antonio Abujamra, em sua trajetória, orgulha-se por ter assinado obras-primas e grandes-fracassos, tanto no teatro, quanto na televisão brasileira. O grande público o conhece principalmente pelo personagem Ravengar, da novela Que rei sou eu?, exibida pela Rede Globo, em 1989. Com o papel, ele recebeu o prêmio de melhor ator da Associação Paulista de Crítica de Arte (APCA).
Da televisão brasileira, ele participa desde sua fundação. No final da década de 60, participou da produção do programa Divino, Maravilhoso, na TV Tupi, que revelou nomes da Tropicália. O currículo divide espaço com fracassos homéricos, como a desastrosa novela Os Ossos do Barão, exibida pelo SBT, em 1997, da qual ele foi diretor.
No teatro, o desequilíbrio produtivo se repete. É um personagem paradigmático. Na década de 50, ganhou uma bolsa de estudos para Madrid. Aproveitou para conhecer toda a Europa e parte da África. Quando estava totalmente sem dinheiro, pediu abrigo ao poeta João Cabral de Melo Neto, na época, embaixador brasileiro na Espanha. No período de 28 dias, aprendeu mais poesia do que em cinqüenta anos de universidade brasileira.
Após sua estada na Europa, onde trabalhou com Roger Planchon (dramaturgo e cineasta francês) e Jean Villar (ator e diretor francês), trouxe para o Brasil não só estas referências como difundiu o método brechtiano de fazer teatro. São mais de 100 espetáculos com a sua participação, sempre com autores clássicos: Ionesco, Gogol, Beckett, Shakespeare, Dias Gomes, Garcia Lorca, Millor Fernandes, Moliére, entre muitos outros.
Uma de suas peças mais ousadas foi Hamlet é Negro, em 2003. Ele reuniu 19 atores negros e montou um clássico do teatro ocidental. Quando questionado pela mídia, na época, sobre as interferências no texto do dramaturgo inglês, Abujamra respondeu que poderia se mexer o quanto quisesse em Shakespeare e ele continuaria sendo Shakespeare.
Quando o programa Provocações foi ao ar pela primeira vez em 2000, o projeto tinha a intenção de ficar na TV por apenas três meses. A justificativa, na época, difundida pelo idealizador Antonio Abujamra dizia que o formato do programa se esgotaria antes mesmo de concluir o terceiro mês. Ao longo de quase 20 anos, o programa recebeu um "não" de todas as emissoras comerciais, até cair na porta da TV Cultura que apostou no Abu (com é conhecido). Passaram-se oito anos, e o programa de entrevistas permanece com a mesma audiência de quando começou: 1%.

Stuart Hall - A Identidade em Questão


Stuart Hall - A Identidade em Questão

("Identidade Cultural na Pós-modernidade" - p. 07-22)


Obs: procurar > Hall, Stuart. “Notas sobre a desconstrução do popular”. In Sovik, Liv (org). In Da diáspora, identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFRG, 2003, p. 247-264.




cap. 1) A identidade em questão
A questão da identidade está sendo extensamente discutida na teoria social. Em essência, o argumento é o seguinte: as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada "crise de identidade" é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.
O propósito deste livro é explorar algumas das questões sobre a identidade cultural na modernidade tardia e avaliar se existe uma "crise de identidade", em que consiste essa crise e em que direção ela está indo. O livro se volta para questões como: Que pretendemos dizer com "crise de identidade"? Que acontecimentos recentes nas sociedades modernas precipitam essa crise? Que formas ela toma? Quais são suas conseqüências potenciais? A primeira parte do livro ('caps. 1-2') lida com mudanças nos conceitos de identidade e de sujeito. A segunda parte ('caps. 3-6') desenvolve esse argumento com relação a 'identidades culturais' - aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso "pertencimento" a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais.
Este livro é escrito a partir de uma posição basicamente simpática à afirmação de que as identidades modernas estão sendo "descentradas", isto é, deslocadas ou fragmentadas. Seu propósito é o de explorar esta afirmação, ver o que ela implica, qualificá-la e discutir quais podem ser suas prováveis conseqüências. Ao desenvolver o argumento, introduzo certas complexidades e examino alguns aspectos contraditórios que a noção de "descentração", em sua forma mais simplificada, desconsidera.
Conseqüentemente, as formulações deste livro são provisórias e abertas à contestação. A opinião dentro da comunidade sociológica está ainda profundamente dividida quanto a esses assuntos. As tendências são demasiadamente recentes e ambíguas. O próprio conceito com o qual estamos lidando, "identidade", é demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova. Como ocorre com muitos outros fenômenos sociais, é impossível oferecer afirmações conclusivas ou fazer julgamentos seguros sobre as alegações e proposições teóricas que estão sendo apresentadas. Deve-se ter isso em mente ao se ler o restante do livro.
Para aqueles/as teóricos/as que acreditam que as identidades modernas estão entrando em colapso, o argumento se desenvolve da seguinte forma. Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um "sentido de si" estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento - descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos - constitui uma "crise de identidade" para o indivíduo. Como observa o crítico cultural Kobena Mercer, "a identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza" (Mercer, 1990, p.43).
Esses processos de mudança, tomados em conjunto, representam um processo de transformação tão fundamental e abrangente que somos compelidos a perguntar se não é a própria modernidade que está sendo transformada. Este livro acrescenta uma nova dimensão a esse argumento: a afirmação de que naquilo que é descrito, algumas vezes, como nosso mundo pós-moderno, nós somos também "pós" relativamente a qualquer concepção essencialista ou fixa de identidade - algo que, desde o Iluminismo, se supõe definir o próprio núcleo ou essência de nosso ser e fundamentar nossa existência como sujeitos humanos. A fim de explorar essa afirmação, devo examinar primeiramente as definições de identidade e o caráter da mudança na modernidade tardia.

a) três concepções de identidade
Para os propósitos desta exposição, distinguirei três concepções muito diferentes de identidade, a saber, as concepções de identidade do:
a)sujeito do Iluminismo,
b)sujeito sociológico e
c)sujeito pós-moderno.

O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo "centro" consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo - contínuo ou "idêntico" a ele - ao longo da existência do indivíduo. O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa. Direi mais sobre isto em seguida, mas pode-se ver que essa era uma concepção muito "individualista" do sujeito e de sua identidade (na verdade, a identidade 'dele': já que o sujeito do Iluminismo era usualmente descrito como masculino).
A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com "outras pessoas importantes para ele", que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos - a cultura - dos mundos que ele/ela habitava, G.H. Mead, C.H. Cooley e os interacionistas simbólicos são as figuras-chave na sociologia que elaboraram esta concepção "interativa" da identidade e do eu. De acordo com essa visão, que se tornou a concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada na "interação" entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o "eu real", mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais "exteriores" e as identidades que esses mundos oferecem.
A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o "interior" e o "exterior" - entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a "nós próprios" nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os "parte de nós" contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, "sutura") o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis.
Argumenta-se, entretanto, que são exatamente essas coisas que agora estão "mudando". O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais "lá fora" e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as "necessidades" objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma "celebração móvel": formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um "eu" coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora "narrativa do eu" (veja Hall, 1990). A identidade plenamente identificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao menos temporariamente.
Deve-se ter em mente que as três concepções de sujeito acima são, em alguma medida, simplificações. No desenvolvimento do argumento, elas se tornarão mais complexas e qualificadas. Não obstante, elas se prestam como pontos de apoio para desenvolver o argumento central deste livro.

b) o caráter da mudança na modernidade tardia
Um outro aspecto desta questão da identidade está relacionado ao caráter da mudança na modernidade tardia; em particular, ao processo de mudança conhecido como "globalização" e seu impacto sobre a identidade cultural.
Em essência, o argumento é que a mudança na modernidade tardia tem um caráter muito específico. Como Marx disse sobre a modernidade:

é o permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos... Todas as relações fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas representações e concepções, são dissolvidas, todas as relações recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo que é sólido se desmancha no ar... (Marx e Engels, 1973, p. 70)

As sociedades modernas são, portanto, por definição, sociedades de mudança constante, rápida e permanente. Esta é a principal distinção entre as sociedades "tradicionais" e as "modernas". Anthony Giddens argumenta que:

nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais recorrentes (Giddens, 1990, pp. 37-8).
A modernidade, em contraste, não é definida apenas como a experiência de convivência com a mudança rápida, abrangente e contínua, mas é uma forma altamente reflexiva de vida, na qual:

as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz das informações recebidas sobre aquelas próprias práticas, alterando, assim, constitutivamente, seu caráter (ibid., pp. 37-8)

Giddens cita, em particular, o ritmo e o alcance da mudança - "à medida em que áreas diferentes do globo são opostas em interconexão umas com as outras, ondas de transformação social atingem virtualmente toda a superfície da terra" - e a natureza das instituições modernas (Giddens, 1990, p. 6). Essas últimas ou são radicalmente novas, em comparação com as sociedades tradicionais (por exemplo, o estado-nação ou a mercantilização de produtos e trabalho assalariado), ou têm uma enganosa continuidade com as formas anteriores (por exemplo, a cidade), mas são organizados em torno de princípios bastante diferentes. Mais importantes são as transformações do tempo e do espaço e o que ele chama de "desalojamento do sistema social" - a "extração" das relações sociais dos contextos locais de interação e sua reestruturação ao longo de escalas indefinidas de espaço-tempo"(ibid., p. 21). Veremos todos esses temas mais adiante. Entretanto, o ponto geral que gostaria de enfatizar é o das 'descontinuidades':

Os modos de vida colocados em ação pela modernidade nos livraram, de uma forma bastante inédita, de todos os tipos tradicionais de ordem social. Tanto em extensão, quanto em intensidade, as transformações envolvidas na modernidade são mais profundas do que a maioria das mudanças características dos períodos anteriores. No plano da extensão, elas serviram para estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo; em termos de intensidade, elas alteram algumas das características mais íntimas e pessoais de nossa existência cotidiana (Giddens, 1990, p. 21).
David Harvey fala da modernidade como implicando não apenas "um rompimento impiedoso com toda e qualquer condição precedente", mas como caracterizada por um processo sem-fim de rupturas e fragmentações internas no seu próprio interior" (1989, p.12). Ernest Laclau (1990) usa o conceito de "deslocamento". Uma estrutura deslocada é aquela cujo centro é deslocado, não sendo substituído por outro, mas por "uma pluralidade de centros de poder". As sociedades modernas, argumenta Laclau, não têm nenhum centro, nenhum princípio articulador ou organizador único e não se desenvolvem de acordo com o desdobramento de uma única "causa" ou "lei". A sociedade não é, como os sociólogos pensaram muitas vezes, um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade, produzindo-se através de mudanças evolucionárias a partir de si mesma, como o desenvolvimento de uma flor a partir de seu bulbo. Ela está constantemente sendo "descentrada" ou deslocada por forças de si mesma.
As sociedades da modernidade tardia, argumenta ele, são caracterizadas pela "diferença"; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes "posições de sujeito" - isto é, identidades - para os indivíduos. Se tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque elas são unificadas, mas porque seus diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstâncias, ser conjuntamente articulados. Mas essa articulação é sempre parcial: a estrutura da identidade permanece aberta. Sem isso, argumenta Laclau, não haveria nenhuma história.
Esta é uma concepção de identidade muito diferente e muito mais perturbadora e provisória do que as duas anteriores. Entretanto, argumenta Laclau, isso não deveria nos desencorajar: o deslocamento tem características positivas. Ele desarticula as identidades estáveis do passado, mas também abre a possibilidade de novas articulações: a criação de novas identidades, a produção de novos sujeitos e o que ele chama de "recomposição da estrutura em torno de pontos nodais particulares de articulação" (Laclau, 1990, p.40).
Giddens, Harvey e Laclau oferecem leituras um tanto diferentes da natureza da mudança do mundo pós-moderno, mas suas ênfases na descontinuidade, na fragmentação, na ruptura e no deslocamento contêm uma linha comum. Devemos ter isso em mente quando discutirmos o impacto da mudança contemporânea conhecida como "globalização".

c) o que está em jogo na questão das identidades
Até aqui os argumentos parecem bastante abstratos. Para dar alguma idéia de como eles se aplicam a uma situação concreta e do que está "em jogo" nessas contestadas definições de identidade e mudança, vamos tomar um exemplo que ilustra as conseqüências 'políticas' da fragmentação ou "pluralização" de identidades.
Em 1991, o então presidente americano, Bush, ansioso por restaurar uma maioria conservadora na Suprema Corte americana, encaminhou a indicação de Clarence Thomas, um juiz negro de visões políticas conservadoras. No julgamento de Bush, os eleitores brancos (que podiam ter preconceitos em relação a um juiz negro) provavelmente apoiariam Thomas porque ele era conservador em termos de legislação de igualdade de direitos, e os eleitores negros (que apóiam políticas liberais em questões de raça) apoiariam Thomas porque ele era negro. Em síntese, o presidente estava "jogando o jogo das identidades".
Durante as "audiências" em torno da indicação, no Senado, o juiz Thomas foi acusado de assédio sexual por uma mulher negra, Anita Hill, uma ex-colega de Thomas. As audiências causaram um escândalo público e polarizaram a sociedade americana. Alguns negros apoiaram Thomas, baseados na questão da raça; outros se opuseram a ele, tomando como base a questão sexual. As mulheres negras estavam divididas, dependendo de qual identidade prevalecia: sua identidade como negra ou sua identidade como mulher. Os homens negros também estavam divididos, dependendo de qual fator prevalecia: seu sexismo ou seu liberalismo. Os homens brancos estavam divididos, dependendo, não apenas de sua política, mas da forma como eles se identificavam com respeito ao racismo e ao sexismo. As mulheres conservadoras brancas apoiavam Thomas, não apenas com base em sua inclinação política, mas também por causa de sua oposição ao feminismo. As feministas brancas, que freqüentemente tinham posições mais progressistas na questão da raça, se opunham a Thomas tendo como base a questão sexual. E, uma vez que o juiz Thomas era um membro da elite judiciária e Anita Hill, na época do alegado incidente, uma funcionária subalterna, estavam em jogo, nesses argumentos, também questões de classe social.
A questão da culpa ou da inocência do juiz Thomas não está em discussão aqui; o que está em discussão é o "jogo de identidades" e suas conseqüências políticas. Consideremos os seguintes elementos:

. As identidades eram contraditórias. Elas se cruzavam ou se "deslocavam" mutuamente.
. As contradições atuavam tanto "fora", na sociedade, atravessando grupos políticos estabelecidos, 'quanto' "dentro" da cabeça de cada indivíduo.
. Nenhuma identidade singular - por exemplo, de classe social - podia alinhar todas as diferentes identidades com uma "identidade mestra", única, abrangente, na qual se pudesse, de forma segura, basear uma política. As pessoas não identificam mais seus interesses sociais exclusivamente em termos de classe; a classe não pode servir como um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora através da qual todos os variados interesses e todas as variadas identidades das pessoas possam ser reconciliadas e representadas.
. De forma crescente, as paisagens políticas do mundo moderno são fraturadas dessa forma por identificações rivais e deslocantes - advindas, especialmente, da erosão da "identidade mestra" da classe e da emergência de novas identidades, pertencentes à nova base política definida pelos novos movimentos sociais: o feminismo, as lutas negras, os movimentos de libertação nacional, os movimentos antinucleares e ecológicos (Mercer, 1990).
. Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes, descrito como constituindo uma mudança de uma política de identidade (de classe) para uma política de 'diferença'.
Posso agora esquematizar, de forma breve, o restante do livro. Em primeiro lugar, vou examinar, de uma forma um pouco mais profunda, como o conceito de identidade mudou: do conceito ligado ao sujeito do Iluminismo para o conceito sociológico e, depois, para o do sujeito "pós-moderno". Em seguida, o livro explorará aquele aspecto da identidade cultural moderna que é formado através do pertencimento a uma cultura 'nacional' e como os processos de mudança - uma mudança que efetua um deslocamento - compreendidos no conceito de "globalização" estão afetando isso.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Devir : (des)território dos desejos...

devir


O desdobramento ecoado de um mantra no (des)território dos desejos...


Tecíbrido Desejante

{ em 26.12.2011 } {  •  •  •  •  •  }
Tecíbrido Desejante
É uma escultura sonora relacional que procura interagir e se re-criar a partir do desejo de seus interatores num espaço e tempo subjetivo e maleável. Incita a sensibilização de quem o acessa à um espaço fluído imaginativo, convidando-o a dialogar com uma teia sonora em constante fluxo e criação.
O projeto é parte de uma investigação pessoal acerca da produção de um possível “Design Vivo”: um organismo humanizante em constante mudança, capaz de produzir a diferença a partir de quem o toca, nutrindo-se pelas diferenças. Um design que, como a roupagem de Arlequim, viaja assumindo diversas formas, mas que pelas relações e roteiros já estabelecidos se modifica e fala palavras cada vez mais híbridas. Um corpo relacional que produz e possui desejos compositivos, situado e tramado num tecido de relações desejantes tanto imanentes quanto transcendentes.
“O olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.”
Manoel de Barros
Através de um ambiente sonoro, um tecido maleável, e uma teia relacional digital, o projeto procura construir um diálogo do interator consigo mesmo, num mergulho dentro de um caos interior onde a ordem emerge de forma imanente através de um entendimento imaginativo puramente estético, sensório, e não-verbal. O sujeito esculpe e modifica uma teia sonora aberta, tecida por ele mesmo e por outros interatores em momentos outros, incitando sua imaginação e fomentando um processo de descoberta da paisagem que constantemente se cria.
Permite com isto o acesso à uma nova percepção espacial, temporal e sonora – um “viajar liso” – onde o interator pode agir como queira modificando e dialogando com outro corpo orgânico-semiótico, mediado por uma interface-escultura com especificidades líquidas, e sensibilizado sonoramente por sua própria imaginação numa paisagem que o conecta à uma percepção de uma realidade em fluxo.
“Se eu utilizo uma fita de Moebius para essa experiência é porque ela quebra os nossos hábitos espaciais (…). Ela nos faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo.”
Lygia Clark – Diários (Caminhando).
Tecíbrido Desejante - Como Funciona
Como funciona:
Sua parte tangível é composta por uma interface maleável (um tecido híbrido wireless), situado num espaço sonorizado. O navegante interage com a interface através das mãos (corpo), que altera uma teia digital de sons, produzindo uma paisagem sonora que incita a imersão e imaginação do interator.
Digitalmente, os dados de manipulação da interface-instrumento alteram o estado de uma teia digital. Chamo esta teia de “teia relacional”: é relacional por ter seu significado sempre imanente à quem o acessa (a partir das especificidades duais do objeto em questão), mas é teia por não ser constituída solidamente e imutável, mas sim através de um sistema digital de partículas e relações auto-organizadas que criam novos padrões de forma emergente.
Portanto ao passo que há interação, os dados de navegação são re-inseridos no sistema, que se adapta cada vez mais ao interator. Esta aprendizagem do sistema altera a configuração geral da própria teia, que lentamente é modificada pela ação de múltiplos usuários que a acessam. Este espaço criado então exibe um comportamento não somente reativo mas organicamente vivo, por constituir um padrão auto-organizado gerado por múltiplos usuários – é tanto reflexo dos desejos de seus constituintes, quanto de sua própria vida que aos poucos se constitui. Criatura!
Os dados trabalhados alteram a rede gerando novos sons e composições sonoras, que são exibidos ao interator modificando e fechando assim um ciclo retro-alimentado entre as três partes. A paisagem sonora criada é portanto fruto tanto da interação do navegante, quanto da vontade da teia mestiçada. O som deve privilegiar esta transposição, e atuar na imersividade da experiência no espaço, estando sempre aberto à significação do navegante perante a paisagem criada. Ele age à procura de um som para a Dobra num processo de subjetivação do sujeito.
“O Objeto Relacional não tem especificidade em si. É na relação estabelecida com a fantasia do sujeito que ele se define. (…) Ele é alvo da carga afetiva do sujeito, na medida em que o sujeito lhe empresta significado, perdendo a condição de simples objeto para, impregnado, ser vivido como parte viva do sujeito.”
Lygia Clark – Diários (Objeto Relacional).
Assim como num mantra, a a-significação de seus componentes semióticos e sua estrutura simples e precisa, são partes imporantes para sua composição relacional. Somente em primeiridade, tanto a interface tangível quanto a paisagem sonora possuem especificidades como liquidez, leveza, maleabilidade e intensividade. Tais comportamentos pretendem despertar nos interatores um entendimento particular destas qualidades em seu inconsciente (que é essencialmente coletivo), como estratégia relacional de acesso às bases da imaginação do sujeito.
Intendem assim, durante o acontecimento de imersão, instigar uma nova percepção de um viajar orgânico pelo caos num espaço liso de interações, onde articula-se somente as intenções e não os resultados finais, bem como cada instante é um novo momento de descobrimento de novas paisagens de um tempo imanente. Uma percepção necessária para se compreender e experienciar cada vez mais uma realidade imaginativa, caótica e em fluxo: uma criação sempre em processo!
“A regra de produzir sempre o produzir, de inserir o produzir no produto, é a característica das máquinas desejantes ou da produção primária: produção de produção.”
Deleuze & Guattari – O Anti-Édipo.
Prosa e próximos passos:
Apesar do palavreado demasiadamente rebuscado (e sim, sei, ainda sem as referências adequadas, e com muitos conceitos a serem ligados e refinados), a ideia prática é bem simples, e é assim que pretendo prosseguir com meu projeto. Tanto por estar gostando bastante ( :D ), quanto por em alto grau parecer fazer sentido perante meu trajeto até aqui.
Há realmente muito chão ainda pela frente! Ao passo que a interface tangível se encaminha relativamente dentro do prazo, preciso me aprofundar nos estudos acerca da manipulação digital dos dados, e principalmente de composição sonora. Um aprofundamento nos estudos de linguagem sonora é muito mais do que necessário – e certa hora devo começar a criar o design visual definitivo do projeto (que até agora não passou de uma experimentação desconexa).
Quando já acho que estou nadando em marés profundas, me vejo ainda tão no raso. Há muito ainda para descobrir com meu próprio projeto e processo. Serão longos 5 meses pela frente. Mas nada me resta senão respirar fundo, manter a empolgação e mergulhar novamente – contando com toda ajuda possível, é claro. [=

Três planos

{ em 24.12.2011 } {  •  •  •  •  }
Este texto é na verdade um adendo acerca de meu processo até aqui, (mais uma) elucubração como introdução ao próximo post que conterá a concepção “final” de meu projeto prático-teórico.
Após idas e vindas, a cimática de meu projeto passou por uma troca de fase. Em partes, meu processo tem sido tentar identificar padrões num caos de intenções inconscientes – tanto própria quanto coletiva. A identificação do Invisível, do Instrumento e da Criatura foi parte deste avanço.
Conforme o tempo passa, mais entendemos as intenções iniciais, e mais projetamos o futuro: criatividade em espiral. A emergência de certas linhas e pontos de relações é cada vez mais clara, ao passo que outros permanecem vivos, mas com menor relevância por menor incidência. Meus passos são relativamente pequenos – mas a volta tem sido grande, proporcionando novos encontros e maior abertura das bases de meu projeto. Como aprendi com um grande amigo: todo passo no processo criativo, é como forma de ferradura. Em certo sentido, isto é até empolgante.
“O pensamento remete portanto à experimentação. Essa decisão comporta pelo menos três corolários: pensar não é representar(…); não há começo real senão no meio, ali onde a palavra “gênese” readquire plenamente seu valor etimológico de “devir”, sem relação com uma origem; se todo encontro é “possível” no sentido em que não há razão para desqualificar a priori certos caminhos e não outros, todo encontro nem por isso é selecionado pela experiência.”
François Zourabichvili – “Rizoma” em O Vocabulário de Deleuze
Tentando encontrar uma cerne para os tipos de planos que meu projeto articula, cheguei à um possível esquema simples de como (no que tange sua concepção virtual e intangível) pode ser visualizado. Emprestando os três planos descritos em “O que é a filosofia” de Deleuze e Guattari, me arrisco a dizer que o solo do Design pode estar constituído nas relações sobrepostas de três planos: Plano de Imanência (da qual a Filosofia se faz), Plano de Composição (da qual a Arte se faz) e Plano de Referência (da qual a Ciência se faz).
Acredito que o entendimento geral de um processo em design pode passar pelo entendimento das relações destes três planos afim de situar os tipos de relações em territórios referenciais (momentaneamente pragmáticos), para mais fácil identificarmos como e em quais direções os processos de desterritorialização provavelmente ocorrem no processo do projeto em questão. É importante salientar que ele se faz na relação entre eles, e é sempre imanente a cada ato ou acontecimento, não estando fechado à uma modulação ou plano.
Um exercício, não uma classificação, de visualização da sobreposição dos planos e de seus conceitos-chave no que tangem meu projeto:

O Invisível, o Instrumento e a Criatura

{ em 20.10.2011 } {  •  •  •  •  •  •  }
Salto! O Invisível dobra e compõe, ao passo que o Instrumento dobra e sente. A Criatura dobra e liberta! Três traquitanas que brincam e articulam sempre diferentes devires. Sempre de forma aberta ao híbrido, aberta à multiplicidade: juntos fazem rizoma!
Inspirado pelo bricoleur, meu projeto de conclusão de curso é um experimento. Um experimento que começou na criação de um projeto sem fim, e assim pretende continuar. Um experimento com as partículas de uma emergência, mas não fechado à uma forma resultante desta experiência: é aberto ao múltiplo durante todo o processo. Abdico com este projeto de qualquer objetivo já traçado. É o fluxo de meu fazer, possuindo somente intenções inspiradas nos processos mântricos e na complexidade contemporânea (vide mapa do post anterior).
Suas três partes constituem um complexo de linhas de uma mesma multiplicidade. Realidade esta que só se constitui de forma fractal. Falar de um deles, é também falar de todos. Há invisíveis, Instrumentos e Criaturas dentro de cada Invisível, Instrumento e Criatura.
Devir Invisível
O Invisível é o que permeia. É onde as intenções se fazem, é como os movimentos de desterritorialização são possíveis. É constituído de dados crus, fluxos e mapeamentos que transpassam o todo.

Ele é o portador do movimento que torna capaz a emergência de todo o processo, um campo vibrátil. Neste projeto o constituo como o não-dito, o inverso. O silêncio, o plano de possibilidades perceptivas, o plano de possibilidades de fuga e remapeamentos. É virtual em essência, o que o possibilita se relacionar sempre ao diferente. É o plano de imanência dos navegantes e todas as aberturas e linhas de fuga para novas realidades.
É um espaço constituído por todas as casualidades e atratores do momento de experiência: é sempre diferente para cada instante. É quem cria as condições, e se realiza somente no acontecimento. É a percepção emergente, a ação resultante, e todo o movimento virtual de ideias posterior à experiência. É no Invisível e no silêncio que as conexões são formadas, as relações formadas balançam a rede gerando repercussões mil.
Neste projeto, o Invisível possui intenções que tocam os territórios da arte, do design, da tecnologia e da psicologia. No Invisível, as intenções são a-significativas e abertas a novas movimentações e multiplicidades, como num mantra. Sua maior característica é ser essencialmente aberto à novas e outras intenções, mas sempre se enquadra no campo compositivo e de criação de novas conexões. O Invisível possibilita o viajar de modo liso: é puro fluxo.
Devir instrumento
O Instrumento é o que capta. É estratégia e modo de acesso à complexidade. É o que faz a interface, constrói as ruas e canais sem fim: os verte a fluxos com destinos em aberto e ainda reconduzíveis.

O constituo como um quali-objeto físico-sonoro, configurador de um tipo de movimento: um espaçamento pautado sobre a diferença ondulatória. É captação de parte do Invisível.
É uma interface híbrida, tão simples quanto um pedaço de véu. O tangível nele existe como pura maleabilidade. O navegar desta interface é somente dobra, redobra, estriamento e alisamento. Ele é a ponte, é meio. É uma membrana que cobre e passa entre. Molda-se ainda ao contexto onde existe: pode ser vento, terra, água; pode ser mão, face, ou pé; pode ser dança, brincadeira ou música.
Num cymatic, ele é como a superfície e as partículas. Por si só, não produz nada. Ele é algo que se insere ENTRE-coisas para que novos platôs sejam alcancados. Sua habilidade é transferir o fluxo do manuseio físico da interface (por meios humanos ou não) para o meio digital. Consegue capturar as linhas de movimento através das transformações em seu emaranhado, e transformá-las em dados puros, de modo que possam ser trabalhadas para quaisquer fins.
Qualquer ponto da interface tem a capacidade de se conectar a outra. Sua maleabilidade e configuração o torna aberto à heterogeneidade. Ao mesmo tempo, suas linhas possuem uma constituição própria, conotando uma multiplicidade de feedback durante o acontecimento do manuseio. Pode ainda ser quebrado em pedaços, ou aglutinado a outro, de modo a se formar um emaranhado de Instrumentos outros.
Para tornar possível tamanhas qualidades, o Instrumento tem de estar inserido numa teia maior que o perpetue como acontecimento. Deve ser aberto, de modo que possa ser facilmente modificado, incorporado a outros contextos, reproduzido, quebrado. Uma peça que não se acaba com este projeto, mas somente se atualiza e lança ao mundo para ser modificado e re-utilizado, numa rede de co-criação open-source.
Portanto sua criação tem de ocorrer de forma abertas às bases, e sua produção exige uma abertura no processo de forma que diferentes pessoas possam contribuir, co-criar e co-produzir o projeto. Para isto, vi necessário a criação de um novo espaço de interação para a criação e produção do Instrumento. Nele espero introduzir tanto minha ideia inicial, quanto as pesquisas, testes e protótipos criados tanto por mim, quanto pelos demais entusiastas e ajudantes da rede:
http://www.namainstrument.tumblr.com

Devir criatura
A Criatura é a que cria. Constitui toda uma vida que só é possível através de um instante: e é sempre diferente por ele. Ela dobra o espaço-tempo, vertendo e invertendo fluxos pelo plano dos desejos.

Ela é ao mesmo tempo o som que alimenta a emergência, quanto o movimento complexo emergido. A Criatura interpreta o fluxo de navegação dos navegantes perante o Instrumento, extraindo e aprendendo com ele linhas de desejos imanentes. Com estes dados trabalhados, a Criatura estabelece um diálogo com os navegantes através de quali-signos sonoros, que são tan to imagem quanto som.
Cabe a esta comunicação, a esta mensagem, tornar somente visível o próprio fluxo gerado pelos navegantes. Não cabe a ela enquadrar a mensagem sobre outros padrões: ela é uma transferência de um fluxo de desejos, iniciado pelos navegantes, potencializado pelo Invisível, captado pelo Instrumento, e retornado aos navegantes através da Criatura. São conduções de uma mesma vibração, e não re-interpretações. Ela conduz linhas abstratas, e retorna linhas abstratas!
Portanto, a Criatura age tanto no tratamento dos dados inseridos no Instrumento, quanto na resposta que será dada aos navegantes. Mas sua verdadeira potência é na realimentação do sistema com a ação provocada nos navegantes, pois é onde ambos se descobrem durante o processo, é onde os navegantes encontram através do caos um sentido. É um diálogo entre dois arlequins!
Ela ao mesmo tempo territorializa aquilo que o Invisível pressupõe, mas também é ela quem abre os novos espaços e realidades para os navegantes entrarem num estado imersivo de cibercognição, a ponto de modificar o ato de acesso num ato imanente transformador. É a Criatura que traz a tonalidade, e é ela quem aprende a fazer música e dança em conjunto com os navegantes. Cabe a ela verter os fluxos para que seja possível ao conjunto criar produção e mais produção através dos navegantes!
Para tudo isto, necessito portanto atualizá-la num meio e suporte que seja aberto e maleável às diversas variáveis de um sistema aberto. O meio digital não só supre estas necessidades quanto potencializa as relações deste projeto com todas as suas possibilidades compositivas. Neste ponto, imagino que na produção da Criatura lidarei com linguagens de programação (provavelmente Processing), e modos de criação de imagens e som generativos. Por hora tenho estudado estes modos e um pouco de programação generativa, e espero em breve trazer testes destas criações neste mesmo espaço.
Inspirado pelos mantras, o projeto está perpetuado no processo, onde procura ser somente interface para um complexo imanente de descobrimento e codificação. Suas linhas estriadas nada fazem além de indiciar devires, de sensibilizarem o caminhante à novos modos de se perceber e viajar, de movimentar as conexões afim de abri-las a um espaço liso de transformação.
Como configurar um espaço e um tempo onde o viajar de modo liso é possível? Qual seria a tonalidade e as linhas utilizadas que incitassem a emergência deste viajar sonoro? Como configurar um espaço vazio e cheio ao mesmo tempo?
Este projeto não tem fim definido. Não representa estes nem outros questionamentos. Não representa as teorias que o compõem. Não representa nada sólido e imutável. Não representa!
Este projeto propõe! Sua finalidade e suas representações são cambiantes. Constitui um trajeto poético: o projeto está no caminhar, onde o movimento que esta indução traz aos navegantes, é o próprio projeto em si!
Um projeto desejante.
É hora, finalmente, de fazê-lo acontecer! [=

Mantra e Complexidade

{ em 05.10.2011 } {  •  •  •  }
Clouds - Karindalziel
Quando criamos, seja o que for, sempre passamos por uma série de levantes criativos até que algo seja de fato expelido e concretizado. Chamo-os de levantes (no mais bel entender do Sr. Bey), pois entendo que as ideias surgem de um caos de informações e vontades – tanto imanentes quanto transcendentes – onde a própria natureza biológica nos prova que pensamentos são não pontos, mas redes. E redes regidas pela mesma dinâmica: a emergência.
O entendimento de como as ideias e a criatividade flui foi o ponto de partida para que começasse a me interessar por este modo como sistemas passam de um estado relativamente simples à complexidade. Palavras como caos, auto-organização, redes, teias, atualizações, não-linearidade, horizontalidade, coletividade, cibercognição, temporalidades, passaram a frequentar minhas ideias. Com Steven Johnson, entendi como a dinâmica de redes está presente na auto-organização de sistemas não-lineares como o cérebro, as cidades e as redes online. Este certamente foi um marco para mim, e guiou o rumo que minha graduação teve.
Aglutinei a ele principalmente os pensamentos do físico Fritjof Capra, onde encontrei uma peça fundamental para me apaixonar ainda mais pelo tema. Em sua teoria dos sistemas e ecologia profunda, Capra tece a auto-organização emergente como um mecanismo presente em qualquer nível da natureza – de células a galáxias – e como tudo – TUDO – está intrinsecamente interligado por uma rede interdependente. A teia da vida.
Mergulho isto, ainda, no mar contemporâneo de fluidez conceitual, das novas realidades trazidas pela tecnologia, da trans-conectividade, da supra-potencialização da hibridização e do conhecimento, da física quântica, e do tempo como um questionamento presente. Foi ao tentar nadar em meio a estas ondas que literalmente redefini meus propósitos de vida, e passei a redescobrir pouco a pouco pelas bases muitas das formas como enxergava o funcionamento de praticamente qualquer coisa.
Foi inevitável em certo momento tentar trazer estes conceitos à minha prática do design – principalmente a nível humano, mas também a nível de produção. Minhas referências passaram a ser outras, meus vislumbres estavam muito mais em processos emergentes do que em produções que repetem sempre os mesmos modelos relacionais. Passei a ver o design como algo inerente à vida, e não como uma prática profissional fatídica. O design que vive nos processos e nas relações!
Trouxe de forma rápida todo este contexto, pois julguei necessário para explicar a relação que ensaio a seguir. Encontrei o vídeo abaixo recentemente, e nele há fragmentos de um tipo de experimento que muito me lembra a arte generativa contemporânea, mas que até então desconhecia: cymatics.
Basicamente, cymatic é a forma que um som evoca sobre determinada circunstância. É a emergência de um sistema auto-organizado através da vibração de partículas induzidas pelo som. É incrível como, em todos os experimentos, cada partícula está a todo momento em constante movimento, mas há claramente uma forma-padrão geral formadas.
Estes experimentos me fascinaram. Ao conseguir enxergar o mecanismo emergente onde um simples som, constituído de movimento, é capaz de gerar padrões numa dança complexa de partículas, dei um grande salto quântico em minhas ideias!
Não seria esta a chave para entender como o design funciona no emaranhado da vida? As relações tecidas vibram numa rede caótica, formando padrões de outras e novas complexidades! Movimento gerador de mais movimento. A questão não estaria, para cada caso, encontrar a tonalidade de som que possibilitaria a emergência de um tipo de complexidade?
Facilmente ao pesquisar sobre cymatics, caí num outro assunto onde claramente encontrei ressonância de ideias. Os mantras: pequenas palavras-sons, que evocadas em determinadas circunstâncias são capazes de desencadear um processo de complexidade extremamente expansiva.
Longe de mim a prepotência de explicar o que são os mantras em sua totalidade (o que creio ser virtualmente impossível), o que segue abaixo é fruto de uma pergunta-brincadeira, um grande “E se?” que tenta entender o mantra como mecanismo potencializador para meu projeto.
Dentre variados “tipos” de mantras, destaco aqueles que são unicamente movimentos. Aqueles que foram a essência e origem dos demais mantras, que não possuem significado em suas palavras, nem propósito aparente, e que sua não-significação linguística faz parte da construção de seu poder emergente/expansivo: os Bija Mantras.
Bija-mantras principais
“Bija” possui a tradução simplificada para “semente”. Cada um possui características diferentes, porém, todos possuem traços em comum. A pronunciação de todos (em determinados contextos) parece nos levar à um espaço aparentemente vazio onde não pensamos racionalmente, mas de onde retornamos sensibilizados, como se tivéssemos passado por uma experiência absurdamente modificadora e clarificadora de um tempo sem limite, de um espaço contínuo, cheio de energia. Esta viagem é única para cada momento, para cada pessoa, para cada circunstância.
Há várias explicações e interpretações do funcionamento dos mantras – que vão desde as mais físicas/biológicas às mais místicas e religiosas. Fisicamente, suas ações estão interligadas tanto com a repercussão vibratória da pronunciação do som físico sobre nosso corpo, quanto com todo o contexto envolvido para sua pronúncia. A repetição de palavras que aparentemente não possuem sentido, bem como toda a preparação psicológica e fisiológica para recitá-los, atuam também em seu processo. Cada mantra está interligado com o fluxo de um determinado tipo de energia pelo corpo. É realmente fascinante como um pedaço sonoro minúsculo de a-significação gera tamanha produção.
“O mantra, portanto é uma ferramenta que possibilita a assimilação do sentido de um assunto complexo por uma via que não passa pela razão. O pensamento produzido pelo mantra é puro dinamismo, e, por isso mesmo, inconclusivo.”
Andre de Rose, baseado nos ensinamentos
do Prof. Carlos Eduardo Barbosa.

Encontrei no funcionamento dos mantras justamente a potencialidade que procurava encontrar nos cymatics, mas ainda maior. Seu design é absurdamente emergente, e parte de uma extrema simplicidade à uma complexidade profundamente transformadora. Este foi um ponto de mutação em meu processo, pois a partir de então me encontro e me inspiro nos processos mântricos para entender como meu projeto pode ao menos tentar caminhar para tamanha complexidade.
Seria possível criar algo tão destituído de significado aparente, tão abstrato, que fosse capaz de se desdobrar num processo imanente de percepção e significação sempre único? Algo que estivesse noENTRE-coisas, algo que fosse movimento, e gerasse um padrão compositivo e diferente a cada um como resposta? Algo que a partir de uma modificação em rede “interior”, se expande e desdobra à extensão da teia da vida? Algo possível de se dobrar, desdobrar, e transdobrar por vias e modos aparentemente inimagináveis e infinitos, mas sempre compositivos? Algo de mínima tangibilidade, e máxima intangibilidadade? Ainda mais: como seria o design de algo que fosse desejante em si, e produtor de mais e mais desejos?
Ficou claro que qualquer linha de fuga deste mapa, qualquer possível atualização para a ressonância destas perguntas em meus modos de fazer, está sempre na produção de algo que se perpetua no “-ENDO”: em constante fluxo e processo, um instrumento-semente subjetivo em seus mapeamentos e repercussões, como um mantra.
Mapa do projeto
A esta altura, já possuo uma imagem de como posso experimentar a atualização deste projeto desejante. Espero já trazê-la num próximo post. =)

Bricoleur

{ em 21.09.2011 } {  •  •  •  •  •  }
Acho fascinante a facilidade criativa e criadora infantil. Sua habilidade em transformar tudo em arte, do criar do modo mais puro e ingênuo quanto o brincar. Uma arte onde não se sabe bem onde se quer chegar, onde não se possui um propósito aparente e se guia pelo próprio desejo e vontade de se fazer mais e mais. O processo pelo processo.
Viajam por um espaço onde os símbolos transitam livremente. Sempre descompromissadamente. Não há os porquês, e vive-se de modo intenso os “comos”. Os nomes, denotações, e definições não importam – exceto aquelas criadas para sua brincadeira ter efeito. Em seu brincar não há princípio, meio, e fim – uma história sempre se tece pelo “E(…), E(…), E(…)” – e seguindo uma lógica extremamente não-linear, as narrações e situações são sempre intercambiadas durante uma existência.
“Antes eu desenhava como Rafael, mas precisei de toda uma existência para aprender a desenhar como as crianças”.
Pablo Picasso. (cliché, eu sei, mas pareceu-me oportuno).

Foi num dia que como por uma brincadeira me peguei a pensar em minha infância. Encontrei rastros na memória de algumas traquitanas criadas, e que hoje revelam tantos devires que entendo possuir.
Colagem tirinha turma da mônica
Gostava muito de histórias em quadrinhos para crianças – em especial “A Turma da Mônica”. O engraçado desta lembrança é não lembrar sequer de uma história que li, muito menos de como eram os detalhes e desenhos das revistas. Mas me lembro distintivamente do que as transformava após tê-las lido.
Meu prazer verdadeiro estava em recortar cada um dos quadrinhos da revista, e depois remontá-los de forma a compor novas histórias – e porque não estéticas – desvirtuando o sentido e propósito inicial. Isto feito numa ordem e lógica que só eu entendia no momento – e sabe-se lá se isto existia, mas o desejo de poder criar o novo de forma bricolada mantém-se muito vivo até o momento.
Foto abertura programa Ra Tim Bum
“Deparamo-nos (…) diante de uma relação direta entre ‘brincadeira’ e ‘arte’. Em ambos os casos há o encantamento diante de uma aparente reorganização espontânea dos esquemas. Em ambos, a permanente invenção e o sentido de vínculo, elo, ligação.”
Emanuel Dimas Pimenta.

Por volta dos 7 anos (acho), transitei por uma série de tentativas de recriar uma “experiência maluca científica” (numa referência clara à abertura de “Ra tim bum” da TV Cultura). O objetivo era simples e claro – transitar a água de um ponto da coisa à outro. Mas aqui, novamente, o prazer estava em tentar juntar quaisquer objetos que possuía em mãos para tentar criar a experiência nova.
O engraçado mesmo é que todas falharam. Parece-me que meu interesse estava mesmo no processo de buscar novas peças, tentar entender e juntar as partes, e saber onde poderia aglutiná-las de modo que o fluxo pudesse passar por dentro do todo criado.
Além destas tentativas de traquitanas que pudessem transitar fluxos, possuí uma tentativa de criar uma “academia” de exercícios com objetos achados. Duas latas com pedras suportadas pelo cabo de vassoura eram meus alteres, o galho da árvore era suporte para flexões. Cheguei até mesmo a pintar o muro (obviamente sem permissão) com o nome da academia. Engraçado novamente é que meu prazer esteve em criar o instrumento – porquê usá-lo, ou fazer cumprir seus supostos objetivos, já não era de minha alçada.
Numa terceira experiência, tentei por várias vezes criar um monstro de forma generativa. Mais simples do que as anteriores (mas um pouco mais perigosa), a ideia era que misturando alguns tipos de líquidos (como um desinfetante e um suco de laranja) eu seria capaz de criar monstros que habitariam meu quintal. De todas as anteriores, esta foi a que mais chegou perto de se concretizar.
Ver: Bricolagem e Dadaísmo.
Jeffrey Smart - Hide And Seek (1970)
Das brincadeiras que já vem empacotadas, “esconde-esconde” era com certeza minha predileta. Interessante que mesmo possuindo uma estrutura já definida, ela me permitia assumir e transitar por linhas de fuga de um modo que dificilmente conseguiria em outros momentos.
O prazer de verdade estava em escolher não somente os locais mais difíceis de ser encontrado, mas as formas mais difíceis. Trocava de roupa durante a contagem, virava sargento em guerra, assumia a forma de coruja, gato e cavalo, visitava forros e telhados – ou simplesmente vagava por vários quarteirões por horas para não ser pego. Cada nova partida era uma nova oportunidade de criar uma nova estratégia e assumir um novo devir.
Ver: TAZ.
“A satisfação do bricoleur quando consegue ligar qualquer coisa à corrente eléctrica, quando consegue desviar uma conduta de água…”
Deleuze & Guatarri.

Foi ao analisar estas brincadeiras acima que identifiquei um certo modo de se fazer e “ser” para que elas existissem. Como um modo de ser num espaço próprio e único, extremamente potencializador – não um espaço físico, mas um espaço virtualmente muito presente, que exige que eu viaje de um modo muito particular, e possua nele liberdade para criar livremente.
Sinto que nestas ocasiões contadas, e em alguns outros projetos que produzi após estes momentos (como este, e esse que se constrói), retomo a este espaço. E, nada por coincidência, é neste espaço que os projetos com os quais mais me identifico tomam forma. É fruto de um determinado tipo de viagem extremamente modificadora e potencializadora, uma viagem caótica e ao mesmo tempo lisa, intensa em movimento. Viagem onde recombino maquinários desejantes, como um bricoleur que é somente produção e gerador de mais produção.
Este retorno a este espaço e modo de ser no espaço é eterno. E é um retorno à nossa essência, ao o que nos identificamos, a tudo que podemos ser. Ao som e movimento geradores de caráter e produção. Ao verdadeiro fluxo de criação. A um sentimento que é muito maior do que qualquer razão, e que só se consegue acessar pelo pouco que se deixa transbordar pelos dedos.
É imanente em princípios, e enormemente modificador à teia exterior por esta mesma razão. É onde se retira as barreiras que impedem que o fluxo de vida concretize sua essência, e deixa-a se estender a todas as direções – numa brincadeira que faz do EU e do NÓS um espaço de vida.
Bricoleur em essência, busco ser um puro ser-processo cambiante. E tomo os estriamentos e racionalizações somente como partes dos trampolins para mergulhar em novas camadas de mares.
Este é meu design. Esta é a poética de meu fazer. E é assim que o torno verdadeiro.
Mapa do Fazer

Ares

{ em 30.08.2011 } {  •  •  }
O que li de outros amigos designers na mesma posição que estou agora torna-se fato: escrever sobre seu próprio processo criativo é algo extremamente difícil. Realmente sinto na pele que meu fluir natural para a criação passa muito longe da linguagem verbal.
Numa tentativa de amenizar isto, as imagens abaixo são uma aproximação minha ao campo de minhas ideias. De algum modo – seja por sua sensação em primeiridade ou por sua simbologia – cada uma delas compõe com os conceitos que estão tanto na cerne quanto nas intenções deste projeto.
Joël Evelyñ & François - oH . . rHızoma drεam . .Cobalt123 - One Sky: Lightness of Being (cropped)
Flor-de-Lotuscroyboy87 - 117037943_96f1404ed8_b
csismn ---
Eric Fischer - See Something or Say Something ProjectAnoop Negi - Fishing Net Sunset
Alaskan Dude - Looking straight into The Wave, Coyote Butte North, Arizona
Mark Knol - x.01.plodeMaciej Lewandowski - Sea
Gwen Vanhee - spectrum.X_40x40cmPolynoid - Rebird - Screenshot cropped
Theo Jansen - Creature
Os devidos créditos seguem nos links e alt-tags das imagens.

Meio

{ em 28.08.2011 } {  •  •  •  }
Meio que no meio. Do caminho, do processo, do descobrimento, da mutação, do projeto, da vida. Meio que onde há a existência do pé e da cabeça, mas que onde esta separação não faz sentido algum.
Criado já pelo meio, este espaço é uma interface tanto de meu acesso a um projeto que ainda não passa de um (mil) vir-a-ser, quanto de abertura de seu processo num ambiente passível de contribuição e composição aberta.
Ao longo dos quase 5 anos de minha graduação, trilhada (nem sempre de forma consciente) por linhas extremamente tortas, cada fragmento do tempo foi uma reinvenção de como sou e encaro a realidade. Literalmente ao sentir as repercussões positivas deste trilhar líquido e de constante questionamento, nasceu uma sede de me propor a caminhar por um mapa também errante para meu projeto de conclusão de curso, de modo que este conseguisse relacionar de modo profundo meu modo de ser, e meus questionamentos perante o design, a vida, e meus anseios criativos.
De certa forma, vislumbro constantemente em potência tudo o que esta conexão pode vir a ser. Em algum nível, já possuo o mantra que entoará a emergência de todo o projeto – mas estratificá-lo agora, é perder parte de sua potência bricoleur. Como num grande ato de improvisação, prefiro navegar em busca de linhas de fuga, dobrando e desdobramento conceitos à minha tortuosa maneira, ao mesmo tempo que pulo de levante em levante de atualizações concretizantes.
Como o próprio título da página anuncia, o projeto ainda não passa do vislumbre de muitos devires. Um projeto mutante do qual não se sabe ao certo quais formas exatas ele poderá tomar: é um processo, não um projétil. É um som, puro movimento, e determinante de um tipo de movimento. O que não significa a inexistência de tensões já existentes – mas sim que estas podem ainda se potencializar e fugir a novos platôs com grande simplicidade.
Durante as próximas atualizações deste espaço, trarei algumas das conexões que já teci durante este percurso, bem como experimentarei a construção de novas. Agradeço e dou boas-vindas a todos que me acompanharem nisto, e os convido a compor – às suas próprias maneiras – com as ideias, conceitos e processos inseridos neste blog. Namastê! =)