Uma cadeira vazia. Essa é a imagem final de As canções*, documentário dirigido por Eduardo Coutinho – uma cadeira no palco nu, tendo ao fundo as dobras de uma cortina preta iluminada.
Durante os pouco mais de 90 minutos anteriores, sentadas nessa cadeira, pessoas variadas cantam músicas de sua escolha e explicam por que elas foram as suas escolhidas. No final, depois da última personagem sair de cena, deixando para trás a cadeira vazia, o plano continua por algum tempo – cerca de dez segundos –, permitindo deduzir que o filme poderia continuar indefinidamente. Haveria sempre alguém disposto a se apresentar sentado na cadeira, cantando sua canção e contando a razão dela ser a eleita. Com isso, o sentido aparente da imagem final pode mudar, passando a se referir não ao vazio, falta ou encerramento, mas, paradoxalmente, à plenitude, presença e perenidade.
Terá vindo de Lupicínio Rodrigues a inspiração para terminar As canções dessa forma? É provável que não – no universo de Coutinho não há lugar para metáforas e influências. Lançada por Franscisco Alves, em 1950, a música Cadeira vazia, além do mais, não está entre as cantadas no filme. Mas poderia perfeitamente estar. A letra justifica essa especulação. Seus versos são um convite para ocupar a cadeira: “Entra, meu amor, fica à vontade/E diz com sinceridade o que desejas de mim/Entra, podes entrar, a casa é tua/[...] Mas de uma coisa podes ter certeza/O teu lugar aqui na minha mesa/Tua cadeira ainda está vazia/Tu és a filha pródiga que volta/ Procurando em minha porta/ O que o mundo não te deu [...]”.
Lupicínio, como é sabido, não se deixa levar pelo sentimentalismo – razão suficiente para ocupar lugar de destaque na galeria das admirações de Coutinho. O afeto e a impiedade das letras de Lupicínio, marcam também a relação de Coutinho com seus personagens. Os versos finais de Cadeira vazia são claros: “[...] Voltaste, estás bem, estou contente/Mas me encontraste muito diferente/Vou te falar de todo coração/Eu não te darei carinho nem afeto/Mas pra te abrigar podes ocupar meu teto/Pra te alimentar, podes comer meu pão.”
A impiedade, no caso de Coutinho, está em algumas perguntas desconcertantes, e mais ainda na situação que propicia para manifestações de narcisismo diante da câmera, nas quais os personagens se expõem, revelando sua intimidade sem muito pudor, e se deixando observar qualquer que seja sua aparência física, inusitado figurino ou aptidão musical. Já a face afetuosa de Coutinho transparece na atenção e interesse genuínos com que ouve os depoentes, sem julgar nem discriminar, e os acata sem seguir padrões de beleza predominantes.
A plateia me pareceu comovida no final da sessão em que vi As canções, pela primeira vez, há uma semana. E disposta a continuar no cinema para sempre, assistindo pessoas cantando suas canções. Exagero à parte, se essa impressão for correta, pode ser o indício do acerto inicial do projeto de Eduardo Coutinho – ter identificado algo vital para um segmento amplo e diversificado de pessoas. Demonstraria também a excelência do resultado alcançado ao reduzir os recursos mirabolantes do cinema à sua expressão mais simples – câmera fixa e poucas variações de enquadramento.
De um lado, As canções parece satisfazer demanda reprimida por oportunidade de expressar emoções abertamente; de outro, põe personagens e espectadores em sintonia. Não é pouco. Oferece ocasião para um grupo de mulheres e homens vir a público falar de mágoas e afetos, de sentimentos profundos. Faz isso invertendo a postura usual do documentarista, habituado a impor sua presença e pautar os depoimentos. Como em Jogo de cena, a câmera em As canções não vai ao encontro de ninguém. Espera pelos convidados que são livres para virem participar ou não.
O que diferencia As canções dos documentários anteriores de Eduardo Coutinho, também baseados em situações de interação propostas por ele, são justamente as músicas – um achado por propiciarem uma nova contribuição criativa dos participantes que vai além dos usuais relatos de vida, em geral lacrimosos e melodramáticos. As canções nos dão acesso à autoimagem de cada um dos intérpretes, algo a que o espectador não costuma ter acesso.
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As canções estreou há 4 semanas em 7 salas e continua sendo exibido em 6, tendo sido visto por cerca de onze mil espectadores até domingo passado (1º de janeiro). A média de 209 espectadores por cópia no primeiro fim de semana foi abaixo da expectativa, e o resultado total até agora pode ser considerado fraco, mesmo sendo superior ao de outros documentários brasileiros recentes. Mas As canções vem demonstrando potencial para ter uma carreira comercial longa. Se pudesse ficar em cartaz para sempre em uma boa sala talvez alcançasse um resultado razoável. O mercado permitiria?
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*As canções é produzido e distribuído pela Videofilmes, empresa da qual João Moreira Salles, editor da revista piauí, é sócio.
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