Especial Terrence Malick
Fonte: http://cinematographecinemafilmes.wordpress.com/category/especial-terrence-malick/
Terrence Malick nasceu em 30 de novembro de 1943 em Ottawa, Illinois, ou Waco, Texas, filho de Irene e Emil A. Malick, que trabalhava como geólogo. Ele estudou na St. Stephen’s Episcopal School em Austin, Texas, enquanto sua família morava em Tulsa, Oklahoma. Malick tinha dois irmãos mais novos: Chris e Larry.
Como Peter Biskind relata, em Como a geração sexo-drogas-rock’n’roll salvou Hollywood:
Ele (Malick) era tímido e introvertido, falava muito pouco. Malick vinha do Texas. Seu pai era um executivo da Phillips Petroleum, e ele tinha dois irmãos mais moços, Chris e Larry. Larry foi para a Espanha estudar violão com Segovia, um professor cujo rigor era lendário. No verão de 1968, Terry soube que seu irmão havia quebrado as próprias mãos, aparentemente enlouquecido com seus estudos. O pai pediu a Terry que fosse à Espanha ajudar Larry. Terry se recusou. O pai foi, e voltou com o corpo de Larry. Aparentemente, ele cometera suicídio. Terry, o irmão mais velho, fora coberto pelos privilégios da primogenitura. Ele é que havia estudado em Harvard, tornara-se um Rhode Escolar, e quando seu irmão caçula mais precisara dele, tinha falhado. Para sempre carregaria o peso opressivo da culpa.
Parece o prenúncio de A árvore da vida: Malick parece ser o menino O’Brien que carrega a lembrança do irmão que gostava de música. A presença desta se dá em todos os filmes de Malick, mais diretamente pelo símbolo do piano. Desde aquele do pai de Holly, em Terra de ninguém, passando por aquele que o Sr. O’Brien utiliza para ensinar a seus filhos em A árvore da vida, até aqueles que tanto Neil quanto Marina se mostram próximos em Amor pleno, mais ainda pela utilização das composições de Carl Orff, George Tipton, Gunild Keetman, James Taylor, Nat King Cole e Erik Satie (em Terra de ninguém), de Wagner e Mozart (em O novo mundo) e de Zbigniew Preisner, Gustav Mahler, Ottorino Respighi, Johann Sebastian Bach e Mozart novamente (em A árvore da vida), Malick transforma a música quase numa referência para seus filmes.
Malick estudou filosofia na Universidade de Harvard, e seguiu para a Magdalen College, Oxford. Depois de se desentender com seu tutor, Gilbert Ryle, a respeito do conceito de mundo em Heidegger, Wittgenstein e Kierkegaard, ele deixou Oxford sem o doutorado (em 1969, a Northwestern University Press chegou a publicar a tradução de Malick de Vom Wesen des Grundes, de Heidegger). De volta aos Estados Unidos, ensinou filosofia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, enquanto trabalhou independentemente como jornalista, escrevendo artigos para a Newsweek, The New Yorker e Life.
Malick foi iniciar a carreira de cineasta após receber um MFA do American Film Institute, em 1969, na direção de Lanton Mills. No AFI, ele conheceu, por exemplo, Jack Fisk, que seria seu colaborador de longa data, e o agente Mike Medavoy , que colocou Malick para revisar roteiros. Ele acabou sendo creditado pelas primeiras versões de Dirty Harry(1971), Deadhead Miles (1972) e Meu nome é Jim Kane (1972), além de ter feito uma das primeiras versões de Great balls of fire, sobre a trajetória de Jerry Lee Lewis.
Malick foi iniciar a carreira de cineasta após receber um MFA do American Film Institute, em 1969, na direção de Lanton Mills. No AFI, ele conheceu, por exemplo, Jack Fisk, que seria seu colaborador de longa data, e o agente Mike Medavoy , que colocou Malick para revisar roteiros. Ele acabou sendo creditado pelas primeiras versões de Dirty Harry(1971), Deadhead Miles (1972) e Meu nome é Jim Kane (1972), além de ter feito uma das primeiras versões de Great balls of fire, sobre a trajetória de Jerry Lee Lewis.
Depois do roteiro de Deadhead Miles, ele conseguiu realizar seu primeiro filme, Terra de ninguém, com a ajuda do produtor Ed Pressman:
“Malick havia escrito um roteiro chamado Terra de ninguém. Queria que Pressman financiasse o projeto. Brian estudou Pressmann com a intensidade de um zoólogo e lhe deu alguns conselhos. Desajeitado como era, Pressman parecia um convite aberto ao abuso, e De Palma sugeriu que Malick alternasse elogios com maus-tratos. Conta-se que Malick, que tinha o dobro do tamanho de Pressman, certa vez tinha se levantado de uma cadeira segurando a orelha de Pressman e fazendo força para se erguer.
Malick convenceu Pressman a financiar Terra de ninguém [...] Foi filmado com minguados recursos próprios num total de 350 mil dólares, no Colorado. Não havia dinheiro suficiente nem para dailies. Era a primeira experiência de Malick como diretor, mas estava determinado a fazer tudo do seu jeito. Certa vez, disse a uma pessoa da equipe: ‘Vou colocar (o ator) na frente da janela, então, quando escurecer, você pode continuar a filmar, você vai ter mais luz’.
Malick convenceu Pressman a financiar Terra de ninguém [...] Foi filmado com minguados recursos próprios num total de 350 mil dólares, no Colorado. Não havia dinheiro suficiente nem para dailies. Era a primeira experiência de Malick como diretor, mas estava determinado a fazer tudo do seu jeito. Certa vez, disse a uma pessoa da equipe: ‘Vou colocar (o ator) na frente da janela, então, quando escurecer, você pode continuar a filmar, você vai ter mais luz’.
‘Terry, você pode colocá-lo onde quiser, a gente ilumina.’
‘Não precisa me dizer isso. Já fiz dois filmes de 8mm.’
[...]
Malick estava obcecado pelo filme. Mesmo quando o dinheiro acabou, ele continuou filmando cenas de cobertura sozinho, com a ajuda de alguns locais”.
Elogiado no Festival de Cinema de Nova York, Terra de ninguém obteve inúmeros elogios, embora Pauline Kael considerasse (não sem nenhuma exatidão) um filme frio. Roger Ebert o colocou na sua galeria de grandes filmes, assim como Dias de paraíso (embora seja A árvore da vida que figure no seu Top 10 de todos os tempos). A Warner acabou por comprar o filme.
A Paramount produziria o seu filme seguinte, Dias de paraíso, que se passa na Fazenda de Panhandle, no Texas, no início do século passado.
A Paramount produziria o seu filme seguinte, Dias de paraíso, que se passa na Fazenda de Panhandle, no Texas, no início do século passado.
As filmagens foram extenuantes e complicadas:
“A produção começou no outono de 1976. Como De Palma, Malick era um diretor que trabalhava essencialmente dentro da sua cabeça. Os atores e a equipe achavam-no frio e distante, ele estava tendo dificuldades em conseguir desempenhos razoáveis. Com duas semanas de filmagem, bastava olhar para os dailies para ver que nada estava funcionando, parecia teleteatro ruim. Malick decidiu jogar fora o roteiro, ir na direção de Tolstoi em vez de Dostoievski, amplidão no lugar de profundidade, e filmou quilômetros de película na esperança de poder consertar os problemas na mesa de montagem.
A produção seguia a passo de cágado. As velhíssimas ceifadeiras mecânicas viviam quebrando, o que significava que as filmagens só começavam no final da tarde, com poucas horas até o fim do dia até que ficasse escuro demais para continuar; apesar disso, as imagens embebidas da luz dourada do poente, eram lindas, ainda que o diretor de fotografia Nestor Almendros estivesse ficando cego. Um de seus assistentes tirava polaroides da cena, que ele examinava usando óculos fortíssimos para fazer os ajustes necessários.
A produção seguia a passo de cágado. As velhíssimas ceifadeiras mecânicas viviam quebrando, o que significava que as filmagens só começavam no final da tarde, com poucas horas até o fim do dia até que ficasse escuro demais para continuar; apesar disso, as imagens embebidas da luz dourada do poente, eram lindas, ainda que o diretor de fotografia Nestor Almendros estivesse ficando cego. Um de seus assistentes tirava polaroides da cena, que ele examinava usando óculos fortíssimos para fazer os ajustes necessários.
[...]
E depois ainda teve a montagem, que levou mais de dois anos – Malick era famoso por sua indecisão. Ou apenas meticuloso, dependendo de quem esteja pagando as contas.
[...]
À medida que mais e mais pedaços de diálogos iam para o lixo, a trama tornava-se incompreensível e Malick se debatia entre várias maneiras de trazer alguma lógica para a trama, finalmente optando por uma voz over”.
Após o lançamento de Dias de paraíso, Malick começou a desenvolver, também para a Paramount, o filme Q, que pretendia contar a origem da Terra, o que acabou servindo como projeto para a A árvore da vida. No entanto, nessa época, ele viajou para a Europa e refugiou-se em Paris, onde ficou recluso um bom período de sua vida, quando seu desaparecimento havia já se tornado conhecido. Em 1997, regressou com Além da linha vermelha.
Antes de realmente filmar A árvore da vida, Malick chegou a se envolver com o filme sobre Che Guevara, que seria, afinal, feito por Steven Soderbergh. Em meio aos preparativos, ele teve a oportunidade de realizar O novo mundo.
Contando a história romântica entre o oficial inglês John Smith e Pocahontas, O novo mundo teve três versões de tamanhos variados e foi nomeado apenas ao Oscar de melhor fotografia. Embora interessante, ele não tem o magnetismo dos demais filmes de Malick.
Sob o ponto de vista do magnetismo, há uma notória influência da pintura de Edward Hopper em Malick, assim como em David Lynch. Vejamos, por exemplo, que a casa de Dias de paraíso (imagem acima) dialoga com Hopper, da pintura “House by the railroad”.
Contando a história romântica entre o oficial inglês John Smith e Pocahontas, O novo mundo teve três versões de tamanhos variados e foi nomeado apenas ao Oscar de melhor fotografia. Embora interessante, ele não tem o magnetismo dos demais filmes de Malick.
Sob o ponto de vista do magnetismo, há uma notória influência da pintura de Edward Hopper em Malick, assim como em David Lynch. Vejamos, por exemplo, que a casa de Dias de paraíso (imagem acima) dialoga com Hopper, da pintura “House by the railroad”.
E os trilhos de trem, habituais em Hopper, tanto no quadro acima (em frente à casa) como em “Queensborough bridge”, como se Malick trabalhasse a ideia de travessia, de continuidade e dois pontos interligados, como seus personagens:
Em Terra de ninguém:
Em Dias de paraíso:
Em A árvore da vida:
Em Amor pleno:
Malick também é influenciado pelo pintor Andrew Wyeth, sobretudo em Dias de paraíso eAmor pleno (abaixo as pinturas “Christina’s world” e “Wind from the sea”, esta capturada em vários instantes de Amor pleno quando os personagens Neil e Marina ficam próximos às cortinas):
A pintura, inclusive, é a profissão do pai de Holly, e uma cena-chave de Terra de ninguém é quando ele conversa com Kit enquanto faz um de seus trabalhos, num imenso outdoor com uma imagem tipicamente norte-americana em meio a uma planície.
Um dos filhos da família O’Brien também pinta numa página em A árvore da vida, criando, em seguida, um conflito:
Com essa influência pictórica, vem a simbologia do contato com a natureza, sobretudo, em todos seus filmes, com a água, elemento que revigora os personagens em uma determinada trajetória. Vejamos:
Em Terra de ninguém:
Em Dias de paraíso:
Em Além da linha vermelha:
Em O novo mundo:
Em A árvore da vida:
Em Amor pleno:
Junto com a presença da água, a filmografia de Malick compõe personagens envolvidos por incertezas e ligações metafísicas. Se o primeiro casal de sua carreira, em Terra de ninguém, cometia crimes pelo interior dos Estados Unidos, mergulhados numa espécie de vazio contínuo, diante das paisagens mais belas, em Dias de paraíso o Éden era ameaçado por gafanhotos, numa cena de origem bíblica. Em Além da linha vermelha, a natureza fazia o papel de Deus em meio à batalha, com suas árvores e rios, assim como em O novo mundo, com a figura de Pocahontas auxiliando neste contato. Em A árvore da vida e Amor pleno, a base religiosa é ainda mais forte, com as figuras do luto e do amor sendo compreendidos à luz da igreja, não ligando-se a uma determinada religião, mas, de forma mais ampla, à espiritualidade e à criação do mundo. Os personagens de Malick, ainda assim, não são porta-vozes de alguma ideia religiosa, mas sim vagam em meio à incerteza. É de se pensar que os casais de Malick (Kit e Holly em Terra de ninguém; Bill e Abby em Dias de paraíso; John Smith e Pocahontas em O novo mundo; o casal O’Brien de A árvore da vida; e Neil e Marina em Amor pleno) jamais conseguem desenhar, a partir de suas relações, uma verdade sobre o universo; pelo contrário, parecem sempre perseguir um horizonte inalcançável.
A fotografia de seus filmes é extraordinária. Também com costume de trabalhar com fotógrafos diferentes a cada filme, tem repetido a parceria com Emmanuel Lubezki desde O novo mundo, e A árvore da vida e Amor pleno se constituem em dois dos mais belos filmes já feitos. Isso para não atestar que o trabalho de Brian Probyn, Tak Fujimoto e Stevan Larner para Terra de ninguém; de Nestor Almendros para Dias de paraíso; e de John Toll paraAlém da linha vermelha são irrepreensíveis.
As paisagens dos filmes de Malick são sempre familiares. Waco, onde teria nascido, foi utilizado em A árvore da vida, assim como Smithville. Seu raríssimo Amor pleno foi filmado em Tulsa, Oklahoma, onde morava sua família. Perceba-se nos filmes Terra de ninguém,Dias de paraíso, A árvore da vida e Amor pleno que Malick mostra a paisagem do Texas – e a própria obsessão de Malick por figuras do interior ou inseridas no interior. Mesmo emAlém da linha vermelha, com a paisagem da II Guerra Mundial, a natureza cria uma redoma ao redor dos personagens, e os flashbacks sempre tentam alcançar o outro lado do oceano.
Sob esse ponto de vista, parece que as voice overs adotadas por Malick em seus filmes também existem para que não haja um excesso de diálogos que interfiram diretamente no ambiente, resguardando sempre uma aproximação à distância. Se essa voice over foi utilizada em Dias de paraíso, que ele julgava problemático, é de se pensar que constituiu, desde o início, uma referência original de sua obra, uma maneira de reelaborar a filosofia que existia em seus roteiros de modo mais transparente. O filme em que este elemento parece menos orgânico é O novo mundo.
As paisagens dos filmes de Malick são sempre familiares. Waco, onde teria nascido, foi utilizado em A árvore da vida, assim como Smithville. Seu raríssimo Amor pleno foi filmado em Tulsa, Oklahoma, onde morava sua família. Perceba-se nos filmes Terra de ninguém,Dias de paraíso, A árvore da vida e Amor pleno que Malick mostra a paisagem do Texas – e a própria obsessão de Malick por figuras do interior ou inseridas no interior. Mesmo emAlém da linha vermelha, com a paisagem da II Guerra Mundial, a natureza cria uma redoma ao redor dos personagens, e os flashbacks sempre tentam alcançar o outro lado do oceano.
Sob esse ponto de vista, parece que as voice overs adotadas por Malick em seus filmes também existem para que não haja um excesso de diálogos que interfiram diretamente no ambiente, resguardando sempre uma aproximação à distância. Se essa voice over foi utilizada em Dias de paraíso, que ele julgava problemático, é de se pensar que constituiu, desde o início, uma referência original de sua obra, uma maneira de reelaborar a filosofia que existia em seus roteiros de modo mais transparente. O filme em que este elemento parece menos orgânico é O novo mundo.
Malick ganhou a Palma de Ouro de diretor por Dias de paraíso e a principal por A árvore da vida. Enquanto Além da linha vermelha e A árvore da vida foram indicados aos Oscars de melhor filme e direção, Dias de paraíso e A árvore da vida foram indicados nessas mesmas categorias ao Globo de Ouro. Recebeu o Urso de Ouro por Além da linha vermelha e o Prêmio Signis do 69º Festival Internacional de Cinema de Veneza por Amor pleno.
Ao contrário de David Lynch, com quem compartilha afinidades estéticas e está se dedicando apenas à carreira musical e de diretor de videoclipes no momento, Malick já tem três projetos em filmagem ou em processo de montagem. Um deles se chamava Lawless, com Ryan Gosling, Natalie Portman, Cate Blanchett e Rooney Mara, atualmente ainda sem título. O outro é Knight of cups, com Christian Bale. Há ainda o documentário Voyage of time, com imagens feitas para a A árvore da vida, sobre a criação da terra, com a narração de Brad Pitt, e que vem sofrendo alguns problemas de produção.
Conhecido por não conceder entrevistas, o que é estipulado em seus contratos, Malick também dificilmente se deixa fotografar, sendo raras suas aparições. Podemos vê-lo numa ponta de sua estreia, Terra de ninguém.
Ao contrário de David Lynch, com quem compartilha afinidades estéticas e está se dedicando apenas à carreira musical e de diretor de videoclipes no momento, Malick já tem três projetos em filmagem ou em processo de montagem. Um deles se chamava Lawless, com Ryan Gosling, Natalie Portman, Cate Blanchett e Rooney Mara, atualmente ainda sem título. O outro é Knight of cups, com Christian Bale. Há ainda o documentário Voyage of time, com imagens feitas para a A árvore da vida, sobre a criação da terra, com a narração de Brad Pitt, e que vem sofrendo alguns problemas de produção.
Conhecido por não conceder entrevistas, o que é estipulado em seus contratos, Malick também dificilmente se deixa fotografar, sendo raras suas aparições. Podemos vê-lo numa ponta de sua estreia, Terra de ninguém.
De 1970 a 1976, Malick foi casado com Jill Jake; de 1985 a 1998, com Michele Morette; e é casado atualmente com Alexandra “Eckie” Wallace.
A partir de amanhã, trataremos, em Cinematographe, de cada longa-metragem realizado por Terrence Malick
A partir de amanhã, trataremos, em Cinematographe, de cada longa-metragem realizado por Terrence Malick
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Amor pleno (2012)
Por André Dick
O diretor Terrence Malick sempre foi conhecido tanto pelo talento quanto pela realização de poucos filmes. Entre Dias de paraíso e Além da linha vermelha, são duas décadas de distância. No entanto, depois de Além da linha vermelha, de 1998, ele já lançou O novo mundo, A árvore da vida e agora Amor pleno (título no Brasil para To the wonder, figurando ao lado de A viagem para Cloud Atlas como um distanciamento daquilo que corresponde ao filme). Recepcionado com a habitual polêmica, por fazer um cinema que não deixa o espectador indiferente, Amor pleno consegue radicalizar as propostas de seus dois principais filmes, Dias de paraíso e A árvore da vida. Nesse sentido, quem não aprecia esses filmes, possivelmente vai desgostar deste novo. Com todos os elementos próprios da trajetória de Malick, eles retratam a relação indistinta do ser humano com o cósmico e o cenário que lembra uma espécie de Éden perdido sempre é revitalizado por um discurso que procura aproximar a solidão e o discurso religioso. Mas não se trata exatamente de um discurso com o objetivo de convencer a respeito de uma determinada religião, mesmo que suas menções, em A árvore da vida e Amor pleno, sejam ao cristianismo, mas sobretudo a busca pela ligação com o outro. Todos os personagens, na pequena filmografia de Malick, a perseguem. Se O novo mundo me parece o filme até a data menos interessante do diretor, não se pode dizer que ele não apresenta seu estilo. Eis o que mais possui, na superfície, Amor pleno: com a fotografia de Emmanuel Lubezki e a trilha de Hanan Townshend, entre a serenidade e a opressão (baseando-se diretamente naquela que Alexandre Desplat compôs para A árvore da vida), todos os elementos caracterizam este como um filme de Malick. Às vezes, podemos estar diante de imagens excessivamente parecidas com Dias de paraíso e A árvore da vida, mas Amor pleno contém uma espécie de progressão em silêncio que esses filmes, apesar de buscarem, não realizam completamente. Amor pleno parece menor, por exemplo, do que A árvore da vida, mas guarda construções mais arriscadas.
Trata-se de uma espécie de escritura poética – ou, dependendo do ponto de vista, sagrada – da francesa Marina (Olga Kurylenko, fugindo à impressão deixada por Oblivion) para aquele que vislumbra como seu amor, Neil (Ben Affleck), um inspetor ambiental (daqui em diante,spoilers). Ela casou-se muito cedo e encontra esse amor quando já tem uma filha, Tatiana (Tatiana Chiline). Depois de andarem pela belíssima abaida do Monte Saint-Michel (onde ela escreve “Subi os degraus para a maravilha”), lugar histórico, na Normandia, de passearem pelo Jardin du Luxembourg – com uma paisagem quase sempre em névoa, europeia –, e se divertirem dentro de um metrô, Marina acompanha Neil na volta para Oklahoma, no interior dos Estados Unidos. Suas primeiras impressões estrangeiras apresentam um país honesto e limpo – vitais as passagens por um desfile de homens vestidos de caubói e um campo de universidade, ou pelo campo de futebol americano, onde Tatiana vê líderes de torcida ensaiando –, com o céu sempre aberto, e Malick consegue filmar algumas paisagens de maneira notável, como a de um posto de gasolina noturno ou das quadras abertas onde eles vão morar. Estas paisagens quase intocadas parecem esconder, como descobre Neil, em seu trabalho como fiscal de meio ambiente, resíduos tóxicos, e Malick sutilmente retrata a presença deles como uma espécie de serpente que habita o paraíso – ou o “novo mundo”. Esse paraíso é apenas aparente. Entre abraços e olhares, no chão da sala ou do quarto, perto das cortinas (em imagens que dialogam diretamente com aquelas da família O’Brien, de A árvore da vida), o casal, a princípio, vive um idílio, com Neil, que começa a tratar Tatiana como sua filha. Em idas ao supermercado, Tatiana pressiona Neil a casar com a mãe – o casamento como a embalagem de consumo româtico. O peso da presença delas é evidente nele. Para tentar diminuir esse panorama, a personagem de Marina, como outros personagens da filmografia de Malick, tem uma ligação com a música. Se o menino O’Brien que causava ciúme no irmão mais velho por tocar violão e ser mais próximo do pai, pianista, em A árvore da vida, e Holly, em Terra de ninguém, era proibida de ver Kit pelo pai, sendo colocada em aulas de música, aqui Marina tenta ser uma espécie de bailarina: ela tanto toca o parapeito da janela com sapatilhas da filha como dança ao longo do supermercado aonde vai com Neil e a filha.
Em determinado momento, surge um antigo amor de Jane (Rachel McAdams, num papel discreto, mas nunca tão bem fotografada), dona de um rancho semifalido, dialogando diretamente com o fazendeiro de Dias de paraíso e uma espécie de retrato contemporâneo dele. Ao mesmo tempo, temos o Padre Quintana (Javier Bardem), cuja igreja o casal frequenta e visita as comunidades periféricas da região, e para quem o casamento pode trazer um encanto que não se encontra nas demais relações. Todas essas figuras, numa leitura a princípio apressada, parecem desconectadas. Mas, quando Malick aprofunda os personagens (é certo que quase sem diálogos), vemos que todos estão se debatendo entre assumir um compromisso ou optar pela liberdade, e que quem parece enclausarado não necessariamente é diferente daquele que parece viver com liberdade, com janelas de vidro com vista ampla para fora, jardins imensos e planícies intermináveis (veja-se o momento em que Neil e Marina se casam no tribunal, enquanto homens assinam sua prisão). Todos, na verdade, escolhem maneiras de criar vínculos, ou, nos momentos de angústia e desespero, e falta de opção, se aprisionar (por isso, a visita do Padre às famílias e os prisioneiros). Inevitável lembrar da cena em que o Padre caminha em meio a familiares depois de um casamento, e lhe é oferecido o “dom da alegria”, por ser muito triste, ao que ele responde que é porque não sai muito. Neil também não sabe se gosta de Marina, e ambos frequentam a igreja de Quintana, que, a partir de determinado momento, não sabe se acredita em Deus. Paralelamente, Malick traça essa relação entre o casal (e os sentimentos de vínculo, luxúria, pecado) com as dúvidas existenciais do padre, vital para se entender a busca de cada um. Sem saberem ao certo qual o sentimento que possuem um pelo outro, Neil e Marina frequentam a igreja do Padre Quintana, mas organizam seus compromissos formais longe dela.
Quintana deseja receber os fluxos de luz pelos vitrais da igreja, basicamente idênticos àquelas de A árvore da vida – quando parece que estamos, na realidade, assistindo a uma espécie de continuação não anunciada. É de se pensar que desde A árvore da vida Malick já queria conduzir os sentimentos de seus personagens por meio da arquitetura. A arquitetura, tanto de A árvore da vida quanto de Amor pleno, é moderna, com ventilações, raios de luz entrando. Não se trata simplesmente de Malick querer mostrar vitrais de igreja, e sim de mostrar como esse ambiente de busca da religiosidade não se contrapõe àqueles cenários que parecem apenas rotineiros. Para Malick, todo o ambiente reserva um espaço para a psicologia, e é surpreendente como Amor pleno recupera imagens da infância, de ruas ainda sendo construídas, com terrenos baldios, e o sol forte da manhã sem nenhum bloqueio de edifícios, assim como as áreas rochosas e os animais num campo guardam alguma ligação com a parte inicial de 2001, de Kubrick. E também estabelece uma ligação com o que Malick considera divino. Se visto superficialmente, Amor pleno parece apenas uma elegia a cenários belos; se visto com densidade, é possível perceber um vislumbre de melancolia em cada encontro ou desencontro desenhado neles, também pela fotografia irretocável de Lubezki.
Quintana deseja receber os fluxos de luz pelos vitrais da igreja, basicamente idênticos àquelas de A árvore da vida – quando parece que estamos, na realidade, assistindo a uma espécie de continuação não anunciada. É de se pensar que desde A árvore da vida Malick já queria conduzir os sentimentos de seus personagens por meio da arquitetura. A arquitetura, tanto de A árvore da vida quanto de Amor pleno, é moderna, com ventilações, raios de luz entrando. Não se trata simplesmente de Malick querer mostrar vitrais de igreja, e sim de mostrar como esse ambiente de busca da religiosidade não se contrapõe àqueles cenários que parecem apenas rotineiros. Para Malick, todo o ambiente reserva um espaço para a psicologia, e é surpreendente como Amor pleno recupera imagens da infância, de ruas ainda sendo construídas, com terrenos baldios, e o sol forte da manhã sem nenhum bloqueio de edifícios, assim como as áreas rochosas e os animais num campo guardam alguma ligação com a parte inicial de 2001, de Kubrick. E também estabelece uma ligação com o que Malick considera divino. Se visto superficialmente, Amor pleno parece apenas uma elegia a cenários belos; se visto com densidade, é possível perceber um vislumbre de melancolia em cada encontro ou desencontro desenhado neles, também pela fotografia irretocável de Lubezki.
Não necessariamente isso irá iluminar quando os personagens são fechados. Os quartos podem anunciar tanto o bem-estar de um relacionamento quanto a distância entre pessoas que parecem se gostar, mas não conseguem assumir esse vínculo afetivo. E as salas reservam tanto a aproximação entre alguém que não sabe se deseja se casar e ter filhos quanto o padre que tenta fugir do mundo externo – dos junkies que o procuram. No entanto, Malick deixa quase tudo subentendido, ou revela apenas por meio de gestos e ações ligeiras dos personagens, o que já se anunciava em A árvore da vida. Esses personagens, indecisos em suas ações, só poderiam ser estrangeiros, seja onde estiverem. Se o padre é um estrangeiro tentando dissipar a miséria, Marina prefere um lugar onde nada parece acontecer aos metrôs e à movimentação intensa de Paris, enquanto Neil está deslocado sempre de seu posicionamento, pois não consegue comprovar sua ligação com as amantes. Mesmo uma réplica da Estátua da Liberdade pode ser encontrada durante a caminhada pelo Jardin du Luxembourg, em Paris.
Outra passagem em que se desenha esta sensação estrangeira é aquela em que Marina conversa com Anna (Romina Mondello), sua amiga italiana, e esta diz que na cidade onde ela mora não acontece nada – jogando, por exemplo, a bolsa de Marina num canteiro e dizendo que, quando elas voltarem ali, a bolsa a estará esperando. Estamos num universo contemporâneo, mas Malick ainda visualiza uma espécie de Éden intocado, como aquele que vemos em Dias de paraíso, O novo mundo e A árvore da vida, antes da passagem pela morte.
Esta propriedade, em Malick, de cada personagem ser estrangeiro, mesmo num ambiente familiar ou ainda intocado, conduz sempre suas narrativas a um espaço de amplitude. Temos, então, figuras da França (Marina e sua filha), da Espanha (o Padre Quintana), da Itália (a amiga de Marina), dos Estados Unidos (Neil e Jane) – e Malick utiliza línguas diferentes em seu filme para revelar, ao que parece, não apenas uma Babel pessoal, mas de que a linguagem a ser analisada por ele é universal.
Amor pleno é o primeiro filme de Malick situado totalmente nos dias atuais. Em Terra de ninguém, visualizava o casal transviado nos anos 50; em Dias de paraíso, as fazendas do início do século XX dos Estados Unidos; em Além da linha vermelha, a II Guerra Mundial; em O novo mundo, a colonização de ingleses na América; e em A árvore da vida uma família entre os anos 50 e possivelmente os anos 70. Isso concede a Malick um espaço para trabalhar outras formas de relação entre as pessoas, como o contato entre Marina, morando em Oklahoma, e a filha, morando na Europa pela internet, ou a derrocada da fazenda de Jane, já quase vazia e em ruínas.
Outra passagem em que se desenha esta sensação estrangeira é aquela em que Marina conversa com Anna (Romina Mondello), sua amiga italiana, e esta diz que na cidade onde ela mora não acontece nada – jogando, por exemplo, a bolsa de Marina num canteiro e dizendo que, quando elas voltarem ali, a bolsa a estará esperando. Estamos num universo contemporâneo, mas Malick ainda visualiza uma espécie de Éden intocado, como aquele que vemos em Dias de paraíso, O novo mundo e A árvore da vida, antes da passagem pela morte.
Esta propriedade, em Malick, de cada personagem ser estrangeiro, mesmo num ambiente familiar ou ainda intocado, conduz sempre suas narrativas a um espaço de amplitude. Temos, então, figuras da França (Marina e sua filha), da Espanha (o Padre Quintana), da Itália (a amiga de Marina), dos Estados Unidos (Neil e Jane) – e Malick utiliza línguas diferentes em seu filme para revelar, ao que parece, não apenas uma Babel pessoal, mas de que a linguagem a ser analisada por ele é universal.
Amor pleno é o primeiro filme de Malick situado totalmente nos dias atuais. Em Terra de ninguém, visualizava o casal transviado nos anos 50; em Dias de paraíso, as fazendas do início do século XX dos Estados Unidos; em Além da linha vermelha, a II Guerra Mundial; em O novo mundo, a colonização de ingleses na América; e em A árvore da vida uma família entre os anos 50 e possivelmente os anos 70. Isso concede a Malick um espaço para trabalhar outras formas de relação entre as pessoas, como o contato entre Marina, morando em Oklahoma, e a filha, morando na Europa pela internet, ou a derrocada da fazenda de Jane, já quase vazia e em ruínas.
E não por acaso, nesse sentido, o cenário da Normandia – ao mesmo tempo medieval e moderno – se reproduz em todo o filme, como lugar a ser comparado (e seu formato, no horizonte, lembre o do castelo – o espaço do “novo mundo” – da Disneylândia). A parte superior do monte é dominada pela abadia de Saint-Michel, também conhecida como “A maravilha”. As marés de Saint-Michel, que sobem de acordo com diferentes períodos, não deixam de ser um contraponto àqueles riachos em que Neil investiga a presença de tóxicos. Do mesmo modo, as areias movediças são um contraponto aos lodaçais ameaçados pela indústria. Os vitrais da igreja de Padre Quintana guardam uma luminosidade que parece não haver no dia em que Neil e Marina visitam Saint-Michel, mas de certo modo estabelecem uma ligação imediata. Do mesmo modo, outra analogia é aquela em que o casal chega a uma planície em que há bisões, animais caçados por nativos e que foram quase exterminados pelos colonizadores – como se Neil e Jane constituíssem esses colonizadores querendo preservar o que resta de suas vidas – e perceba-se na sonoridade ao fundo vozes indígenas (numa ligação estreita com O novo mundo). E a mais espiritual: os personagens sobem a escada seja para consumar o amor, a traição ou o encontro com uma ideia divina (repare-se que, na saída do motel, um carro antiquíssimo, igual ao do fazendeiro traído de Dias de paraíso, passa por Marina).
Malick é um autor refinado de analogias, outras vezes incorrendo numa quase filosofia, precipitada, e não é diferente aqui. Embora ele não queira atingir a grandiosidade de A árvore da vida, no sentido de colocar o casal como o filho da família O’Brien como um símbolo do nascimento e da morte, em que o nascimento é representado como um menino saindo por uma porta embaixo d’água, Malick consegue desenhar aproximações interessantes. Também não existem, aqui, os dinossauros, o surgimento da Terra, os vulcões em erupção, a vida e a genética se compondo em todos os detalhes. Amor pleno consegue ser uma versão mais íntima ainda daquilo que moveu Malick para A árvore da vida: a água e a vegetação se projetam do mesmo modo. Quando o casal está em Saint-Michel, a caminhada lembra o final de A árvore da vida, e quando Marina caminha de braços abertos em meio a um campo verde, estamos de novo próximos da Sra. O’Brien (Jessica Chastain), abrindo os braços para o céu, e ainda quando Marina se aproxima de um piano é um diálogo direto com Sr. O’Brien (Brad Pitt). A dor da perda do filho da mãe de A árvore da vida se converte no afastamento, aqui, de Marina em relação à filha, e o conflito doloroso de não poder ter outro filho.
Quem se manteve afastado da proposta de A árvore da vida dificilmente vai encontrar aqui um alento; quem considera a fotografia como um elemento apenas para embelezar um filme, sem significado próprio, também; mais complicado ainda para quem deseja seguir uma linha ininterrrupta de diálogos entre o romântico, a dúvida existencial e o conflito entre casais, também em torno de uma possível traição (em que Antes da meia-noite, com atuações irrepreensíveis de Delpy e Hawke, se destaca). Embora pareça apenas continuar o filme anterior, reproduzindo algumas imagens, como o sol por trás de árvores e casas, e situações, Malick se arrisca ainda mais, ao propor uma narrativa, esta sim, sem núcleos definidos de dramaticidade. Os acontecimentos do filme não se mostram com um destaque definitivo, apenas um silêncio opressor, mas capaz de movimentar as lacunas. Se Marina, a mulher, é mais submissa ao homem do que a Sra. O’Brien, não vemos nenhum afastamento a respeito das dúvidas existenciais tanto em Neil quanto no Padre Quintana: ambos vagam, à espera de um sentido mais exato de compreensão, e todos são, de certo modo, estrangeiros dentro de sua própria vida.
Amor pleno não possui também a narrativa rebuscada de Dias de paraíso, mas há um sentido denso de humanidade, entre os silêncios cultivados pelos personagens ao longo da metragem. Isso se deve à utilização das imagens de Malick no sentido de o espectador parecer sentir o clima de cada lugar enfocado, mesmo os mais corriqueiros. Quando se olha uma rua em Malick, é como se estivéssemos inseridos nela, em alguma arquitetura capaz de remodelar sensações de lembrança e desprendimento, com suas cercas e seu horizonte longínquo, antes do anúncio das estrelas.
Malick é um autor refinado de analogias, outras vezes incorrendo numa quase filosofia, precipitada, e não é diferente aqui. Embora ele não queira atingir a grandiosidade de A árvore da vida, no sentido de colocar o casal como o filho da família O’Brien como um símbolo do nascimento e da morte, em que o nascimento é representado como um menino saindo por uma porta embaixo d’água, Malick consegue desenhar aproximações interessantes. Também não existem, aqui, os dinossauros, o surgimento da Terra, os vulcões em erupção, a vida e a genética se compondo em todos os detalhes. Amor pleno consegue ser uma versão mais íntima ainda daquilo que moveu Malick para A árvore da vida: a água e a vegetação se projetam do mesmo modo. Quando o casal está em Saint-Michel, a caminhada lembra o final de A árvore da vida, e quando Marina caminha de braços abertos em meio a um campo verde, estamos de novo próximos da Sra. O’Brien (Jessica Chastain), abrindo os braços para o céu, e ainda quando Marina se aproxima de um piano é um diálogo direto com Sr. O’Brien (Brad Pitt). A dor da perda do filho da mãe de A árvore da vida se converte no afastamento, aqui, de Marina em relação à filha, e o conflito doloroso de não poder ter outro filho.
Quem se manteve afastado da proposta de A árvore da vida dificilmente vai encontrar aqui um alento; quem considera a fotografia como um elemento apenas para embelezar um filme, sem significado próprio, também; mais complicado ainda para quem deseja seguir uma linha ininterrrupta de diálogos entre o romântico, a dúvida existencial e o conflito entre casais, também em torno de uma possível traição (em que Antes da meia-noite, com atuações irrepreensíveis de Delpy e Hawke, se destaca). Embora pareça apenas continuar o filme anterior, reproduzindo algumas imagens, como o sol por trás de árvores e casas, e situações, Malick se arrisca ainda mais, ao propor uma narrativa, esta sim, sem núcleos definidos de dramaticidade. Os acontecimentos do filme não se mostram com um destaque definitivo, apenas um silêncio opressor, mas capaz de movimentar as lacunas. Se Marina, a mulher, é mais submissa ao homem do que a Sra. O’Brien, não vemos nenhum afastamento a respeito das dúvidas existenciais tanto em Neil quanto no Padre Quintana: ambos vagam, à espera de um sentido mais exato de compreensão, e todos são, de certo modo, estrangeiros dentro de sua própria vida.
Amor pleno não possui também a narrativa rebuscada de Dias de paraíso, mas há um sentido denso de humanidade, entre os silêncios cultivados pelos personagens ao longo da metragem. Isso se deve à utilização das imagens de Malick no sentido de o espectador parecer sentir o clima de cada lugar enfocado, mesmo os mais corriqueiros. Quando se olha uma rua em Malick, é como se estivéssemos inseridos nela, em alguma arquitetura capaz de remodelar sensações de lembrança e desprendimento, com suas cercas e seu horizonte longínquo, antes do anúncio das estrelas.
To the wonder, EUA, 2012 Diretor: Terrence Malick Elenco: Ben Affleck, Javier Bardem, Rachel McAdams, Olga Kurylenko, Tatiana Chiline, Romina Mondello Produção:Sarah Green Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Emmanuel Lubezki Trilha Sonora:Hanan Townshend Duração: 112 min. Distribuidora: Paris Filmes Estúdio: Redbud Pictures
Postado em ESPECIAL TERRENCE MALICK, FILMES DOS ANOS 2010
A árvore da vida (2011)
Por André Dick
O filme A árvore da vida, de Terrence Malick, tem despertado polêmica desde a sua estreia. Assim como ganhou a prestigiada Palma de Ouro em Cannes, foi indicado ao Oscar de melhor filme. Para quem pretende ver imagens filmadas com poeticidade raras vezes vistas no cinema e um diálogo aberto tanto com o sentimento religioso quanto com a ciência, envolvendo a formação do indivíduo como sujeito, buscando, porém, as suas contradições, é uma obra diferencida, embora o fio de sua história seja bastante claro (não se equiparando, por exemplos, aos filmes mais enigmáticos de David Lynch). Mesmo seu aparato mercadológico, de promoção, mostra esse objetivo. Três de seus cartazes são complementares: um com o olhar do pai por trás do pé do filho que acaba de nascer, comparando um de seus dedos da mão com o tamanho do pé do filho; outro que mostra uma colagem de imagens do filme, criando um quebra-cabeças visual; e ainda um que foca o pé do filho que acaba de nascer em meio aos dedos da mão do pai que o segura, e uma luz por trás: a luz da criação do universo e dos seres, talvez. Importante dizer que, a partir daqui, há spoilers.
O sentimento de criação, no filme de Malick, se perpetua, como a árvore da vida – que era uma das árvores do Éden, junto com a Árvore do Bem e do Mal, a qual não se deu acesso porque Adão e Eva teriam pecado e traria a vida eterna –, que alegoricamente também parece ser a do pátio da família O’Brien, em Waco, no interior do Texas. Nela, o pai (Brad Pitt) e a mãe (Jessica Chastain, no filme que a revelou) reservam os dois lados que podem ajudar a definir a vida. O pai representa a natureza, autossuficiente, e a mãe, a graça, que tem necessidade do perdão, de compreender os outros. Não podemos nos render nem à natureza nem totalmente à graça, sintetizada pela cena em que a mãe, na rua, roda com o filho nos braços e aponta para o céu, dizendo “Ali mora Deus”. São essas alegorias que registram os sentimentos de uma família no interior do Texas, que ao mesmo tempo podem representar o início e o fim dos tempos (porque todos, na verdade, são únicos e irrepetíveis), e mostram A árvore da vida como um ponto estético entre a poesia e a sublimação religiosa – mas uma sublimação que depende do Big Bang, do imponderado, do infinito e do que a religião não especificamente abarca nem explica.
O sentimento de criação, no filme de Malick, se perpetua, como a árvore da vida – que era uma das árvores do Éden, junto com a Árvore do Bem e do Mal, a qual não se deu acesso porque Adão e Eva teriam pecado e traria a vida eterna –, que alegoricamente também parece ser a do pátio da família O’Brien, em Waco, no interior do Texas. Nela, o pai (Brad Pitt) e a mãe (Jessica Chastain, no filme que a revelou) reservam os dois lados que podem ajudar a definir a vida. O pai representa a natureza, autossuficiente, e a mãe, a graça, que tem necessidade do perdão, de compreender os outros. Não podemos nos render nem à natureza nem totalmente à graça, sintetizada pela cena em que a mãe, na rua, roda com o filho nos braços e aponta para o céu, dizendo “Ali mora Deus”. São essas alegorias que registram os sentimentos de uma família no interior do Texas, que ao mesmo tempo podem representar o início e o fim dos tempos (porque todos, na verdade, são únicos e irrepetíveis), e mostram A árvore da vida como um ponto estético entre a poesia e a sublimação religiosa – mas uma sublimação que depende do Big Bang, do imponderado, do infinito e do que a religião não especificamente abarca nem explica.
O filme começa com a morte de um filho do casal O’Brien, que perturba o seu filho mais velho, Jack (Sean Penn), arquiteto que trabalha num arranha-céu de Dallas. A sua mãe se pergunta como Jó – citado na epígrafe do filme – onde está Deus para tê-la abandonado, pois sempre acreditou na graça, mas o divino quer mostrar sua grandiosidade por meio da natureza, e Malick filma tudo como se fosse uma mescla entre o criacionismo e o evolucionismo. Em Jó, Deus busca uma proximidade com o ser humano para explicar sua criação e que a dor que Jó está sentindo não se compara à sua força. Esse é o motivo de Malick para retroagir até a criação do mundo, mostrando a criação das partículas, dos seres das águas, dos dinossauros. Essa digressão, para muitos, é uma tolice (elas têm tomadas cinematográficas e não simplesmente documentais, com efeitos especiais de Douglas Trumbull, o mesmo de 2001 e Blade Runner, que não aprecia efeitos digitais, e a fotografia brilhante de Emmanuel Lubezki), mas é ela que torna A árvore da vida um filme tão interessante, à medida que ingressa na poesia e na fusão de imagens estranhas e elípticas.
A lentidão das imagens mostra que estamos entrando não apenas no inconsciente dos personagens que sofrem (os filhos e os pais) e, como Jó, questionam onde está Deus, mas numa releitura do diretor da criação do mundo, que pode estar ligado a Deus ou ao imponderável, ao indefinido, que não ganha forma nem representações religiosas. Ao mesmo tempo, esse ingresso na criação do mundo pode representar a criação e a perda dentro de cada ser humano. Por isso, os vulcões, as chamas, os tremores no centro da terra, a lava, os dinossauros doentes, à beira do mar ou num rio, a cachoeira desembocando no rio onde passa uma serpente embaixo da água, a água secando ao sol do deserto, onde o personagem de Penn vaga entre crateras, como se em meio a edifícios límpidos e hermeticamente calculados e imensos, tentando encostar o céu e se aproximar das nuvens. O universo abarca também a violência, a raiva da perda – mas há sempre um recomeço. Talvez seja o primeiro filme que busque de forma tão intensa essa representação do ser humano como fonte da criação e do fim. Não por acaso, a casa do filho e dos pais são envidraçadas, tentando ainda buscar um contato com a natureza, e os cenários do filme são tão naturais, querendo representar sempre um cenário próximo da criação.
A lentidão das imagens mostra que estamos entrando não apenas no inconsciente dos personagens que sofrem (os filhos e os pais) e, como Jó, questionam onde está Deus, mas numa releitura do diretor da criação do mundo, que pode estar ligado a Deus ou ao imponderável, ao indefinido, que não ganha forma nem representações religiosas. Ao mesmo tempo, esse ingresso na criação do mundo pode representar a criação e a perda dentro de cada ser humano. Por isso, os vulcões, as chamas, os tremores no centro da terra, a lava, os dinossauros doentes, à beira do mar ou num rio, a cachoeira desembocando no rio onde passa uma serpente embaixo da água, a água secando ao sol do deserto, onde o personagem de Penn vaga entre crateras, como se em meio a edifícios límpidos e hermeticamente calculados e imensos, tentando encostar o céu e se aproximar das nuvens. O universo abarca também a violência, a raiva da perda – mas há sempre um recomeço. Talvez seja o primeiro filme que busque de forma tão intensa essa representação do ser humano como fonte da criação e do fim. Não por acaso, a casa do filho e dos pais são envidraçadas, tentando ainda buscar um contato com a natureza, e os cenários do filme são tão naturais, querendo representar sempre um cenário próximo da criação.
Difícil ver nesses artifícios de Malick apenas uma grandiosidade ou um sentimento épico – apesar da música sacra, de igreja, pontuar ao fundo, muitas vezes. Na verdade, a queda-d’água na cachoeira representa, mais do que a natureza, os próprios personagens, em direção a um rio que não tem origem exata, independente das figuras que neles passeiam – constituindo a própria árvore da vida.
A volta aos anos 50, quando nasce Jack O’Brien (cujas iniciais formam Job, que é Jó), em uma sequência que vai de uma criança saindo por uma porta de um lago submersa no lago até o nascimento de um bebê, num quarto completamente branco – como nos cenários assépticos de Stanley Kubrick –, para que o pai possa pegar seu filho, comparando seu dedo da mão a um dos dedos do pé, mostra que o diretor recua num flashback para retomar a sequência da vida, de momentos perdidos no tempo e que não serão mais recuperados, apenas em flashes de memória. A criança aprende a caminhar com o pai no pátio, depois sobe uma escada para ver o que há no sótão, a mãe se molha com a mangueira ou corre rua afora sendo procurada por uma borboleta, a família acende velas na rua, os gafanhotos pulam no rio de verdade e nos livros de história, Jack, à noite (já interpretado pelo excelente Hunter McCracken), ilumina o quarto com a lanterna, mas também para ler histórias espaciais (e o espaço, nos anos 1950, ainda era um lugar a ser conquistado). Tudo parece não ter a grandeza da criação do mundo, do Big Bang, dos dinossauros, porém ao mesmo tempo tem. Tudo aquilo que se perdeu com o tempo – o filho do casal que existe apenas na memória – ainda faz parte do que existe, dentro de cada ser, como a própria criação do mundo. E é nesse ponto que o casal de Malick, embora não represente exatamente Adão e Eva – pois o filme mostra a criação do imponderável, por meio do Big Bang, e a criação dos dinossauros pela junção de inúmeras partículas na água –, nem tenha no pátio a Árvore do Bem e do Mal, mostra-se ligado ao enlace entre graça e natureza, não apenas por meio do discurso, mas por sua presença, na educação dos filhos. O pai pode xingar e castigar, mas é o mesmo que tenta introduzir os filhos na música e em brincadeiras de encenação à noite, no quarto. A mãe, embora calada, representando a vontade a ser feita pelo homem, deseja fazer prevalecer em si a graça. É com ela que os filhos correm num matagal e num bosque, e daí passa a ser uma figura muito idealizada (no entanto, esse é o propósito de Malick), enquanto o pai tenta ser alguém que pode modificar o mundo trabalhando numa indústria.
Parece-nos que, nesse caso, o filme, apesar de não se fixar em detalhes narrativos ou numa sequência de conflitos entre os personagens, tem como potencial essa mesma dispersão que alguns apontam como falha. Ou seja, se de certo modo A árvore da vida acontece num só fluxo de imagens (interrompido apenas no início e no final com a alegoria do que seria a criação e o fim dos tempos), também podemos dizer que é esse fluxo que constrói uma narrativa baseada em mínimos detalhes e gestos quase imperceptíveis, tanto do diretor quanto do elenco, no entanto indispensáveis, ou seja, com começo, meio e fim, como estamos acostumados a ver, embora, certamente, sob o olhar diferenciado de Malick. O filho mais velho está dividido entre a graça (simbolizada pela mãe) e a natureza (simbolizada pelo pai), que tenta ensiná-lo a não ser completamente íntegro. Divide-se entre tentar ser comportado e quebrar vidraças de casas vizinhas (que se contrapõem aos vitrais religiosos da igreja que a família frequenta); entre ficar em casa tentando ser músico como o pai gostaria que fosse ou entrar na casa da vizinha porque sente-se atraído por ela, deparando-se com uma de suas camisolas e a atração pelo universo feminino que ela desperta; de atirar ou não com a espingarda de chumbo na mão de seu irmão, que não é nem um pouco vingativo e o qual considera melhor, também pela generosidade e por considerar que ele conseguiu uma aproximação maior do pai por meio da música.
A volta aos anos 50, quando nasce Jack O’Brien (cujas iniciais formam Job, que é Jó), em uma sequência que vai de uma criança saindo por uma porta de um lago submersa no lago até o nascimento de um bebê, num quarto completamente branco – como nos cenários assépticos de Stanley Kubrick –, para que o pai possa pegar seu filho, comparando seu dedo da mão a um dos dedos do pé, mostra que o diretor recua num flashback para retomar a sequência da vida, de momentos perdidos no tempo e que não serão mais recuperados, apenas em flashes de memória. A criança aprende a caminhar com o pai no pátio, depois sobe uma escada para ver o que há no sótão, a mãe se molha com a mangueira ou corre rua afora sendo procurada por uma borboleta, a família acende velas na rua, os gafanhotos pulam no rio de verdade e nos livros de história, Jack, à noite (já interpretado pelo excelente Hunter McCracken), ilumina o quarto com a lanterna, mas também para ler histórias espaciais (e o espaço, nos anos 1950, ainda era um lugar a ser conquistado). Tudo parece não ter a grandeza da criação do mundo, do Big Bang, dos dinossauros, porém ao mesmo tempo tem. Tudo aquilo que se perdeu com o tempo – o filho do casal que existe apenas na memória – ainda faz parte do que existe, dentro de cada ser, como a própria criação do mundo. E é nesse ponto que o casal de Malick, embora não represente exatamente Adão e Eva – pois o filme mostra a criação do imponderável, por meio do Big Bang, e a criação dos dinossauros pela junção de inúmeras partículas na água –, nem tenha no pátio a Árvore do Bem e do Mal, mostra-se ligado ao enlace entre graça e natureza, não apenas por meio do discurso, mas por sua presença, na educação dos filhos. O pai pode xingar e castigar, mas é o mesmo que tenta introduzir os filhos na música e em brincadeiras de encenação à noite, no quarto. A mãe, embora calada, representando a vontade a ser feita pelo homem, deseja fazer prevalecer em si a graça. É com ela que os filhos correm num matagal e num bosque, e daí passa a ser uma figura muito idealizada (no entanto, esse é o propósito de Malick), enquanto o pai tenta ser alguém que pode modificar o mundo trabalhando numa indústria.
Parece-nos que, nesse caso, o filme, apesar de não se fixar em detalhes narrativos ou numa sequência de conflitos entre os personagens, tem como potencial essa mesma dispersão que alguns apontam como falha. Ou seja, se de certo modo A árvore da vida acontece num só fluxo de imagens (interrompido apenas no início e no final com a alegoria do que seria a criação e o fim dos tempos), também podemos dizer que é esse fluxo que constrói uma narrativa baseada em mínimos detalhes e gestos quase imperceptíveis, tanto do diretor quanto do elenco, no entanto indispensáveis, ou seja, com começo, meio e fim, como estamos acostumados a ver, embora, certamente, sob o olhar diferenciado de Malick. O filho mais velho está dividido entre a graça (simbolizada pela mãe) e a natureza (simbolizada pelo pai), que tenta ensiná-lo a não ser completamente íntegro. Divide-se entre tentar ser comportado e quebrar vidraças de casas vizinhas (que se contrapõem aos vitrais religiosos da igreja que a família frequenta); entre ficar em casa tentando ser músico como o pai gostaria que fosse ou entrar na casa da vizinha porque sente-se atraído por ela, deparando-se com uma de suas camisolas e a atração pelo universo feminino que ela desperta; de atirar ou não com a espingarda de chumbo na mão de seu irmão, que não é nem um pouco vingativo e o qual considera melhor, também pela generosidade e por considerar que ele conseguiu uma aproximação maior do pai por meio da música.
Nesse sentido, Malick não chega a nos impor nenhum maniqueísmo, ou seja, sua obra tem uma sutileza que apenas as grandes obras possuem. A trilha sonora não convence o espectador a sentir determinada emoção, apenas faz parte da história, nem leva a uma catarse. Tampouco as aproximações de câmera dos personagens. Se as suas tomadas embaixo das árvores – vendo sempre o ponto de vista da criança – procuram sempre um resquício de sol (que num determinado momento lembra exatamente o de 2001, na cena em que ele aparece vagarosamente na linha do horizonte), e por isso são por vezes cansativas e tornam o filme um pouco mais longo do que deveria, nem por isso ele se deixa carregar por um sentimento de ver a linguagem se esvair em imagens de apenas encantamento. Tudo é meticulosamente calculado nas cenas da criação do mundo, por exemplo, não deixando nenhum espaço para a simples pirotecnia ou imagens calculadas para documentários. A câmera mostrando, embaixo, as ondas se formar depois da queda do meteoro, por exemplo, é o significado de uma busca radical do diretor pelo sentido de origem, mesmo que, como a água, o fogo, a terra e o ar (os quatro elementos que circulam frequentemente nas imagens de A árvore da vida), não tem uma explicação exata.
Não se trata de distanciamento ou frieza do diretor, o que algumas vezes é suscitado, mas um reequilíbrio com sua forma escolhida. O céu que se abre como um grande túnel a passar essa mesma água que o forma. E o que seria – parece nos perguntar o diretor – a composição de uma família no Texas perto da grandiosidade do universo. Malick parece – e é aqui que entra não apenas o fato de ter dado aulas de Filosofia, mas de ser um cineasta que prefere sempre a reflexão e, nesse caso, uma poesia visual e sonora, ao movimento – nos querer ensinar sua versão de mundo, entretanto é interessante que ela acaba sendo universal, não no sentido de que todos têm suas ideias, mas de que as sensações de descoberta, reencontro e perda podem ser visualizadas em seu filme de modo intenso e aberto, sem ser ligadas a uma determinada família, contexto ou religião. Malick não se deixa sobrepujar por um discurso religioso, apesar de em determinados momentos o pensamento das personagens levar a isso, visualizando como esse discurso é incorporado por olhares diferentes e traduzidos em algo diferente e que se atrita com a realidade. Todos os seus personagens procuram a graça, entretanto, de certo modo, são atraídos para a natureza. A cena em que o pai volta com os filhos da igreja tentando doutriná-los e incomodado que eles queiram ligar o rádio do carro, quando ele diz, em determinada altura do filme, que gostaria mesmo é de ser músico, é significativa, no sentido de que mostra, por exemplo, como seu discurso não se adequa à realidade que tenta costurar à sua volta. Por isso, de determinado modo, o filme de Malick, ao falar de elementos simbólicos da criação e da Bíblia, trazendo ao centro a árvore da vida, mostra que esse sentimento religioso não pertence a ninguém, e sim a todos, faz parte de todos os elementos e sensações. A graça está na natureza e vice-versa. No final, o irmão de Jack, que vem a morrer, enterra alguns bichos – que imaginamos ser dinossauros – no pátio da casa, perto da árvore da vida. Não há final que não seja também um reinício. É preciso, em algum momento, como fizeram os personagens do Éden, deixar para trás a árvore da vida. De qualquer modo, ela sempre os acompanha.
Não se trata de distanciamento ou frieza do diretor, o que algumas vezes é suscitado, mas um reequilíbrio com sua forma escolhida. O céu que se abre como um grande túnel a passar essa mesma água que o forma. E o que seria – parece nos perguntar o diretor – a composição de uma família no Texas perto da grandiosidade do universo. Malick parece – e é aqui que entra não apenas o fato de ter dado aulas de Filosofia, mas de ser um cineasta que prefere sempre a reflexão e, nesse caso, uma poesia visual e sonora, ao movimento – nos querer ensinar sua versão de mundo, entretanto é interessante que ela acaba sendo universal, não no sentido de que todos têm suas ideias, mas de que as sensações de descoberta, reencontro e perda podem ser visualizadas em seu filme de modo intenso e aberto, sem ser ligadas a uma determinada família, contexto ou religião. Malick não se deixa sobrepujar por um discurso religioso, apesar de em determinados momentos o pensamento das personagens levar a isso, visualizando como esse discurso é incorporado por olhares diferentes e traduzidos em algo diferente e que se atrita com a realidade. Todos os seus personagens procuram a graça, entretanto, de certo modo, são atraídos para a natureza. A cena em que o pai volta com os filhos da igreja tentando doutriná-los e incomodado que eles queiram ligar o rádio do carro, quando ele diz, em determinada altura do filme, que gostaria mesmo é de ser músico, é significativa, no sentido de que mostra, por exemplo, como seu discurso não se adequa à realidade que tenta costurar à sua volta. Por isso, de determinado modo, o filme de Malick, ao falar de elementos simbólicos da criação e da Bíblia, trazendo ao centro a árvore da vida, mostra que esse sentimento religioso não pertence a ninguém, e sim a todos, faz parte de todos os elementos e sensações. A graça está na natureza e vice-versa. No final, o irmão de Jack, que vem a morrer, enterra alguns bichos – que imaginamos ser dinossauros – no pátio da casa, perto da árvore da vida. Não há final que não seja também um reinício. É preciso, em algum momento, como fizeram os personagens do Éden, deixar para trás a árvore da vida. De qualquer modo, ela sempre os acompanha.
O fato de que o personagem de Sean Penn caminha em meio a um deserto ou a um chão recém-abandonado pela água, lembrando algas do fundo do mar, quando, na verdade, está numa cidade grande, pode fazer com que o filme seja visto de modo excessivamente alegórico. Ou quando ele passa por uma porta sem sustentação no meio do deserto. Cada imagem parece sempre dizer mais do que uma simples alegoria. Ele pode olhar para cima e ver arranha-céus, assim como pode lembrar, em sua infância, do teto da igreja no alto, por onde perpassa a luz solar, ou dos galhos da árvore, pois na verdade as imagens, como a criação e o fim, estão dentro dele mesmo. E, mesmo se não o fossem, são elas que tornam A árvore da vida um achado em termos poéticos no meio cinematográfico. Porque se é bem verdade que as imagens de Malick não são absolutamente originais, é também verdade que ele coloca a poesia como ponte entre uma história que poderia ser linear e comum e uma história que adquire grandiosidade também pela maneira com que é filmada e pensada, com a corrida das crianças em meio a um matagal; banhando-se num rio (em que a água pode dar e tirar a vida); pulando numa cachoeira, em meio a rochas onde se formaram os primeiros seres; subindo em árvores; indo ao circo pela primeira vez; ou jogando bola entre as árvores da rua. E o filme impacta, de igual modo, porque, ao buscar a transcendência, refere-se ao nosso dia a dia: os girassóis estão ao nosso redor, e se guiam pelo sol, contudo não transcendem, como nós – ou, ao menos, parecem não transcender. Enquanto o sol é atraído pela terra, nossos olhares são atraídos pelo sol, e este está a cada fotograma do filme de Malick, pois ele sempre está ali, nos vigiando, assim como para o dinossauro ferido no início do filme. Os girassóis representam uma terceira via, entre a graça e a natureza, para o diretor. A transcendência, nesse caso, sempre é um ponto de vista. Nesse sentido, não se pode cogitar que Malick seja expulso da cidade por ser um poeta-cineasta, mas como um artista capaz de filmar algo de profunda densidade, que foge ao lugar comum e, por isso mesmo, merece ser visto e entendido.
The tree of life, EUA, 2011 Diretor: Terrence Malick Elenco: Brad Pitt, Sean Penn, Fiona Shaw, Jessica Chastain, Hunter McCracken, Kari Matchett, Dalip Singh, Joanna Going, Jackson Hurst, Brenna Roth, Jennifer Sipes, Crystal Mantecon, Lisa Marie Newmyer Produção: Dede Gardner, Sarah Green, Grant Hill, Brad Pitt, Bill Pohlad Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Emmanuel Lubezki Trilha Sonora: Alexandre Desplat Duração: 138 min. Distribuidora: Imagem Filmes Estúdio: Cottonwood Pictures / Plan B Entertainment / River Road Entertainment / Brace Cove Productions
Publicado originalmente em 11 de setembro de 2012
Postado em ESPECIAL TERRENCE MALICK, FILMES DOS ANOS 2010
O novo mundo (2005)
Por André Dick
Excelente reconstituição de época e fotografia espetacular não salvaram o épico O último dos moicanos, de Michael Mann, baseado no romance clássico de James Fenimore Cooper. Faltou algum elemento para criar um interesse maior pela saga de um homem branco criado por moicanos (Day-Lewis, depois do Oscar por Meu pé esquerdo), na adaptação da história que se passa durante a Guerra dos Sete Anos, em que estiveram envolvidos ingleses, franceses e tribos de índios norte-americanos na América do Norte.
O personagem de Day-Lewis e dois moicanos ajudam duas inglesas (uma das quais Madeleine Stowe) e um soldado inglês a chegarem num forte em guerra com tropas francesas. Surge uma atração entre o moicano e a inglesa, mas logo eles são separados.
Percebe-se em todas as atuações a mão de um diretor que se tornaria talentoso. No entanto, Mann, recém-saído da série Miami vice, esquece de colocar conflitos em seu filme. Neste seu primeiro longa no cinema, seu interesse é pelo luxo da produção, revestida de detalhes (o filme ganhou Oscar de melhor som). É a partir deste filme, de qualquer modo, que Malick parece compor O novo mundo, com o mesmo interesse pelo refinamento da produção, mas uma aspiração mais social e histórica.
O personagem de Day-Lewis e dois moicanos ajudam duas inglesas (uma das quais Madeleine Stowe) e um soldado inglês a chegarem num forte em guerra com tropas francesas. Surge uma atração entre o moicano e a inglesa, mas logo eles são separados.
Percebe-se em todas as atuações a mão de um diretor que se tornaria talentoso. No entanto, Mann, recém-saído da série Miami vice, esquece de colocar conflitos em seu filme. Neste seu primeiro longa no cinema, seu interesse é pelo luxo da produção, revestida de detalhes (o filme ganhou Oscar de melhor som). É a partir deste filme, de qualquer modo, que Malick parece compor O novo mundo, com o mesmo interesse pelo refinamento da produção, mas uma aspiração mais social e histórica.
Malick havia passado vários anos sem lançar um filme (oito, desde Além da linha vermelha), quando trouxe às telas este filme baseado numa história com elementos reais (daqui em diante, spoilers). Em 1607, o capitão inglês John Smith (Colin Farrell) chega à América aprisionado, acusado de tentar um motim, junto com a Expedição Jamestown, enviada da Inglaterra, mas logo em seguida é perdoado pelo comandante Christopher Newport (Cristopher Plummer), que volta para a Europa a fim de trazer mais alimentos. Na busca por comida e na exploração das matas, Smith é capturado por nativos, sendo levado ao chefe, Powhatan (August Schellenberg), que tem como braço direito Opechancanough (Wes Studi, de O último dos moicanos). Smith não apenas passará a viver entre eles, entre a liberdade e a prisão, como conhecerá Pocahontas (Q’orianka Kilcher), uma nativa, filha de Powhatan. No entanto, quando ele volta ao forte construído pelos brancos, ele saberá que esta tranquilidade está perto de se encerrar.
Trata-se de um filme que vem no mesmo fluxo de Além da linha vermelha, mas toma um rumo diferente. Em primeiro lugar, porque o diretor utiliza mais em pormenores os pensamentos soltos, divagantes – algo que funciona muito bem em outros filmes, sobretudo em A árvore da vida –, e filma detalhes da natureza à parte das cenas centrais (isso parece acontecer em A árvore da vida, mas a narrativa, tão criticada por alguns, é mais interessante).
Trata-se de um filme que vem no mesmo fluxo de Além da linha vermelha, mas toma um rumo diferente. Em primeiro lugar, porque o diretor utiliza mais em pormenores os pensamentos soltos, divagantes – algo que funciona muito bem em outros filmes, sobretudo em A árvore da vida –, e filma detalhes da natureza à parte das cenas centrais (isso parece acontecer em A árvore da vida, mas a narrativa, tão criticada por alguns, é mais interessante).
A impressão é que Malick não efetua, aqui, como em Além da linha vermelha, cenas de ação intensas, preferindo centralizar seus olhos no drama romântico entre Smith e Pocahontas. Se o romance abre perspectivas, em razão de Q’orianka Kilcher, Colin Farrell está inexpressivo. Ele funciona mais quando o filme não depende dele (como quando fez o cantor country de Coração louco). Malick, claro, mostra sua obsessão pela influência da natureza na vida humana, mas aqui ele parece transcender. Há flashes do casal correndo entre árvores, entre o capim alto, à beira do rio, e pensamentos esparsos, como (de Pocahontas): “Quem é esse homem? Quem é esse Deus”? Alguns detalhes não ficam claros: a aproximação cultural de Pocahontas é imediata, inclusive com a língua, e em determinado momento ela precisa alimentar os poucos homens dele com uma caça, mesmo eles tendo armas para matar animais.
Ainda assim, Malick procura dar ao filme um estilo, ao mesmo tempo, íntimo e épico. A única cena de combate, no entanto, se inclina a flashes para o céu, para as árvores. Mesmo os cenários ao longo do filme são iguais, e a montagem, elíptica – dando poeticidade, mas também prejudicando algumas cenas de conflito (como a de Pocahontas com seu pai) ou a presença levemente deslocada de Cristopher Plummer –, faz com que nos mantenhamos à distância dos personagens (embora não pareça, há lacunas aqui que não existem, por exemplo, em A árvore da vida e Amor pleno). Farrell, com isso, não consegue dar vigor ou grandiosidade a seu personagem, parecendo, por um lado, muito triste em ter de esconder um amor tão grande – que, em determinado ângulo, não convence–, e, por outro, feliz em ter de deixá-lo para trás. É visível como sua atuação prejudica o filme quando Christian Bale entra em cena, como John Rolfe, quase ao final, mostrando como o filme seria caso ele fosse o capitão Smith.
No entanto, talvez o ator principal fosse mesmo um detalhe. Malick quer filmar as paisagens com o tom de nascimento e descoberta, ou de tristeza – o sol entre as árvores, como em A árvore da vida, dá às cenas um contexto (o que lá criava um complemento poético, pois é uma história livre, não histórica). Cada personagem simboliza o contato entre o velho e o novo mundo e cada relação pode nascer e vigorar como também voltar às cinzas. Malick tem um sentido muito apurado sobre o Éden que existe em cada um desses personagens, sempre ameaçado pela traição e pela violência. A mentira dos homens brancos passa a ser evidente e seu objetivo, cada vez mais claro. No entanto, Pocahontas acredita numa espécie de amor intocado pelo ser humano, que se mistura à natureza, às árvores, ao capim e aos rios. Ela não acredita que possa ser traída e este sentimento é permanente na filmografia de Malick (vejamos o recente Amor pleno), chegando sempre a um contato próximo com a ideia divina – para o velho mundo, em belíssimos vitrais; para Pocahontas, à beira do rio ou correndo por um campo esverdeado.
Ainda assim, Malick procura dar ao filme um estilo, ao mesmo tempo, íntimo e épico. A única cena de combate, no entanto, se inclina a flashes para o céu, para as árvores. Mesmo os cenários ao longo do filme são iguais, e a montagem, elíptica – dando poeticidade, mas também prejudicando algumas cenas de conflito (como a de Pocahontas com seu pai) ou a presença levemente deslocada de Cristopher Plummer –, faz com que nos mantenhamos à distância dos personagens (embora não pareça, há lacunas aqui que não existem, por exemplo, em A árvore da vida e Amor pleno). Farrell, com isso, não consegue dar vigor ou grandiosidade a seu personagem, parecendo, por um lado, muito triste em ter de esconder um amor tão grande – que, em determinado ângulo, não convence–, e, por outro, feliz em ter de deixá-lo para trás. É visível como sua atuação prejudica o filme quando Christian Bale entra em cena, como John Rolfe, quase ao final, mostrando como o filme seria caso ele fosse o capitão Smith.
No entanto, talvez o ator principal fosse mesmo um detalhe. Malick quer filmar as paisagens com o tom de nascimento e descoberta, ou de tristeza – o sol entre as árvores, como em A árvore da vida, dá às cenas um contexto (o que lá criava um complemento poético, pois é uma história livre, não histórica). Cada personagem simboliza o contato entre o velho e o novo mundo e cada relação pode nascer e vigorar como também voltar às cinzas. Malick tem um sentido muito apurado sobre o Éden que existe em cada um desses personagens, sempre ameaçado pela traição e pela violência. A mentira dos homens brancos passa a ser evidente e seu objetivo, cada vez mais claro. No entanto, Pocahontas acredita numa espécie de amor intocado pelo ser humano, que se mistura à natureza, às árvores, ao capim e aos rios. Ela não acredita que possa ser traída e este sentimento é permanente na filmografia de Malick (vejamos o recente Amor pleno), chegando sempre a um contato próximo com a ideia divina – para o velho mundo, em belíssimos vitrais; para Pocahontas, à beira do rio ou correndo por um campo esverdeado.
A fotografia bastante elogiada de Emmanuel Lubezki (que deu ao filme sua única indicação ao Oscar) faz predominar as cores que remetem à terra (também dos figurinos), além dos tons de verde, claro e escuro. Para Malick, a aversão à natureza romântica, aqui, pode matar a humanidade. Quando ele deseja oferecer mais emoção ao filme, este está quase terminando – mas são antológicas as cenas feitas na Inglaterra (sobretudo quando um índio caminha num pátio inglês enorme, em meio a árvores podadas, simetricamente, como se fossem um contraponto ao ambiente de onde veio, mas, ao mesmo tempo, um complemento). Falta ao filme uma definição entre o histórico, a ação, o poético e o drama – o que faz de A árvore da vida um filme tão definitivo. Mas, ainda que O novo mundo não consiga alcançar o que poderia, ainda assim responde ao que nos apresenta. Tratando da estranheza e da descoberta de um novo mundo, além do choque que isto pode trazer, há nele, como nos outros filmes de Malick, um elemento enigmático que atrai o espectador e uma sensação de perda e reencontro que poucas obras simbolizam de maneira evidente. Toda a sequência final, com uma montagem fascinante de imagens da natureza, representando o encontro entre as águas do homem branco e dos nativos, assim como da natureza, é implacavelmente belo.
The new world, EUA, 2005 Diretor: Terrence Malick Elenco: Colin Farrell, Q’orianka Kilcher, Christopher Plummer, Christian Bale, August Schellenberg, Wes Studi, David Thewlis, Yorick van Wageningen, Raoul Trujillo, Ben Chaplin, John Savage, Brian MerrickProdução: Sarah Green Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Emmanuel LubezkiTrilha Sonora: James Horner Duração: 135 min. Distribuidora: Não definidaEstúdio: New Line Cinema / Sunflower Productions / Sarah Green Film / First Foot Films / The Virginia Company LLC
Postado em ESPECIAL TERRENCE MALICK, FILMES DOS ANOS 2000
Marcado AUGUST SCHELLENBERG, BEN CHAPLIN, BRIAN MERRICK, CHRISTIAN BALE,CHRISTOPHER PLUMMER, COLIN FARRELL, DAVID THEWLIS, EMMANUEL LUBEZKI, ESPECIAL TERRENCE MALICK, EXPEDIÇÃO JAMESTOWN, JOHN ROLFE, JOHN SAVAGE, JOHN SMITH,POCAHONTAS, Q’ORIANKA KILCHER, RAOUL TRUJILLO, WES STUDI, YORICK VAN WAGENINGEN
Além da linha vermelha (1998)
Por André Dick
Filme de Terrence Malick com fotografia perfeita de John Toll (responsável pelo design visual de Cloud Atlas) e elenco grandioso, Além da linha vermelha, baseado em obra de James Jones, é o retrato de um momento da Segunda Guerra Mundial, desta vez do avanço de uma tropa – Companhia C – à Batalha de Guadalcanal, em 1942, para atacar os japoneses, mas aqui sob o ponto de vista existencial, ou seja, o personagem principal, Witt (Jim Caviezel) está longe, mas não tira seu pensamento do éden da Melanésia. O interessante é como num filme de guerra Malick consegue fotografar mínimos detalhes da natureza com tanta atenção. Para ele, mais ainda do que em seus filmes iniciais, dos anos 1970, a natureza é uma metáfora da própria existência humana.
Se Malick fez um drama de guerra filosófico, retomando uma trajetória de direção interrompida vinte anos antes, com Dias de paraíso, no mesmo ano Steven Spielberg empregou a meia hora mais impactante de sua carreira no início de O resgate do soldado Ryan, que inicia com a chegada de tropas americanas à praia francesa de Omaha, defendida por alemães, com imagens espetaculares e realistas, em que Tom Hanks interpreta o líder do pelotão. Depois dessa carnificina, ele é incumbido, com alguns de seus homens, a encontrar o último filho sobrevivente da família Ryan, para que não se abata uma tragédia completa sobre ela.
Basicamente, o filme relata essa busca. Mas Spielberg, com seu habitual talento para o manejo das câmeras e a fotografia cuidada, transforma este num dos filmes de guerra mais impressionantes, graças, também, à interpretação de todo o elenco, a começar pela de Hanks, que constrói um coronel com problemas físicos na mão e quer esconder isso da tropa. Ao final, quando chegam a uma cidadezinha em ruínas, preparam uma ofensiva contra nazistas que estão para invadi-la. É aí que Spielberg melhor mostra seu talento, num verdadeiro tour de force de som e efeitos especiais.
Se Malick fez um drama de guerra filosófico, retomando uma trajetória de direção interrompida vinte anos antes, com Dias de paraíso, no mesmo ano Steven Spielberg empregou a meia hora mais impactante de sua carreira no início de O resgate do soldado Ryan, que inicia com a chegada de tropas americanas à praia francesa de Omaha, defendida por alemães, com imagens espetaculares e realistas, em que Tom Hanks interpreta o líder do pelotão. Depois dessa carnificina, ele é incumbido, com alguns de seus homens, a encontrar o último filho sobrevivente da família Ryan, para que não se abata uma tragédia completa sobre ela.
Basicamente, o filme relata essa busca. Mas Spielberg, com seu habitual talento para o manejo das câmeras e a fotografia cuidada, transforma este num dos filmes de guerra mais impressionantes, graças, também, à interpretação de todo o elenco, a começar pela de Hanks, que constrói um coronel com problemas físicos na mão e quer esconder isso da tropa. Ao final, quando chegam a uma cidadezinha em ruínas, preparam uma ofensiva contra nazistas que estão para invadi-la. É aí que Spielberg melhor mostra seu talento, num verdadeiro tour de force de som e efeitos especiais.
O resgate do soldado Ryan constitui-se num filme de guerra com peso nostálgico e histórico (a cena inicial se completa na parte final), com uma certa dureza no que se refere à composição dos personagens – afinal, lida com um cenário de guerra –, mas que acaba preenchendo algumas lacunas com uma emoção calculada, rara em Spielberg, mais propenso a extravasar, o que ele faz com todos os tons permitidos a um diretor conhecido pelo olhar que tem sobre a ação. Diferente de Malick, que consegue, em Além da linha vermelha, por meio da guerra, retratar, de maneira mais densa e menos nebulosa, o que dela não faz parte. Os filmes, em sua abertura, se parecem, mas cada diretor toma suas escolhas diante das próprias características.
Malick é um cineasta que emprega os diálogos e os mínimos detalhes como o centro da ação. Desse modo, a preocupação do primeiro sargento Welsh (Sean Penn) em tirar Witt do Pacífico, da Melanésia, para reintegrá-lo no exército e guiá-lo para a ilha onde se dará o combate derradeiro, na Colina 210, peça-chave da artilharia japonesa, não passa de uma tentativa de convencer a si mesmo de que a guerra vale a pena (e certamente, ele sabe, não vale). O olhar do sargento interpretado por Hanks se direciona para a morte, e é dela que os personagens querem escapar em Além da linha vermelha, sem necessariamente conseguir.
Malick é um cineasta que emprega os diálogos e os mínimos detalhes como o centro da ação. Desse modo, a preocupação do primeiro sargento Welsh (Sean Penn) em tirar Witt do Pacífico, da Melanésia, para reintegrá-lo no exército e guiá-lo para a ilha onde se dará o combate derradeiro, na Colina 210, peça-chave da artilharia japonesa, não passa de uma tentativa de convencer a si mesmo de que a guerra vale a pena (e certamente, ele sabe, não vale). O olhar do sargento interpretado por Hanks se direciona para a morte, e é dela que os personagens querem escapar em Além da linha vermelha, sem necessariamente conseguir.
A percepção de Malick atravessa não apenas as paisagens, como o elenco, com uma série de astros em pontas (ficaram conhecidos os cortes que Malick impôs a atores consagrados naquele período, como Billy Bob Thornton). De maneira geral, a amplitude do cinema de Malick converge para um lugar filosófica, em que o amor e o vínculo entre as pessoas e seres humanos se desenham a distância ou em situações-limite. Embora haja sequências inteiras que remetem Além da linha vermelha a um gênero de guerra, parece que mais ainda Malick deseja uma filosofia das relações. O Tenente-Coronel Tall (Nick Nolte) fala com o general Quintard (John Travolta) – em momentos nos quais Anderson certamente se inspirou para compor O mestre –, mas a atenção de Malick está voltada para a paisagem. Do mesmo modo, Jack Bell (Ben Chaplin), está interessado mais em lembrar de sua mulher, Marty (Miranda Otto), num balanço e paisagens que seriam intensificadas em A árvore da vida e To the wonder. Temos ainda o capitão James Staros (Elias Koteas), o cabo Fife (Adrien Brody), o soldado Jack Bell (Ben Chaplin), o capitão Charles Bosche (George Clooney), o capitão John Gaff (John Cusack), o sargento Keck (Woody Harrelson), o sargento Maynard Storm (John C. Reilly) e o sargento McCron (John Savage), entre outros.
Todos os personagens têm em algum momento ligação entre si, mas Malick está certamente mais interessado no retrato que faz de imagens idílicas, do capim alto em que os soldados rastejam para atingir a colina inimiga, o cenário paradisíaco, com crocodilos, galhos em rios, ilhas minúsculas perdidas no meio do mar e árvores altas, que, no entanto, reservam uma sequência de tiros incalculável. A morte está sempre à espreita, mas, para esses personagens, a morte não significa exatamente o afastamento da natureza idílica? Para Malick, há uma presença divina em meio a um cenário caótico de guerra, e quando os homens precisam se deparar com algum corpo entregue ao verde das colinas tentam desviar seu olhar para o vento e os pássaros, ou para as lembranças, sempre ligadas a algum elemento da natureza: os raios de sol e as cortinas esvoaçantes de uma pintura de Andrew Wyeth. Não se trata, para Malick, de estetizar a guerra, mas de mostrar a solidão dela e o adensamento de trilhas solitárias em meio às árvores de uma mata fechada.
Todos os personagens têm em algum momento ligação entre si, mas Malick está certamente mais interessado no retrato que faz de imagens idílicas, do capim alto em que os soldados rastejam para atingir a colina inimiga, o cenário paradisíaco, com crocodilos, galhos em rios, ilhas minúsculas perdidas no meio do mar e árvores altas, que, no entanto, reservam uma sequência de tiros incalculável. A morte está sempre à espreita, mas, para esses personagens, a morte não significa exatamente o afastamento da natureza idílica? Para Malick, há uma presença divina em meio a um cenário caótico de guerra, e quando os homens precisam se deparar com algum corpo entregue ao verde das colinas tentam desviar seu olhar para o vento e os pássaros, ou para as lembranças, sempre ligadas a algum elemento da natureza: os raios de sol e as cortinas esvoaçantes de uma pintura de Andrew Wyeth. Não se trata, para Malick, de estetizar a guerra, mas de mostrar a solidão dela e o adensamento de trilhas solitárias em meio às árvores de uma mata fechada.
Se Coppola colocou quilos de napalm para explodir em Apocalypse now e Kubrick transformou a guerra num centro repleto de soldados sob o comando de prometer o cumprimento da morte em nome da corporação, Malick contorna todos com o simples olhar de dentro da guerra e sua reflexão, caracterizada mais pelo olhar estupefato do que pela certeza. A cada tomada de atitude em relação ao combate e cada acampamento montado, Malick está tratando da impermanência da humanidade e do modo como ela se adapta à loucura, mas apenas a controla por meio de lembranças, até que consiga aceitar, finalmente, que não passa de uma pequena ilha solitária na corrente e contra um horizonte não necessariamente aberto. O passado é tão presente quanto a invasão a Guadalcanal, pois é preciso uma justificativa, mesmo que mínima, para que se tenha chegado ali com vida. Malick não consegue retribuir esta justificativa para o espectador diante do peso dramático dos componentes que seleciona ao longo de sua obra, e não consegue se comprometer com o vazio que passa a existir depois da derrocada de um grupo de combatentes. Há um sentido forte de afastamento em Além da linha vermelha como havia sobretudo em Dias de paraíso, e é ele que consegue, ao mesmo tempo, aproximar os personagens de um Éden almejado.
In the red line, EUA, 1998 Diretor: Terrence Malick Elenco: Nick Nolte, Jim Caviezel, Sean Penn, Elias Koteas, Ben Chaplin, Dash Mihok, John Cusack, Adrien Brody, John C. Reilly, Woody Harrelson, Miranda Otto, Jared Leto, John Travolta, George Clooney, Nick Stahl, Thomas Jane, John Savage, Will Wallace, John Dee Smith, Kirk Acevedo, Penelope Allen, Kazuyoshi Sakai, Masayuki Shida, Hiroya Sugisaki, Kouji Suzuki, Tomohiro Tanji, Minoru Toyoshima, Terutake Tsuji, Jimmy Xihite, Yasuomi Yoshino, John Augwata Produção: Robert Michael Geisler, Grant Hill, John Roberdeau Roteiro: Terrence Malick Fotografia: John Toll Trilha Sonora: Hans Zimmer Duração: 170 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Fox 2000 Pictures / Phoenix Pictures / Geisler-Roberdeau
Postado em ESPECIAL TERRENCE MALICK, FILMES DOS ANOS 90
Dias de paraíso (1978)
Por André Dick
Não há explicação para Terrence Malick ter se ausentado quase vinte anos depois de Dias de paraíso – até o lançamento de Além da linha vermelha, de 1998 – a não ser o fato de que este é um filme incontornável para o cinema e para sua própria filmografia. Malick levaria mais alguns anos para entregar sua obra-prima definidora, A árvore de vida, mas Dias de paraíso continua sendo uma referência direta para tudo que veio depois, mesmo em momentos menos inspirados, como em O novo mundo.
Difícil imaginar outra obra tão bem fotografada quanto esta, num trabalho dividido entre Nestor Almendros (vencedor do Oscar) e Haskell Wexler (que figura como fotógrafo adicional), em uma tentativa de reproduzir fielmente algumas pinturas de Edward Hopper e Andrew Wyeth – apesar de terem se inspirado também em Johannes Vermeer (o pintor de Moça com brinco de pérola), parece que este não foi tão influente –, que criaria laços com a obra de David Lynch. Dias de paraíso é um filme notável, nesse sentido, não apenas pelo elenco e o roteiro, mas por seu diálogo com a pintura.
A história (daqui em diante, spoilers) inicia um pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando um homem, Bill (Richard Gere, no filme que o revelou) acaba matando um homem numa usina, em Chicago, e foge com sua namorada Abby (Brooke Adams ) e sua irmã Linda (Linda Manz) para o interior do Texas. Embarcando num trem, cujos trilhos parecem quase encostar o céu em determinado momento, eles vão parar numa fazenda com uma larga plantação de trigo, em que conhecem o dono, um fazendeiro solitário (Sam Shepard). Após ouvir que ele tem pouco tempo de vida, Bill acaba convencendo a namorada, que todos consideram sua irmã, a casar com o fazendeiro, a fim de que possam herdar futuramente a sua riqueza. A mansão do fazendeiro figura como se sustentasse a paisagem ao redor, para onde todos olham, além de ser uma quase réplica daquela retratada por Hopper em “House by the ralroad”, ou seja, sua presença cênica é destacada. Logo o plano muda: ela se apaixona pelo fazendeiro, e Bill se transforma num intruso. No entanto, o fazendeiro desconfia do relacionamento de Abby com seu dito irmão. A narrativa revela que esses “dias de paraíso”, representados também pela saída de um ambiente industrial na segunda década do século XX, não são perenes, com uma fundamental contribuição pictórica e sensorial de Malick.
Difícil imaginar outra obra tão bem fotografada quanto esta, num trabalho dividido entre Nestor Almendros (vencedor do Oscar) e Haskell Wexler (que figura como fotógrafo adicional), em uma tentativa de reproduzir fielmente algumas pinturas de Edward Hopper e Andrew Wyeth – apesar de terem se inspirado também em Johannes Vermeer (o pintor de Moça com brinco de pérola), parece que este não foi tão influente –, que criaria laços com a obra de David Lynch. Dias de paraíso é um filme notável, nesse sentido, não apenas pelo elenco e o roteiro, mas por seu diálogo com a pintura.
A história (daqui em diante, spoilers) inicia um pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando um homem, Bill (Richard Gere, no filme que o revelou) acaba matando um homem numa usina, em Chicago, e foge com sua namorada Abby (Brooke Adams ) e sua irmã Linda (Linda Manz) para o interior do Texas. Embarcando num trem, cujos trilhos parecem quase encostar o céu em determinado momento, eles vão parar numa fazenda com uma larga plantação de trigo, em que conhecem o dono, um fazendeiro solitário (Sam Shepard). Após ouvir que ele tem pouco tempo de vida, Bill acaba convencendo a namorada, que todos consideram sua irmã, a casar com o fazendeiro, a fim de que possam herdar futuramente a sua riqueza. A mansão do fazendeiro figura como se sustentasse a paisagem ao redor, para onde todos olham, além de ser uma quase réplica daquela retratada por Hopper em “House by the ralroad”, ou seja, sua presença cênica é destacada. Logo o plano muda: ela se apaixona pelo fazendeiro, e Bill se transforma num intruso. No entanto, o fazendeiro desconfia do relacionamento de Abby com seu dito irmão. A narrativa revela que esses “dias de paraíso”, representados também pela saída de um ambiente industrial na segunda década do século XX, não são perenes, com uma fundamental contribuição pictórica e sensorial de Malick.
Sentimo-nos isolados ao vermos as imagens de Dias de paraíso como poucos outros filmes. Não é apenas o sentido visual que desperta um diálogo com Edward Hopper, mas o isolamento dos cenários, o afastamento de tudo. Se Bill foge para fugir da lei, ele não a reencontra numa plantação de trigo; pelo contrário, continua seu trajeto de vida desgovernado. Malick o desenha como um homem livre de qualquer compromisso moral, e o faz adentrar no quarto para chamar a amante, na cama com o fazendeiro, para ambos beberem vinho num riacho próximo. No entanto, em meio à paz e à tranquilidade, a taça de vinho cai e se mistura à água, como se destoasse daquele momento – do casal encostado na água fluindo e nas rochas. Para Malick, a natureza do homem se relaciona com a natureza das coisas e do tempo: não são poucas vezes que o cineasta direciona sua câmera para o horizonte alaranjado – a fotografia de Almendros e Wexler registra a chamada “hora mágica” do dia – e sem limite ou para a casa do fazendeiro a fim de mostrar que os personagens reproduzem aquilo que os cerca e que eles pretendem definir um espaço para uma possível felicidade, quando correm pelos campos e pela plantação de trigo (que parece, em certo momento, quando tocado pelo vento, ganhar vida), tem-se a impressão de que suas vidas estão delimitadas àquele espaço, sem se interessarem pelo que pode vir depois, como se tocados por um sentido divino de existência e, sobretudo, perfeito. Para Malick, o homem se sustenta na base do compromisso, com ou sem religião, porém também do desvio, e o cineasta talvez realmente faça uma árvore para pendurar nossas “mudas metáforas”, como dizia Pauline Kael, sem esquecer do fato de que realmente ele sabe fazê-la.
A menina Linda, que é a narradora do filme, se aproxima dos garotos de A árvore da vida sobretudo quando ela abre o livro e vê fábulas – inclusive da serpente, remetendo ao Éden e ao pecado original, e de gafanhotos. Não vemos, claro, o triângulo amoroso como representação de um pecado original, e sim como um acobertamento da verdade, depois das palavras ditas por um padre debaixo de árvores segurando alguns raios de sol, ao som da trilha sonora melancólica de Ennio Morricone (ponto de referência para a de Alexandre Desplat em O curioso caso de Benjamin Button).
Simbologias de Malick estão em todos os momentos, seja nos trilhos do trem, no próprio trem (que passa como se fosse uma pintura na noite ou de dia), nas plantações de trigo, na praga de gafanhotos, nos riachos e no rio levando a história de cada personagem para longe e no casamento em meio às árvores e no enfoque sempre de um pôr do sol, sem dar espaço às estrelas – tanto que numa das poucas cenas noturnas não vemos o espaço, apenas o fogo queimando, incessante. Muito difícil imaginar outro filme em que a encenação e a disposição dos personagens (que surgem em fragmentos de montagem, em diálogos soltos) seja mais importante do que a própria narrativa. Quase não há falas. Os personagens são contidos, e poucas vezes podemos ver o diálogo entre eles. No entanto, a história se reproduz em cada um deles, em conjunto ou isoladamente. O paraíso pode trazer um romance normal, a relação entre irmãos e mesmo uma trupe que chega do céu para tentar divertir um pouco o fazendeiro e os seus hóspedes. Ela mistura teatro e circo, e parece antecipar o momento em que toda a tranquilidade pode ser colocada em risco.
Simbologias de Malick estão em todos os momentos, seja nos trilhos do trem, no próprio trem (que passa como se fosse uma pintura na noite ou de dia), nas plantações de trigo, na praga de gafanhotos, nos riachos e no rio levando a história de cada personagem para longe e no casamento em meio às árvores e no enfoque sempre de um pôr do sol, sem dar espaço às estrelas – tanto que numa das poucas cenas noturnas não vemos o espaço, apenas o fogo queimando, incessante. Muito difícil imaginar outro filme em que a encenação e a disposição dos personagens (que surgem em fragmentos de montagem, em diálogos soltos) seja mais importante do que a própria narrativa. Quase não há falas. Os personagens são contidos, e poucas vezes podemos ver o diálogo entre eles. No entanto, a história se reproduz em cada um deles, em conjunto ou isoladamente. O paraíso pode trazer um romance normal, a relação entre irmãos e mesmo uma trupe que chega do céu para tentar divertir um pouco o fazendeiro e os seus hóspedes. Ela mistura teatro e circo, e parece antecipar o momento em que toda a tranquilidade pode ser colocada em risco.
Ao mesmo tempo, quase não vemos conflitos. Há um homem que trabalha há anos na fazenda e sabe que Bill e Abby são impostores, entretanto é mandado embora justamente por colocá-los em desconfiança. Este homem, na verdade, tentará recompor o paraíso que existia antes da chegada dos forasteiros, mas o paraíso, derradeiro, não parece mais ganhar espaço depois da praga de gafanhotos.
Nesse sentido, Malick consegue contrabalançar o momento em que Bill diz que Abby é vista como uma prostituta com o final, em que sua irmã precisa recomeçar. Cada relacionamento é colocado contra o limite. Para o fazendeiro, Abby lembra, por sua vez, um anjo, porém Malick se pergunta se anjos podem fazer o que ela faz. O diretor registra uma água de orvalho sobre o trigo, assim como coloca um zoom sobre os gafanhotos, para mostrar a paz sendo corrompida na plantação. E se vemos água e prenúncio de temporais ao longo de toda a filmagem, nada mais que lembre Malick do que o fogo ao final, como se fosse uma punição dos deuses em relação ao acontecimento. Malick tem um grande talento para filmar, e isso é evidente em todos os seus filmes, e ainda mais para sugerir mais do que mostrar. Tudo em Dias de paraíso acaba ganhando uma projeção de que é sugestivo e não firmado, ao se olhar para os personagens ao redor. Cada um deles mostra o sentido de perda e de encontro de uma humanidade em determinada trilha a ser seguida, não necessariamente para a compreensão, mas que ainda asssim pode reerguer o indivíduo.
Nesse sentido, Malick consegue contrabalançar o momento em que Bill diz que Abby é vista como uma prostituta com o final, em que sua irmã precisa recomeçar. Cada relacionamento é colocado contra o limite. Para o fazendeiro, Abby lembra, por sua vez, um anjo, porém Malick se pergunta se anjos podem fazer o que ela faz. O diretor registra uma água de orvalho sobre o trigo, assim como coloca um zoom sobre os gafanhotos, para mostrar a paz sendo corrompida na plantação. E se vemos água e prenúncio de temporais ao longo de toda a filmagem, nada mais que lembre Malick do que o fogo ao final, como se fosse uma punição dos deuses em relação ao acontecimento. Malick tem um grande talento para filmar, e isso é evidente em todos os seus filmes, e ainda mais para sugerir mais do que mostrar. Tudo em Dias de paraíso acaba ganhando uma projeção de que é sugestivo e não firmado, ao se olhar para os personagens ao redor. Cada um deles mostra o sentido de perda e de encontro de uma humanidade em determinada trilha a ser seguida, não necessariamente para a compreensão, mas que ainda asssim pode reerguer o indivíduo.
Days of heaven, EUA, 1978 Diretor: Terrence Malick Elenco: Richard Gere, Brooke Adams, Sam Shepard, Linda Manz Produção: Bert Schneider, Harold Schneider Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Nestor Almendros Trilha Sonora: Ennio Morricone Duração: 95 min. Distribuidora: Não definida Estúdio: Paramount Pictures
Publicado originalmente em 11 de março de 2013
Postado em ESPECIAL TERRENCE MALICK, FILMES DOS ANOS 70
Terra de ninguém (1973)
Por André Dick
Poucos filmes são como Terra de ninguém, a estreia de Terrence Malick, no sentido de influenciar não apenas a geração seguinte, como também a sua própria e o cinema contemporâneo, sobretudo aquela leva de diretores-autores. Embora David Lynch seja o maior diálogo dessa obra de Malick, não apenas para o evidente Coração selvagem, como também para o discreto e com filiações a Buñuel Veludo azul, pode-se dizer que Tarantino também o escolhe como referência, principalmente quando escreveu Assassinos por natureza (um pouco mais do que no roteiro de True Romance), dirigido por Oliver Stone e um carbono em ritmo de MTV das cores interioranas e planas de Malick. Se a sátira que Tarantino e Stone fazem aos meios de comunicação é contundente, da mesma forma que seu estilo, afeiçoado a técnicas cada vez mais tortuosas (que Stone intensificaria em Um domingo qualquer e Reviravolta), ao centralizar suas lentes num casal psicopata (interpretado por Woody Harrelson e Juliette Lewis), que sai matando pelas estradas americanas, tratando da violência alimentada pela mídia, Terrence Malick apresenta uma versão que define a base do relacionamento entre dois jovens transviados, em que a cultura desempenha papel fundamental, com um conjunto de visões que deslumbra o espectador.
No caso de Terra de ninguém (daqui em diante, spoilers) temos Kit Carruthers (Martin Scheen), 25 anos, que se apaixona por Holly Sargis (Sissy Spacek), de 15 anos, órfã de mãe, em Fort Dupree, na Dakota do Sul. Ele é uma espécie de réplica de James Dean, ou seja, é a cultura de seu tempo personificada – lembremos que em Coração selvagem Nicolas Cage gostaria de ser Elvis Presley. Kit inicia o filme catando lixo em becos da cidade, e logo em seguida encontra Holly brincando no jardim de casa, como se fosse uma Lolita, e a convida para passear– Malick é minucioso ao filmar as ruas cheias de árvores e tranquilidade, como se nada pudesse afetar este ambiente. Eles passam a se encontrar seguidamente, no entanto sem aprovação do pai (Warren Oates), que trabalha como pintor e pune a filha colocando-a em aulas de música. Quando Kit é menosprezado por ele, há um acerto de contas.
Ele e Holly, então, seguem pelas pistas do estado para Montana cometendo uma variedade de crimes. A narração de Holly (como em outros filmes de Malick) se contrapõe às ações que ambos exercem, e quando a polícia começa a caçá-los certamente temos uma narrativa que precede a de outros filmes conhecidos nesse sentido, como Louca escapada (de Spielberg) eThelma & Louise (de Ridley Scott), enquanto a ingenuidade estranha dela certamente influenciou a menina do fraco Killer Joe. O filme de Malick dialoga com um casal que realmente existiu, Charles Starkweather e Caril Ann Fugate, que cometeram assassinatos entre 1957 e 1958. Sem dúvida, é o momento de estreia de Malick, e o momento em que mais procura dialogar, embora de maneira original, com a plateia. No entanto, Malick ainda não consegue, como em seus filmes posteriores, transformar essa rebeldia em mais do que um retrato do vazio e da tentativa de um jovem sem perspectiva – no caso, Kit – em se destacar agindo como um serial killer e exercendo um domínio sobre a namorada, ainda que apresente uma desenvoltura incomum na apresentação da narrativa.
Ele e Holly, então, seguem pelas pistas do estado para Montana cometendo uma variedade de crimes. A narração de Holly (como em outros filmes de Malick) se contrapõe às ações que ambos exercem, e quando a polícia começa a caçá-los certamente temos uma narrativa que precede a de outros filmes conhecidos nesse sentido, como Louca escapada (de Spielberg) eThelma & Louise (de Ridley Scott), enquanto a ingenuidade estranha dela certamente influenciou a menina do fraco Killer Joe. O filme de Malick dialoga com um casal que realmente existiu, Charles Starkweather e Caril Ann Fugate, que cometeram assassinatos entre 1957 e 1958. Sem dúvida, é o momento de estreia de Malick, e o momento em que mais procura dialogar, embora de maneira original, com a plateia. No entanto, Malick ainda não consegue, como em seus filmes posteriores, transformar essa rebeldia em mais do que um retrato do vazio e da tentativa de um jovem sem perspectiva – no caso, Kit – em se destacar agindo como um serial killer e exercendo um domínio sobre a namorada, ainda que apresente uma desenvoltura incomum na apresentação da narrativa.
O que se destaca, em todas as impressões de Terra de ninguém, é que ele se compõe como uma espécie de faroeste contemporâneo, em que o personagem central sobe, sem nenhuma espécie de sentimento, em cima de uma vaca, em meio à sua procura por um novo trabalho, em que a paisagem é um lugar para os personagens deslizarem rumo ao desconhecimento e, como em toda obra de Malick, à natureza. Assim como são figuras comuns e distorcidas, Kit e Holly querem permanecer deslocados, à margem, e focalizam no desastre pessoal uma maneira de chamar a atenção. Não por acaso, na fuga do primeiro crime – em relação ao qual Holly parece não ter consciência, simplesmente obedecendo ao namorado –, eles se refugiam no meio de um bosque, onde passam a conviver com a natureza. Enquanto Holly fica na sua cabana em cima da árvore, Kit vai pescar com uma lança de madeira. Dentro do universo contemporâneo, Malick fecha os personagens numa espécie de redoma que evoca um Éden, que se anuncia em seus filmes mais recentes (há alguns detalhes visuais de Holly à beira do rio parecidos com aqueles que envolvem o casal de Amor pleno na maré perto da abadia de Saint-Michel). Esta névoa em busca de uma ingenuidade perfeita e que constitui o melhor momento do primeiro longa de Malick – até a primeira meia hora – logo se dissipa para dar lugar a uma série de refúgios e crimes. A maioria deles se torna um tanto redundante pela frieza e inexpressividade do casal (talvez aquele momento que melhor exemplifique isso seja quando os dois entram na casa de um ricaço, como se estivessem chegando para uma festa anunciada no local, mas cuja finalidade não tem um sentido capaz de alcançar de maneira decisiva o homem).
Malick quer mostrá-los, mais do que um como um casal perturbado, como indivíduos que desejam se afastar do mundo. Há, como no filme de Stone com base no roteiro de Tarantino, uma crítica à mídia. Kit, em determinado momento, acredita realmente que lembra James Dean, mas, enquanto este certamente se concentra no mundo idealizado pela pintura do pai de Holly, Kit se revela uma espécie de assustadora coincidência com o seu tempo desgovernado. A narração em off de Holly, porém, se constitui no elemento que coloca todos os outros em situação de estranheza: ainda assim, é capaz de lembrar mais um diário de adolescente sem visão sobre os próprios acontecimentos do que uma espécie de filosofia em imagens, como vemos na filmografia posterior de Malick. Delicada e sensível, a narração imagina um mundo totalmente à parte daquela ação que Malick está mostrando por meio de seus personagens. Holly é também Hollywood.
Malick quer mostrá-los, mais do que um como um casal perturbado, como indivíduos que desejam se afastar do mundo. Há, como no filme de Stone com base no roteiro de Tarantino, uma crítica à mídia. Kit, em determinado momento, acredita realmente que lembra James Dean, mas, enquanto este certamente se concentra no mundo idealizado pela pintura do pai de Holly, Kit se revela uma espécie de assustadora coincidência com o seu tempo desgovernado. A narração em off de Holly, porém, se constitui no elemento que coloca todos os outros em situação de estranheza: ainda assim, é capaz de lembrar mais um diário de adolescente sem visão sobre os próprios acontecimentos do que uma espécie de filosofia em imagens, como vemos na filmografia posterior de Malick. Delicada e sensível, a narração imagina um mundo totalmente à parte daquela ação que Malick está mostrando por meio de seus personagens. Holly é também Hollywood.
As paisagens ficam cada vez mais desoladas, como os próprios personagens do filme e não existe aqui a noção de que “é tudo limpo e honesto”, como narra a personagem central deAmor pleno. Inevitável perceber como os personagens, que não conseguem implicar nenhum afeto em suas ações, são extremamente solitários e restritos a apenas um olhar: aquele que conduz os outros a partir de suas ações. Nesse sentido, o fato de ser um faroeste contemporâneo deixa claro que, aqui, quem pretende evocar a linha dos cowboys precisa não enfrentar os fora da lei, mas um corpo policial de fazer cada personagem enfrentar sua rotina derradeira. Não se deve esquecer que o filme foi lançado há 40 anos atrás, ou seja, uma série de abordagens até então não havia sido feita, o que não o impede de não trabalhar com toda sua propriedade o material que tem à mão, não no sentido estético – Terra de ninguémcontinua sendo um dos mais belos filmes já feitos –, mas de conteúdo. Isso não tira, de qualquer modo, a evidência de que, se não consegue ser tudo o que prenuncia, e mesmo justificar o culto que há em torno, em razão de ser a estreia de um cineasta fundamental como Malick, é um dos filmes mais importantes e decisivos para os rumos do cinema depois da década de 1970.
Badlands, EUA, 1973 Diretor: Terrence Malick Elenco: Martin Sheen, Sissy Spacek, Warren Oates, Ramon Bieri, Alan Vint, Gary Littlejohn, John Carter, Bryan Montgomery, Gail Threlkeld, Charles Fitzpatrick, Howard Ragsdale, John Womack Jr., Dona Baldwin, Ben Bravo Produção: Terrence Malick Roteiro: Terrence Malick Fotografia: Tak Fujimoto, Stevan Larner, Brian Probyn Trilha Sonora: George Aliceson Tipton, Gunild Keetman, James Taylor, Carl Orff, Nat King Cole, Erik Satie Duração: 95 min.Distribuidora: Não definida Estúdio: Pressman-Williams Productions / Jill Jakes Production / Badlands Company