UMA VIAGEM INFORMAL AO
TEOREMA DE GÖDEL
TEOREMA DE GÖDEL
ou
(O preço da matemática
Fonte: http://www.im.ufrj.br/~risk/diversos/godel.html
Introdução
O teorema de Gödel é talvez o mais surpreendente e o mais comentado resultado matemático do século. Com certeza, é o mais incompreendido e um dos únicos teoremas que se presta a discussões filosóficas acaloradas e imediatas. Não é preciso estudá-lo a fundo para notar a semelhança entre suas conseqüências e a de algumas máximas da física moderna ou mesmo da metafísica, onde, diferentemente da matemática, a liberdade interpretativa empresta um delicioso sabor de trapaça a qualquer verdade enunciada. Da mesma maneira que um cidadão educado é capaz de lançar mão dos resultados da mecânica quântica e/ou relativística para inferir, logicamente é claro, quase que qualquer extravagância, transformando as árduas noites de Dirac, Schröedinger, Bohr, Einstein entre outros, numa comédia esotérica de fazer frente a qualquer ilusionista do interior, o teorema de Gödel, ou melhor, suas conseqüências, também permitem interpretações, quanto às possíveis, ou quem sabe prováveis, incertezas que eventualmente desestabilizem a sempre certa e poderosa matemática. Então, a matemática também erra e gera falsidades de suas tão eternas verdades? E 2+2, continua a ser igual a 4 depois do teorema de Gödel, ou, dando razão aos poetas, não poderia ser reinterpretado sob um novo olhar pós-modernista? A incompletude e a consistência não seriam provas irrefutáveis do poder de influência dos cristais & florais no psique dos adolescentes? E por aí vai...
Brincadeiras a parte, é interessante observar as semelhanças entre matemática e outros conhecimentos mais, digamos, maleáveis, que este famoso teorema permite estabelecer. É raro ver o cidadão educado curioso a respeito de algum teorema matemático. Nem mesmo o famosíssimo "último teorema de Fermat" que passou mais de trezentos anos desafiando o talento e a engenhosidade do raciocínio abstrato da humanidade, desperta, a não ser entre os especialistas, tanta curiosidade e suscita tanta fantasia quanto os resultados de Gödel. Cabe a nós, matemáticos de todos os credos, aproveitar o momento e a deixa, para iniciar um trabalho de divulgação dos nossos resultados e principalmente, das nossas metodologias da razão, estabelecendo um canal de comunicação entre a matemática e a sociedade e, a exemplo dos físicos, nos tornarmos conhecidos e desejados abrindo um pouco mão das nossas intoleráveis idiossincrasias. Que mal há em brincar e/ou mesmo distorcer o saber para popularizá-lo? Que benefícios reais alcançamos em nos manter, e à nossa matemática, sempre distantes de todos e de tudo? Nenhum e nenhum. Não há mal em brincar e nada ganhamos em não brincar e em nos afastar sempre do saber e da cultura vigente, além da ilusão infantil, típica do século XVIII, de sermos seres superiores e sérios. E sérios não brincam. A Física brinca e nós a criticamos e a menosprezamos como se o seu saber ficasse impregnado pelo uso popular que deles possam fazer. E se ficar, qual o grande problema? Será que a Mecânica Qüântica passa a ser a brincadeira incerta que com ela se faz? Não, com certeza, mas ganha sim, uma posição de destaque na mente do cidadão educado, que mesmo sem a capacidade de compreendê-la totalmente (por ter-se voltado para outras atividades) passa, por obra do desejo a contrabandear suas verdades, se enriquecendo e enriquecendo de volta a todos nós e à própria fisica. Que mal há nisso? "Pour delicatesse j'ai perdu ma vie" e por arrogância, também se perde, muitas vezes, a chance de aparecer, de ser e de realizar o verdadeiro destino matemático, que é mais o de dançar à luz do mundo que transforma, do que o de espreitar, entre paredes, as parcas sombras que se perdem.
O objetivo destas notas é o de visitar a prova, mais do que o teorema, de Gödel, numa tentativa de apresentar e discutir suas principais idéias e conseqüências para a matemática e para a sociedade. Acreditamos que o nosso século se tornará conhecido intelectualmente pelas verdades descobertas por Gödel, que nos marcam muito além do sentimento de fracasso que suas considerações finais possam gerar, resgatando a condição humana, há muito perdida dentro da matemática, que por se pensar divina, fabricou o sonho ingênuo de ser completa, consistente e capaz de desvendar o infinito.
O construtor de Paradoxos
O enigma. Nosso personagem sabia, estava consciente e, portanto, consciente de sua consciência e evitaria qualquer ato desnecessário de bravura inconseqüente. Não acabaria daquela maneira no aglomerado da prisão onde suas idéias o trouxeram, nem seria salvo pela bondade e eficácia nunca, posto que há muito que já nelas, desacreditava. Janela alguma se entreabriria por entre os rasgos de fluorescência que tornavam o claustro uma cozinha abandonada por mestres, camundongos e iguarias; só lhe restavam as portas: duas iguais em tudo e em tudo diferentes. Uma lhe devolveria em círculo descendente à mesma cela, igual mas diferente, já numa nova versão do abismo, sem portas e opções alguma, onde deveria, por gosto ou pela sina estranha afeta aos mais estranhos, lentamente desaparecer em esquecimentos. A outra lhe empurraria em espiral de dúvidas ao mundo fecundo das incertezas, de onde vinha, e onde se acostumara a desmontar relógios: seu único e verdadeiro motivo para descobrir a porta certa.
Mas como, se seus dois únicos carcereiros, gêmeos idênticos, marcados simetricamente pela história, se diferenciavam apenas do ponto de vista da palavra a que cada um se colocara diante de tudo e dos acontecimentos. Era como se um deles vivesse , como nós (?), sobre a superfície de uma esfera gigantesca, onde tudo é plano ao percebê-lo e o horizonte se abre em mares verdadeiros e o quase que se consegue é a verdade afeta, ou intrínseca não sei bem, a cada objeto. O outro, do outro lado da esfera, iluminava a escuridão com o próprio medo, seu horizonte lhe esmagava em mares nunca, não havia o quase, e portanto a ilusão do verdadeiro, o certo não dava lugar aos erros de adubar verdades, que nunca cresciam na imensa ótica de rementir somente o simples não de cada objeto.
Qual porta devo tomar? , não é a pergunta a ser feita, pois o verdadeiro lhe indicaria uma e o mentiroso a outra. Qual não devo tomar? , também não resolveria a questão. Para encontrar o caminho certo, teria que cruzar informações e perguntar a um sobre o que o outro lhe responderia.
Agora sim, pois se a pergunta tivesse sido feita ao verdadeiro ele diria a verdade sobre a mentira do seu gêmeo carcereiro e me apontaria, como este, a porta errada. Se, por outro lado, perguntasse ao mentiroso, ele diria a mentira sobre a verdade do parceiro e me indicaria, diferentemente deste, novamente a porta errada. Bastaria escolher, em qualquer caso, a outra porta-palavra, para voltar às dúvidas da liberdade a que me destino.
O verdadeiro, o falso e o paradoxo: Este velho enigma pode, e deve, ser analisado da seguinte maneira: ao cruzar as perguntas entre os dois carcereiros, construímos um algoritmo que levou o verdadeiro a mentir, ao ser verdadeiro na mentira de seu companheiro. Esta mesma construção também levou o mentiroso, o sempre mentiroso, a dizer a verdade, pois muito embora tivesse indicado diretamente a porta errada, construíra ao mentir sobre o parceiro verdadeiro o caminho da porta certa sem deixar margem a dúvidas.
Se ao invés de portas, quiséssemos descobrir quem era quem entre os dois gêmeos da palavra, o verdadeiro ou o mentiroso, bastaria seguir o mesmo algoritmo com as devidas modificações.
Perguntaríamos:
Se você fosse o outro, quem você apontaria como sendo aquele que só diz a verdade ?
Observamos, que diferentemente do caso anterior das portas, quando buscávamos uma resposta única para os dois carcereiros, o que queremos agora são duas respostas diferentes, pois queremos diferenciar os dois para saber quem é quem. Observe que se dirigíssemos ao verdadeiro a pergunta acima, ele nos responderia "Sou eu" , já que esta seria a resposta do mentiroso; mas ao perguntar ao mentiroso ele diria "É ele" que seria a mentira sobre a resposta do verdadeiro.
Aqui, chegamos ao ponto crucial na tentativa de construir um paradoxo. Quando o mentiroso diz "É ele" apontando o outro como o verdadeiro, está, de alguma maneira, dizendo de si próprio:
Mas como, se seus dois únicos carcereiros, gêmeos idênticos, marcados simetricamente pela história, se diferenciavam apenas do ponto de vista da palavra a que cada um se colocara diante de tudo e dos acontecimentos. Era como se um deles vivesse , como nós (?), sobre a superfície de uma esfera gigantesca, onde tudo é plano ao percebê-lo e o horizonte se abre em mares verdadeiros e o quase que se consegue é a verdade afeta, ou intrínseca não sei bem, a cada objeto. O outro, do outro lado da esfera, iluminava a escuridão com o próprio medo, seu horizonte lhe esmagava em mares nunca, não havia o quase, e portanto a ilusão do verdadeiro, o certo não dava lugar aos erros de adubar verdades, que nunca cresciam na imensa ótica de rementir somente o simples não de cada objeto.
As regras eram claras: uma só pergunta a apenas um dos carcereiros. Como encontrar a letra certa, a porta que o traria de volta a vida, com uma só pergunta a apenas uma de duas tão diferentes visões dos acontecimentos. Um só lhe responderia a verdade, o outro, só mentiras.
Qual porta devo tomar? , não é a pergunta a ser feita, pois o verdadeiro lhe indicaria uma e o mentiroso a outra. Qual não devo tomar? , também não resolveria a questão. Para encontrar o caminho certo, teria que cruzar informações e perguntar a um sobre o que o outro lhe responderia.
Se eu perguntasse ao outro carcereiro qual a porta que me liberta, o que ele me responderia ?
Agora sim, pois se a pergunta tivesse sido feita ao verdadeiro ele diria a verdade sobre a mentira do seu gêmeo carcereiro e me apontaria, como este, a porta errada. Se, por outro lado, perguntasse ao mentiroso, ele diria a mentira sobre a verdade do parceiro e me indicaria, diferentemente deste, novamente a porta errada. Bastaria escolher, em qualquer caso, a outra porta-palavra, para voltar às dúvidas da liberdade a que me destino.
O verdadeiro, o falso e o paradoxo: Este velho enigma pode, e deve, ser analisado da seguinte maneira: ao cruzar as perguntas entre os dois carcereiros, construímos um algoritmo que levou o verdadeiro a mentir, ao ser verdadeiro na mentira de seu companheiro. Esta mesma construção também levou o mentiroso, o sempre mentiroso, a dizer a verdade, pois muito embora tivesse indicado diretamente a porta errada, construíra ao mentir sobre o parceiro verdadeiro o caminho da porta certa sem deixar margem a dúvidas.
Se ao invés de portas, quiséssemos descobrir quem era quem entre os dois gêmeos da palavra, o verdadeiro ou o mentiroso, bastaria seguir o mesmo algoritmo com as devidas modificações.
Perguntaríamos:
Se você fosse o outro, quem você apontaria como sendo aquele que só diz a verdade ?
Observamos, que diferentemente do caso anterior das portas, quando buscávamos uma resposta única para os dois carcereiros, o que queremos agora são duas respostas diferentes, pois queremos diferenciar os dois para saber quem é quem. Observe que se dirigíssemos ao verdadeiro a pergunta acima, ele nos responderia "Sou eu" , já que esta seria a resposta do mentiroso; mas ao perguntar ao mentiroso ele diria "É ele" que seria a mentira sobre a resposta do verdadeiro.
Aqui, chegamos ao ponto crucial na tentativa de construir um paradoxo. Quando o mentiroso diz "É ele" apontando o outro como o verdadeiro, está, de alguma maneira, dizendo de si próprio:
A construção do paradoxo através do enigma nos mostra quão perto estamos da auto-contradição ao articular perfeitamente os preceitos lógicos. Apesar de termos resolvido o enigma das portas através de um raciocínio informal, não nos distanciamos da lógica clássica formal em nenhum instante. Será que a precisão da lógica, e aí poderíamos dizer também, da matemática, pois nesse nível ambas estão diretamente relacionadas, poderia nos levar a auto-contradições? Ou seja, será que um sentido auto-contraditório poderia ser construído por etapas, todas não contraditórias?
A desconstrução do paradoxo. Para tentar responder a estas questões, vamos primeiramente desmontar em pedaços a auto-contradição contida na frase paradoxal acima, decompondo-a em duas afirmações livres de contradição, mantendo no entanto o paradoxo na interdependência das duas afirmações. Podemos dizer:
"A afirmação abaixo é verdadeira"
"A afirmação acima é falsa"
que através da sua articulação natural, exprime o mesmo ciclo fatal do paradoxo inicial, mas que é composta de frases que em si não são, nem sugerem contradições. É claro que são ambas frases que declaram certezas sobre uma outra frase desconhecida, numa estranha confiança quase suicida. É esta confiança exacerbada, em última análise, que devolve o caracter paradoxal a articulação das frases acima.
A tentativa de diluir a contradição dos paradoxos em sentenças matemáticas corretas nos leva a várias versões do abismo, onde o panorama aconchegante que construímos nos devolve a esperança de um mundo matemático verdadeiro e livre de contradições, onde toda verdade, e somente verdades, seriam reveladas. Os vales verdes e os pássaros que cantam, no entanto, escondem ainda o perigo do desconhecido. Lá, onde o horizonte azul e o infinito se transformam em luzes, moram juntos, o desejo do sonho e a impossibilidade de sonhar.
Ao desmembrar ainda mais o nosso paradoxo, chegaríamos ao famoso paradoxo do barbeiro:
Diz-se que lá em Sevilha, havia um barbeiro que na porta de sua casa pendurou uma tabuleta com os dizeres:
"Faço a barba de todas e somente das pessoas que não fazem a sua própria barba"
A pergunta: "Quem faz a barba do barbeiro?" nos leva novamente ao ciclo auto-contraditório dos paradoxos. Se o barbeiro faz a própria barba, como ele só faz a barba daqueles que não fazem a própria barba, então ele não faz a própria barba, mas neste caso, como ele não faz a própria barba e como ele faz a barba de todos aqueles que não fazem a própria barba, então ele faz, paradoxalmente, a própria barba.
É importante ressaltar aqui, que matemáticamente, o paradoxo do barbeiro não existe, pois não pode haver um lugar onde viva um barbeiro com as propriedades contraditórias descritas na tabuleta que havia em sua casa. Logo Sevilha não existe, ou pelo menos lá não vive tal barbeiro.
O paradoxo de Russell transporta, inquestionavelmente, para o campo da lógica formal e da teoria dos conjuntos o convívio promíscuo do falso e verdadeiro:
Aqui, diferentemente do que no caso do barbeiro, não tivemos que imaginar um cenário fictício onde estranhos acontecimentos se passam, nem tivemos que inventar um protagonista com propriedades impossíveis. O paradoxo de Russel baseia-se apenas na noção de classe de conjuntos dentro da precisão da lógica. Se aceitarmos a noção de classe, o paradoxo fica definitivamente estabelecido. Mas lembramos, que isso ainda não é matemática.
O paradoxo de Richard elabora a mesma idéia do de Russell mas traz para dentro do âmbito matemático, a angústia do paradoxo, mapeando a auto-contradição dentro da aritmética, transportando inesperada e inexoravelmente para a estrutura lógico-matemática o perigo da inconsistência que é expressa pela existência da contradição.
Aparentemente, conseguimos construir um paradoxo dentro da aritmética, pois toda a argumentação é reduzida a números. A verdade não é bem essa. Ao estabelecermos as regras para a listagem enumerada das propriedade aritméticas dos números, que é usada na construção de Richard, nos comprometemos, pelo menos implicitamente, a listar apenas as propriedades aritméticas, pertencentes portanto, estritamente, à matemática e não à metamatemática, que é o conjunto das afirmações a respeito das sentenças estritamente matemáticas, como veremos mais adiante. A propriedade de ser ou não Richardiano não é uma propriedade estritamente aritmética, pois julga a condição de um dado número natural referente ao enunciado de uma lista construída artificialmente. Não é de maneira alguma uma propriedade inerente ao número. E é essa "promiscuidade" entre matemática e metamatemática, que, em última análise, possibilita a construção do paradoxo. Não há trapaças, pelo menos evidentes, mas falta rigor.
A desconstrução do paradoxo. Para tentar responder a estas questões, vamos primeiramente desmontar em pedaços a auto-contradição contida na frase paradoxal acima, decompondo-a em duas afirmações livres de contradição, mantendo no entanto o paradoxo na interdependência das duas afirmações. Podemos dizer:
"A afirmação acima é falsa"
A tentativa de diluir a contradição dos paradoxos em sentenças matemáticas corretas nos leva a várias versões do abismo, onde o panorama aconchegante que construímos nos devolve a esperança de um mundo matemático verdadeiro e livre de contradições, onde toda verdade, e somente verdades, seriam reveladas. Os vales verdes e os pássaros que cantam, no entanto, escondem ainda o perigo do desconhecido. Lá, onde o horizonte azul e o infinito se transformam em luzes, moram juntos, o desejo do sonho e a impossibilidade de sonhar.
Ao desmembrar ainda mais o nosso paradoxo, chegaríamos ao famoso paradoxo do barbeiro:
Diz-se que lá em Sevilha, havia um barbeiro que na porta de sua casa pendurou uma tabuleta com os dizeres:
A pergunta: "Quem faz a barba do barbeiro?" nos leva novamente ao ciclo auto-contraditório dos paradoxos. Se o barbeiro faz a própria barba, como ele só faz a barba daqueles que não fazem a própria barba, então ele não faz a própria barba, mas neste caso, como ele não faz a própria barba e como ele faz a barba de todos aqueles que não fazem a própria barba, então ele faz, paradoxalmente, a própria barba.
É importante ressaltar aqui, que matemáticamente, o paradoxo do barbeiro não existe, pois não pode haver um lugar onde viva um barbeiro com as propriedades contraditórias descritas na tabuleta que havia em sua casa. Logo Sevilha não existe, ou pelo menos lá não vive tal barbeiro.
O paradoxo de Russell transporta, inquestionavelmente, para o campo da lógica formal e da teoria dos conjuntos o convívio promíscuo do falso e verdadeiro:
Podemos imaginar que todas as coisas que existam, pertençam a uma entre duas classes de objetos: as das que contém a si mesma (como por exemplo a classe das coisas imagináveis, que em si é uma coisa imaginável) e as das que não contém a si mesma (como por exemplo a classe dos psicanalistas ou dos matemáticos ou das beterrabas que em si só não é nem psicanalista, nem matemático, nem beterraba). Chamando a esta última de normal e a primeira de anormal e designando por N o conjunto de todas as classes normais, pergunta-se: será N normal? Bem, se N é normal então N pertence a si mesma (pois N é o conjunto de todas as classes normais) mas se assim for, pela definição de anormal, N é anormal e então N não mais pertence a si mesma e conseqüentemente é . Ou seja: N é normal se e somente se N é anormal.
Aqui, diferentemente do que no caso do barbeiro, não tivemos que imaginar um cenário fictício onde estranhos acontecimentos se passam, nem tivemos que inventar um protagonista com propriedades impossíveis. O paradoxo de Russel baseia-se apenas na noção de classe de conjuntos dentro da precisão da lógica. Se aceitarmos a noção de classe, o paradoxo fica definitivamente estabelecido. Mas lembramos, que isso ainda não é matemática.
O paradoxo de Richard elabora a mesma idéia do de Russell mas traz para dentro do âmbito matemático, a angústia do paradoxo, mapeando a auto-contradição dentro da aritmética, transportando inesperada e inexoravelmente para a estrutura lógico-matemática o perigo da inconsistência que é expressa pela existência da contradição.
Considere uma linguagem (por exemplo a nossa língua portuguesa) onde as propriedades particulares aos números possam ser formuladas e definidas. É claro que não poderemos definir tudo, que temos de começar em algum lugar onde haja um prévio entendimento e que alguns termos da aritmética serão, presumivelmente, tomados como fazendo sentido, por exemplo os conceitos de números inteiros, soma, produto e quociente entre dois números inteiros, os conceitos de divisível, múltiplo, maior, menor, etc. A propriedade de ser um número primo poderia, desta maneira, ser definida como "divisível apenas por si mesmo e pela unidade" , a de ser um número par como "múltiplo de dois" e assim por diante.
Cada uma destas definições contém um número finito de palavras e consequentemente um número finito de letras do alfabeto, sendo possível portanto, serem arrumadas serialmente numa lista ordenada de definições das propriedades da aritmética. Uma definição precederá a outra se o número de letras do alfabeto empregadas na sua definição, for menor do que o número de letras empregada na outra definição. No caso de duas definições empregarem o mesmo número de letras do alfabeto, o posicionamento na lista de definições será decidido baseado no critério da ordem alfabética. De posse desta lista, associaremos ao seu primeiro elemento o número 1 , ao segundo elemento da lista o número 2 , e assim sucessivamente.
Como cada definição ficará associada a um único número inteiro, pode acontecer em certos casos que o próprio número associado a uma certa definição possua a propriedade descrita por ela. Por exemplo: se o número associado à definição da propriedade de um número ser primo , "divisível apenas por si mesmo e pela unidade" , é 19 , temos claramente que ele, o 19 , possui a propriedade descrita pela expressão de número 19 . Por outro lado pode acontecer, o que deve ser inclusive mais provável, o contrário: que o número associado à definição de uma certa propriedade da aritmética não possua a propriedade descrita pela definição a que ele se refere. Por exemplo: se o número associado à definição da propriedade de um número ser par ,"múltiplo de dois" é 35 , temos, também claramente, que ele o 35 , não possui a propriedade a que ele se refere, ou seja, a de ser um número par .Os números que se referem aos casos descritos no segundo exemplo, serão chamados de Richardianos, isto é, um número será Richardiano se ele não possuir a propriedade aritmética descrita na definição associada a ele na lista de definições aritméticas, confeccionadas da maneira explicada acima. Serão NÃO Richardianos, caso contrário, isto é, quando possuir a propriedade por ele designada na lista de definições das propriedades aritméticas. Ufa…
A propriedade de ser Richardiano passa a ser uma propriedade aritmética(?) dos números inteiros e portanto também terá a ela associado um número inteiro, digamos N .
Repetindo a pergunta do paradoxo de Russell indagaremos: "Será N Richardiano?" e mais uma vez, estaremos diante da antinomia:N É Richardiano se e somente se N não é Richardiano.
Aparentemente, conseguimos construir um paradoxo dentro da aritmética, pois toda a argumentação é reduzida a números. A verdade não é bem essa. Ao estabelecermos as regras para a listagem enumerada das propriedade aritméticas dos números, que é usada na construção de Richard, nos comprometemos, pelo menos implicitamente, a listar apenas as propriedades aritméticas, pertencentes portanto, estritamente, à matemática e não à metamatemática, que é o conjunto das afirmações a respeito das sentenças estritamente matemáticas, como veremos mais adiante. A propriedade de ser ou não Richardiano não é uma propriedade estritamente aritmética, pois julga a condição de um dado número natural referente ao enunciado de uma lista construída artificialmente. Não é de maneira alguma uma propriedade inerente ao número. E é essa "promiscuidade" entre matemática e metamatemática, que, em última análise, possibilita a construção do paradoxo. Não há trapaças, pelo menos evidentes, mas falta rigor.
O Problema da Consistência
Uma matemática consistente é uma matemática livre de contradições. O que esperamos, depois de mais de sei mil anos de razão, coragem e paciência é que ao articular as "verdades" auto-evidentes descritas pelos postulados, não desagüemos em contradições. Devemos evitar os paradoxos que, como vimos, guardam em si um mecanismo gerador de contradições. Podemos então, refazer a frase inicial deste parágrafo, substituindo-a por : uma matemática consistente é uma matemática livre de paradoxos. O perigo das contradições vai além do que podemos a princípio imaginar.
Estamos no final do século XIX, o sucesso das matemáticas do século XVIII levou à certeza do triunfo absoluto da razão. A matemática era capaz de seguir e até mesmo de prever a natureza. Já não era claro quem seguia quem, tamanho era o seu poder, tanto do ponto de vista prático, que possibilitava, e ainda possibilita, ao homem construir um progresso modelado ao seu capricho, quanto abstrato, que com a análise criteriosa do infinito, passa a delimitar as expectativas e ambições da própria criação. Estamos à porta do paraíso, resta-nos pouco para a conquista final da glória absoluta, e este pouco que resta é o acabamento de uma construção grandiosa: devemos varrer alguns destroços, limpar, polir aqui e ali para inaugurarmos uma nova era que venha a coroar merecidamente o esforço de tantos anos.
Cabia então, agora, a prova final do que já todos tinham, havia tanto tempo, certeza: de que a matemática era livre de contradições. E logo agora que surgiam como pragas, gerados talvez pelo abuso e irreverência com que se mexia com o infinito, paradoxos carregados de contradições, de todos os lados. Mas a situação estava sob controle. Dispúnhamos dos melhores cérebros de todos os tempos a trabalhar unidos e convictos da possibilidade de livrar a matemática de todo paradoxo. A história que vai desta época ao início da década de trinta é fascinante e tem sido contada e recontada de maneira brilhante por muitos autores. Resumimos os acontecimentos mais importantes da época em Às portas do Paraíso,mas por ora, iremos direto aos fatos que levaram à prova do Teorema de Gödel.
Neste contexto, verdades e falsidades serão sempre tomadas como relativas aos fundamentos do sistema considerado. Dentro da matemática, relacionar-se-ão aos postulados iniciais que estabelecem sua (da matemática) axiomatização. É claro que um conceito de falso ou verdadeiro poderá ser estabelecido fora do sistema, por valores outros que não os inerentes à formalização que se analisa. Serão afirmações meta-sistemáticas que, a princípio, não interferirão no sistema, a não ser quando solicitadas pelo próprio .
O princípio do terceiro excluído. Este princípio, também chamado de Princípio do meio termo excluído, estabelece que uma afirmação P num sistema lógico formal é "ou verdadeira ou falsa" não podendo portanto ser nem "falsa e verdadeira" nem tão pouco "nem falsa nem verdadeira" . Estas duas proibições constituem em si mesmas o terceiro excluído que delimita o espaço lógico das matemáticas tradicionais.
A existência dos paradoxos com sua dinâmica contraditória é fruto do princípio do terceiro excluído.
"Esta afirmação é falsa"
ou qualquer um dos nossas antinomias favoritas só constituem paradoxos por não ser dada a elas a possibilidade de serem nem falsas nem verdadeiras ou de serem, ao mesmo tempo, falsas e verdadeiras .
No primeiro caso, se admitíssemos a possibilidade do nem falso nem verdadeiro , os paradoxos perderiam seu caracter contraditório para ganhar um certo alheamento. Seriam remetidos para fora do sistema que se sentiria incapaz de decidir sobre a veracidade ou falsidade da afirmação considerada. O preço de nos livrarmos dos paradoxos seria o reconhecimento, por parte do próprio sistema, de suas próprias limitações. Há afirmações geradas pelo próprio sistema sobre as quais este não tem competência para opinar.
No segundo caso, admitindo desta vez a possibilidade do falso e verdadeiro , incorporaríamos as contradições dentro do sistema. Paradoxos não mais seriam sintomas de um mal funcionamento deste sistema que, por outro lado, não mais poderia decidir sobre verdades e falsidades das afirmações por ele geradas.
As soluções da lógica. Se o paradoxo é o problema que devemos evitar, podemos atacar diretamente na lógica. Basta substituirmos a dupla proibição do princípio do terceiro excluído por uma de suas duas possíveis negações.
A lógica paraconsistente. Quando substituímos a dupla proibição do princípio do terceiro excluído apenas pela segunda delas, relaxando a proibição de uma afirmação ser "falsa e verdadeira" mas mantendo o impedimento quanto à possibilidade de uma afirmação vir a ser "nem falsa nem verdadeira" , obtemos a chamada Lógica paraconsistente, lugar onde as contradições podem existir e ser articuladas e onde não existe o desejo imperativo da consistência. É a lógica possível para os paradoxos e, talvez, a mais adequada para modelar a complexidade do homem nos limites da sua razão.
A lógica paracompleta. Se desta vez mantemos a proibição da possibilidade de "falso e verdadeiro" mas permitindo o surgimento de uma terceira via, "nem falso nem verdadeiro", obtemos a lógica paracompleta onde não há esperanças de que verdades surjam para dar sentido. Aqui, nem Deus nem Dante existirão pela simples impossibilidade de viver sem eles. Não há provas por contradição, simplesmente porque não há contradições. Morada dos indecidíveis, a lógica paracompleta dá sustentação a uma matemática intuicionista que busca na natureza a resposta para suas questões fundamentais.
O indecidível e a matemática. Embora tentados pela matemática intuicionista, que nos livraria do problema qualificando-o como não existente, nos livrando desta maneira do sintoma do paradoxo, optamos por uma outra abordagem. Queremos preservar a potência e a vastidão de resultados que a matemática fundada na teoria cantoriana dos conjuntos nos legou, e resolvemos descobrir os verdadeiros limites deste modelo e desta opção. Os paradoxos indicarão o limite dos nossos sistemas se não quisermos contradições. Há que evitá-los. E como fazê-lo? Gödel mostra com seus teoremas que a aparição de paradoxos na matemática é inevitável. Para manter a consistência desejada temos de expulsá-los do sistema, não com a autoridade policial, mas com a humildade intelectual de reconhecer as próprias limitações de um sistema que não saberá julgar se verdadeiro ou falso, as afirmações veiculadas nos paradoxos. Estes se tornarãoindecidíveis e serão responsáveis pela consistência do sistema matemático. O preço de consistência é a existência de indecidíveis.
A afirmação indecidível no sistema matemático não pode ser avaliada como falsa ou verdadeira dentro do próprio sistema, mas só por um agente exterior. Chamaremos de Metamatemática o conjunto das articulações sobre os conceitos da matemática propriamente ditos. Por exemplo: as fórmulas "0=1" ou "5=2+3" pertencem a matemática, mas as afirmações "a equação "0=1"é falsa" ou "a equação "5=2+3" é verdadeira" pertencem a metamatemática. Na construção do paradoxo de Richard, as propriedades de um dado número inteiro ser ou não primo, ou múltiplo de 2, é uma propriedade de aritmética e, portanto, pertence a matemática, enquanto a propriedade de um dado número ser ou não richardiano já não pertence mais à matemática, pois não é, como já dissemos, uma propriedade própria do número em si, mas sim de sua posição relativa a uma lista artificialmente construída. Considerando a afirmação matemática P , a afirmação "P pode ser (ou não pode ser) demonstrada" também pertence a metamatemática, muito embora a sua prova ou contraprova sejam da alçada da matemática. Será apenas a metamatemática que poderá opinar sobre a verdade ou falsidade de um indecidível, sua opinião será sempre baseada numa lógica mais abrangente e menos restritiva do que a adotada para o sistema matemático.
Há uma diferença muito grande entre um raciocínio que se elabora com as palavras do cotidiano, como fizemos acima, usando, como na filosofia, a linguagem corrente como veículo, e um raciocínio codificado numa linguagem a mais isenta possível, como o que se dá na matemática. A diferença não é como pode parecer a principio, qualitativa ou mesmo quantitativa, do ponto de vista da expectativa do raciocínio. O lugar aonde nos leva a idéia é o lugar aonde ela nos leva, independente de como a veiculamos, desde que sejamos imparciais e que sigamos as regras lógicas pré estabelecidas com rigor. A questão é de operacionalidade. A matemática, com sua linguagem tentativamente imparcial é o lugar da articulação lógica por excelência, foi desenvolvida com esta finalidade e esta é a razão do seu (da matemática é claro) retumbante sucesso. A questão não é saber se iremos mais ou menos longe (certamente menos) com ela, mas criarmos condições de caminharmos com menos medo. Se e aonde conseguirmos chegar, estaremos confiantes de lá termos chegado sem que tivéssemos sido conduzidos pelas mãos da ilusão entre vírgulas ou entre palavras. A matemática não tem o poder imaginado no final do século XIX, mas ainda proporciona um caminhar seguro pelos labirintos espirais do conhecimento.
Será possível reconstruir a estratégia da conquista da consistência que esboçamos acima, dentro da própria matemática?Será possível encontrar uma afirmação que não possa ser provada dentro do sistema? Esta é a epopéia descrita pela prova de Gödel.
Para começar, a idéia básica é a de mapear toda a matemática para dentro da aritmética. Com isso, qualquer questão aritmética fica reduzida à sua contrapartida na aritmética. A aritmética é a escolhida por ser o ramo da matemática onde se sofre menos interferência da intuição e do desejo. Não há desenhos nem analogias com a natureza para guiar o raciocínio, que passa a se valer apenas das possíveis inserções lógicas. Este trabalho de mapeamento foi resolvido por Hilbert no início deste século. Gödel queria também mapear a metamatemática para dentro da aritmética, para poder classificar aritméticamente as afirmações acerca dos resultados matemáticos. Com isso evitaria a tal "promiscuidade" entre matemática e metamatemática que ocorre no paradoxo de Richard, contornando o que restava de trapaça na construção dos paradoxos. Para isso criou uma numeração que leva o seu nome e que em si é de uma grande engenhosidade.
O número de Gödel. Para criar uma linguagem estritamente numérica, capaz de descrever e articular os resultados matemáticos, Gödel construiu um sistema que associa a cada símbolo (usado na escrita matemática) um único número natural. Passa então a numerar, de maneira única, todas as fórmulas e também as considerações metamatemáticas que ele necessita para lidar com paradoxos. A numeração segue a seguinte estratégia:
É possível mostrar que num sistema lógico formal onde se é capaz de demonstrar uma afirmação e seu contrário, tudo é dedutível. Em outras palavras, Para nos livrarmos dos paradoxos e provarmos a consistência de um sistema, é preciso encontrar uma afirmação que não possa ser provada dentro do sistema. Mas qual? Como? O que é isso?
Estamos no final do século XIX, o sucesso das matemáticas do século XVIII levou à certeza do triunfo absoluto da razão. A matemática era capaz de seguir e até mesmo de prever a natureza. Já não era claro quem seguia quem, tamanho era o seu poder, tanto do ponto de vista prático, que possibilitava, e ainda possibilita, ao homem construir um progresso modelado ao seu capricho, quanto abstrato, que com a análise criteriosa do infinito, passa a delimitar as expectativas e ambições da própria criação. Estamos à porta do paraíso, resta-nos pouco para a conquista final da glória absoluta, e este pouco que resta é o acabamento de uma construção grandiosa: devemos varrer alguns destroços, limpar, polir aqui e ali para inaugurarmos uma nova era que venha a coroar merecidamente o esforço de tantos anos.
Cabia então, agora, a prova final do que já todos tinham, havia tanto tempo, certeza: de que a matemática era livre de contradições. E logo agora que surgiam como pragas, gerados talvez pelo abuso e irreverência com que se mexia com o infinito, paradoxos carregados de contradições, de todos os lados. Mas a situação estava sob controle. Dispúnhamos dos melhores cérebros de todos os tempos a trabalhar unidos e convictos da possibilidade de livrar a matemática de todo paradoxo. A história que vai desta época ao início da década de trinta é fascinante e tem sido contada e recontada de maneira brilhante por muitos autores. Resumimos os acontecimentos mais importantes da época em Às portas do Paraíso,mas por ora, iremos direto aos fatos que levaram à prova do Teorema de Gödel.
Neste contexto, verdades e falsidades serão sempre tomadas como relativas aos fundamentos do sistema considerado. Dentro da matemática, relacionar-se-ão aos postulados iniciais que estabelecem sua (da matemática) axiomatização. É claro que um conceito de falso ou verdadeiro poderá ser estabelecido fora do sistema, por valores outros que não os inerentes à formalização que se analisa. Serão afirmações meta-sistemáticas que, a princípio, não interferirão no sistema, a não ser quando solicitadas pelo próprio .
O princípio do terceiro excluído. Este princípio, também chamado de Princípio do meio termo excluído, estabelece que uma afirmação P num sistema lógico formal é "ou verdadeira ou falsa" não podendo portanto ser nem "falsa e verdadeira" nem tão pouco "nem falsa nem verdadeira" . Estas duas proibições constituem em si mesmas o terceiro excluído que delimita o espaço lógico das matemáticas tradicionais.
A existência dos paradoxos com sua dinâmica contraditória é fruto do princípio do terceiro excluído.
No primeiro caso, se admitíssemos a possibilidade do nem falso nem verdadeiro , os paradoxos perderiam seu caracter contraditório para ganhar um certo alheamento. Seriam remetidos para fora do sistema que se sentiria incapaz de decidir sobre a veracidade ou falsidade da afirmação considerada. O preço de nos livrarmos dos paradoxos seria o reconhecimento, por parte do próprio sistema, de suas próprias limitações. Há afirmações geradas pelo próprio sistema sobre as quais este não tem competência para opinar.
No segundo caso, admitindo desta vez a possibilidade do falso e verdadeiro , incorporaríamos as contradições dentro do sistema. Paradoxos não mais seriam sintomas de um mal funcionamento deste sistema que, por outro lado, não mais poderia decidir sobre verdades e falsidades das afirmações por ele geradas.
As soluções da lógica. Se o paradoxo é o problema que devemos evitar, podemos atacar diretamente na lógica. Basta substituirmos a dupla proibição do princípio do terceiro excluído por uma de suas duas possíveis negações.
A lógica paraconsistente. Quando substituímos a dupla proibição do princípio do terceiro excluído apenas pela segunda delas, relaxando a proibição de uma afirmação ser "falsa e verdadeira" mas mantendo o impedimento quanto à possibilidade de uma afirmação vir a ser "nem falsa nem verdadeira" , obtemos a chamada Lógica paraconsistente, lugar onde as contradições podem existir e ser articuladas e onde não existe o desejo imperativo da consistência. É a lógica possível para os paradoxos e, talvez, a mais adequada para modelar a complexidade do homem nos limites da sua razão.
A lógica paracompleta. Se desta vez mantemos a proibição da possibilidade de "falso e verdadeiro" mas permitindo o surgimento de uma terceira via, "nem falso nem verdadeiro", obtemos a lógica paracompleta onde não há esperanças de que verdades surjam para dar sentido. Aqui, nem Deus nem Dante existirão pela simples impossibilidade de viver sem eles. Não há provas por contradição, simplesmente porque não há contradições. Morada dos indecidíveis, a lógica paracompleta dá sustentação a uma matemática intuicionista que busca na natureza a resposta para suas questões fundamentais.
O indecidível e a matemática. Embora tentados pela matemática intuicionista, que nos livraria do problema qualificando-o como não existente, nos livrando desta maneira do sintoma do paradoxo, optamos por uma outra abordagem. Queremos preservar a potência e a vastidão de resultados que a matemática fundada na teoria cantoriana dos conjuntos nos legou, e resolvemos descobrir os verdadeiros limites deste modelo e desta opção. Os paradoxos indicarão o limite dos nossos sistemas se não quisermos contradições. Há que evitá-los. E como fazê-lo? Gödel mostra com seus teoremas que a aparição de paradoxos na matemática é inevitável. Para manter a consistência desejada temos de expulsá-los do sistema, não com a autoridade policial, mas com a humildade intelectual de reconhecer as próprias limitações de um sistema que não saberá julgar se verdadeiro ou falso, as afirmações veiculadas nos paradoxos. Estes se tornarãoindecidíveis e serão responsáveis pela consistência do sistema matemático. O preço de consistência é a existência de indecidíveis.
A afirmação indecidível no sistema matemático não pode ser avaliada como falsa ou verdadeira dentro do próprio sistema, mas só por um agente exterior. Chamaremos de Metamatemática o conjunto das articulações sobre os conceitos da matemática propriamente ditos. Por exemplo: as fórmulas "0=1" ou "5=2+3" pertencem a matemática, mas as afirmações "a equação "0=1"é falsa" ou "a equação "5=2+3" é verdadeira" pertencem a metamatemática. Na construção do paradoxo de Richard, as propriedades de um dado número inteiro ser ou não primo, ou múltiplo de 2, é uma propriedade de aritmética e, portanto, pertence a matemática, enquanto a propriedade de um dado número ser ou não richardiano já não pertence mais à matemática, pois não é, como já dissemos, uma propriedade própria do número em si, mas sim de sua posição relativa a uma lista artificialmente construída. Considerando a afirmação matemática P , a afirmação "P pode ser (ou não pode ser) demonstrada" também pertence a metamatemática, muito embora a sua prova ou contraprova sejam da alçada da matemática. Será apenas a metamatemática que poderá opinar sobre a verdade ou falsidade de um indecidível, sua opinião será sempre baseada numa lógica mais abrangente e menos restritiva do que a adotada para o sistema matemático.
A Prova de Gödel
Há uma diferença muito grande entre um raciocínio que se elabora com as palavras do cotidiano, como fizemos acima, usando, como na filosofia, a linguagem corrente como veículo, e um raciocínio codificado numa linguagem a mais isenta possível, como o que se dá na matemática. A diferença não é como pode parecer a principio, qualitativa ou mesmo quantitativa, do ponto de vista da expectativa do raciocínio. O lugar aonde nos leva a idéia é o lugar aonde ela nos leva, independente de como a veiculamos, desde que sejamos imparciais e que sigamos as regras lógicas pré estabelecidas com rigor. A questão é de operacionalidade. A matemática, com sua linguagem tentativamente imparcial é o lugar da articulação lógica por excelência, foi desenvolvida com esta finalidade e esta é a razão do seu (da matemática é claro) retumbante sucesso. A questão não é saber se iremos mais ou menos longe (certamente menos) com ela, mas criarmos condições de caminharmos com menos medo. Se e aonde conseguirmos chegar, estaremos confiantes de lá termos chegado sem que tivéssemos sido conduzidos pelas mãos da ilusão entre vírgulas ou entre palavras. A matemática não tem o poder imaginado no final do século XIX, mas ainda proporciona um caminhar seguro pelos labirintos espirais do conhecimento.
Será possível reconstruir a estratégia da conquista da consistência que esboçamos acima, dentro da própria matemática?Será possível encontrar uma afirmação que não possa ser provada dentro do sistema? Esta é a epopéia descrita pela prova de Gödel.
Para começar, a idéia básica é a de mapear toda a matemática para dentro da aritmética. Com isso, qualquer questão aritmética fica reduzida à sua contrapartida na aritmética. A aritmética é a escolhida por ser o ramo da matemática onde se sofre menos interferência da intuição e do desejo. Não há desenhos nem analogias com a natureza para guiar o raciocínio, que passa a se valer apenas das possíveis inserções lógicas. Este trabalho de mapeamento foi resolvido por Hilbert no início deste século. Gödel queria também mapear a metamatemática para dentro da aritmética, para poder classificar aritméticamente as afirmações acerca dos resultados matemáticos. Com isso evitaria a tal "promiscuidade" entre matemática e metamatemática que ocorre no paradoxo de Richard, contornando o que restava de trapaça na construção dos paradoxos. Para isso criou uma numeração que leva o seu nome e que em si é de uma grande engenhosidade.
O número de Gödel. Para criar uma linguagem estritamente numérica, capaz de descrever e articular os resultados matemáticos, Gödel construiu um sistema que associa a cada símbolo (usado na escrita matemática) um único número natural. Passa então a numerar, de maneira única, todas as fórmulas e também as considerações metamatemáticas que ele necessita para lidar com paradoxos. A numeração segue a seguinte estratégia:
Sinais | Número de Gödel | Significado |
~ | 1 | não |
v | 2 | ou |
® | 3 | se…então |
$ | 4 | existe |
= | 5 | igual |
0 | 6 | zero |
s | 7 | sucessor |
( | 8 | pontuação |
) | 9 | pontuação |
, | 10 | pontuação |
Além destes símbolos básicos, Gödel prossegue a sua numeração associando os números primos maiores que dez às variáveis independentes:
Variável | Número de Gödel |
x | 11 |
y | 13 |
z | 17 |
As fórmulas matemáticas, seriam numerada pelos quadrados dos primos maiores do que dez:
Fórmulas | Número de Gödel |
p | 11 2 |
q | 13 2 |
r | 17 2 |
As propriedades dos números também poderiam ser numeradas pelo cubo dos primos maiores do que dez, e etc.
Com o auxílio desta numeração, Gödel construiu uma maneira única de associar um número a uma sentença matemática. Toda sentença teria um único número que poderia, depois, ser recuperado e transformado novamente naquela sentença que o originou. Aqui está a genialidade desta numeração. Veja no exemplo da sentença abaixo que diz:
"Existe um x que é o sucessor de y".
( $ x ) ( x = s y )
Sua numeração nos leva a:
Com o auxílio desta numeração, Gödel construiu uma maneira única de associar um número a uma sentença matemática. Toda sentença teria um único número que poderia, depois, ser recuperado e transformado novamente naquela sentença que o originou. Aqui está a genialidade desta numeração. Veja no exemplo da sentença abaixo que diz:
( $ x ) ( x = s y )
Sua numeração nos leva a:
( | $ | x | ) | ( | x | = | s | y | ) |
¯ | ¯ | ¯ | ¯ | ¯ | ¯ | ¯ | ¯ | ¯ | ¯ |
8 | 4 | 11 | 9 | 8 | 11 | 5 | 7 | 13 | 9 |
Para solucionar o problema de transformar os diversos números dos diversos símbolos em um único numero que representasse a fórmula completa, Gödel teve a idéia genial de usar cada número como o expoente dos números primos em seqüência. Temos então para a fórmula acima o seguinte número:
( $ x ) ( x = s y )
.
De maneira inversa, dado um número, podemos imediatamente descobrir se ele é ou não um número de Gödel, bastando para isso decompo-lo nos seus fatores primos e verificar se esta decomposição contém todos os primos em seqüência de 2 até um certo n que será o número primo de ordem igual ao número de símbolos utilizado na escrita da fórmula matemática. Por ex: 100 não é um número de Gödel pois sua decomposição em fatores primos nos dá: 2 x 2 x 5 x 5 que não contém o númeral 3 quebrando a seqüência de primos necessária que seria 2,3,5. Já 1500 é um número de Gödel pois sua decomposição em fatores primos é: 2x2x3x5x5x5 = 2 2 x 3 1 x 5 3 que nos fornece (após consulta na tabela de símbolos) o significado matemático do número 1500, que é: "ou não implica" . Observe que a fórmula matemática encontrada não tem que fazer sentido, tendo apenas que ser possível dentro da escrita matemática. Experimente verificar se a sua idade é ou não um número de Gödel. A minha, 48, é; e significa $ ~ . Isto é: "existe não", o que embora não faça sentido, me fez entender coisas nenhumas.
A construção de um indecidível. Seguindo estes passos Gödel consegue numerar (i.e, dar um número de Gödel) fórmulas do tipo: p ® q que representam provas matemáticas que podem ser lidas como "a fórmula p é a demonstração da fórmula q". Esse novo número conterá, na sua decomposição única em fatores primos, as respectivas decomposições dos números referentes às fórmulas p e q separadamente, que poderão ser recuperados para a identificação de p e q e estarão relacionados pelo número do símbolo de implicação ® . Desta maneira a afirmação metamatemática "a fórmula p é a demonstração da fórmula q" fica mapeada definitivamente dentro da aritmética e passa a ser parte do sistema em estudo, podendo então ser articulada sem subjetividade através do exame da numeração estabelecida. Se os números de Gödel das fórmulas p e q são x e y , respectivamente podemos criar uma nova fórmula que traduz esta prova e que será representada simbolicamente por: Dem(x,y) que deve ser lida da seguinte maneira: o conjunto de fórmulas cujo número de Gödel é x é uma prova da fórmula cujo número de Gödel é y . A fórmula Dem (x,y) terá também o seu número de Gödel, assim como a fórmula ~Dem (x,y) que expressa que a fórmula, ou o conjunto de fórmulas, com o número de Gödel x não é uma prova da fórmula com o número de Gödel y .
Agora a tentativa é a de reproduzir dentro da aritmética o paradoxo de Richard construindo uma sentença matemática auto referente e auto excludente, mas evitando as imprecisões nele contidas. Construir um paradoxo na tentativa de provar que algo existe que não pode ser provado.
A princípio bastaria a fórmula $ y (x)~Dem(x,y) que afirma que existe uma fórmula cujo número de Gödel é y tal que para qualquer x (qualquer conjunto de formulas) vale ~Dem(x,y) (não é uma prova para a fórmula de número de Gödel y). Ou seja, existe uma fórmula que não pode ser provada, que é o que queremos. Na verdade a existência pura e simples desta fórmula não implica a existência de uma afirmação matemática, dentro do sistema, que não possa ser provado, pois a fórmula $ y ~Dem(x,y) pode ser falsa, isto é, pode acontecer de não haver formula alguma dentro da matemática com o número de Gödel igual a y e tal que valha (x)~Dem(x,y); a não ser que ela em si seja demonstrável.
Chamaremos de G(y) ao número de Gödel referente à fórmula (x)~Dem(x,y). Observe que o índice y representa uma dependência do número de Gödel associado à formula (x)~Dem(x,y ), isto é, G(y) , com a fórmula cujo número de Gödel é igual a y . Desta maneira, para cada y teremos um novo número G(y) . Gödel foi capaz de mostrar ( e esta é a passagem mais delicada e complicada de sua demonstração) que a função G tem um ponto fixo, isto é, que a equação G(y)=y tem solução. Em outras palavras, que a fórmula cujo número de Gödel é y e que portanto não pode ser demonstrada é a própria (x)~Dem(x,y) , ou se preferirmos, (x)~Dem(x,G(y)) , o que dá no mesmo. Finalmente construímos a fórmula desejada:
$ y (x)~Dem(x,y)
com y=G(y) . "A fórmula de número de Gödel y (que sou eu mesma) não pode ser demonstrada".
"Eu não posso ser demonstrada",
que é o indecidível desejado.
Observe que a fórmula que não pode ser demonstrada é "que existe uma fórmula que não pode ser demoinstrada" . É isso!
A seguir analisaremos as conclusões da construção do indecidível que resumidamente são:
1-Se a matemática é consistente, sua consistência não pode ser provada dentro da própria matemática.
2-Se a matemática é consistente ela é incompleta ( existem indecidíveis).
Interpretação dos resultados . O que verificamos na sessão anterior, tem conseqüências impressionantes, no que se refere aos fundamentos da matemática.
Recordando o conceito de consistência temos: a matemática é consistente se ela for livre de contradições, isto é, livre de paradoxos, caso contrário ela será inconsistente.
Neste ponto precisamos definir o conceito de Completitude. Chamaremos um sistema de completo se ele for capaz de provar ou contraprovar qualquer de suas afirmações, isto é, se ele for livre de indecidíveis. Caso contrário, o sistema será incompleto. Um sistema incompleto, no qual foi detectado um indecidível, pode ser parcialmente completado pela introdução, de fora para dentro, de um novo postulado para o sistema, capaz de decidir sobre a verdade ou falsidade do indecidível em questão. O sistema assim ampliado, estará curado da mazela a ele infligida pelo surgimento do indecidível, mas não estará livre de modo algum, e este é um ponto fundamental na prova de Gödel, do aparecimento de novos indecidíveis, como veremos a seguir.
Primeiro podemos observar que o que construímos foi uma fórmula que diz de si mesmo: " Eu não posso ser provada " e que tem a estrutura paradoxal de ser verdadeira se e somente se for falsa. Vejamos: se (x)~Dem(x,G(y)) for verdadeira, isto é, demonstrável dentro do sistema como uma verdade do sistema, como ela diz de si mesmo que não pode ser demonstrada, ela será falsa, mas se falsa, isto é, se ela não puder ser demonstrada dentro do sistema como uma verdade do sistema, pelo princípio do terceiro excluído, valerá a sua negação que atesta que ela pode, sim, ser demonstrada e que portanto, é verdadeira.
Estamos em pleno paradoxo, a não ser que o sistema se declare impotente quanto a decidir se a fórmula em questão é verdadeira ou falsa.
"Ou o paradoxo ou o indecidível"
Primeira conclusão. Como, para que a matemática, no caso a aritmética, continue a ser útil a si própria e a sociedade, não podemos abrir mão de sua consistência, concluímos que ela inexoravelmente, produzirá indecidíveis. Estes, como tal, devem ser localizados do lado de fora do sistema, num lugar onde já não valha o princípio do terceiro excluído, sob pena de introduzir dentro do próprio sistema uma contradição e com isso trazer de volta a inconsistência que não podemos nem queremos suportar. Conseqüentemente, há de haver afirmações matemáticas que não podem ser provadas dentro do sistema, que não será então capaz de provar ou contraprovar todas as suas afirmações, isto é, ele será incompleto. A aritmética, se consistente, tem que ser incompleta. Temos:
"O preço da consistência é a incompletitude".
Diante de tal incompletitude, isto é, do paradoxo expulso, transformado em indecidível, e que portanto não pode ser provado dentro do sistema, é possível, mesmo assim, a tomada de uma decisão. Usando ferramentas meta-sistemáticas poderemos ser capazes de julgar como verdadeiro ou falso a afirmação contida na fórmula indecidível e, introduzi-la dentro do sistema, ou como verdadeira ou como falsa por meio de um novo postulado anexado ao sistema. Desta maneira, por um preço relativamente baixo, qual seja, o de introduzir um novo postulado na axiomatização do sistema, nos livramos do fantasma do indecidível. A matemática é cheia de exemplos deste tipo. O famoso "quinto postulado de Euclides" da geometria plana, que afirma a unicidade das paralelas foi, durante mais de dois mil anos, uma conjectura que deveria ser provada através de uma geometria que só utilizasse os quatro primeiros postulados. Com o surgimento, numa das passagens mais belas da história da matemática, das chamadas geometrias não euclidianas, ver , que mostram a independência deste resultado. Ele se torna um indecidível e é reintroduzido na geometria como o quinto postulado.
Poderíamos nos sentir felizes, pela possibilidade de completamento da matemática, mas, os resultados de Gödel não permitem nem essa alegria momentânea. Se analisarmos com calma o que construímos na sessão anterior, veremos que o surgimento do indecidível não depende do sistema considerado, desde que ele seja grande o suficiente para conter a aritmética. A introdução de um novo postulado não o "salva" . Muito pelo contrário, só sistemas pequenos poderiam estar livres tanto de paradoxos como de indecidíveis, e estes sistemas não seriam capazes de investigar os estranhos caminhos do infinito, como faz a matemática e em particular a aritméica. Ao completarmos o sistema, outros indecidíveis aparecerão. Eles são inevitáveis. Finalmente temos:
"O preço da consistência é a eterna incompletitude".
Segunda conclusão: Na busca da consistência do sistema, isto é, na construção da fórmula $ y (x)~Dem(x,y) , acabamos nos fixando em uma fórmula predecessora desta, que afirma a impossibilidade de se demonstrar dentro do sistema uma outra fórmula cujo número de Gödel é igual a y , ou seja, (x)~Dem(x,y) . Designando por G(y) o número de Gödel associado a esta fórmula e usando um argumento de ponto fixo, foi possível construir o indecidível através da fórmula(x)~Dem(x,G(y)) que diz, repetidamente de si mesma, que não pode ser demonstrada. Finalmente, foi possível concluir que "se a matemática é consistente (livre de paradoxos) então ela é incompleta" . Em linguagem matemática esta afirmação pode ser traduzida como:
$ y (x)~Dem(x,y) ® (x)~Dem(x,G(y)) ,
já que a primeira parte afirma a consistência do sistema, enquanto que a segunda parte a existência do indecidível, que é equivalente à sua incompletitude. Examinando a fórmula acima, concluímos que, se pudermos demonstrar a existência de pelo menos uma fórmula que não pode ser demonstrada, estaremos demonstrando também a fórmula específica que assegura a existência de um indecidível e que, como já vimos não pode ser demonstrada. É a segunda conclusão dos teoremas de Gödel que surge clara em nossa frente:
"Se o sistema é consistente,
sua consistência não pode ser demonstrada dentro do sistema".
Observe que, caso contrário, poderíamos demonstrar a fórmula $ y (x)~Dem(x,y) que implicaria a demonstração da fórmula (x)~Dem(xG(y)) que, como já vimos, para manter a consistência do sistema, não pode ser nem provada nem contraprovada. Como as fórmulas acima referem-se a afirmações da metamatemática mapeada dentro da aritmética pela numeração de Gödel, podemos finalmente concluir que:
"Se o sistema matemático é consistente,
sua consistência não pode ser demonstrada
mesmo por uma metamatemática
que seja mapeada dentro do sistema".
Mais precisamente, temos:
"Se a aritmética é consistente,
sua consistência não pode ser determinada
por nenhum argumento metamatemático
que possa ser representado dentro do formalismo aritmético".
Esta conclusão surpreendente não anula, no entanto, a possibilidade de que algum argumento metamatemático, fora completamente do sistema, possa provar a consistência da aritmética. O que temos é que o sistema em si, ou alguma extensão sua que possa ser nele mapeado, não é capaz de provar a sua própria consistência.
Referências: A principal fonte de inspiração para estas notas foi o belíssimo texto de E. Nagel e J. R. Newman "Gödel's Proof" New York University Press New Ypork USA 1958. Alem dele, as referências contidas em Matemática & Psicanálise são todas pertinente ao estudo da prova de Gödel.
A construção de um indecidível. Seguindo estes passos Gödel consegue numerar (i.e, dar um número de Gödel) fórmulas do tipo: p ® q que representam provas matemáticas que podem ser lidas como "a fórmula p é a demonstração da fórmula q". Esse novo número conterá, na sua decomposição única em fatores primos, as respectivas decomposições dos números referentes às fórmulas p e q separadamente, que poderão ser recuperados para a identificação de p e q e estarão relacionados pelo número do símbolo de implicação ® . Desta maneira a afirmação metamatemática "a fórmula p é a demonstração da fórmula q" fica mapeada definitivamente dentro da aritmética e passa a ser parte do sistema em estudo, podendo então ser articulada sem subjetividade através do exame da numeração estabelecida. Se os números de Gödel das fórmulas p e q são x e y , respectivamente podemos criar uma nova fórmula que traduz esta prova e que será representada simbolicamente por: Dem(x,y) que deve ser lida da seguinte maneira: o conjunto de fórmulas cujo número de Gödel é x é uma prova da fórmula cujo número de Gödel é y . A fórmula Dem (x,y) terá também o seu número de Gödel, assim como a fórmula ~Dem (x,y) que expressa que a fórmula, ou o conjunto de fórmulas, com o número de Gödel x não é uma prova da fórmula com o número de Gödel y .
Agora a tentativa é a de reproduzir dentro da aritmética o paradoxo de Richard construindo uma sentença matemática auto referente e auto excludente, mas evitando as imprecisões nele contidas. Construir um paradoxo na tentativa de provar que algo existe que não pode ser provado.
A princípio bastaria a fórmula $ y (x)~Dem(x,y) que afirma que existe uma fórmula cujo número de Gödel é y tal que para qualquer x (qualquer conjunto de formulas) vale ~Dem(x,y) (não é uma prova para a fórmula de número de Gödel y). Ou seja, existe uma fórmula que não pode ser provada, que é o que queremos. Na verdade a existência pura e simples desta fórmula não implica a existência de uma afirmação matemática, dentro do sistema, que não possa ser provado, pois a fórmula $ y ~Dem(x,y) pode ser falsa, isto é, pode acontecer de não haver formula alguma dentro da matemática com o número de Gödel igual a y e tal que valha (x)~Dem(x,y); a não ser que ela em si seja demonstrável.
Chamaremos de G(y) ao número de Gödel referente à fórmula (x)~Dem(x,y). Observe que o índice y representa uma dependência do número de Gödel associado à formula (x)~Dem(x,y ), isto é, G(y) , com a fórmula cujo número de Gödel é igual a y . Desta maneira, para cada y teremos um novo número G(y) . Gödel foi capaz de mostrar ( e esta é a passagem mais delicada e complicada de sua demonstração) que a função G tem um ponto fixo, isto é, que a equação G(y)=y tem solução. Em outras palavras, que a fórmula cujo número de Gödel é y e que portanto não pode ser demonstrada é a própria (x)~Dem(x,y) , ou se preferirmos, (x)~Dem(x,G(y)) , o que dá no mesmo. Finalmente construímos a fórmula desejada:
com y=G(y) . "A fórmula de número de Gödel y (que sou eu mesma) não pode ser demonstrada".
"Eu não posso ser demonstrada",
Observe que a fórmula que não pode ser demonstrada é "que existe uma fórmula que não pode ser demoinstrada" . É isso!
A seguir analisaremos as conclusões da construção do indecidível que resumidamente são:
1-Se a matemática é consistente, sua consistência não pode ser provada dentro da própria matemática.
2-Se a matemática é consistente ela é incompleta ( existem indecidíveis).
Interpretação dos resultados . O que verificamos na sessão anterior, tem conseqüências impressionantes, no que se refere aos fundamentos da matemática.
Recordando o conceito de consistência temos: a matemática é consistente se ela for livre de contradições, isto é, livre de paradoxos, caso contrário ela será inconsistente.
Neste ponto precisamos definir o conceito de Completitude. Chamaremos um sistema de completo se ele for capaz de provar ou contraprovar qualquer de suas afirmações, isto é, se ele for livre de indecidíveis. Caso contrário, o sistema será incompleto. Um sistema incompleto, no qual foi detectado um indecidível, pode ser parcialmente completado pela introdução, de fora para dentro, de um novo postulado para o sistema, capaz de decidir sobre a verdade ou falsidade do indecidível em questão. O sistema assim ampliado, estará curado da mazela a ele infligida pelo surgimento do indecidível, mas não estará livre de modo algum, e este é um ponto fundamental na prova de Gödel, do aparecimento de novos indecidíveis, como veremos a seguir.
Primeiro podemos observar que o que construímos foi uma fórmula que diz de si mesmo: " Eu não posso ser provada " e que tem a estrutura paradoxal de ser verdadeira se e somente se for falsa. Vejamos: se (x)~Dem(x,G(y)) for verdadeira, isto é, demonstrável dentro do sistema como uma verdade do sistema, como ela diz de si mesmo que não pode ser demonstrada, ela será falsa, mas se falsa, isto é, se ela não puder ser demonstrada dentro do sistema como uma verdade do sistema, pelo princípio do terceiro excluído, valerá a sua negação que atesta que ela pode, sim, ser demonstrada e que portanto, é verdadeira.
Estamos em pleno paradoxo, a não ser que o sistema se declare impotente quanto a decidir se a fórmula em questão é verdadeira ou falsa.
Primeira conclusão. Como, para que a matemática, no caso a aritmética, continue a ser útil a si própria e a sociedade, não podemos abrir mão de sua consistência, concluímos que ela inexoravelmente, produzirá indecidíveis. Estes, como tal, devem ser localizados do lado de fora do sistema, num lugar onde já não valha o princípio do terceiro excluído, sob pena de introduzir dentro do próprio sistema uma contradição e com isso trazer de volta a inconsistência que não podemos nem queremos suportar. Conseqüentemente, há de haver afirmações matemáticas que não podem ser provadas dentro do sistema, que não será então capaz de provar ou contraprovar todas as suas afirmações, isto é, ele será incompleto. A aritmética, se consistente, tem que ser incompleta. Temos:
Poderíamos nos sentir felizes, pela possibilidade de completamento da matemática, mas, os resultados de Gödel não permitem nem essa alegria momentânea. Se analisarmos com calma o que construímos na sessão anterior, veremos que o surgimento do indecidível não depende do sistema considerado, desde que ele seja grande o suficiente para conter a aritmética. A introdução de um novo postulado não o "salva" . Muito pelo contrário, só sistemas pequenos poderiam estar livres tanto de paradoxos como de indecidíveis, e estes sistemas não seriam capazes de investigar os estranhos caminhos do infinito, como faz a matemática e em particular a aritméica. Ao completarmos o sistema, outros indecidíveis aparecerão. Eles são inevitáveis. Finalmente temos:
já que a primeira parte afirma a consistência do sistema, enquanto que a segunda parte a existência do indecidível, que é equivalente à sua incompletitude. Examinando a fórmula acima, concluímos que, se pudermos demonstrar a existência de pelo menos uma fórmula que não pode ser demonstrada, estaremos demonstrando também a fórmula específica que assegura a existência de um indecidível e que, como já vimos não pode ser demonstrada. É a segunda conclusão dos teoremas de Gödel que surge clara em nossa frente:
"Se o sistema é consistente,
sua consistência não pode ser demonstrada dentro do sistema".
Observe que, caso contrário, poderíamos demonstrar a fórmula $ y (x)~Dem(x,y) que implicaria a demonstração da fórmula (x)~Dem(xG(y)) que, como já vimos, para manter a consistência do sistema, não pode ser nem provada nem contraprovada. Como as fórmulas acima referem-se a afirmações da metamatemática mapeada dentro da aritmética pela numeração de Gödel, podemos finalmente concluir que:
sua consistência não pode ser demonstrada
mesmo por uma metamatemática
que seja mapeada dentro do sistema".
sua consistência não pode ser determinada
por nenhum argumento metamatemático
que possa ser representado dentro do formalismo aritmético".
Referências: A principal fonte de inspiração para estas notas foi o belíssimo texto de E. Nagel e J. R. Newman "Gödel's Proof" New York University Press New Ypork USA 1958. Alem dele, as referências contidas em Matemática & Psicanálise são todas pertinente ao estudo da prova de Gödel.
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