CADERNO DA CIDADANIA > PROTESTOS URBANOS
A revolta do senso comum
Comentário para o programa radiofônico do Observatório da Imprensa, 21/6/2013
A imprensa parece tão perplexa quanto os políticos, no dia seguinte à maior onda de manifestações por todo o país, na série de protestos que se iniciou em São Paulo por causa do aumento nas tarifas de transporte público.
Velhos militantes que fizeram suas carreiras em passeatas, atravessando a luta contra a ditadura, o movimento de liberação sexual e a cultura das drogas, desfilam seu espanto com a aparente falta de objetividade das reivindicações. Ex-esquerdistas convertidos à socialdemocracia liberal ficam atônitos com a ausência de uma doutrina na raiz da rebelião. Cientistas sociais adeptos da ficção chamada pós-modernidade criam neologismos para convencer a si mesmos.
Curiosamente, a melhor análise sobre o que se pode perceber do fenômeno é feita por dois repórteres do Estado de S.Paulo, em um texto curto, despretensioso e sem os cacoetes dos teóricos das ciências humanas (ver “Antiliberal e crítico do marxismo, MPL usa multidão como arma”). Eles simplesmente entrevistaram os líderes do movimento, fizeram uma radiografia de suas principais leituras e desmontam com objetividade os mais exuberantes artigos e os mais peremptórios editoriais do próprio jornal onde trabalham.
Trata-se de um fato raro na imprensa tradicional do Brasil, que se caracteriza pela homogeneidade conservadora e a submissão do corpo jornalístico “puro e duro” ao núcleo de opinião do jornal.
Uma das conclusões é que os jovens líderes das manifestações têm uma visão de mundo à esquerda do espectro político, “entre os adversários do liberalismo econômico e os críticos do marxismo histórico”. São, no dizer dos dois repórteres, um fruto do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, que se realizou em 2005. Não custa lembrar que a imprensa sempre desprezou o Fórum, quando não se dedicou a atacar suas propostas por meio de seus articulistas mais reacionários.
Se há uma síntese para o complexo de influências que identificam o movimento, ela está presente na seguinte frase: “Eles pensam que um outro mundo é possível”.
Embora os autores da análise se refiram ao fato de os jovens serem “nascidos na sociedade pós-moderna” – como se “pós-modernidade”, expressão derivada do conceito genérico de “fim da História”, fosse um recorte concreto e visível no tempo –, note-se que eles deixaram de lado o arcabouço ideológico do jornal onde prestam seus serviços para tentar compreender o objeto de sua observação.
Movidos por uma utopia
Essa é a diferença básica, de que se fala eventualmente neste espaço, entre interpretar um acontecimento e compreendê-lo. A prática generalizada na imprensa tradicional é aplicar a qualquer fato as lentes conservadoras manipuladas na direção de Redação e tentar, com essa interpretação viciada, influenciar a opinião do público.
No caso, o esforço mais evidente dos jornais é jogar o ônus da crise no colo do governo federal e criar um estado de beligerância entre o partido no poder nacional e uma parcela dos manifestantes.
A tática é simples, como sempre: desloca-se para o alto das páginas aquilo que representa o viés de interesse da mídia e elimina-se ou desloca-se para o rodapé e as notas curtas aquilo que não pode deixar de ser noticiado, mas não interessa à orientação editorial.
Essa característica do noticiário e do opiniário é que dá mais relevância ao texto curto dos dois repórteres do Estado: em poucas palavras, por exemplo, fica-se sabendo que a violência usada por alguns grupos de manifestantes não é simplesmente ação de vândalos desarticulados, delinquentes oportunistas ou drogados – é parte da estratégia de uma facção que faz parte do movimento, e que se informa em teóricos de um anarquismo que se desenvolve nos escombros da sociedade liberal.
Há bandidos em meio às multidões, e seu número varia de cidade para cidade, mas pelo menos em São Paulo, até o vandalismo é politizado, fundamentado em leitura consistente e, segundo a conclusão do artigo, “expôs o despreparo da PM e dos governantes e acabou sendo decisivo na vitória das manifestações”.
Resta saber a quem vai servir, afinal, essa violência.
Algumas expressões compõem um interessante mosaico de ideias que permitem um exercício de compreensão do movimento. Por exemplo, a ideia de que tudo é movido por uma utopia – o desejo de uma sociedade melhor – que tenta se realizar por meio da desobediência civil a instituições que já não representam os interesses da maioria.
Os manifestantes não se opõem a um governo específico, a um partido ou a uma política econômica: eles propõem um retorno aos fundamentos da democracia.
Enquanto a imprensa, massivamente, tenta demonizar tudo que parece ameaçador ao status quo, a curta e interessante análise de dois repórteres que ainda frequentam as ruas indica que o que estamos testemunhando é a revolta do senso comum.
EMOÇÕES E LINGUAGEM NA EDUCAÇÃO E NA POLÍTICA - Humberto Maturana - UFMG - 2002
ResponderExcluirPara terminar, quero agora apresentar um resumo de algumas
reflexões que fiz a respeito da linguagem, das emoções, da ética e da
conspiração.
A LINGUAGEM
Estamos acostumados a considerar a linguagem como um sistema de
comunicação simbólica, na qual os símbolos são entidades abstratas
que nos permitem mover-nos num espaço de discursos, flutuante sobre
a concretude do viver, ainda que a representem.
Com efeito, a linguagem, sendo um fenômeno que nos envolve
como seres vivos e, portanto, um fenômeno biológico que se origina na
nossa história evolutiva, consiste num operar recorrente, em
coordenações de coordenações consensuais de conduta. Disto resulta
que as palavras são nós nas redes de coordenação de ações, e não
representantes abstratos de uma realidade independente dos nossos
afazeres. É por isto que as palavras não são inócuas, e que não é
indiferente usarmos uma ou outra numa determinada situação. As
palavras que usamos não somente revelam nosso pensar, como também
projetam o curso do nosso fazer. Ocorre, entretanto, que o domínio em
que se realizam as ações que as palavras coordenam não é sempre claro
num discurso, e é preciso esperar o devir do viver para sabê-lo.
Entretanto , não é este último ponto que pretendo ressaltar, mas o fato
de que o conteúdo do conversar numa comunidade não é inócuo para
esta comunidade, porque arrasta consigo seus afazeres.
Permitam-me uma reflexão sobre o que aconteceu nos últimos meses
na história do Chile. Ao mesmo tempo peço desculpas por fazê-la como
biólogo que não está em condições de fazer uma avaliação
histórico-político-econômica. Penso que o que aconteceu em relação
ao plebiscito de 1988 mostra exatamente o que disse sobre a linguagem
como um operar em coordenações de coordenações de ações.
Em 1973, quando se deu o golpe militar, a
Junta Governamental afirmou que tinha a intenção de gerar uma
democracia. Os que escutamos não acreditamos, porque nos pareceu
que as palavras não estavam sendo confirmadas pelos atos. Mas o
discurso da intenção democrática se manteve. No decorrer do processo,
nomeou-se uma comissão constitucional que eventualmente escreveu
um projeto constitucional que, modificado aqui e ali por Pinochet, foi
aprovado num plebiscito. Começou-se a falar de leis eleitorais, de leis
de partidos políticos, de procedimentos eleitorais. Ou seja, gerou-se
uma trama de conversações para a democracia que constituiu uma rede
de ações. O que aconteceu em 5 de outubro de 1988, dia do Plebiscito
Presidencial, com certeza não reflete o desejo de Pinochet, mas
ocorreu. Ocorreu porque o governo não pôde detê-lo! Ocorreu porque a
rede de conversações, a rede de coordenações de ações gerada no
processo dos discursos e debates sobre a democracia e a legalidade
democrática constituiu uma trama de ações que não pôde ser evitada,
porque não existe o espaço de conversações no qual as ações que a
evitassem pudessem surgir. Não! Esta não é uma reflexão superficial a
posteriori! As conversações, como um entrelaçamento do emocionar e
do linguajar em que vivemos, constituem e configuram o mundo em
que vivemos como um mundo de ações possíveis na concretude de
nossa transformação corporal ao viver nelas. Os seres humanos somos
o que conversamos, e é assim que a cultura e a história se encarnam em
nosso presente. É conversando as conversações que constituem a
democracia que construiremos a democracia. De fato, nossa única
possibilidade de viver o mundo que queremos viver é submergirmos
nas conversações que o constituem, como uma prática social cotidiana,
numa contínua co-inspiração ontológica que o traz ao presente.
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4
Consulta à população, convocada pelo governo Pinochet, para decidir
se a Constituição do país deveria ser ou não modificada. A aprovação
da mudança pelo plebiscito rejeitou, ao tempo, o regime ditatorial de
Pinochet. (Nota desta edição.)