Traços da Herança Ibérica na Música Brasileira
Os mouros, também chamados de sarracenos ou bérberes, ocuparam a península ibérica por oitocentos anos. Essa presença ainda é marcante principalmente no sul de Portugal e da Espanha.
Os ecos dessa ocupação chegaram ao Brasil com as primeiras caravelas, dois séculos após a expulsão dos mouros da região portuguesa do Algarve e foram se sedimentando como formações rochosas vão se sobrepondo em camadas geológicas. Encontraram terreno fértil no Nordeste, principalmente na aridez do sertão, representação secular do deserto, onde as condições de vida assumem aspectos que vão se reproduzir em diversas partes do mundo: o convívio com a uma natureza implacável, a falta de água, a lida com o gado, a manifestação de uma religiosidade aguda. Esse dado mesológico importa na medida em que é determinante para a reprodução de um modo de vida que se adapta ao meio, que se adequa às condições adversas usando tecnologias milenares de sobrevivência em ambientes hostis. Desse medium brota uma cultura endêmica, que não arrebata pela graça e pela delicadeza, mas pela força e pelo vigor, como gosta de dizer Ariano Suassuna.
O aboio nordestino, canto dos vaqueiros para tanger o gado, para chamar e acalmar, assentado em vogais e melismas, monocórdio, tem indíscutivel origem oriental. Segundo Câmara Cascudo essa prática teria chegado ao Brasil através de escravos mouros vindos da Ilha da Madeira. Diz ainda: “entoado numa série de interjeições semelhantes a vocalises, tendo bastante acentuado o estilo oriental, principalmente na Neuma, a extraordinária semelhança com a ‘mourisca, donde parece ter saído”. O aboio tem presença marcante na música popular contemporânea de matriz nordestina, desde Luiz Gonzaga até Lenine.
Outro elemento árabe onipresente na música nordestina e brasileira de uma forma geral que chegou até nós via Península Ibérica é o pandeiro. Redondo ou retangular, geralmente tocado por mulheres, o pandeiro, adufe ou tamboril é imprescindível nos cantos e danças mouros. Pero Vaz de Caminha já fazia referência a esses instrumentos na sua “Carta do Achamento” ao rei de Portugal em 1500, tocados pelos marinheiros ao chegarem nas praias de Porto Seguro e encontrarem os primeiros indígenas.
Na literatura, um dos elementos mais representativos dessa herança é o romance, que aqui se transformou, ganhou novos metros, outros acentos, mas manteve intacto o sabor oriental, a fragrância peculiar do almíscar.
Um dos motivos mais populares, tanto na península como aqui é o romance da Donzela Teodora. Nele, independente da forma encontrada, seja em prosa ou verso, nas mais variadas versões, o tema é sempre o mesmo: a exaltação da beleza e da sabedoria da mulher astuciosa, prodígio de inteligência e sensatez. Inevitável lembrar-se de Sheherazade que seduz o sultão por mil e uma noites com astúcia e beleza.
Vamos encontrar essa mesma donzela entre as canções do trovador contemporâneo Elomar. O compositor baiano se apropria inclusive de versos inteiros do romance original, ou de sua versão mais conhecida entre nós.
Na versão sertaneja mais comum no Brasil há os seguintes versos:
Donzela o que é velhice?
Respondeu com brevidade:
É vestidura de dores
É a mãe da mocidade,
O que mais aborrecemos?
Respondeu: é a idade.
Elomar por sua vez recria esses versos na sua Donzela Tiadora, mantendo intacta todavia a metáfora:
Beleza dos amores
E qui da vilhilice
Vistidura de dores
Na eterna mininice
Na obra de Elomar, ambientada nesse interregno, na zona de transição entre o cerrado mineiro e a caatinga do sertão baiano, o que impressiona nesse contexto específico é o grau de elaboração e unidade alcançados a partir da elaboração criativa, e muitas vezes intuitiva, desses fragmentos dispersos no espaço e no tempo. Ele instaura uma realidade, recria esse mundo medieval no semi-árido brasileiro, resignificando os espaços, os objetos, os homens e os animais e imputando um sentido transcendente à vida e morte desses sertanejos. Elomar constrói portanto não só a ponte transatlântica mas também aquela temporal, unindo cinco séculos de história oral. Estabelece ainda outros dois vínculos importantes; um entre a poesia e a música, recuperando o princípio original do romance medieval, criado para ser cantado; de outro lado aproxima a canção popular da música erudita, escrevendo para formações camerísticas e mesmo orquestras utilizando formas consagradas como óperas, oratórios, cantatas, árias e antífonas. Chama atenção ainda o fato de que todo esse universo seja elaborado a partir de um instrumento que descende diretamente dos alaúdes árabes, um violão virtuoso que incorpora elementos da melhor tradição espanhola, com muitos arpejos e ligaduras, mas principalmente com a uma harmonia polifônica, que conduz e baliza a melodia, pagando tributo à melhor escola - desde Villa-Lobos a Dilermando, passando por Canhoto e Baden – de um instrumento tão bem ambientado no Brasil. O violão de Elomar tem ainda algo da viola caipira e, apesar de usar sempre uma afinação convencional (mi/lá/ré/sol/si/mi), emula a sonoridade modal das violas que utilizam afinação aberta.
As transformações pelas quais o país passou desde o final do século XIX, com o fim da escravidão, o êxodo rural e o inevitável processo de urbanização com a conseqüente perda de importância no imaginário social do universo simbólico agrário, gerou um gradativo esquecimento, ou hibernação desses elementos herdados dos descobridores portugueses. A urbanização trouxe hábitos novos, importados de França num primeiro momento e, mais tardiamente, dos Estados Unidos como ensina Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Veio acelerar ainda mais esse processo e confirmar o vaticínio da derrocada do ambiente rural como espaço autônomo e hegemônico o advento dos meios de comunicação de massa, com o rádio no início do século XX, e a televisão na segunda metade desse mesmo século, ambos amparados numa dimensão frenética de transformação que encontrou no discurso social-desenvolvimentista o argumento necessário para operar uma ruptura entre progresso e tradição.
Importante esclarecer todavia que não estou falando aqui da influência árabe no Brasil pós-migração de Sírios e Libaneses nos séculos XIX e XX. Essa é mais presente no Sudeste, muitas vezes confundidos com turcos, os sírio-libaneses tem uma importância crucial na cultura brasileira, mas não é o foco aqui. Da mesma forma que há uma influência da cultura árabe nos séculos XVII e XVIII através da presença na Bahia dos escravos convertidos mulçumanos, os Malês. A herança em questão aqui portanto não veio diretamente das arábias, pois ela passa necessariamente pelo filtro da península, pela decantação da cultura árabe após séculos de convívio com os povos ibéricos.
No sertão profundo sobrevive, ainda hoje, ecos desse universo paralelo, que vingou sob condições precárias, muitas vezes marginalizados e esquecidos, mas incorporando aqui e ali elementos novos, como sempre aconteceu com as tradições orais. Ainda são encenados, em muitas comunidades do interior do país, os autos da batalha entre Mouros e Cristãos, as Cheganças, com cavaleiros e cavalos enfeitados, empunhando espadas, cantando e guerreando até a derrota dos mouros infiéis, por fim convertidos e batizados na fé cristã. Mas esses elementos são sobretudo difusos, fragmentados. Encontra-se aqui e ali uma memória ainda tenaz, como era a de Dona Militana, no Rio Grande do Norte, com seus romances medievais aprendidos na linha direta da transmissão oral familiar.
Essa influência efetivamente se estende, em diferentes graus de presença e nas várias formas, desde o nordeste setentrional até o norte e noroeste de Minas, e pode ser percebida tanto nas melodias modais tradicionais das lavadeiras do Vale do Jequitinhonha quanto nos folguedos, nas brincadeiras, folias e reizados que ainda são encontrados em toda essa região. Da Tirana da Rosa ao Calix Bento, que podem ser ouvidos desde o Minho até a Baixa, ou da nascente das Velhas até a foz do Velho Chico. Pode ser percebida ainda no sotaque, no modo de falar, principalmente na prosódia dos habitantes do interior mais recôndito do sertão brasileiro, onde o acento permaneceu e trás os ventos da oralidade, resquícios de uma língua tonal, num tempo imemorial onde as pessoas não falavam simplesmente, mas cantavam.
Os ecos dessa ocupação chegaram ao Brasil com as primeiras caravelas, dois séculos após a expulsão dos mouros da região portuguesa do Algarve e foram se sedimentando como formações rochosas vão se sobrepondo em camadas geológicas. Encontraram terreno fértil no Nordeste, principalmente na aridez do sertão, representação secular do deserto, onde as condições de vida assumem aspectos que vão se reproduzir em diversas partes do mundo: o convívio com a uma natureza implacável, a falta de água, a lida com o gado, a manifestação de uma religiosidade aguda. Esse dado mesológico importa na medida em que é determinante para a reprodução de um modo de vida que se adapta ao meio, que se adequa às condições adversas usando tecnologias milenares de sobrevivência em ambientes hostis. Desse medium brota uma cultura endêmica, que não arrebata pela graça e pela delicadeza, mas pela força e pelo vigor, como gosta de dizer Ariano Suassuna.
O aboio nordestino, canto dos vaqueiros para tanger o gado, para chamar e acalmar, assentado em vogais e melismas, monocórdio, tem indíscutivel origem oriental. Segundo Câmara Cascudo essa prática teria chegado ao Brasil através de escravos mouros vindos da Ilha da Madeira. Diz ainda: “entoado numa série de interjeições semelhantes a vocalises, tendo bastante acentuado o estilo oriental, principalmente na Neuma, a extraordinária semelhança com a ‘mourisca, donde parece ter saído”. O aboio tem presença marcante na música popular contemporânea de matriz nordestina, desde Luiz Gonzaga até Lenine.
Outro elemento árabe onipresente na música nordestina e brasileira de uma forma geral que chegou até nós via Península Ibérica é o pandeiro. Redondo ou retangular, geralmente tocado por mulheres, o pandeiro, adufe ou tamboril é imprescindível nos cantos e danças mouros. Pero Vaz de Caminha já fazia referência a esses instrumentos na sua “Carta do Achamento” ao rei de Portugal em 1500, tocados pelos marinheiros ao chegarem nas praias de Porto Seguro e encontrarem os primeiros indígenas.
Na literatura, um dos elementos mais representativos dessa herança é o romance, que aqui se transformou, ganhou novos metros, outros acentos, mas manteve intacto o sabor oriental, a fragrância peculiar do almíscar.
Um dos motivos mais populares, tanto na península como aqui é o romance da Donzela Teodora. Nele, independente da forma encontrada, seja em prosa ou verso, nas mais variadas versões, o tema é sempre o mesmo: a exaltação da beleza e da sabedoria da mulher astuciosa, prodígio de inteligência e sensatez. Inevitável lembrar-se de Sheherazade que seduz o sultão por mil e uma noites com astúcia e beleza.
Vamos encontrar essa mesma donzela entre as canções do trovador contemporâneo Elomar. O compositor baiano se apropria inclusive de versos inteiros do romance original, ou de sua versão mais conhecida entre nós.
Na versão sertaneja mais comum no Brasil há os seguintes versos:
Donzela o que é velhice?
Respondeu com brevidade:
É vestidura de dores
É a mãe da mocidade,
O que mais aborrecemos?
Respondeu: é a idade.
Elomar por sua vez recria esses versos na sua Donzela Tiadora, mantendo intacta todavia a metáfora:
Beleza dos amores
E qui da vilhilice
Vistidura de dores
Na eterna mininice
Na obra de Elomar, ambientada nesse interregno, na zona de transição entre o cerrado mineiro e a caatinga do sertão baiano, o que impressiona nesse contexto específico é o grau de elaboração e unidade alcançados a partir da elaboração criativa, e muitas vezes intuitiva, desses fragmentos dispersos no espaço e no tempo. Ele instaura uma realidade, recria esse mundo medieval no semi-árido brasileiro, resignificando os espaços, os objetos, os homens e os animais e imputando um sentido transcendente à vida e morte desses sertanejos. Elomar constrói portanto não só a ponte transatlântica mas também aquela temporal, unindo cinco séculos de história oral. Estabelece ainda outros dois vínculos importantes; um entre a poesia e a música, recuperando o princípio original do romance medieval, criado para ser cantado; de outro lado aproxima a canção popular da música erudita, escrevendo para formações camerísticas e mesmo orquestras utilizando formas consagradas como óperas, oratórios, cantatas, árias e antífonas. Chama atenção ainda o fato de que todo esse universo seja elaborado a partir de um instrumento que descende diretamente dos alaúdes árabes, um violão virtuoso que incorpora elementos da melhor tradição espanhola, com muitos arpejos e ligaduras, mas principalmente com a uma harmonia polifônica, que conduz e baliza a melodia, pagando tributo à melhor escola - desde Villa-Lobos a Dilermando, passando por Canhoto e Baden – de um instrumento tão bem ambientado no Brasil. O violão de Elomar tem ainda algo da viola caipira e, apesar de usar sempre uma afinação convencional (mi/lá/ré/sol/si/mi), emula a sonoridade modal das violas que utilizam afinação aberta.
As transformações pelas quais o país passou desde o final do século XIX, com o fim da escravidão, o êxodo rural e o inevitável processo de urbanização com a conseqüente perda de importância no imaginário social do universo simbólico agrário, gerou um gradativo esquecimento, ou hibernação desses elementos herdados dos descobridores portugueses. A urbanização trouxe hábitos novos, importados de França num primeiro momento e, mais tardiamente, dos Estados Unidos como ensina Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Veio acelerar ainda mais esse processo e confirmar o vaticínio da derrocada do ambiente rural como espaço autônomo e hegemônico o advento dos meios de comunicação de massa, com o rádio no início do século XX, e a televisão na segunda metade desse mesmo século, ambos amparados numa dimensão frenética de transformação que encontrou no discurso social-desenvolvimentista o argumento necessário para operar uma ruptura entre progresso e tradição.
Importante esclarecer todavia que não estou falando aqui da influência árabe no Brasil pós-migração de Sírios e Libaneses nos séculos XIX e XX. Essa é mais presente no Sudeste, muitas vezes confundidos com turcos, os sírio-libaneses tem uma importância crucial na cultura brasileira, mas não é o foco aqui. Da mesma forma que há uma influência da cultura árabe nos séculos XVII e XVIII através da presença na Bahia dos escravos convertidos mulçumanos, os Malês. A herança em questão aqui portanto não veio diretamente das arábias, pois ela passa necessariamente pelo filtro da península, pela decantação da cultura árabe após séculos de convívio com os povos ibéricos.
No sertão profundo sobrevive, ainda hoje, ecos desse universo paralelo, que vingou sob condições precárias, muitas vezes marginalizados e esquecidos, mas incorporando aqui e ali elementos novos, como sempre aconteceu com as tradições orais. Ainda são encenados, em muitas comunidades do interior do país, os autos da batalha entre Mouros e Cristãos, as Cheganças, com cavaleiros e cavalos enfeitados, empunhando espadas, cantando e guerreando até a derrota dos mouros infiéis, por fim convertidos e batizados na fé cristã. Mas esses elementos são sobretudo difusos, fragmentados. Encontra-se aqui e ali uma memória ainda tenaz, como era a de Dona Militana, no Rio Grande do Norte, com seus romances medievais aprendidos na linha direta da transmissão oral familiar.
Essa influência efetivamente se estende, em diferentes graus de presença e nas várias formas, desde o nordeste setentrional até o norte e noroeste de Minas, e pode ser percebida tanto nas melodias modais tradicionais das lavadeiras do Vale do Jequitinhonha quanto nos folguedos, nas brincadeiras, folias e reizados que ainda são encontrados em toda essa região. Da Tirana da Rosa ao Calix Bento, que podem ser ouvidos desde o Minho até a Baixa, ou da nascente das Velhas até a foz do Velho Chico. Pode ser percebida ainda no sotaque, no modo de falar, principalmente na prosódia dos habitantes do interior mais recôndito do sertão brasileiro, onde o acento permaneceu e trás os ventos da oralidade, resquícios de uma língua tonal, num tempo imemorial onde as pessoas não falavam simplesmente, mas cantavam.
Fonte: http://www.overmundo.com.br/overblog/tracos-da-heranca-iberica-na-musica-brasileira
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