Drop-Out: "@Música & Sociedade"
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Quem cria o criador?
Uma introdução às instâncias de consagração artísticas
Na nossa sociedade, o artista é geralmente visto como um indivíduo dotado de condições únicas, de dons superiores para a criação de um objeto artístico. O que é pouco discutido, no entanto, é que este discurso que implanta a ideologia do dom, da superioridade, do destino inevitável rumo à consagração artística, é um produto histórico que criou nossa concepção moderna do que é ser artista. O surgimento desta concepção está profundamente ligado ao processo de autonomia do campo da arte no século XIX. Fundamental na construção da independência do meio artístico das demais relações sociais, este profissional das artes em tempo integral, consagrado ao seu trabalho de maneira exclusiva, e que tem como lei a lei de seu campo, é uma personagem surgida em grande parte como reação ao comércio da arte que reduz tudo ao seu valor financeiro.
Ser consciente do processo de criação histórica do mito do artista não resolve, contudo, a questão. Uma pergunta fundamental ainda permanece. Quem delega o direito do artista ser artista? O que nos faz dirigir o olhar de maneira a separar aqueles dotados de condições especiais, aqueles que podem agir tendo como lei aparentemente apenas as leis do campo artístico, dos seres cujas obrigações e comportamentos são baseados em normas sociais gerais? O que permite umBeethoven recusar as ordens de um aristocrata? Ainda mais: o que faz com que a produção do criador seja considerada, enfim, uma obra de arte? Em outras palavras, quem cria o criador? As instâncias de consagração nos ajudam a encontrar a resposta.
O sociólogo Pierre Bourdieu vai chamar de ideologia carismática da criação aquele discurso que dirige nosso olhar para o produtor aparente da obra de arte, impedindo de perguntar quem criou este criador e o poder do qual ele é dotado. Esta ideologia que transforma a “fabricação” do produto em “criação”, a “técnica” em “inspiração”, desvia o nosso olhar dos processos de consagração da obra de arte para a obra de arte em si. Este desvio não nos permite perceber que o artista é ele próprio feito no seio do campo da produção por todo o conjunto daqueles que contribuem para descobri-lo e consagrá-lo enquanto artista reconhecido (Bourdieu, 1996, p. 193). Segundo Bourdieu, a ilusão de que o artista se faz por si mesmo é mantida pelo interesse dos próprios membros do campo, por uma espécie de conluio que evita esta questão fundamental. Um princípio fundamental é dissimular todos os jogos envolvidos na consagração da arte e do artista, produzindo o conluio e a crença no jogo. Portanto, o desconhecimento das relações sociais envolvidas na consagração do artista e do objeto artístico é, em si, a própria produção e produto desta crença.
Na produção da crença, certas instâncias possuem o direito de consagrar artistas e objetos artísticos. São as chamadas instâncias de consagração. Museus, salas de concerto, revistas especializadas, a crítica, a estética e a escola, dentre outras, operam separando aquilo que deve ser considerado arte daquilo que não deve ser assim considerado. Neste sentido, funcionam como verdadeiras instituições religiosas que separam aquilo que deve ou não deve ser consagrado, aquilo que pertence ao cânone e aquilo que deve ser expulso. Como lembra Bourdieu, as instâncias de consagração “ocupam um lugar homólogo ao da Igreja, que, segundo Max Weber, deve (…) ‘estabelecer o que tem e o que não tem valor de sagrado e fazê-lo penetrar na fé dos leigos” (Bourdieu, 1996, p. 169). No círculo da crença e consagração, o crítico assume uma função de descobridor, tornando-se porta-voz dos artistas por ele descobertos e a estética cumpre função importante de delimitação entre o artístico e o não artístico.
Dentro do jogo da crença, críticos, artistas e estetas, dentre outros, lutam pelo monopólio da consagração, ou seja, pelo poder final de dizer quem é e quem não é artista, o que é e o que não é arte. Assumindo posições distintas, lutam para impor seu posicionamento artístico como definitivo. Assim sendo, haverá os que defendem que Beethoven é música, enquanto Schoenberg não, que Bach é compositor e Cartola não. Munidos da estética e da crítica pertinentes ao seu posicionamento, duelam contra aqueles que tentam impor uma outra verdade ao campo. Segundo Bourdieu, se existe uma verdade artística, essa verdade é que existe uma aposta de lutas internas do campo artístico (Bourdieu, 1996, p. 332).
Segundo a filósofa Lydia Goehr, o princípio separativo nos processos de consagração musical, ou seja, nos processos que dividem aquilo que é do que não é obra de arte musical, começou a ser aplicado de fato quando teóricos e praticantes começaram a se questionar quando e onde tais obras deveriam ser apresentadas e exibidas. Concomitante aos processos de autonomia do meio musical, delimitar um espaço e colocar no palco uma obra passou a ser um sinal crucial de que ali estava sendo apresentada uma obra de arte musical (Goehr, 2007, p. 173). Neste sentido, a sala de concerto foi, e continua sendo, uma das instâncias de consagração fundamental da obra de arte musical.
Existem outras. A revista musical, com o crítico como sua figura central, desenvolveu a função de separar a arte da não arte, de acordo com a posição assumida pela publicação. Assim sendo, revistas como a Allgemeine Musikalische Zeitung operaram como verdadeiras instituições de consagração da obra musical e do compositor, como o caso de Beethoven comprova. Deste modo, Schumann, em seu papel de crítico musical, e Eduard Hanslick, no de esteta, também contribuíram na consagração e na condenação dos pretendentes a ingressar no campo de produção artística musical. Por sua vez, o poder de consagração do esteta e do crítico vem do poder concedido a ele pelo seu público que, por homologia, está estruturalmente de acordo com suas visões (Bourdieu, 1996, p. 191).
Assim sendo, é inútil continuar uma busca infinita pelo último fiador a dar valor objetivo ao objeto artístico e ao artista. Produção de um jogo onde operam todos aqueles que apostam no valor do jogo, a crença e a consagração produzem e são produzidas nas batalhas internas do campo da arte, com o auxílio das instâncias de consagração. Como diz Bourdieu, em matéria de magia, não se trata de saber quais são as propriedades do mágico, mas de determinar o funcionamento e desconhecimento coletivo, da crença coletiva. A crença coletiva está no princípio do poder do mágico. Seu ato seria insignificante sem o universo dos celebrantes e dos crentes que estão dispostos a produzi-lo (Bourdieu, 1996, p. 195).
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ReferênciasBOURDIEU, P. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996
GOEHR, L. The immaginary museum of musical Works.An essay in the philosophy of music.New York: Oxford universitypress, 2007
GOEHR, L. The immaginary museum of musical Works.An essay in the philosophy of music.New York: Oxford universitypress, 2007
Fontes
-http://www.musicaesociedade.com.br/quem-cria-o-criador-uma-introducao-as-instancias-de-consagracao-artisticas/
-https://www.facebook.com/musicaesociedade
-http://www.musicaesociedade.com.br/quem-cria-o-criador-uma-introducao-as-instancias-de-consagracao-artisticas/
-https://www.facebook.com/musicaesociedade
Rebello Alvarenga
É o idealizador, criador e proprietário do Música e Sociedade, resultado de uma ampla e densa pesquisa acerca do universo musical pelo prisma da sociedade. Estudou licenciatura em música no Instituto de Artes da UNESP. É também professor nas áreas de composição, piano, história da música e trilha sonora, ministrando uma série de cursos e palestras nestas áreas. É autor de dezenas de trilhas sonoras para as mais diversas mídias, tais como teatro, cinema e dança, além de compositor de música de concerto em uma extensa variedade de gêneros.
http://www.musicaesociedade.com.br
https://www.facebook.com/musicaesociedade/posts/944976725555779
O Som e o Sentido:
possibilidades de um olhar hiperdialético
Anna Cristina Cardozo da Fonseca (HCTE - UFRJ)
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Música, Representação e Discurso
Uma breve análise
da história da Música Ocidental
Renata Mattos de Azevedo
http://www.periodicos.ufes.br/sinais/article/viewFile/2861/2327
O presente trabalho tem como proposta elaborar uma análise sobre a história da música ocidental baseada na reflexão foucaultiana sobre o conceito de representação encontrado em seu livro As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas, contando, ainda, com a contribuição de determinados aspectos da psicanálise freudiana e lacaniana. Será focalizado o período histórico desde a Idade Média até a Modernidade, enfatizando o momento demarcado na referida obra, indo do século XVI ao início do XX. O discurso musical será analisado a partir do contexto sócio-cultural em que está inserido.
Bakhtin, M. (1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, HUCITEC, 1988.
1 de maio de 2015
valsa alemã não... o Strauus era austríaco né... ?
https://www.facebook.com/caetanodable/posts/10205681452058628?hc_location=ufi
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10204172380612785&set=a.1842353781643.108883.1324551686&type=3&theater
É o idealizador, criador e proprietário do Música e Sociedade, resultado de uma ampla e densa pesquisa acerca do universo musical pelo prisma da sociedade. Estudou licenciatura em música no Instituto de Artes da UNESP. É também professor nas áreas de composição, piano, história da música e trilha sonora, ministrando uma série de cursos e palestras nestas áreas. É autor de dezenas de trilhas sonoras para as mais diversas mídias, tais como teatro, cinema e dança, além de compositor de música de concerto em uma extensa variedade de gêneros.
http://www.musicaesociedade.com.br
https://www.facebook.com/musicaesociedade/posts/944976725555779
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O Som e o Sentido:
possibilidades de um olhar hiperdialético
Anna Cristina Cardozo da Fonseca (HCTE - UFRJ)
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Música, Representação e Discurso
Uma breve análise
da história da Música Ocidental
Renata Mattos de Azevedo
http://www.periodicos.ufes.br/sinais/article/viewFile/2861/2327
O presente trabalho tem como proposta elaborar uma análise sobre a história da música ocidental baseada na reflexão foucaultiana sobre o conceito de representação encontrado em seu livro As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas, contando, ainda, com a contribuição de determinados aspectos da psicanálise freudiana e lacaniana. Será focalizado o período histórico desde a Idade Média até a Modernidade, enfatizando o momento demarcado na referida obra, indo do século XVI ao início do XX. O discurso musical será analisado a partir do contexto sócio-cultural em que está inserido.
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A MÚSICA: UMA LINGUAGEM
Ana Cláudia Fernandes Ferreira
Este trabalho foi realizado durante minha graduação em Lingüística. É um trabalho para a disciplina Introdução à Apreciação Musical, curso multidisciplinar que foi ministrado pelo professor Moacyr Del Picchia (Instituto de Artes) no primeiro semestre de 2002.
Não existe atualmente, no campo de estudos sobre a linguagem, um único modo de tratar da música enquanto linguagem não verbal. Há uma perspectiva de estudos, elaborada pelo lingüista francês Émile Benveniste, para a qual a língua é concebida enquanto interpretante da cultura e conseqüentemente, de todas as outras formas de linguagem. A decorrência disso é a concepção de que a música também dependa, necessariamente, da língua (linguagem verbal) para ser interpretada. Vejamos, num artigo produzido em 1969 por este autor, intitulado “Semiologia da Língua”, qual é o tratamento dado à música e a outras formas de linguagem:
“A ‘língua’ musical consiste em combinações e sucessões de sons, diversamente articulados; a unidade elementar, o som, não é um signo; cada som é identificável na estrutura da escala da qual ele depende, não sendo dotado de significação. Eis o exemplo típico de unidades que não são signos, que não designam, sendo somente os graus de uma escala na qual se fixa arbitrariamente a extensão. Temos aqui um princípio discriminador: os sistemas fundados sobre unidades dividem-se entre sistemas com unidades significantes e sistemas com unidades não significantes. Na primeira categoria coloca-se a língua: na segunda, a música” (p.58, 59).
Benveniste considera que a língua, enquanto sistema de signos tem um duplo funcionamento, uma dupla significância: o semiótico e o semântico. Uma unidade como flor, por exemplo, deve passar pelo nível semiótico a fim de ser verificada sua existência na língua. Não é, nesse caso, a sua existência no mundo, mas a sua existência na língua, ou seja, a unidade flordeve ter uma significação na língua. Já no nível semântico, o sentido de flor é o seu sentido no interior de um enunciado. Em outras palavras, o sentido de a flor é o sentido de a flor em um enunciado do tipo a flor desabrochou. Benveniste não considera que a música funcione pelo semiótico, já que sua unidade (o som) não é dotada de significação. Este autor afirma que a língua é o único sistema de signos que funciona pelo semiótico e pelo semântico.
A tentativa de reduzir as linguagens à unidades resulta numa abstração das linguagens. Tal abstração exclui a materialidade própria e o modo de funcionamento específico a cada forma de linguagem, excluindo assim, seus diferentes sentidos. O sentido para Benveniste é, a meu ver, uma abstração. Antes de continuar com esta reflexão, vejamos mais um pouco das considerações benvenistianas a respeito da linguagem não verbal:
“As relações significantes da ‘linguagem’ artística são descobertas NO INTERIOR de uma composição. A arte não é jamais aqui senão uma obra de arte particular, na qual o artista instaura livremente oposições e valores que ele manipula soberanamente, não tendo nem ‘resposta’ a dar, nem contradição a eliminar, mas somente uma visão a exprimir, segundo critérios, conscientes ou não, de que a composição inteira dá testemunho e torna manifesto.
Pode-se então distinguir os sistemas em que a significância é posta pelo autor na obra e os sistemas em que a significância é expressa pelos elementos primeiros em estado isolado, independentemente das ligações que eles possam contrair. Nos primeiros, a significância da arte não remete então jamais a uma convenção identicamente recebida entre parceiros. É necessário descobrir a cada vez os termos, que são limitados em número, imprevisíveis por natureza, logo reinventados a cada obra, em suma, que não podem ser fixados em uma instituição. A significância da língua, ao contrário é a significância mesma, fundando a possibilidade de toda troca e de toda comunicação, e também de toda cultura” (p. 60, grifo do autor).
Aqui, vê-se que a solução para se compreender o sentido de uma obra de arte é descobri-lo apenas no seu interior, ou seja, no interior de cada obra de arte em particular. É interessante que tal solução, para mim, constitui uma das maneiras de se interpretar e compreender os sentidos da linguagem verbal.
Voltando ao que foi dito na citação anterior, quando o autor diz que os sons são “o exemplo típico de unidades que não são signos, que não designam, sendo somente os graus de uma escala na qual se fixa arbitrariamente a extensão”, tal afirmação lembra-me da hipótese formulada pelo lingüista francês, Oswald Ducrot (1973), sobre a existência de escalas argumentativas na língua.
Segundo este autor, para um enunciado do tipo O Júlio fala grego e até mesmo sânscrito, por exemplo, o até mesmo, funciona argumentativamente, dando a entender que saber sânscrito vale mais do que saber grego – no caso de tal enunciado ter uma conclusão do tipo Ele é um erudito. Em outras palavras, isso significa dizer que até mesmo sânscrito está, segundo o autor, situado numa posição mais alta de uma escala argumentativa com esta conclusão. Pode haver também, uma conclusão (dentre várias outras) do tipo Ele é muito arrogante. Nesse caso, o fato de saber sânscrito também contaria mais do que saber grego para se concluir a arrogância do Júlio; mas, note-se que as conclusões não funcionam na mesma escala e são, de certo modo, contrárias. Para ilustrar o que foi dito, vejamos como isso se formaliza:
Argumento A
|
Júlio fala grego
|
Argumento B
|
e até mesmo sânscrito
|
r
|
conclusão possível
|
r ele é um erudito | r ele é arrogante | ||||
B
|
e até mesmo sânscrito
|
B
|
e até mesmo sânscrito
| ||
A
|
Júlio fala grego
|
A
|
Júlio fala grego
|
Com este paralelo, procurei mostrar que as palavras, enquanto unidades, também podem funcionar como “graus em escalas da língua”.
A concepção de sentido com a qual me identifico, no entanto, é um pouco mais complexa do que a formulada por Ducrot. O sentido, para mim, pode ser entendido como o que nos diz Eni Orlandi (1995):
“O sentido tem uma matéria própria, ou melhor, ele precisa de uma matéria específica para significar. Ele não significa de qualquer maneira. Entre as determinações às condições de produção de qualquer discurso está a própria matéria simbólica: o signo verbal, o traço, a sonoridade, a imagem, etc. e sua consistência significativa não são transparentes em sua matéria, não são redutíveis ao verbal, embora sejam intercambiáveis, sob certas condições.
(...) há uma necessidade no sentido, em sua materialidade, que só significa, por exemplo, na música, ou na pintura, etc. Não se é pintor, músico, literato, indiferentemente. São diferentes relações com os sentidos que se instalam. São diferentes posições de sujeito, são diferentes sentidos que se produzem”. (www.labeurb.unicamp.br)
A partir desse ponto de vista, pude tirar duas conclusões a este respeito. Uma delas é que a linguagem verbal não precinde da musicalidade e da gestualidade, pois elas ajudam os sujeitos a interpretar a linguagem verbal. Ninguém fala sem uma certa musicalidade, ninguém fala sem movimentar os olhos, o corpo, ninguém fala sem uma gestualidade. Se não fosse assim, não seríamos, nesse ponto, muito diferentes de robôs falantes.
Não é difícil notar a presença e a importância da musicalidade na linguagem verbal na produção de sentidos. Para comprovar isso, basta observar os diferentes sentidos que trazem elementos musicais como: entonação, acentuação, ritmo, tonalidade, pausas, etc. Um simples oi, por exemplo, dependendo do modo como é temperado por tais elementos, vai adquirir um sentido específico. Há o oi alegre, o oi bravo, o oi triste, o oi cantado, o oi irônico e etc.
Um exemplo muito engraçado desse fato encontra-se em Diário de um Escritor de Dostoievski:
“Certa vez, num Domingo, já perto da noite, eu tive ocasião de caminhar ao lado de um grupo de seis operários embriagados, e subitamente me dei conta de que é possível exprimir qualquer pensamento, qualquer sensação, e mesmo raciocínios profundos, através de um só e único substantivo, por mais simples que seja [Dostoievski está pensando aqui numa palavrinha censurada de largo uso]. Eis o que aconteceu. Primeiro, um desses homens pronuncia com clareza e energia esse substantivo para exprimir, a respeito de alguma coisa que tinha sido dita antes, a sua contestação mais desdenhosa. Um outro lhe responde repetindo o mesmo substantivo, mas com um tom e uma significação completamente diferentes, para contrariar a negação do primeiro. O terceiro começa bruscamente a irritar-se com o primeiro, intervém brutalmente e com paixão na conversa e lança-lhe o mesmo substantivo, que toma agora o sentido de uma injúria. Nesse momento, o segundo intervém novamente para injuriar o terceiro que o ofendera. ‘O quê há, cara? Quem tá pensando que é? A gente tá conversando tranqüilo e você começa a bronquear!’ Só que esses pensamentos, ele o exprime pela mesma palavrinha mágica de antes, que designa de maneira tão simples um certo objeto; ao mesmo tempo, ele levanta o braço e bate no ombro do companheiro. Mas eis que o quarto, o mais jovem do grupo, que se calara até então e que aparentemente acabara de encontrar a solução do problema que estava na origem da disputa, exclama com um tom entusiasmado, levantando a mão: ‘Eureka’, ‘Achei, achei’. Ele simplesmente repete o mesmo substantivo banido do dicionário, uma única palavra, mas com um tom de exclamação arrebatada, com êxtase, aparentemente excessivo, pois o sexto homem, o mais carrancudo e mais velho dos seis, olha-o de lado e arrasa num instante o entusiasmo do jovem, repetindo com uma imponente voz de baixo e num tom rabugento... sempre a mesma palavra, interdita na presença de damas para significar claramente: ‘Não vale a pena arrebentar a garganta, já compreendemos!’ Assim, sem pronunciar uma única outra palavra, eles repetiram seis vezes seguidas sua palavra preferida, um depois do outro, e se fizeram entender perfeitamente” [1].
É interessante notar como essa única palavrinha pôde ser compreendida de diferentes formas que dependiam somente do modo particular com era produzida. Este modo, evidentemente, inclui uma certa musicalidade e gestos específicos.
A segunda conclusão é que, através das diferentes linguagens, produzem-se os mais variados sentidos. E estas diferentes linguagens podem se atravessar. Assim, sobre a linguagem verbal, afirmo que ela está atravessada por outras linguagens, as quais significam com ou sem ela. A música, os gestos[2] e outras tantas formas de linguagem podem produzir sentidos, independentemente da linguagem verbal. Sentidos estes, que vão além do que a própria linguagem verbal é capaz de transmitir. Isso significa dizer que tais linguagens não são dependentes da língua, da forma como entende Benveniste.
Para mim, a linguagem que se aprende compreende várias outras linguagens: a língua, a musicalidade, os gestos, a linguagem das formas, das pausas e também dos silêncios. Intrínsecos a estas linguagens estão os sentidos. Eu diria que a linguagem são sentidos: sentidos que não nos dizem tudo, que não são transparentes, sentidos a aprender. E, dentre estes sentidos possíveis, alguns significam apenas na linguagem musical.
Bibliografia
Bakhtin, M. (1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, HUCITEC, 1988.
Benveniste, E. (1969) “Semiologia da Língua”. Problemas de Lingüística Geral II. Campinas, Pontes, 1989.
Ducrot, O. (1973) “As Escalas Argumentativas”. Provar e Dizer. São Paulo, Global Editora, 1981.
Orlandi, E. “Efeitos do Verbal sobre o Não-Verbal”. Rua 1. Revista do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (NUDECRI). Campinas, SP, 1995. Na internet: (www.labeurb.unicamp.br)
Sacks, O. Vendo Vozes – Uma Viagem ao Mundo dos Surdos. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
[1] Trecho extraído do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem de Michail Bakhtin (p133).
[2] A maioria de nós aprende da linguagem verbal, uma língua materna, e acredita então, que esta linguagem verbal seja a mais completa. Mas esta não é a única possibilidade de existência de uma língua. Existem as línguas feitas de gestos: as conhecidas línguas de sinais dos surdos. Tais línguas não são uma transliteração do alfabeto da linguagem verbal (isso é um mito), elas têm sua própria estrutura, têm história, têm dialetos, metáforas, enfim, têm tudo o que é necessário para se dizer que são verdadeiras línguas, embora sejam em muito diferentes das línguas verbais. Sobre isso, há uma interessante reflexão no livro Vendo Vozesde Oliver Sacks, do qual extraímos dados para esta reflexão.
FELIPE FIGUERAS DABLE
ResponderExcluirMÚSICA E ADOLESCÊNCIA:
Um estudo sobre as preferências musicais de adolescentes em situação de
conflito com a lei
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação
em Música – UFPR, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em Educação
Musical/Cognição.
http://www.sacod.ufpr.br/portal/artes/wp-content/uploads/sites/8/2013/04/Felipe-Figueras-Dable.pdf