Complexidade
e
Conhecimento Científico
Jorge de Albuquerque Vieira
I Simpósio sobre Percepção de Desafios Científicos
e novas Estruturas Organizacionais
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUCSP I
http://www.unicamp.br/fea/ortega/NEO/JorgeVieira-Complexidade-Conhecimento.pdf
Vivemos uma época caracterizada pela crescente importância da complexidade. Em
nosso século, após os sucessos das Mecânicas Clássica e Quântica, enfrentamos problemas
complexos gerados não só pelo avanço do conhecimento, mas também (e de forma urgente)
pelos fortes processos de transformação social e degradação em todos os níveis do nosso
mundo, o que pode vir a comprometer o futuro próximo de nossa espécie. Os problemas dos
sistemas humanos e dos decorrentes sistemas psicossociais são aqueles ligados à nossa
dificuldade em lidar com a complexidade. O nosso conhecimento mais clássico não consegue
captar os aspectos complexos das novas e, por vezes, incontroladas situações que têm surgido
em todas as nossas atividades.
Na medida em que lidamos com eficiência com o paradigma newtoniano, desde o final
do século passado deparamos com a Termodinâmica e os problemas das perdas, da entropia, da
irreversibilidade e da evolução; mesmo no reduto da Mecânica Clássica, os trabalhos de Henri
Poincaré na Teoria dos Sistemas Dinâmicos já apontavam as rotas para o que hoje chamamos
caos determinista, com as conexões com o que hoje encontramos nas contribuições de
Prigogine, de Henri Atlan, entre outros. Assistimos as tentativas de captar a complexidade dos
sistemas vivos, a proposta de uma Teoria Geral de Sistemas em Bertalanffy (1986) e, cobrindo a
transição do século, o fechamento do sistema filosófico e científico de Charles S. Peirce (1935),
com a elaboração de sua Semiótica.
Nosso século propõe os problemas mais complexos e exige a elaboração das
ferramentas adequadas para resolvê-los. Cibernética e a Teoria da Informação, a Teoria dos
Automata, a teoria da percepção de Jakob von Uexkull e todos os demais movimentos que
geraram, entre outras coisas, o núcleo ainda diversificado das chamadas Ciências Cognitivas,
todos esses avanços cercam a questão da complexidade; por outro lado, temos assistido nessas
elaborações os traços do pensamento peirceano, tanto em seu edifício filosófico quanto em
algumas propostas, conjecturas e previsões. Cada vez mais a Semiótica impõe-se como uma das
ferramentas, talvez a mais básica, para consolidar o grande processo de transformação a que
temos assistido.
Do tratamento metodológico mais clássico, herdamos a busca da ordem, da
periodicidade, da previsibilidade, da harmonia e da simetria. Mas a partir do conceito de
entropia, da possibilidade de organização gerada a partir do conceito de entropia e/ou do ruído
(Atlan, 1992), nos deparamos com uma realidade organizada, acima de qualquer critério de
ordem; irregular e por vezes imprevisível, além de qualquer nível de periodicidade ou simetria;
e acima de tudo, complexa. É inegável, por exemplo, a diferença entre um cristal e uma célula
viva quanto ao parâmetro organização (Denbigh, 1975: 83). O Universo complexo é um sistema
cuja entropia nem é nula (redundância total) e nem é máxima (redundância nula). Vivemos em
uma realidade sistêmica com redundância “mediana”, que é um traço ou índice de
gramaticalidade.
A história universal é natural, na maioria das vezes, como uma linguagem natural de
redundância afastada de situações extremas. O conceito de gramaticalidade torna-se importante
aqui: lembrando a Semiótica peirceana (Peirce, 1935), geral o suficiente para conter e tentar
representar o Universo e não somente o domínio da linguística humana, vemos que tentamos
acessar a gramaticalidade do real por meio da atividade científica, que é acima de tudo indicial,
ou seja, consiste na captura e análise de índices, signos que indiretamente nos falam do real
(Ransdell, 1979). Estes signos fazem a mediação entre o sujeito e os processos que perturbam a
realidade, sendo estes registrados sob a forma de cadeias sígnicas, cadeias de diferenças que são
informação, os chamados sinais.
Do ponto de vista da Teoria Geral do Conhecimento, é interessante analisar o que isso
implica: utilizamos signos para a representação do real, tal que o que acessamos é o
“semioticamente real” (Merrell, 1996); mas se admitimos um Universo evolutivo, como o
fazemos em maioria hoje em dia (e em particular também Peirce, em sua época, no contexto de
seu Idealismo Objetivo, sua doutrina da continuidade e seu Tiquismo) encontramos sistemas
cognitivos que, através de exigências evolutivas, internalizaram essa mediação de forma
eficiente; apesar da limitação ao semioticamente real, estes sistemas, capazes de perceber e
elaborar informação, conseguem manter um grau de coerência com o real (sob pena de, em caso
contrário, perecerem) tal que as representações dependem no sujeito cognoscitivo e suas
características evolutivas (seu Umwelt) mas também nos aspectos reais do seu ambiente.
Do ponto de vista ontológico, como lidar com essa coerência entre sistemas reais e
sistemas sígnicos? Se admitirmos que a realidade é sistêmica, como o faz a Teoria Geral de
Sistemas (Bunge, 1977, 1979), podemos recorrer aos parâmetros sistêmicos para conceber a
vinculação entre os sistemas do real e os sistemas de representação. Tais parâmetros são:
composição, conectividade, estrutura, integralidade, funcionalidade e organização. Todos eles
são permeados pela complexidade, que atua como um parâmetro livre. A importância, portanto,
da adoção de um enfoque ontológico sistêmico, reside na possibilidade de tratar os sinais
obtidos na atividade científica como sistemas – na verdade, sistemas sígnicos organizados, e
tentar uma melhor compreensão do conceito de Complexidade.
II - A objetividade do Signo
Nosso trabalho admite como hipótese a admissão da objetividade do signo como um
aspecto da diversidade material, espacial e temporal, do mundo, ou seja, uma diversidade
material que contem diferenciações ao longo do espaço-tempo; e da manifestação desta
diversidade de forma sistêmica, no cenário temporal dos processos evolutivos, gerando uma
hierarquia de restrições ou leis que constituem regras gramaticais naturais, ou seja,
desenvolvidas ao longo de uma história. Nesse sentido, lidamos com linguagens naturais e não
otimizadas, variando entre os extremos do aleatório quase total às leis quase deterministas,
como estabelecidas pela física clássica.
A ciência apreende o mundo observando e registrando variações em seus estados,
segundo critérios metodológicos que, entre outros, envolvem a escolha de aspectos destes
estados considerados relevantes; técnicas de “redução de dados” que são, em maioria, técnicas
de otimização. Em nosso trabalho consideramos a sucessão de estados registrados como uma
sucessão de signos que exprimem a gramática (ou gramáticas) do mundo. Estamos admitindo,
como no estudo de linguagens formais (Marcus, 1978: 561) que uma gramática é basicamente
constituída de um alfabeto finito e um conjunto de regras atuantes sobre esse alfabeto (uma
sintaxe) e todas as cadeias sígnicas assim geradas constituindo uma linguagem.
Uma observação científica consiste, portanto, no registrar de um texto, formado pela
evolução dos estados da realidade. É nosso problema estabelecer critérios para evidenciar o
conteúdo gramatical do mesmo e o estabelecimento da dimensão semântica, esta última de
forma mais completa e objetiva do que a obtida pela construção de modelos muito simplificados
e técnicas formais otimizadas (como, por exemplo, o “método da máxima entropia”). Como
sugerido anteriormente, o que é implícito nesses objetivos é discutir o parâmetro complexidade,
muitas vezes justificadamente abandonado no nível da metodologia mas, que nem por isso,
deixa de comparecer (e de forma crescente) no mundo que tentamos conhecer.
Tendo em vista a distinção clássica entre sinal (formalmente uma função f(t)) e ruído
(uma outra função, n(t), nada transportando em informação) desejamos mostrar que a expressão
simples utilizada no estudo de diversos sinais, na forma
g(t) = f(t) + n(t)
oculta na verdade toda uma hierarquia de processos ditos estocásticos (como a citada por
Shannon (1975:46) para linguagens naturais humanas) classificáveis segundo seus conteúdos
gramaticais, estes últimos diversificados em um espectro variado de “vigor gramatical”. O
estabelecimento de tal espectro exige a utilização de parâmetros típicos da Teoria Geral de
Sistemas (diversidade, entropia, complexidade, integralidade, grau de organização, etc.).
Alguns estudos são conhecidos acerca de possíveis linguagens naturais associadas à
estrutura objetiva do mundo. Dentre estes, destacamos os desenvolvidos por Solomon Marcus,
quanto a possíveis estruturas gramaticais no código genético, na sintomatologia necessária ao
estabelecimento de diagnósticos médicos, etc. (Marcus, 1973 e 1974); a sugestão de evidências
de vínculos gramaticais delineados pelas técnicas aplicadas ao estudo de caos determinista, por
Prigogine (1990:112) assim como sua formulação da equação de evolução para estruturas
dissipativas, que embasa em termos físico-químicos a generalização da expressão de g(t),
generalização essa que talvez possa ser estendida a outros domínios ontológicos, como em
Jantsch (1976); a sugestão de ser o código genético um exemplo de objetividade da informação,
nas idéias de Ursul (1975) e as consequências das mesmas nos estudos citados de Marcus e em
desenvolvimentos mais modernos, como em Atlan (1990).
Os atuais desenvolvimentos científicos parecem apontar cada vez mais para um
Universo profundamente gramatical, um Texto Universal escrito ao longo do tempo e que tem
ocupado a capacidade humana quanto ao estabelecimento e decifração de códigos, em tudo o
que foi feito sob os nomes de Filosofia e Ciência, sem contar aqui as outras formas de
conhecimento. A idéia de tal gramaticalidade foi percebida segundo enfoques diversos, sendo o
mais conhecido na história da ciência aquele atribuído a Galileu, que via o livro da natureza
escrito em matemática (Ibri, 1992:29). Tentaremos, portanto, evidenciar alguns pequenos
aspectos dessas questões, que só agora recebem uma atenção adequada segundo a dimensão
semiótica.
III – Umwelt, Signo e Semiose
Para procurar acessar os textos originados pelo mundo objetivo, necessitamos realizar
observações metodológicamente planejadas. Observações, de maneira geral e em particular as
científicas, colocam grandes problemas, já demarcados pela Gnosiologia ou Teoria Geral do
Conhecimento. Ao longo de nossa evolução, conseguimos através de mecanismos de
extrasomatização expandir o domínio de nossos sentidos, ou como diria a Cibernética, dos
nossos transdutores, os dispositivos biológicos que permitem a codificação e mapeamento dos
aspectos da realidade em nosso corpo e, notadamente, cérebro, com a consequente geração de
nosso “universo particular” (Umwelt) na acepção de Jakob von Uexkull (1992). Se no passado
possuíamos olhos, ouvidos, nariz, etc., para a detecção de ondas eletromagnéticas, ondas
acústicas, moléculas em suspensão no ambiente, etc., agora já conseguimos gerar “olhos”
artificiais e otimizados (telescópios, microscópios, detetores de radiação infravermelha...),
“ouvidos” (amplificadores, equalizadores...), um “tato” bem mais sensível (sismógrafos e até
mesmo as atuais tentativas de construção de antenas gravitacionais...), ou seja, levamos ao
mundo todo um corpo e cérebro extrasomatizados e adequados à detecção de mudanças,
variações ou diferenças: “diferenças que fazem uma diferença constituem informação”
(Bateson, 1980:110).
Neste sentido, observar o mundo é notar e registrar diferenças, ler as mesmas, utilizá-las
como índices que exprimam o comportamento deste, buscar então uma adequação a essa leitura
que seja eficiente ou pelo menos promissora para garantir nossa permanência como sistemas
vivos. É importante frisar que o desenvolvimento de instrumentos científicos mais e mais
sofisticados não nos garante fugir de nossa “bolha” particular, o nosso “Umwelt”; o real
permanece inacessível, só podemos trabalhar signos e é desse trabalho que emergem signos
cada vez mais complexos, na medida em que mergulham na complexidade sugerida pelos
índices do real.
Na Gnosiologia (Vita, 1964), uma escola, o Ficcionalismo, enfatiza essa sequência de
processos como o surgimento urgente de uma forma de pragmatismo biológico, a necessidade
de adequação do sistema aberto vivo a um ambiente quase sempre hostil, o surgimento da
inteligência sob suas várias formas e, o que é importante, devido às escalas de tempo
necessárias para o desenvolvimento de estratégias de permanência, o emergir no sistema vivo da
capacidade de codificar e transcodificar as diferenças registradas e armazenadas no seu sistema
redutor central de informação (o sistema nervoso central para os seres mais evoluídos): as
diferenças ocorrendo no mundo são de natureza diversa daquelas ocorrendo em nosso sistema
nervoso central; o que há de comum entre elas é o “mapa” – o conjunto de relações, que gera
estrutura, quando isomórficas (Rosenblueth, 1970: 57). A noção aqui de isomorfia, é, segundo
esse autor, aquela de Hermann Weyl. Já Uexkull (1992) sugere uma homomorfia, etc.
Quanto mais um organismo conseguir gerar mapeamentos razoavelmente isomórficos
em relação ao ambiente, mais ele estará próximo dos “ideais de objetividade” e mais apto a
sobreviver. Nesse sentido, a evolução da Lógica e, na expansão feita por Peirce, da Semiótica,
mostra a necessidade do sistema humano de alta complexidade em saber lidar com aspectos de
seu ambiente também de alta complexidade, uma necessidade que até agora continua a fazer
sentido e pressão, para pelo menos alguns de nós. O pragmatismo biológico, imposto por
necessidades evolutivas, é assim o citado Ficcionalismo (ou como dito por Vaihinger, a filosofia
do “como se...”). Parece claro que o pragmatismo moderno é o resultado desta forma arcaica de
pragmatismo biológico.
Essas idéias mostram que o problema do conhecimento e sua consequência, a
necessidade da observação, é um aspecto da geração de interfaces entre sistemas abertos, ou
entre um sistema e seu ambiente. De maneira muito geral, podemos dizer que o domínio da
semiose (a ação do signo) humana é o domínio onde é gerada essa interface. Temos domínios
semiósicos do mundo objetivo, do ser vivo como organismo e o dessa interface, onde mais tarde
prevalecerá a semiose cultural. Os posicionamentos atuais quanto à concepção de semiose
encontram-se em debate: a tendência idealista, que restringe semiose ao reino do vivo, parece
ocupar uma posição mais difundida, da maioria. O que observamos é que lentamente nos
aproximamos do reconhecimento de processos de semiose em sistemas capazes de
autoorganização (Merrel, 1996; Santaella, 1992), envolvendo assim sistemas não vivos – o
debate, acreditamos, virá a elucidar com mais clareza a conceituação de “idealismo objetivo”
como citada nos textos peirceanos.
A consequência dos aspectos pragmáticos e ficcionalistas (a construção de ficções,
muitas vezes de forma consciente, para acessar a realidade) é o emergir do relativismo,
perspectivismo e fonomenalismo. Escolas típicas e associadas ao problema da possibilidade do
conhecimento, acompanham toda a atividade científica: o relativismo diz que o conhecimento
depende das circunstâncias em que é buscado e/ou obtido; o perspectivismo tenta superar o
relativismo admitindo que o mundo é visto segundo várias perspectivas, todas elas necessárias e
fundamentais (não necessitaríamos escolher uma, mas sim montar o quadro relativo à realidade
considerando a importância de todas); o fenomenalismo diz que só temos acesso ao fenômeno:
não podemos saber o que as coisas são, somente como manifestam-se (para uma apresentação
destas escolas, ver o texto citado, Vita, 1964).
O relativismo apresenta vários níveis, como o físico, o fisiológico, o psicológico; o
individual e o coletivo; o antropológico. Um cientista, sendo um indivíduo, é um processador de
conhecimentos imerso em circunstâncias várias e na maioria das vezes, distintas daquelas de
seus pares. A história de cada um, ou seja, o plano mundividente individual, já é o suficiente
para gerar diferentes visões de mundo, consequentemente diferentes imagens de mundo. Imerso
em sua solidão relativista, resta ao cientista acreditar que a sua visão, tanto quanto a do outro,
tem importância (algo muito mais fácil de dizer do que fazer). Se consegue admitir outras
visões, começa a fazer perspectivismo e a abrir caminho para o chamado “experimento
intersubjetivo”, que é na verdade só o que conseguimos fazer na busca da objetividade (a
interação entre os Umwelten) – a ciência torna-se conhecimento público, partilhado e apoiado
no consenso.
A questão do fenomenalismo, nitidamente kantiana, é um dos aspectos mais fortes na
atividade científica: observações nos aproximam de fenômenos associados a coisas e não a elas
mesmas. Sobre isso, transcreveremos a seguir um texto de Bunge (1976:719) que é bastante
esclarecedor:
“Há, desde logo, uma velha questão filosófica a respeito: a de se temos acesso a algo
que não seja fenomênico, ou seja, que não se apresente por si mesmo à nossa sensibilidade. Se
não admite mais planejamento que o estritamente empírico, então é óbvio que só os fenômenos
se consideram cognoscíveis; tal é a tese do fenomenismo ou fenomenalismo. Mas se admitimos
que também o pensamento desempenha um papel no conhecimento, além da vista, olfato, tato,
etc., então pode provar-se uma epistemologia mais ambiciosa, uma epistemologia que suponha
que a realidade – incluindo a experiencial – é cognoscível, embora só o seja parcial e
gradualmente: esta é a tese das várias classes de realismo. Segundo o fenomenalismo, o
objetivo da ciência é colecionar, descrever e sistematizar de modo econômico os fenômenos,
sem inventar objetos diafenomênicos ou transobservacionais. O realismo, pelo contrário,
sustém que tem que explicar-se à base de um mundo mais amplo, embora só cognoscível
indiretamente: o conjunto de todos os existentes. Para o realismo a experiência é uma classe de
fatos: cada experiência singular é um acontecimento que ocorre no sujeito conhecedor, o qual
se considera por sua vez um sistema concreto que tem expectativas e um acêrvo de
conhecimento com duas consequências: a deformação e o enriquecimento da experiência”.
Quando lemos “... sem inventar objetos...” encontramos uma referência ao ficcionalismo
já citado; quando encontramos os termos “deformação” e “enriquecimento”, temos referência ao
problema das codificações e mapeamentos, incompletos e dependentes das circunstâncias, mas
também ao poder que essas construções e invenções têm em apreender reflexos da objetividade
(a mediação sígnica; para ver a visão peirceana de permanência, existentes, realidade e regras
gerais, ver Ibri, 1992, cap. 2).
A postura apresentada por Morin (1986) quanto ao problema do fenomenalismo é um
exemplo de uma “epistemologia mais ambiciosa”: o fenômeno conecta dois sistemas, o sujeito e
seu ambiente e estes têm traços isomórficos, traços comuns, como admitido no conceito de
evolução. O ser humano, o sujeito, o observador, emergiu e evoluiu, afinal, no Universo que,
talvez por isso mesmo, tenha que conhecer. Ele é um produto deste Universo e em sua
organização encontra-se pelo menos parte ou pistas da organização universal (é nesse domínio
que devemos buscar criticar e expandir o conceito de semiose; os textos peirceanos sugerem que
tal conceito é mais amplo do que é sugerido por vários autores). O que difere o humano do
mundo físico e inanimado é a complexidade.
Quando um fenômeno emerge no mundo, traz em si marcas da fonte objetiva de origem;
ele é percebido e registrado por um sujeito, que possui em sua organização algo destas marcas,
uma vinculação de caráter indicial. O ambiente foi, de alguma maneira, pelo menos
parcialmente mapeado no observador (não estamos usando o termo “mapa” com o rigor
matemático necessário). Estudar a estrutura e a organização de um fenômeno é estudar estrutura
e organização do objeto e também a isomorfia existente com a estrutura e organização do
sujeito. Não é o sujeito que “cria” o mundo; ele foi criado pelo mundo e em contrapartida o cria
também – e um ciclo de semiose é fechado.
IV – Sobre a definição de Complexidade
Em toda a discussão feita, fica nítido que não temos, até o presente momento, uma
definição do seja a complexidade. Encontramos na literatura algumas definições, que expressam
afinal formas de complexidade mas não o conceito ontológico. Acreditamos que a Ontologia
Sistêmica (Bunge, 1977 e 1979) seja o cenário para a elaboração de tal definição.
Uma primeira visão dos parâmetros sistêmicos, carreadores da complexidade, talvez
possa nos dar uma pista na definição buscada: na composição, vemos que a diversidade é um
forte índice de complexidade. Se admitirmos que os parâmetros são interpenetrantes e
ontologicamente partilhando iso e homomorfias, podemos ver que a noção de diversidade está
presente em todos eles. Assim, na composição, diversidade na quantidade e nos tipos dos
elementos constituintes do sistema aumenta a complexidade; já a conectividade é a fonte de
conexões ou relações: sabemos que podemos ter complexidade no número de relações mas
também na diversidade das mesmas, inclusive em seus graus de importância, algo que adiante
aparecerá de maneira decisiva no conceito de integralidade. Desta grandeza, surgem a estrutura
e a coesão, sendo que esta última apresenta diversidade exatamente na importância das
conexões que mantêm o sistema coeso.
A integralidade surge com a emergência dos subsistemas, uma forma de diversidade
estrutural que aumenta a complexidade sistêmica. Por outro lado, a integralidade, ao permitir
um determinado subsistema satisfazendo a definição de Uyemov (1975: 96), permitirá também
a emergência de uma propriedade partilhada e, nos vários subsistemas, uma nova forma de
diversidade, associada às várias propriedades ou funções permitidas pela integralidade. Temos
assim a diversidade no número dos subsistemas, o que gera uma heterogeneidade redutora de
entropia e diversidade funcional. Mais uma vez o sistema total ganha em complexidade,
tornando-se realmente organizado.
Ou seja, vemos como a diversidade acompanha todos os parâmetros sistêmicos, o que é
típico da complexidade. Mas falar em diversidade é falar em diferença, a raiz objetiva da
informação. Falar em diferença acarreta a distinção entre homogeneidade e heterogeneidade, ou
seja, alta e baixa entropia. Vemos assim que o parâmetro livre complexidade manifesta-se por
crescimento e fluxos de informação, assim como por evolução do conteúdo de entropia do
sistema. Nesse sentido, os autores que associam entropia e complexidade chegam bem perto da
solução do problema, mas ontologicamente o aspecto mais fundamental é o da diversidade.
O que é assim sugerido é que devemos dizer que não é só a composição que exibe
quantidade, diversidade, informação e entropia: todos os parâmetros sistêmicos o fazem e essa é
a raiz e a portadora da complexidade. Uma questão lógica coloca-se ainda: a distinção entre
propriedades de indivíduo daquelas de conjunto. Dizer que um sistema é mais complexo do que
outro é fazer uma comparação por diferença, logo por ensembles. O mero fato de um indivíduo
exibir alguma forma de diversidade já o caracteriza como complexo? A propriedade de
indivíduo diria que ele é complexo; a coletiva ou de ensemble diria o quanto ele é complexo.
V - Complexidade e Teoria do Conhecimento
Uma possível ajuda em lidar com a complexidade seria a proposta de Bunge (1963):
teríamos duas formas de complexidade, a dita ontológica, que se refere à complexidade que
existe realmente nas coisas; e a semiótica, que consiste na complexidade de nossas
representações das coisas. É o que alguns autores tentam definir, no contexto das ciências da
computação, como sendo o “comprimento da lista de instruções de um algorítmo necessário na
resolução de um problema”. Sabemos que, na programação de computadores, um mesmo
problema com uma dificuldade intrínseca pode ser resolvido, em termos de sua programação,
por programas diversos em comprimento e eficácia lógica, o que depende do programador. A
linha que tenta definir complexidade desta maneira está ignorando a complexidade ontológica e
confundindo uma postura objetivista com aquelas subjetivistas ou idealistas.
Podemos assim distinguir dois problemas iniciais na tentativa de definir a
complexidade: primeiro, a distinção entre uma complexidade inerente ao observador e uma
complexidade que, ontologicamente, pertence ao mundo objetivo. O segundo problema segue-se
ao primeiro: o ser humano pode ter uma capacidade discursiva que foi evolutivamente
desenvolvida para lidar com sistemas complexos em certo nível de dificuldade. Pode ser, assim,
que a “verdadeira” complexidade seja por nós percebida na forma de conhecimento tácito,
aquele que não pode ser colocado nos discursos falado e escrito. Como uma definição é um
movimento intra linguístico, ou seja, é uma elaboração puramente linguística onde um termo é
expresso em termos de outros já definidos, é possível que características complexas dos
sistemas sejam percebidos e vividos por nós, mas fora do alcance de elaborações neocorticais.
De qualquer forma, podemos imaginar, segundo o item anterior, que a evolução adaptou
nossos cérebros a partir do fluxo de informação, logo de diferenças, logo de diversidade, do
ambiente em sua ação sobre nós. Ambientes mais ricos em diversidade vão exigir transdutores
semióticos mais sofisticados e finos, criando para os sistemas cognitivos a complexidade
semiótica ou subjetiva. A fonte do conhecimento tácito seria a estratégia, altamente sofisticada,
de mapear diversidade em nossos cérebros e mentes; ou seja, o tácito seria um código
notavelmente complexo que reflete níveis notavelmente complexos de uma realidade. Nesse
sentido, se chegamos a construir planos mentais complexos contendo dimensões axiológicas
várias, além de sentimentos e emoções, é porque essas representações representam algo do
mundo objetivo, o que é concordante com a semiótica de Peirce e também com sua metafísica
ou ontologia.
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