domingo, 6 de dezembro de 2015

Corporeidade, cognição e linguagem - Luiz Andrade; Beto Vianna; Liliane Reis

Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.15 no.3 Rio de Janeiro dez. 2010

 

Ensaio

Corporeidade, cognição e linguagem

Corporeity, cognition and linguage


Luiz Antonio AndradeI; Liliane Bels ReisII; Beto ViannaIII
I, IIUniversidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil;
IIIUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil



Resumo
Neste ensaio, propomos uma articulação entre os conceitos de corporeidade, cognição e linguagem, a partir de uma abordagem sistêmica tendo como principal referencial teórico as coerências explicativas da escola chilena da Biologia do Conhecer. Para tanto, tomamos como centrais as distinções entre o domínio da fisiologia e do comportamento, entre conhecer e conhecimento, propondo um conceito para este último, e entre domínio linguístico e linguagem, explicitando as consequências dessas distinções na descrição do viver e do humano. Dois resultados discerníveis desse imbrincamento dos conceitos, bem como das distinções propostas, são: a) a compreensão da cognição e dos processos relacionais co-ontogênicos (isto é, entre sistemas ontogênicos), tal como o domínio lingüístico), na dinâmica do vivo, em geral; e b) a compreensão do humano a partir de um modo de vida particular centrado na prática do linguajar e na co-construção do conhecimento. © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (3): 033-046.
Palavras-chave: cognição; conhecer; conhecimento; linguagem; epistemologia; biologia do conhecer.

Abstract
In this essay we propose a link between the concepts of embodiment, cognition and language, from the point of view of systems theory within the explanatory coherences of the Chilean school of Biology of Cognition. It is thus central to our discussion, the distinctions made between the domains of physiology and behavior, between knowing and knowledge, offering a concept for the last, and between the linguistic domain and language, making explicit the consequences of these distinctions in the description of the living and human beings. Two discernible results of this interweaving of concepts and the distinctions proposed are: a) the direct implication of knowing and the co-ontogenic relationships (i. e., between ontogenic systems), as it is the case of the linguistic domain, in the dynamics of the living in general; and b) to propose a distinction of the human being from a particular way of living based on the practice of languaging and the co-construction of knowledge. © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (3): 033-046.
Keywordscognition, knowing; knowledge; language; epistemology; biology of cognition.



Introdução
"Tu dizes eu e orgulhas-te desta palavra. Mas há qualquer coisa de maior, em que te recusas a acreditar, é o teu corpo e a sua grande razão; ele não diz Eu, mas procede como Eu." (Friedrich Nietzsche)
O principal objetivo deste ensaio é fazer uma articulação entre os termos anunciados - corporeidade, cognição e linguagem - para no final dialogar com a ideia expressa na epígrafe supracitada, de autoria do grande filósofo alemão Friedrich Nietzsche (2006: 39).
Apontado o objetivo e as questões para as quais dirigiremos nossa reflexão, iniciaremos por nos perguntar: o que é cognição?
Para o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (Ferreira, 1999), o termo cognição assume os dois sentidos principais: (A1) aquisição de um conhecimento e (A2) conhecimento, percepção. Estes mesmos sentidos aparecem também no "Merriam-Webster Dictionary" (1986) que considera cognição o "ato ou processo de conhecer, incluindo a consciência e o julgamento, e também o produto deste ato - o conhecimento (MW1).
Uma definição com maior abrangência nos é oferecida por Vieira (2001: 296) na Enciclopédia Einaudi. Assim, para este autor, a "cognição abrange um conjunto de processos que, integrados ao nível de centros nervosos, permitem a um organismo animal orientar o seu comportamento de forma adaptativa perante as variações do ambiente em que se situa".
Ainda que a definição supracitada incorpore uma parcela significativa da escala zoológica - os animais com centros nervosos - uma proposta ainda mais radical afirma que o conhecer pode ser extensivo à todos os seres vivos, à toda escala biológica, incluindo, portanto, os animais sem centros nervosos, os vegetais e mesmo os seres unicelulares, eucariotas e procariotas (Maturana e Varela, 1990).
Fica evidente que a afirmação proferida por estes últimos autores contraria, de uma só vez, o senso comum, o conteúdo dos dicionários e a ideia, já muito estabelecida, inclusive na academia, de que a cognição está associada às espécies dotadas de centros nervosos (em especial os organismos tradicionalmente conotados como "superiores" em uma escala que se aproxima do humano), ou, ainda, associada à razão e ao pensamento, atributos tradicionais de nossa própria espécie. Sendo assim, ao concordarmos que a cognição pode ser estendida à todos os seres vivos (Andrade e Silva, 2005a), somos convocados a propor uma boa justificativa para essa posição, que esperamos compartilhar com você, leitor, com o convite para que você também possa aceitá-la.
Como este ponto é fundamental para todo o raciocínio que faremos ao longo deste ensaio, apresentaremos os argumentos pausadamente, com muitos exemplos, esperando que eles se tornem claros e aceitáveis.

Sobre a cognição e o conhecer
Quando nos encontramos com a pergunta sobre o conhecer (ou sobre a cognição) na vida cotidiana, geralmente fazemos referência à conduta adequada de um organismo em face de um contexto, especificado por um observador ou por uma comunidade de observadores (Maturana, 2001). Senão vejamos:
Exemplo 1: um professor quer aferir o conhecer dos seus estudantes. O que ele faz? Resposta: especifica um contexto de teste (prova teórica e/ou prática) e avalia a conduta (escrita, oral, comportamental) dos estudantes em face do contexto especificado por ele (situação de teste).
Exemplo 2: um time contrata um jogador estrangeiro até então completamente desconhecido da torcida. O estádio está lotado. O que é que a torcida tem de observar para reconhecer se o novo jogador é bom (conhece, sabe) de bola? Resposta: analisa a sua conduta em face do contexto do jogo, entre as quatro linhas do gramado.
Note que, no primeiro exemplo, o observador é uma única pessoa e o seu julgamento poderá ser soberano, se não houver equívocos e/ou reclamações generalizas, caso em que poderá haver um questionamento por parte dos estudantes e, em certas situações, até a convocação de uma banca examinadora para referendar, ou não, a correção do professor. No exemplo 2, a comunidade de observadores é composta por milhares de pessoas, ou mesmo de milhões, se o jogo for televisionado e, portanto, o julgamento sobre o desempenho do jogador - se ele é ruim, razoável, bom ou craque - dependerá de vários fatores, dentre os quais: a atuação do atleta no campo, as condições do jogo e também o grau de conhecimento e exigência do observador e/ou da comunidade de observadores em termos da arte futebolística.
Tomando estes dois exemplos em conjunto, gostaríamos de ressaltar que o conhecer, enquanto comentário sobre uma conduta, é relativo e, portanto, quanto maior o número de observadores e de comentários, aumenta também a chance de ocorrer divergências.
Se os exemplos e a argumentação acima foi entendida e aceita, fica evidente que a questão sobre o conhecer passa, necessariamente, pelas experiências da vida cotidiana e, portanto, o que devemos explicar quando nos perguntamos sobre o conhecer é a experiência - o experienciar - e é prontamente isso que vincula a questão do conhecer à biologia. Essa vinculação tem sido enfatizada, de forma original, por alguns autores (Piaget, 1970, 1975; Maturana e Varela, 1997); no entanto, para o nosso propósito neste ensaio é suficiente que façamos a seguinte pergunta cognitiva: como o ser vivo se mantém vivo?
Como é evidente, a resposta para essa pergunta estará sempre vinculada à biologia, porque qualquer que seja o domínio especificado pelo observador, ele estará sempre fazendo uma referência ao viver e ao seguir vivendo de um ou outro organismo, em face de um contexto, de um nicho.
Nesta ótica, podemos ampliar a definição do conhecer para fora do âmbito humano e, assim, aceitar que todos os organismos vivos atuais possuem uma conduta adequada aos contextos (nichos) em que vivem e, portanto, estão em ato contínuo de conhecer o mundo em que vivem, justificando-se, assim, o aforismo "viver é conhecer", anunciado pelos neurobiólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (1990, 1997).
É precisamente este "se manter vivo", em acoplamento estrutural com o meio, que estamos conotando como o conhecer biológico. Ou seja, todo organismo vivo está, momento a momento, em ato contínuo do conhecer.
Assim, não devemos nos surpreender (exemplo 3) quando um pássaro mergulha para capturar um peixe abaixo da linha d'água e, mesmo sem conhecer a lei de refração de Snell (n.·senθ1 = n.·senθ2), é bem sucedido em seu empreendimento. E o peixe, que conhecia o mundo d'água, é interrompido bruscamente no seu ato contínuo de conhecer o mundo (d'água), perde o acoplamento estrutural com o seu meio e morre. Nesse caso, tanto o pássaro quanto o peixe conhecem o mundo em que vivem e podem morrer quando deixam de estar em ato contínuo de conhecer, isto é, quando perdem o acoplamento estrutural com o meio. Morre-se quando se deixa de saber viver. Morre-se quando se deixa de conhecer.
Ainda que, para muitos, parece uma heresia aceitar que os vegetais também conhecem o mundo em que vivem, argumentamos que o conhecer dos vegetais em seu nicho ecológico é uma situação isófora (da mesma forma) daquela relatada anteriormente sobre o professor com seus estudantes (ex. 1) ou da torcida em relação ao jogador (ex. 2). Ou seja, o que o observador aponta como o conhecer é sempre uma conduta adequada de um organismo em face de um contexto. É a partir deste entendimento que deveremos compreender os dizeres do grande naturalista Charles Darwin (2002) em sua obra clássica "A origem das espécies", de 1989quando ele comparou a extremidade das raízes das plantas com o sistema nervoso dos animais, apontando a capacidade das raízes de captar sinais do resto do corpo do vegetal e, com isto, direcionar os seus próprios movimentos. Destarte, se os vegetais também possuem uma conduta adequada ao contexto em que vivem há de se concluir que eles também conhecem o mundo em que vivem, mesmo que esta conduta seja mais difícil de ser observada, como o lento movimento das raízes, geralmente para baixo, o lento movimento das gavinhas, as mudanças na disposição angular das folhas, em resposta aos raios de sol, a abertura ou fechamento dos estômatos, em resposta ao calor, a produção de néctar e de substâncias que mimetizam a ação de feromônios de insetos, atraindo-os para si e garantindo o processo da polinização. Assim, a partir do conjunto de mudanças condutuais das plantas em face ao mundo que as cercam, advogamos que elas, assim como os outros entes biológicos que com elas constroem e compartilham a teia da vida, conhecem o mundo em que vivem.
E os seres unicelulares? Advogamos que eles também conhecem o mundo em que vivem. Há de se ressaltar que eles estão no planeta terra desde a origem da vida, estimada hoje em 3,8 bilhões de anos e, portanto, há mais tempo que a totalidade das espécies multicelulares. Além disto, os unicelulares apresentam grande diversidade biológica e um enorme número de estratégias bioquímicas para exploração de diferentes nichos ecológicos, incluindo lugares escaldantes, gelados, radioativos, ácidos ou básicos e ainda as profundezas do mar e da terra. Em estudos de possíveis cenários catastróficos, os microrganismos sempre levam vantagens em termos de sobrevivência. A título de exemplo, organismos como os estromatólitos apresentam-se em ato contínuo de conhecer o mundo em que vivem há bilhões de anos.
Há de se fazer agora uma distinção importante: enquanto os animais com centros nervosos diferenciados e complexos, como o de nossa própria espécie - H. Sapiens - podem apresentar um aprendizado relativamente rápido, cumulativo, transgeracional e cultural, o conhecer dos outros organismos vivos deriva-se, geralmente, de processos históricos longos. Assim, por exemplo, sabe-se, através de registros paleontológicos, que as interações cooperativas e/ou simbiônticas entre alguns insetos e as plantas com flores datam do Cretáceo, há cerca de 100 milhões de anos atrás (Dawkins, 2004). Mas mesmo assim, tanto os insetos, quanto as plantas, possuem uma história filogenética ainda muito mais remota. A este conhecer, produto desta longa história filogenética no planeta, denomina-se conhecer filogenético ou evolutivo (Vieira, 2001; Andrade e Silva, 2005b).
Haja vista que o conhecer e o conhecimento são usados, indistintamente, tanto pelos dicionários, quanto pela maioria dos autores para definir cognição, nós nos perguntamos: existe alguma distinção entre eles?

Sobre a distinção entre o conhecer e o conhecimento
Em artigo anterior (Andrade e Silva, 2005a), propusemos uma distinção entre o conhecer e o conhecimento que vai para além da simples diferença morfossintática destas duas palavras, verbo e substantivo, respectivamente. Ou seja, ainda que possamos afirmar que todos os organismos vivos são sistemas cognitivos e, portanto, capazes de conhecer o mundo em que vivem, não podemos afirmar, no entanto, que todos os organismos vivos são capazes de produzir conhecimento, haja vista que aquilo que nós chamamos de conhecimento não é um simples produto do conhecer mas, sobretudo, o produto advindo do processo sistemático do conhecer que inclui, além do produto advindo do conhecer, a referência à história do processo, ou seja, através das recursões linguísticas. Sendo o conhecimento um produto mediado pela linguagem, fica evidente também que é através das recursões linguísticas que se constroem os diferentes sistemas de conhecimento, tais quais: mito, religião, filosofia, ciência e a arte.
Se o conhecimento pode ser intermediado pela linguagem, como compreendê-lo no âmbito desta última?
Fizemos uma primeira aproximação à questão supracitada apontando o conhecimento como um meta-enredo que vai além dos "enredos explicativos e dos enredos fenomênicos" (Andrade e Silva, 2005a: 37).
Mas o que é um enredo explicativo? O que é uma explicação?
Como nos ensina Maturana (1997), uma explicação é a proposição de um mecanismo gerativo que, posto a operar (a funcionar), gera o fenômeno que se quer explicar.
Existem perguntas que pedem uma descrição e outras que pedem uma explicação. Por exemplo: Você gosta de chuva? Esta pergunta pede um juízo de valor, que pode conter uma descrição. Por outro lado, quando perguntamos: O que é a chuva? Porque chove? Estas perguntas pedem uma explicação. Ou seja, dentro da pergunta está embutido algo como: me dê um mecanismo que, posto a operar, gere o fenômeno que se quer explicar - a chuva.
Ao expandir este tipo de argumento em um trabalho recente (Andrade, 2010), chegamos a propor um conceito para conhecimento, a partir das seguintes considerações:
  • Considerando que o conhecimento é exclusivo do humano, concluímos que ele é um produto do conhecer cultural humano e, portanto, o adjetivo cultural, que demarca tanto as intermediações linguísticas, quanto a validação deste produto por uma comunidade de observadores, deva estar na definição conceitual de conhecimento;
  • Considerando que grande parte do conhecimento humano é:
  • constituído de enredos explicativos para enredos fenomênicos;
  • aceito por diferentes comunidades humanas, dependendo dos diferentes critérios de validação que estas mesmas comunidades humanas admitam em seu aceitar;
  • erigido em grandes sistemas (mitologia, religião, filosofia e ciência), a partir de (i) e de (ii),
Concluímos que os enredos explicativos e a aceitação dos mesmos por uma determinada comunidade devam estar contidos na definição conceitual de conhecimento.
Considerando que tanto o conhecimento filosófico quanto o científico não se restringem à produção de enredos explicativos e que a filosofia, mais do que a ciência, é a arte da produção de conceitos (Deleuze e Guattari, 1992), concluímos que as formulações conceituais devam constar da definição de conhecimento.
Considerando que o conhecimento humano é também expresso por produtos de ordem artística, tecnológica e científica, e que estes produtos podem ser abstratos ou concretos, criados ou recriados, concluímos que os mesmos também devam estar contidos na definição conceitual de conhecimento.
Assim, conhecimento é o resultado do conhecer cultural humano, expresso através de enredos explicativos para enredos fenomênicos e de formulações conceituais, estando também incluso neste gênero de produto os objetos artísticos, religiosos, filosóficos, tecnológicos e científicos, abstratos ou concretos, criados ou recriados, aceitos e utilizados por uma determinada comunidade humana.
Tendo afirmado que as recursões linguísticas são condições necessárias para a produção do conhecimento, expandiremos o nosso entendimento sobre a linguagem, tendo a Biologia do Conhecer como referencial teórico.

Relação corpo e linguagem nas ciências linguísticas
A pergunta sobre a relação entre corpo e linguagem é quase tão antiga quanto a própria consideração do fenômeno na linguagem no humano. Essa discussão de longa estirpe abrange, além da pergunta sobre as estruturas e processos anatômicos e fisiológicos envolvidos na produção e percepção dos sons da fala (uma tradição bem estabelecida na Índia, e não na Grécia, clássica). As estruturas e processos gerativos das regularidades que permitem, na linguagem, o que observamos e comentamos como "entendimento mútuo", assim como as palavras, as frases, o significado, o dizer e o modo de dizer sobre o mundo. Quando Platão propõe, há 2 mil anos, no Crátilo (1994), o debate sobre as palavras serem artifícios humanos ou relacionarem-se naturalmente às coisas, ele está perguntando, implicitamente, se há processos inerentes ao humano que dêem conta do fenômeno da significação ou da denotação (do apontar para as coisas do mundo).
À primeira vista, portanto, a problematização da relação entre corpo e linguagem parece ter que dar conta desses três elementos que surgem na descrição, tal como tradicionalmente colocado no pensamento ocidental: a) o fenômeno da linguagem, no qual observamos regularidades na descrição do mundo; b) corpos humanos que, de algum modo, produzem, permitem ou experimentam a linguagem; c) e um mundo situado fora desses corpos que é descrito, significado ou denotado pela linguagem e, portanto, direta ou indiretamente, por aqueles corpos que produzem, permitem ou experimentam a linguagem. Na perspectiva da inter-relação entre estes três elementos mencionados - corpo, linguagem e mundo - a pergunta sobre o entendimento mútuo dos seres humanos acerca do mundo através da linguagem é uma pergunta sobre a emergência do significado.
Em ciência linguística, aceita-se geralmente que o significado seja um aspecto do signo linguístico - pertinente, portanto, apenas ao universo do humano - que nos permite "selecionar um ou outro aspecto do mundo não-linguístico" (Trask, 2006: 265). Para que o significado cumpra o que promete, ele deve, ao mesmo tempo, denotar (apontar para algo no mundo) e ter sentido (relacionar-se com os demais signos de um sistema linguístico). Por exemplo, a palavra "humana" denota um ser no mundo com tais e tais propriedades consensualmente admitidas. E a palavra "humana" encerra os sentidos de membro de certa espécie biológica, ser feminino, ou pessoa sensível, na medida em que se relacione linguisticamente com termos como "ser vivo", "minha colega de trabalho", "humanitário", e assim por diante.
Essa abordagem do significado nos diz algo mais sobre a inter-relação entre corpo e linguagem. Ela nos diz que o mundo só é dado ao conhecimento do corpo pela linguagem (ou seja, é pela linguagem que o corpo tem acesso ao mundo). E, por outro lado, que corpo e mundo existem independente um do outro e ambos independente da linguagem, mesmo que não haja nenhum modo de se ter acesso ao mundo a não ser pela linguagem. O mundo seria, então, "um só", uma mesma realidade, ainda que, ao acessar o mundo pela linguagem, dois corpos (ou um corpo em momentos diferentes) possam experienciar mundos distintos (Eicheverria, 1994).
Mas como de dá, então, o fenômeno que observamos em que corpos individuais (seres humanos individuais) tenham o mesmo acesso ao mundo - acesso a um mesmo mundo - ou pelo menos experimentem uma regularidade na descrição desse mundo, permitindo-os conversar sobre esse mundo de modo mutuamente compreensível? As duas respostas tradicionais, em ciências linguísticas, para essa questão, é que a linguagem é universal no humano e, por outro lado, que a linguagem é específica da espécie humana. Ou seja, de algum modo (a resposta particular varia segundo determinadas linhas de pesquisa, escolas e correntes de pensamento) estamos naturalmente equipados para produzir, processar ou experienciar a linguagem de modo semelhante, enquanto membros da mesma espécie. Por exemplo, para a escola da gramática gerativa, uma das mais influentes em ciências linguísticas e ligada ao cognitivismo no contexto das ciências cognitivas, o processo gerativo básico da linguagem é a sintaxe: a manipulação de símbolos como um processo geneticamente disponível na constituição da arquitetura neural do humano que permite uma convergência do desenvolvimento linguístico de qualquer falante (ceteris paribus) em uma mesma comunidade de fala. Podemos hierarquizar esse domínio de explicações como no Esquema 1, abaixo:

Corpo > sintaxe > interação (linguagem)
Esquema 1 - Hierarquia do domínio de explicações lingüísticas.

Explicitando a hierarquia acima: a) o corpo humano possui tais e tais características anatômicas e fisiológicas universais e específicas da espécie; b) essas características universais produzem regularidades gerativas, como a sintaxe; c) finalmente, essas regularidades permitem a interação linguística entre os corpos humanos: o conversar, o apontar comum para as coisas do mundo.
Assim como acontece em muitas outras linhas investigativas da linguística, a gramática gerativa explica a linguagem aceitando, como princípio explicativo, que a linguagem é um produto do corpo, no caso mediado pela sintaxe. No caso da gramática gerativa, o mecanismo gerativo (a explicação) da linguagem é a sintaxe: um sistema de manipulação de símbolos embutido em nossa arquitetura neural. Outras explicações, de outras escolas, falam do envolvimento do cérebro na ação de denotar, de apontar para coisas do mundo. Outras, ainda, sobre a capacidade cognitiva de aprender a linguagem em correspondência com os fatos do mundo. Em um e outro caso, as regularidades encontradas na linguagem, seja a sintaxe ou os símbolos, ao mesmo tempo em que são produzidas ou aprendidas pelo corpo (humano), tornam-se o mecanismo que explica o fato de podermos conversar uns com os outros acerca do mundo.
O problema das abordagens supracitadas é que a relação entre corpo e linguagem não é explicitada, ainda que o corpo seja apontado como causando a linguagem: o corpo, aqui, é utilizado como um princípio explicativo. De onde vem a linguagem? Resposta: das regularidades (a sintaxe ou os símbolos). E de onde vêm as regularidades? De um corpo geneticamente dotado para produzir tais regularidades. Para nós, no entanto, a pergunta crucial sobre a linguagem é justamente entender como, dado um organismo vivo (que pode ser um ser humano), surge o fenômeno do conversar, do apontarmos juntos para as coisas. As relações entre a corporeidade, os domínios lingüísticos e o linguajar humano serão expandidas nos tópicos seguintes.

Relação corpo e linguagem na abordagem da Biologia do Conhecer
No contexto da escola chilena da Biologia do Conhecer (BC), uma abordagem sistêmica para a explicação do viver e do conhecer, um sistema vivo é uma organização autopoiética (Maturana e Varela, 1997). Isso faz referência à produção (poiesis), no curso do viver, dos próprios elementos que constituem, a cada momento, o sistema vivo. Em segundo lugar, esse sistema (assim como qualquer sistema passível de uma explicação científica), é um sistema determinado estruturalmente. Isso significa que tudo o que acontece com o sistema depende, a cada momento, de sua própria estrutura, e não, da instrução interna determinada pelas perturbações externas, ainda que as perturbações possam desencadear as mudanças internas, determinadas pela estrutura do organismo. Observar essa dinâmica organismo-meio nos permite dizer, enquanto observadores do processo, que o sistema muda, a cada momento, em congruência com a sua história de interações (Vianna, 2008). Ainda, dentro das coerências explicativas da BC, devemos fazer a distinção entre organização e estrutura. A organização é o sistema como um todo definido pela relação entre seus componentes: se a organização se perde, o sistema não existe mais enquanto sistema de um determinado tipo. A estrutura (a relação particular entre os componentes do sistema) pode variar sem perda da organização (Maturana e Varela, 1990). No caso do vivo, essa diferença entre estrutura e organização é crucial, pois o vivo é um sistema dinâmico, variando estruturalmente sem perder a organização, ou, seja, o vivo sofre contínuas mudanças estruturais com conservação da organização em toda a sua ontogenia, do nascimento até a morte, sem a perda da organização autopoiética (Maturana e Varela, 1990; Vianna e Gómez-Soriano, 2007).
Ao observar um sistema vivo, distinguimos dois domínios distintos, que não se intersectam operacionalmente (apesar de, como observadores, possamos apontar uma correspondência entre os dois): no domínio da fisiologia, observamos as relações particulares e dinâmicas entre os componentes do organismo; e, no domínio do comportamento, observamos o organismo, em sua totalidade, em interação com o meio (Maturana, 1997).
Como tanto o organismo quanto o meio são sistemas determinados estruturalmente, tudo o que acontece com cada um deles é determinado pelas respectivas estruturas de ambos e não pela instrução de um sobre o outro. No entanto, as modificações estruturais por que passa o organismo possuem uma correspondência histórica justamente com o curso de suas interações com o meio: o organismo irá mudar em congruência com as perturbações do meio, assim como o meio irá mudar, de forma correspondente, em acordo com as interações com o organismo. Esse processo de interações recorrentes do organismo em um meio é chamado por Maturana e Varela de acoplamento estrutural. Conservar o acoplamento estrutural com o meio é condição necessária para a conservação da autopoiese - organização a que pertence o ser vivo. A história ontogenética e filogenética em que o vivo se mantém em acoplamento estrutural com o meio, mudando a estrutura mas conservando a sua organização é denominado de deriva natural. Se mais de um organismo está envolvido, o processo como um todo é denominado de co-deriva natural (Maturana e Podozis, 1992).
No caso do observador descrever dois (ou mais) organismos em interações recorrentes, o olhar do observador estará direcionado para o sistema, como um todo, ou seja, aquele constituído pelos dois, ou mais, organismos e o entorno. Nos termos da BC, isso significa que suas respectivas organizações autopoiéticas são conservadas em coerência com a história das relações entre os dois sistemas vivos observados e referenciados. Veja que, operacionalmente, para o organismo, tudo o que existe são perturbações externas que ele irá tratar como perturbações de um, ou outro tipo, dependendo de sua própria estrutura interna. O organismo não distingue entre um meio inerte e um sistema vivo. Quem faz essa distinção somos nós, observadores, na descrição de um sistema em que podemos observar, ao mesmo tempo, o curso das interações e as mudanças estruturais do organismo ou dos organismos envolvidos.

Domínio linguístico e linguagem
O fato de ser preciso um observador para fazer a distinção entre fisiologia e comportamento não é secundário, mas crucial: isso significa que estamos levando em conta, na explicação, o fundamento biológico do linguajar, que é a coordenação de coordenação de ações em um domínio consensual. O observador é um organismo (no caso, um organismo humano), que diz aquilo que diz de acordo com a sua própria experiência, mas diz o que diz a outro observador, que irá escutá-lo a partir de uma história de interações (ou de uma mesma comunidade de conversações) e irá coordenar suas ações de forma correspondente à interação na linguagem.
A manutenção do acoplamento estrutural entre os organismos participantes de uma interação recursiva configura um domínio linguístico. Veja que, para haver um domínio linguístico, nos termos da BC, não é necessária a participação de um organismo humano na interação. Bastam coordenações de ações recursivas entre dois ou mais organismos em acoplamento estrutural co-ontogênico. Ainda, uma rede social pode ser formada como uma rede de interações consensuais e recursivas entre os membros de uma mesma comunidade de organismos. Nos termos da BC, o que é peculiar às interações humanas é que as próprias coordenações de ações co-ontogênicas, ou seja, o comportamento consensual, é utilizado como elemento para novas coordenações de ações. Linguagem são coordenações de coordenações condutuais consensuais. É como se desse uma volta sobre a volta, recursivamente, ou seja, incorporando continuamente a experiência e a criação da novidade (linguística), no rodar.
Ainda que, para a Biologia do Conhecer, seja possível que nós, seres humanos, possamos manter coordenações condutuais com outros organismos não-humanos (nossos animais domésticos, por exemplo), não vivemos com eles, ininterruptamente, na linguagem.
Veja que, para falar de domínio linguístico e de linguagem, aqui, não precisamos fazer referência a nenhum elemento tradicionalmente descrito como característico da fala humana. Nenhum som, gesto ou desenho particular pertence à linguagem. Da mesma forma, qualquer som, gesto ou desenho particular pode pertencer à linguagem, pois essa é definida historicamente. Se há recursão, se há consenso, se no curso da interação aquele som, gesto ou desenho é distinguido como um elemento na coordenação de coordenação de ações recursivas e consensuais, ele fará parte da linguagem na descrição do observador (Eicheverria, 1994). O mesmo se dá com outras regularidades percebidas na língua, como a sintaxe. A sintaxe só pode ser descrita como uma regularidade das interações linguísticas a partir do momento em que se tornem consensuais e recursivas. É preciso fazer referência à história, ao curso de interações, para se dizer que uma palavra pertence à linguagem. E como as interações linguísticas podem conformar uma comunidade de interações (como no caso humano), podemos dizer que as palavras são "nós" nessa rede de interações consensuais e recursivas.
Uma exigência na BC é que, em uma explicação mecanicista, é preciso distinguir entre um sistema e seus componentes, tratando-os como "unidades operacionalmente diferentes, que pertencem a conjuntos discretos que geram domínios fenomênicos que não se intersectam" (Maturana, 1997: 27). Isso é exatamente o que um observador faz quando distingue os componentes de um sistema vivo (a fisiologia) ou, de outro lado, o operar desse sistema em um meio (o comportamento). Assim, fisiologia e conduta são dois domínios diferentes, operacionalmente disjuntos e não podem ser confundidos, sob pena de cometer equívocos na descrição. Por exemplo, pode se falar que a memória depende da atividade das redes neurais, enquanto propriedade emergente desta rede, mas é um equivoco falar que a memória está guardada nos neurônios, haja vista que a memória pertence à relação do individuo (corpo) com o meio e não do sistema nervoso (domínio da fisiologia) diretamente com o meio externo. Afirmar isto seria um reducionismo. Se há redução fenomênica, a explicação pressupõe uma força vital (vitalismo) e não um mecanismo.
Nesta perspectiva, devemos também distinguir os elementos de uma interação linguística (os organismos e os sons, gestos ou desenhos utilizados na interação) e a própria interação. Nenhum elemento do organismo é responsável por "produzir" linguagem, pois a linguagem está no domínio interpessoal e não pode, portanto, ser reduzida à fisiologia do organismo, sob pena de um equívoco reducionista. Da mesma forma, nenhuma palavra (sons, gestos ou desenhos) ou gramática pode ser colocada em uma posição gerativa da linguagem, justamente por dependerem do consenso para surgirem. As palavras e a gramática já fazem parte da descrição da linguagem no momento em que esses elementos são descritos como uma parte dela.
Destarte, o modo de vida humano surge e se conserva na linguagem como modo de conservar sua organização. Para Maturana (1997: 168) o humano vive nesse "fluir de interações recorrentes". E como a fisiologia muda em congruência com a história das interações do organismo, devemos esperar uma correspondência estrutural do organismo humano com o curso de suas interações na linguagem. Do mesmo modo, ao falarmos do processo de denotação, de apontar para um mundo lá fora com nossas palavras, não precisamos fazer referência nem a uma constituição cognitiva prévia do humano (pois esse é um domínio que não se intersecta com o domínio comportamental), e nem a uma realidade "informativa" lá fora (pois tudo o que acontece com o organismo é determinado, nele, estruturalmente). Falamos da denotação como se estivéssemos apontando para um mundo prévio lá fora, mas tudo o que estamos fazendo, de fato, é coordenando nossas ações com outros observadores.
Assim, a denotação, como afirma Maturana (1997: 150) "não é uma operação primitiva. Ela requer concordância - consenso - para a especificação, tanto do denotante, quanto do denotado. Se a denotação, portanto, não é primitiva, não pode ser tampouco uma operação linguística primitiva".
Se denotação não é uma operação primitiva, não é preciso fazer referência a uma realidade externa "intermediada" pela linguagem. De fato, apontamos (descrevemos) consensualmente para objetos do mundo e é na descrição desse apontar para os objetos, de modo consensual, que surge, ao mesmo tempo, a denotação e os objetos que trazemos à mão no linguajar. A linguagem é um espaço de relações em que nos movemos e é neste mover recursivo na linguagem que surgem tanto o ato de observar quanto o próprio observador.

Domínio linguístico e linguagem não-humana
Iniciaremos este tópico fazendo uma pergunta provocativa, qual seja: é possível falar em linguagem não-humana?
Ainda que a BC não utilize o termo "linguagem" para as interações recorrentes não-humanas, nesse domínio explicativo podemos, pelo menos, tratar essas interações de modo bem diferente das abordagens tradicionais da psicologia comparada e da etologia.
O bonobo (Pan paniscus) Kanzi é a estrela nas pesquisas com linguagem símia, ou linguagem não-humana, da psicologia comparada. Kanzi comunica-se, basicamente, através de um teclado de "lexigramas", símbolos criados na década de 70 para experimentos em linguagem símia mas que, posteriormente, foram utilizados também para o trabalho com crianças humanas autistas. Kanzi estava sempre por perto durante o treinamento de sua mãe adotiva, Matata, e foi observado utilizando o teclado algumas vezes. No dia seguinte à saída de Matata do experimento (para fins de procriação) houve a primeira tentativa de treinamento formal de Kanzi. Nesse primeiro dia de aula, Kanzi utilizou o teclado de lexigramas 120 vezes, sem ter sido requisitado a fazê-lo. Comunicou-se fluentemente com a pesquisadora Sue Savage-Rumbaugh através dos lexigramas e, segundo a investigadora, sabia o que os símbolos significavam (Savage-Rumbaugh e Lewin, 1994).
A carreira de Kanzi prossegue (ainda hoje) com outras conquistas linguísticas e cognitivas tão reveladoras quanto seu desempenho precoce com os lexigramas. Kanzi desenvolveu um repertório vocal próprio e controlado, utilizado em seus processos interacionais com humanos e outros símios, além da compreensão do inglês falado. Muito da admiração pelo desempenho de Kanzi vem de sua manipulação de símbolos equivalentes àqueles utilizados num contexto humano, e ações igualmente apropriadas para o observador humano (é justamente o desempenhar de "ações apropriadas" o que nos leva a dizer, ao observar a performance de Kanzi, que o que ele faz é linguagem). Pensamos, no entanto, que o dado mais fundamental da ontogenia de Kanzi, que nos leva a apontá-lo como um ser linguístico, foram seus processos relacionais. Os modos de aquisição linguística de Kanzi, ao menos inicialmente, não eram parte de um experimento formal, mas o resultado da relação co-ontogênica estabelecida com a mãe e os cuidadores humanos e da relação ecológica estabelecida com atividades, palavras e objetos ligados à investigação, cruciais para Kanzi oferecer respostas linguísticas consideradas adequadas por seus investigadores, independente do ceticismo do restante da comunidade científica. No caso de Kanzi, e nos termos da BC, podemos dizer que esse organismo, pelo menos nos momentos em que ele coordena, junto com os investigadores, ações consensuais coordenadas, está na linguagem com os observadores humanos. Frans de Wall (2007) relata vários exemplos dessas recursões linguísticas de bonobos com humanos em seu livro intitulado "Eu, primata".
Outro caso interessante, que talvez não diga respeito à linguagem (nos termos da BC) mas, ao menos, às coordenações recursivas que conformam um domínio linguístico, é o do cavalo Clever Hans (Candland, 1993).
Em 1980, Thomas Sebeok organizou, sob os auspícios da New York Academy of Sciences, um Congresso intitulado "The Clever Hans Phenomenon: Communication with Horses, Whales, Apes and People" (Candland, 1993). O propósito político do congresso foi muito mais discernível que seu conteúdo científico, a começar pelo título: o "fenômeno Clever Hans", cuja simples menção é suficiente para lançar suspeitas sobre qualquer pesquisa em linguagem não-humana.
O cavalo Clever Hans mobilizou vários estudiosos, no início do século XX, para entender como esse animal, além de compreender alemão falado, respondia corretamente às perguntas feitas, batendo os cascos no chão ou realizando outros movimentos corporais. Em 1904 foi constituida uma comissão reunindo zoólogos, professores, donos de circo e até militares para avaliar o fenômeno. Os membros da comissão investigavam a possibilidade de truques, principalmente pistas não-verbais dadas por seu cuidador, Wilhem Von Osten, mas chegaram à conclusão que, apesar de não ser possível avaliar a inteligência de Clever Hans, nenhum truque podia ser detectado. O psicólogo Oskar Pfungst (aluno de Carl Stumpf, membro da Comissão) continuou os estudos com Hans, e, por meio de engenhosos experimentos, formulou a hipótese de que o cavalo, por algum meio não compreendido, era capaz de detectar mudanças comportamentais na audiência, iniciando ou completando seus próprios movimentos indicativos da resposta (Candland, 1993).
Se a história investigativa do cavalo Clever Hans é admirável, o mito Clever Hans atingiu uma dimensão científica bem maior, alimentado igualmente por opositores e defensores dos estudos em linguagem não-humana. Segundo esse mito bem difundido, Pfungst "desvendou a farsa", demonstrando que Clever Hans não era nem inteligente nem linguístico, mas um animal induzido por pistas inadvertidas de Van Osten e outros membros da audiência. Para os pesquisadores em linguagem não-humana, portanto, o desafio é demonstrar, para a comunidade acadêmica, que a própria pesquisa não sofre o "efeito Clever Hans": seus sujeitos não recebem pistas não-verbais dos investigadores humanos. Mas será possível isolar experimentalmente, na linguagem, o símbolo dos processos gerativos desse símbolo?
Pfungst demonstrou algo que, para nós, é mais fundamental que um conhecimento "denotativo" ou "simbólico" de Clever Hans. Talvez por sua vivência co-ontogênica com o tratador, talvez por ser um organismo particularmente orientado para as ações humanas, o cavalo foi capaz de coordenar suas ações com as ações humanas. E, estando ou não na linguagem (na condição de observador), Clever Hans foi capaz de transformar suas coordenações de ações em palavras - em nós na rede conversacional - para a audiência humana. Para os observadores, naquele momento, Clever Hans estava dizendo algo.

A emergência da autoconsciência e a epigrafe de Nietzsche
Mesmo reconhecendo que termos como consciência e autoconsciência são polissêmicos e que os seus significados dependem do referencial teórico a partir do qual se fala e que, mesmo dentro de uma mesma teoria, ainda assim, eles podem ser matéria de intensos debates (Searle, 1998), vamos primeiramente nos posicionar e explicitar o que estamos denominando com a expressão "emergência da autoconsciência".
Assim, o que estamos conotando como emergência da autoconsciência ou auto-reflexividade é somente a capacidade do homem de fazer referência a si e ao mundo com o qual interage, utilizando o corpo e as recursões linguísticas.
Acreditamos que a dificuldade de compreender a autoconsciência como um fenômeno imanente, particular ao viver biológico humano, reside no fato de termos de encontrar o mecanismo pelo qual somos capazes de distinguir a nós mesmos, como se fossemos entidades independentes de nosso próprio viver, e, ao mesmo tempo, de especificarmos um eu que nos habita e que, portanto, é dependente de nossa biologia.
Este aparente paradoxo pode ser resolvido se aceitarmos que a operação de autoconsciência é uma distinção reflexiva de um "eu" forjado na linguagem, de tal forma que este eu não somente constitui o corpo que surge na distinção, mas também que este eu pode ser referenciado, como uma abstração, no fluir da rede linguística.
Para tornar mais claro este argumento, desdobraremos a questão em duas perguntas, quais sejam: 1- Como este eu, corpóreo e abstrato, é capaz de fazer referência ao mundo e se auto-referenciar, ou seja, como nos tornamos observadores? 2- Como os laços da rede linguística, que nos liga uns aos outros e ao mundo, mesmo se mantendo na exterioridade de nossa corporeidade, nas franjas das relações interpessoais, cria em nós o que, em nós, é tão intimo - a autoconsciência?
Vamos tentar responder estas duas perguntas e esperamos que, ao final, tenhamos explicado nossa indagação inicial, qual seja: como nos tornamos autoconscientes no devir?
Cônscios de que toda explicação exige tanto uma condição formal, mecanismo gerativo, quanto uma informal, aceitabilidade, convidamos o leitor para participar conosco da formulação de um mecanismo gerativo para a autoconsciência. Antes, porém, faremos uma solicitação, sem a qual será impossível caminharmos juntos: é indispensável romper com a crença de que representamos os objetos que estão no mundo em nossa mente, como um espelho.
A razão de nosso alerta e de nossa controversa advém do fato de que tanto a célula nervosa quanto o sistema nervoso, como um todo, é sensível somente à intensidade dos sinais químicos de seu próprio modo de operar e, portanto, não podem captar e processar informações ou qualidades do mundo lá fora, como música, cheiro, sabor, cores, etc. Ou seja, não há uma correspondência, ponto a ponto, do que acreditamos ser o mundo lá fora com o que acreditamos ser o mundo de dentro - nossa mente. Somente para se ter uma ideia da ordem de grandeza e do diferencial que separa estes dois mundos, para os duzentos ou trezentos milhões de receptores sensoriais, há cerca de dez bilhões de sinapses no sistema nervoso, sugerindo que as dinâmicas internas de nosso próprio organismo, ao se entrecruzarem com as perturbações advindas do meio externo, participam na criação interna do que o organismo "vê", "sente" e nomeia, tais como cores, sons e sensações (Von Foster, 1994).
Quais as consequências desse entendimento para nossa discussão?
A consequência mais fundamental é a de que o mundo lá fora, com os seus objetos e acontecimentos, não pré-existem ao observador, pois que eles não são entidades primárias ao ato de observar e, portanto, independentes da biologia do observador. As características que supostamente são dadas às coisas mostram-se também como características do observador. As cores não estão lá fora, independentes de nossa biologia, mas também não estão cá dentro, independentes de nosso mundo cultural. Se isso é assim, nega-se tanto o realismo de um mundo predeterminado que o organismo é capaz de representar quanto o idealismo que toma a percepção como uma projeção de um mundo interno predeterminado (Varela et al. 2003).
É com essa dupla negação que se diz que os objetos não antecedem à distinção que deles é feita pelo observador. Os objetos surgem na práxis do viver do observador e o que é essa práxis do viver humano senão as coordenações de coordenações de ações que realizamos em nosso cotidiano?
Seguindo esta linha de raciocínio, o observar surge no domínio das coerências experienciais inerentes ao próprio viver. Ao darmos ênfase ao processo, deslocamos a posição do observador de ente corporificado para ente operacional.
Se o leitor aceitou que é impossível a este ente operacional fazer referência a algo fora de seu domínio de experiências, fora de sua própria história, deduz-se que os objetos, o corpo e suas partes e, por extensão, o próprio "eu", surgem no operar das coordenações de coordenações condutuais consensuais, ou seja, na linguagem. É importante notar que, embora enclausurados em nossa própria biologia, nós só nos tornamos observadores na presença do outro, ao partilharmos do processo recursivo e transgeracional que é o viver na linguagem.
O importante é que nós repetimos esse processo conservado transgeracionalmente em cada ontogenia. Assim, quando nascemos e nos inserimos no mundo através das primeiras triangulações criadas pelo apontar da mãe, no sentido lato deste termo, para um objeto, que pode ser o nosso corpo ou parte dele, já estamos na linguagem.
A necessidade do outro, fundado na relação, já nos coloca frente ao desafio de responder à segunda questão anteriormente formulada, qual seja: como os laços de uma rede linguística podem criar em nós o que, em nós, é tão intimo - a autoconsciência?
A Biologia do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode ser entendido como uma co-emergência da experiência de um mundo vivido e da identidade do eu vivente (Varela et al, 2003). No entanto, há de se fazer uma ressalva: a experiência é claramente um evento pessoal, mas isso não significa que seja um evento privado, no sentido de algum tipo de sujeito isolado que caiu de pára-quedas sobre um mundo objetivo previamente dado. Se aceitarmos a ressalva que a experiência é tanto um evento pessoal, porque necessariamente auto-referencial, mas também coletivo, porque necessariamente relacional, poderemos compreender o surgimento de seres vivos capazes de fazer referência ao mundo e se auto-referenciar, sem termos de apelar para uma transcendência ou para a imanência de um suposto "eu", independente e centro desta vivência (Varela et al., 2003).
Seria este o entendimento de Nietzsche (que nós recusamos a acreditar): o corpo que procede como um "eu", sem precisar falar!

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Notas
Luiz Antonio Andrade
E-mail para correspondência: labauff@yahoo.com.br.

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