Acordo fora de mim
como há tempos não fazia
Acordo claro, de todo,
acordo com toda a vida,
com todos cinco sentidos
e sobretudo com a vista
que dentro desta prisão
para mim não existia.
Acordo fora de mim
como vida apodrecida.
Acordar não é de dentro,
acordar é ter saída.
Acordar é reacordar-se
ao que em nosso redor gira.
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
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Mia Couto - Aula Magna UFRGS - 2014 (trechos)
https://www.youtube.com/watch?v=IZtc11Bn0M0&feature=youtu.be&t=5m5s
"O importante não é onde moramos, mas onde em nós a casa mora"
"E o que restou deste encantamento que me roubava do mundo foi essa memória, que mesmo sendo ilusória, é a grande verdade que eu mantenho e na qual eu me converto em escritor: Sou filho de imigrantes, mas sou sobretudo filho de histórias"
"De que vale ter memórias, se o que eu mais vivi foi o que nunca se passou?"
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Não vim aqui para lhes transmitir ideias sob uma posição professoral.
O que vou tentar fazer é transmitir vivências. Vivencias onde o tempo tomou posse de mim e eu vivi esses momentos como se o verbo viver, não fosse um verbo suficiente, não fosse bastante. Essas lembranças destes tempos habitam hoje como se fossem sonhos. Como se fossem os únicos sonhos a que eu tenho acesso. E aí, acho que cheguei a entender uma coisa: não somos nós que guardamos lembranças. É o contrário: as lembranças é que nos guardam.
Essas coisas que são as memórias, que parecem etéreas e fragmentadas, elas são uma costureira que constrói, que tece, essa totalidade que é a nossa alma.
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O que falamos dos nossos sonhos são reelaborações feitas ao mesmo tempo que revisitamos esses sonhos. Reescrevemos aquilo que pensamos ter sonhado; porque afinal, nenhum sonho pode ser descrito.
O sonho pede uma linguagem que não há; que é a linguagem dos sonhos.
E aí, só a poesia pode entreabrir essa porta...
Estou falando do sonho porque o sonho é um parente próximo, muito próximo, da memória.
Os sonhos só existem na impossível lembrança que temos deles. Ninguém se lembra exatamente do que sonhou, porque em grande parte todos nós sonhamos o que lembramos.
Tal como os sonhos, não existem fatos (como vulgarmente os chamamos).
Existem vivências, que criam uma ideia da realidade, que são como impressões digitais que inventam o resto do dedo. Os chamados "fatos" precisam se converter em histórias, para que a memória os adote como uma coisa sua. As memórias e as histórias são duas margens liquidas de um mesmo rio que é o nosso tempo interior.
Portanto, eu estou falando do tempo; de uma ideia de tempo, de um tempo que foi meu e em mim se semeou como uma certeza.
Nós somos muito amarrados a um tempo linear que não é o que se passa em Moçambique. Lá o futuro e o passado se enlaçam.
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Quando eu era menino, meu pai me dizia como uma profecia: "Estuda para ser alguém".
Era isso que meu pai me dizia quando eu era menino. Mas quando meu pai falava assim, ele não falava diretamente comigo, ele falava com o futuro.
E nesse tempo havia um futuro que escutava, um futuro que falava a nossa língua, e que estava ali a nossa disposição. Porque era um tempo em que o futuro era uma fé, uma espécie de aposta, de sacrifício, um valor de investimento...
Houve alguma coisa que se passou que nos roubou essa ideia do futuro como um aconchego familiar. Essa mesma coisa não só roubou o futuro, mas rasgou-nos do passado, como se o passado fosse uma coisa desvalida.
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Uma dia desses eu passeava com um dos meus netos, e derrepente uma cobra atravessou o nosso caminho. O menino não ficou muito assustado e disse-me uma coisa extraordinária... Apontou a cobra e disse: " Olha esse bicho que só tem pescoço!". Bom, isso é poesia né... isso é poesia pura.
Então, acho que o tempo é hoje um bicho que só tem pescoço: comeram-lhe a cabeça e arrancaram-lhe a cauda. E essa dupla amputação, foi praticada por isso que nós chamamos de "sociedade do efêmero". Nela, tudo o que nasce, já nasce transitório, já nasce morrendo, à espera da ultima versão, de algo mais leve, de algo mais veloz, mais atualizado. Nós estamos correndo uma espécie de corrida infrutífera para não ficarmos desatualizados. Então, vivemos nesse tempo em que tudo é simultâneo, tudo é imediato, tudo é voraz, tudo é volátil.
Mas, como isso aconteceu?
Eu acho que foi uma coisa que se chama de "mercado" (que é um nome terrível por não ter rosto). Esse mercado impôs-nos um outro tempo: um tempo do consumo, um tempo que se consome a si próprio e consome a nós mesmos.
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Nós lamentamos sempre que não temos tempo.
As vezes me perguntam "como é que você escreve?".
[ Porque eu trabalho, e tenho horário de trabalho. ]
Mas eu acho que nós não precisamos de mais tempo. Nós precisamos de um tempo que seja nosso. Portanto não é uma questão de quantidade, é uma questão de soberania. E nesse tempo que seja nosso, nós temos que encontrar a intimidade com as coisas que nos sejam próximas. Com as pessoas que nós amamos. E isso pede uma lentidão, um tempo próprio.
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Hoje em dia há a impressão de que quando estamos vivendo almo muito intenso, em família por exemplo, a primeira preocupação não é viver isso de uma maneira completamente aberta e disponível, mas sim registrar o acontecimento em uma imagem, em uma fotografia, em um vídeo.
Quando eu estou em casa em família e acontece uma coisa extraordinária, há sempre uma voz que se levanta e diz: "Alguém está gravando isso?"
Eu não quero fazer apologia a uma espécie de regressão nostálgica. É obvio que estas tecnologias têm suas vantagens. Mas a questão é saber se nós continuamos a ser sujeitos, autores dessa narrativa que é a nossa própria vida.
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Essas lembranças que compartilhei aqui não são uma coisa do passado. Foi nesse passado que eu carreguei minha alma do futuro, que eu investi. E falei desses episódios porque acho que neles estão um ideário, uma espécie de um programa que eu tenho naquilo que é a minha intervenção cívica. Porque eu lembro as histórias que meus pais contavam, a casa em que eu vivia, a cozinha em que eu fui menino e a rua em que eu fui mundo. E é como se isso me desse uma relação em que eu peço ao mundo que ele tenha sempre um rosto, um nome, uma voz.
Essas lembranças fazem pensar como é importante nós restituirmos essa presença corporal quando contamos histórias as crianças.
Eu não nego que as crianças tenham essa relação com a máquina que conta histórias, com a televisão, com o tablet, com o computador...
Mas essas máquinas não podem ser as únicas exclusivas contadoras de histórias. É preciso que regressemos e re-humanizemos esse momento em que nós estamos com a presença física, com esse afeto que só pode ser trazido com a presença corporal, e que torna esse momento mais único e irrepetível. (Com os nossos pais a gente não pode voltar a trás com o controle remoto...)
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Eu acredito no poder das histórias. Eu acredito que as histórias não salvam o mundo, mas elas podem incutir o desejo da utopia e de um mundo em mudança.
A gente pensa que contar histórias é uma competência dos escritores, mas não é. Todos nós somos produtores e somos produtos de pequenas histórias. Essas histórias devolvem-nos o encantamento da infância, afastam o medo e reiniciam o mundo. E mais do que reiniciar o mundo, elas criam um mundo em estado de infância (um mundo que está ainda nascendo). E por isso, mais que tudo, o próprio passado pode estar ainda nascendo.
E a nós, compete cumprir aquilo que profetizou o poeta João Cabral de Melo Neto quando ele diz: é preciso acordar,
Acordar para ter saída, dentro e fora das nossas vidas.
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