Eduardo Giannetti da Fonseca:
Caetano, acho que tem uma trilha. Eu queria arriscar uma generalização... Eu te ouço desde 1978, encontrei realmente o seu trabalho em 78, quando saiu o LP Muito. E, de lá para cá, estou acompanhando com muita intensidade. Gosto muito do seu trabalho! E identifico uma trilha que aparece no seu trabalho, que eu gostaria de arriscar aqui e ouvir o que você pensa disso. Acho que, de um lado, você defende a conquista de uma ordem civilizada no Brasil. No trânsito, na política, na economia que a nossa convivência pública seja bem ordenada e seja civilizada. Isso é muito presente, é muito forte, é muito contínuo. De outro lado, você também defende o nosso coração iorubá [de origem africana], a nossa alegria de viver, a nossa espontaneidade. Essa alegria espontânea que brota do fundo do fundo da nossa alma brasileira. E acho que a grande utopia que você coloca para todo nós é combinar essas duas coisas. Conquistar a civilização, mas não perder o que nós temos de melhor, que é essa grande alegria, essa grande espontaneidade, essa alma iorubá, selvagem, índia que está em todos nós. Acho o seguinte, Caetano: será que essas duas coisas podem ser combinadas? Será que alguém vai conseguir juntar uma coisa sem perder a outra? Temo que a civilização entristeça a alma humana. [risos] E nenhum povo conseguiu escapar disso! E nós, no Brasil, resistimos muito a isso. Acho que a grande utopia, os "trópicos utópicos" que vejo em você é exatamente na busca dessa fusão. Você refaz essa fusão na sua arte e eu acho que, na arte, a equação se fecha. Na vida prática, não vejo como fechar essas duas coisas e acho que, à medida que o Brasil se civiliza, infelizmente nós vamos perder, aos poucos, essa alegria, essa vitalidade emocional, essa coisa fantástica que ainda está viva.
Caetano Veloso: Bom, isso aí...
[risos]
Eduardo Giannetti da Fonseca: Desculpa, é uma pergunta pesada, mas me preparei muito tempo para fazer! [risos]
Caetano Veloso: A sua pergunta, para mim, não precisa de resposta! Não precisa de resposta. Gostei imensamente do modo como você formulou. E acho que ela, de uma certa forma, abrange – posso dizer mesmo – a totalidade dos meus interesses. [risos] Pelo menos dos meus interesses que podem ser tornados, ou precisam ser, tornados públicos. Acho que você tocou num ponto que é fundamental! Mas a minha ambição talvez seja ligeiramente maior do que a própria questão da fusão, entendeu? A minha ambição seria a de tomar posse da civilização, porque acho que há dados universais ligados à convivência social. E acho que são dados definitivos e que esses dados devem ser compartilhados por todos os seres humanos, que devem se colocar na posição de poder compartilhá-los. Agora, quando você lê esse livro, Trust, daquele americano [Francis] Fukuyama [ver entrevista com Fukuyma no Roda Viva], em que ele diz que os Estados Unidos, ao invés de serem vistos como um país onde, abstratamente, os direitos universais se procuraram implantar, devem voltar a ser vistos como um país que tem uma determinada cultura e que é justamente por ter esse tipo de cultura, que ele foi um país capaz de desenvolver tão bem as garantias das liberdades, do respeito ao ser humano etc. E, no entanto, penso que... Naturalmente, aquele livro tem uma porção de coisas que são suspeitas. Eu o citei porque, de uma certa forma, ele é um oposto simétrico de algo que está na sua pergunta e que eu gostaria que estivesse no modo como estou respondendo! [risos] Na verdade, a minha ambição seria de fazer com que uma cultura como a nossa, que está – sob todos os pontos de vista – como que jogada fora da área de dominação, das vantagens da civilização moderna, porque está no hemisfério sul, porque é mestiça, porque fala português, não apenas uma língua latina do sul da Europa, mas justamente o português, a menos prestigiada de todas elas, entendeu? Enfim... Um país pobre e, sobretudo, injusto socialmente. Então, todas essas desvantagens, de uma certa forma, deveriam criar em nós uma mera depressão em relação à perspectiva histórica, em relação a prospecções. E, no entanto, a gente tem alguma coisa de alegria e de entendimento da vida, alguma riqueza no modo de ser, que é perceptível, inclusive, para os estrangeiros, que diversas vezes se manifestam a respeito do que eles percebem de interessante, de sugestivo no modo de ser do Brasil e dos brasileiros. E isso, que é um dado cultural, que não é... Como é que vou dizer? Não é um valor universal, abstrato. É um dado cultural, qualitativo do nosso modo de ser, que é do que você está falando. O que desejo não é que isso seja possivelmente fundido com o que você e nós chamamos de civilização. Acho que o que desejo mesmo é que esse nosso modo de ser tome conta, tome em suas mãos os dados abstratos, universais da civilização e faça deles algo que não tenham feito ainda, entendeu? Então, é uma ambição grande demais. Naturalmente, faço muitos papéis ridículos por causa disso. Mas por outro lado... [risos]
Eduardo Giannetti da Fonseca: Discordo! [risos]
Caetano Veloso: Mas é verdade, faço! Faço outros papéis ridículos por outras razões. Mas, por isso, muitas vezes, sem dúvida. Mas o fato é que minha ambição... Uma vez, escrevi um negócio para falar lá no Rio [de Janeiro], uma coisa que me pediram para escrever sobre o terceiro milênio... Foram o Antônio Cícero e o Wally Salomão que me pediram para escrever. E falei lá no Museu de Arte Moderna, li o texto que tinha escrito, era um pouco longo, mas, enfim, eu o li todo! [risos] E ali eu dizia que há quem diga que, em 64, se não houvesse o golpe militar, o Brasil talvez tivesse tendido para o socialismo ou chegado a um esboço de uma sociedade comunista enfim... E que era uma coisa que foi desejada por muita gente da geração daquele período e que foi frustrado pelo modo como a história se deu, mas na verdade não era algo latente de fato, não era algo que nós estávamos prontos para fazer. E eu me perguntava na altura, mas hoje me pergunto com muito mais veemência, se era, afinal de contas, um fato desejável. Todo mundo se pergunta. Quando a gente via o que acontecia nos países socialistas, a gente se perguntava isso, mesmo em Cuba, cuja revolução me atraiu muito, me entusiasmou muito. Mas os resultados... Muitas vezes tive uma brutal rejeição àquele negócio. Na verdade, nunca fui a um país comunista – nem mesmo Cuba – e, no fundo, por causa de uma natural dificuldade de aceitar a idéia de que um país possa ter um jornal só e de que esse jornal pertença ao governo. Isso é uma coisa, para mim, intolerável.
Eduardo Giannetti da Fonseca: O coletivo fica muito sufocado. O coletivo acaba...
Caetano Veloso: Terrível! E, sobretudo, a idéia que havia em torno de uma questão que, para mim é central, que é questão da homossexualidade. Isso, nesses países, sempre aparecia muito mal posto. E eu me sentia pessoalmente muito mal diante da realidade desses países...
Matinas Suzuki: Caetano...
Caetano Veloso: Estou respondendo longamente demais, né?
Matinas Suzuki: Não! Termina, termina!
Caetano Veloso: Vou terminar. Então, nesse texto que escrevi sobre o negócio do terceiro milênio, dizia assim: se nós tivéssemos talvez chegado ao socialismo, na verdade não interessaria tanto saber o que o socialismo faria de nós, mas o que o Brasil faria do socialismo. Entendeu? E o socialismo não é outra coisa senão uma das formas como essa visão de direitos para todos – uma visão abstrata de direitos para todos os seres humanos – é compreendida. O socialismo está nessa discussão, continua nessa discussão. Não é porque os países do leste e o chamado socialismo real caiu que esse tema desapareceu das discussões. Mas, enfim, minha pergunta é esta: o que nós podemos fazer com essas coisas?
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Entrevista Completa:
http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/440/entrevistados/caetano_veloso_1996.htm
Caetano Veloso
23/9/1996Caetano considera que ser brasileiro "não é um acaso indiferente" e discute questões sociais do país, a arte, a imprensa e a paternidade, entre outros temas
Matinas Suzuki: Boa noite!
O Roda Viva está completando dez anos e cerca de 500 programas. Para abrir a série de entrevistas especiais que comemoram essa década do Roda Viva, nós convidamos um dos mais importantes artistas brasileiros, Caetano Veloso.
[Comentarista Valéria Grillo]: Encontrar a virtude da preguiça requer tempo. Paciência para assistir ao horizonte refletir um sem-número de cores e nomes. Ser Caetano é algo para um Pessoa, um Caymmi, um Drummond ou um João da bossa de escrever. Diriam, talvez, um espírito musical eternizando esquinas, linhas, ritmos, linguagem, versos. O ser Caetano já foi Lamartine Babo em Tabu e Gregório de Mattos em Os sermões. Mas o fascínio por um mundo de fotogramas resultou em um exercício atrás da câmera, o Cinema falado. Ser Caetano talvez desse um filme, e com ele mesmo cantando, como já se ouviu em O quatrilho; Índia, a filha do Sol; Tieta. São 50 e poucos anos experimentando levar idéias de Salvador a Nova Iorque, passando pelo Rio, Buenos Aires, Roma, Madri e Montreux. Uma celebração acesa em olhos que enxergam um Brasil trágico, utópico e fantástico. Dos quase mil dias de exílio à “ferveção” da praça Castro Alves [em Salvador, onde os trios elétricos do carnaval terminam seu trajeto], Caetano Veloso provoca estranheza, luz, tristeza e um rebolado de meia-lua inteira. Do rock ao samba. As métricas são estações dessa preguiça virtuosa, quase filosófica, silenciosa, divertida, bacante, superbacana. Um exibicionismo pretensioso, teatral, lúcido, de chamar música, cinema e poesia – qualquer uma dessas artes – de gostosa.
Matinas Suzuki: Para entrevistar o Caetano Veloso, esta noite, nós convidamos o cineasta Cacá Diegues, que é diretor do filme Tieta do agreste, que está em circuito nacional; o economista Eduardo Giannetti da Fonseca; Cesare de Florio La Rocca, presidente do Projeto Axé; o jornalista Marcos Augusto Gonçalves, editor do [caderno] Domingo da Folha de S. Paulo; Hubert Aranha, do Casseta e Planeta [programa humorístico exibido semanalmente pela Rede Globo], e o psicanalista Luiz Tenório Oliveira Lima. O Roda Viva é transmitido em rede nacional com 150 outras emissoras de 21 estados brasileiros. Nós lamentamos muito, mas esta noite você não poderá enviar as suas perguntas para o Caetano Veloso, porque este programa foi gravado. Boa noite, Caetano!
Caetano Veloso: Boa noite!
Matinas Suzuki: Depois de dez anos, o Roda Viva conseguiu te trazer! [risos]
Caetano Veloso: Finalmente, mas eu consegui chegar aqui!
Matinas Suzuki: Exato.
Caetano Veloso: Eu tinha vontade de fazer, mas não tinha calhado... Agora deu!
Matinas Suzuki: Caetano, pegando esse gancho dos dez anos do Roda Viva... Quando o Roda Viva começou, em 1986, a gente tinha saído do que se chamava abertura política - um processo de abertura - e iniciava uma nova fase que vem sendo chamada - ou ficou conhecida - como uma fase de consolidação da democracia no Brasil. Nós passamos pelo governo [José] Sarney, pelo governo [Fernando] Collor, pelo governo Itamar [Franco] e chegamos no governo Fernando Henrique [sociólogo, um dos fundadores do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), foi ministro da Fazenda e presidente do Brasil por dois mandatos consecutivos, de 1995 a 2002]. Que visão você tem do Brasil nesses últimos dez anos? Como você vê o Brasil nesse percurso? Evidentemente com muitas mudanças, mas...
Caetano Veloso: O que posso lhe dizer? O Brasil, quanto mais a gente aprende sobre ele, mais a gente vê que é um país que não conseguiu nunca se transformar numa sociedade saudável, que apresentasse o mínimo de justiça social. E tampouco se mostrou um país capaz de gerar grande riqueza material. Por outro lado, é um país de originalidade enorme! Então, a gente fica com essa ilha suspensa aqui no hemisfério sul, falando português, num espaço imenso da América e sem saber se tem ou não tem direito de ter esperanças. De modo que esses acontecimentos mais recentes, já me pegaram [como] um homem mais maduro, então já os coloco numa perspectiva maior, tanto na história, quanto na história da minha vida.
Matinas Suzuki: Falando nessa criatividade imensa que tem o Brasil, você como um dos artistas mais importantes das últimas décadas do Brasil e um artista que cada vez mais é conhecido internacionalmente, participa de um projeto que é o filme Tieta do agreste, que é dirigido pelo Cacá [Diegues]. E você participa fazendo uma belíssima trilha sonora, ao lado de Gal Costa, ao lado do Cacá, com participações de Jorge Amado [(1912-2001), escritor baiano que celebrizou, no país e no mundo, personagens típicas da Bahia em obras como Gabriela, cravo e canela, de 1958, eTieta do agreste, de 1977], com participações de João Ubaldo [Ribeiro, (1941-) membro da Academia Brasileira de Letras, é jornalista, escritor e roteirista de cinema. É autor de obras como O sorriso do lagarto e Viva o povo brasileiro], enfim... Todo um lado criativo muito forte do Brasil está nesse projeto. Você acha que isso é um sinal de mudança? Estamos caminhando para criar condições, no Brasil, para que se realizem projetos desse porte, envolvendo artistas importantes, essa coisa toda?
Caetano Veloso: Sem dúvida! Isso aí é uma coisa que, desde que o Cacá me falou que Sônia Braga tinha proposto a ele fazer Tieta para o cinema...
Matinas Suzuki: Aliás, me esqueci de mencionar Sônia Braga aqui também!
Caetano Veloso: É mas... A gente se esqueceu de mencionar também o Joaquim Moreira de Barros, que fez a trilha comigo, que arranjou a trilha... Fez as orquestrações e arranjos dos temas... Mas, enfim... Quando o Cacá me disse que Sônia tinha proposto isso a ele, já senti ali o tipo da coisa que me atrai... Porque são forças afirmativas do modo de ser cultural brasileiro, que não é necessariamente mau, pelo Brasil não ser uma economia ostensivamente vitoriosa, nem mesmo uma sociedade consideravelmente justa. Quer dizer, essas questões não são... Você não pode julgar umas coisas pelas outras, né? Isso é um negócio muito difícil. Mas fiquei atraído, porque isso é toda uma área, assim, do nosso organismo que promete regeneração. Eu me senti atraído por esse negócio. Me senti estimulado, envolvido...
Marcos Augusto Gonçalves: Caetano, você dizia numas de suas canções: “Vejo uma trilha clara para o meu Brasil, apesar da dor” [o entrevistador cita a música "Nu com a minha música", do álbum Outras palavras]. Você vê essa trilha clara ainda que, como diz o [Gilberto] Gil [na música "Parabolicamará"], “de jangada leva uma eternidade, de saveiro leva uma encarnação”? [risos]
Caetano Veloso: Pois é, rapaz! Isso aí é uma canção que fiz nos anos 1970, né? Eu estava no interior de São Paulo, viajando de ônibus de cidade em cidade. E as cidades de São Paulo são muito – para os olhos de um brasileiro comum – opulentas. São muitas. E com universidades e tal. Então eu, de uma certa forma, me senti à vontade para deixar um verso, uma linha dessas, aparecer no meio de uma canção. Mas ali também eu dizia que era um segredo meu que não carecia de ser seguido por ninguém, que era uma vertigem visionária que não carecia de seguidor, né? A estrofe se concluía assim, depois de dizer que eu via uma trilha clara para o Brasil apesar da dor. Mas o fato é que vejo. É uma trilha que o Brasil talvez nunca trilhe [risos]. Eu estava tentando evitar isso, mas as palavras... Estou... Acabei de fazer um show e também estou, além de cansado, um pouquinho resfriado. Então estou um pouco com a energia baixa! Então as palavras demoram a aparecer. Mas... O Brasil poderá ou não seguir essa trilha, mas para mim é absolutamente inegável que ela existe e é dele.
Eduardo Giannetti da Fonseca: Caetano, acho que tem uma trilha. Eu queria arriscar uma generalização... Eu te ouço desde 1978, encontrei realmente o seu trabalho em 78, quando saiu o LP Muito. E, de lá para cá, estou acompanhando com muita intensidade. Gosto muito do seu trabalho! E identifico uma trilha que aparece no seu trabalho, que eu gostaria de arriscar aqui e ouvir o que você pensa disso. Acho que, de um lado, você defende a conquista de uma ordem civilizada no Brasil. No trânsito, na política, na economia que a nossa convivência pública seja bem ordenada e seja civilizada. Isso é muito presente, é muito forte, é muito contínuo. De outro lado, você também defende o nosso coração iorubá [de origem africana], a nossa alegria de viver, a nossa espontaneidade. Essa alegria espontânea que brota do fundo do fundo da nossa alma brasileira. E acho que a grande utopia que você coloca para todo nós é combinar essas duas coisas. Conquistar a civilização, mas não perder o que nós temos de melhor, que é essa grande alegria, essa grande espontaneidade, essa alma iorubá, selvagem, índia que está em todos nós. Acho o seguinte, Caetano: será que essas duas coisas podem ser combinadas? Será que alguém vai conseguir juntar uma coisa sem perder a outra? Temo que a civilização entristeça a alma humana. [risos] E nenhum povo conseguiu escapar disso! E nós, no Brasil, resistimos muito a isso. Acho que a grande utopia, os "trópicos utópicos" que vejo em você é exatamente na busca dessa fusão. Você refaz essa fusão na sua arte e eu acho que, na arte, a equação se fecha. Na vida prática, não vejo como fechar essas duas coisas e acho que, à medida que o Brasil se civiliza, infelizmente nós vamos perder, aos poucos, essa alegria, essa vitalidade emocional, essa coisa fantástica que ainda está viva.
Caetano Veloso: Bom, isso aí...
[risos]
Eduardo Giannetti da Fonseca: Desculpa, é uma pergunta pesada, mas me preparei muito tempo para fazer! [risos]
Caetano Veloso: A sua pergunta, para mim, não precisa de resposta! Não precisa de resposta. Gostei imensamente do modo como você formulou. E acho que ela, de uma certa forma, abrange – posso dizer mesmo – a totalidade dos meus interesses. [risos] Pelo menos dos meus interesses que podem ser tornados, ou precisam ser, tornados públicos. Acho que você tocou num ponto que é fundamental! Mas a minha ambição talvez seja ligeiramente maior do que a própria questão da fusão, entendeu? A minha ambição seria a de tomar posse da civilização, porque acho que há dados universais ligados à convivência social. E acho que são dados definitivos e que esses dados devem ser compartilhados por todos os seres humanos, que devem se colocar na posição de poder compartilhá-los. Agora, quando você lê esse livro, Trust, daquele americano [Francis] Fukuyama [ver entrevista com Fukuyma no Roda Viva], em que ele diz que os Estados Unidos, ao invés de serem vistos como um país onde, abstratamente, os direitos universais se procuraram implantar, devem voltar a ser vistos como um país que tem uma determinada cultura e que é justamente por ter esse tipo de cultura, que ele foi um país capaz de desenvolver tão bem as garantias das liberdades, do respeito ao ser humano etc. E, no entanto, penso que... Naturalmente, aquele livro tem uma porção de coisas que são suspeitas. Eu o citei porque, de uma certa forma, ele é um oposto simétrico de algo que está na sua pergunta e que eu gostaria que estivesse no modo como estou respondendo! [risos] Na verdade, a minha ambição seria de fazer com que uma cultura como a nossa, que está – sob todos os pontos de vista – como que jogada fora da área de dominação, das vantagens da civilização moderna, porque está no hemisfério sul, porque é mestiça, porque fala português, não apenas uma língua latina do sul da Europa, mas justamente o português, a menos prestigiada de todas elas, entendeu? Enfim... Um país pobre e, sobretudo, injusto socialmente. Então, todas essas desvantagens, de uma certa forma, deveriam criar em nós uma mera depressão em relação à perspectiva histórica, em relação a prospecções. E, no entanto, a gente tem alguma coisa de alegria e de entendimento da vida, alguma riqueza no modo de ser, que é perceptível, inclusive, para os estrangeiros, que diversas vezes se manifestam a respeito do que eles percebem de interessante, de sugestivo no modo de ser do Brasil e dos brasileiros. E isso, que é um dado cultural, que não é... Como é que vou dizer? Não é um valor universal, abstrato. É um dado cultural, qualitativo do nosso modo de ser, que é do que você está falando. O que desejo não é que isso seja possivelmente fundido com o que você e nós chamamos de civilização. Acho que o que desejo mesmo é que esse nosso modo de ser tome conta, tome em suas mãos os dados abstratos, universais da civilização e faça deles algo que não tenham feito ainda, entendeu? Então, é uma ambição grande demais. Naturalmente, faço muitos papéis ridículos por causa disso. Mas por outro lado... [risos]
Eduardo Giannetti da Fonseca: Discordo! [risos]
Caetano Veloso: Mas é verdade, faço! Faço outros papéis ridículos por outras razões. Mas, por isso, muitas vezes, sem dúvida. Mas o fato é que minha ambição... Uma vez, escrevi um negócio para falar lá no Rio [de Janeiro], uma coisa que me pediram para escrever sobre o terceiro milênio... Foram o Antônio Cícero e o Wally Salomão que me pediram para escrever. E falei lá no Museu de Arte Moderna, li o texto que tinha escrito, era um pouco longo, mas, enfim, eu o li todo! [risos] E ali eu dizia que há quem diga que, em 64, se não houvesse o golpe militar, o Brasil talvez tivesse tendido para o socialismo ou chegado a um esboço de uma sociedade comunista enfim... E que era uma coisa que foi desejada por muita gente da geração daquele período e que foi frustrado pelo modo como a história se deu, mas na verdade não era algo latente de fato, não era algo que nós estávamos prontos para fazer. E eu me perguntava na altura, mas hoje me pergunto com muito mais veemência, se era, afinal de contas, um fato desejável. Todo mundo se pergunta. Quando a gente via o que acontecia nos países socialistas, a gente se perguntava isso, mesmo em Cuba, cuja revolução me atraiu muito, me entusiasmou muito. Mas os resultados... Muitas vezes tive uma brutal rejeição àquele negócio. Na verdade, nunca fui a um país comunista – nem mesmo Cuba – e, no fundo, por causa de uma natural dificuldade de aceitar a idéia de que um país possa ter um jornal só e de que esse jornal pertença ao governo. Isso é uma coisa, para mim, intolerável.
Eduardo Giannetti da Fonseca: O coletivo fica muito sufocado. O coletivo acaba...
Caetano Veloso: Terrível! E, sobretudo, a idéia que havia em torno de uma questão que, para mim é central, que é questão da homossexualidade. Isso, nesses países, sempre aparecia muito mal posto. E eu me sentia pessoalmente muito mal diante da realidade desses países...
Matinas Suzuki: Caetano...
Caetano Veloso: Estou respondendo longamente demais, né?
Matinas Suzuki: Não! Termina, termina!
Caetano Veloso: Vou terminar. Então, nesse texto que escrevi sobre o negócio do terceiro milênio, dizia assim: se nós tivéssemos talvez chegado ao socialismo, na verdade não interessaria tanto saber o que o socialismo faria de nós, mas o que o Brasil faria do socialismo. Entendeu? E o socialismo não é outra coisa senão uma das formas como essa visão de direitos para todos – uma visão abstrata de direitos para todos os seres humanos – é compreendida. O socialismo está nessa discussão, continua nessa discussão. Não é porque os países do leste e o chamado socialismo real caiu que esse tema desapareceu das discussões. Mas, enfim, minha pergunta é esta: o que nós podemos fazer com essas coisas? Porque...
Matinas Suzuki: Caetano, antes de passar ali para o Cacá, queria te perguntar, já que você tocou na questão do homossexualismo, nós temos aí um projeto encaminhado pela deputada Marta Suplicy [ver entrevista com Marta Suplicy no Roda Viva] que, entre outras coisas, prevê a possibilidade de união matrimonial entre pessoas do mesmo sexo no Brasil.
Caetano Veloso: Sou a favor.
Matinas Suzuki: Você tem uma opinião sobre isso?
Caetano Veloso: Tenho uma opinião muito simples e nítida: sou a favor, quer dizer, mesmo que não seja matrimonial. Acho que o que ela pretende é que haja esses direitos, como são os direitos de concumbinato... Sou a favor, claro!
Cacá Diegues: Eu queria insistir um pouquinho nessa trilha aí, do Brasil, porque adoro ouvir você falar sobre o Brasil, acho o máximo! Eu estava, inclusive, nessa conferência que você deu lá no Museu de Arte Moderna. E a minha sensação – vou arriscar uma outra teoria –, a minha impressão das suas idéias, da sua poesia, do seu trabalho, do seu pensamento é que você está muito menos preocupado com uma idéia de nação enquanto uma coisa institucionalizada, uma forma institucional da vida social comum de um território, de um povo dentro do território, mas muito mais interessado na possibilidade de este povo, da invenção de um povo para esse território. Eu diria até que você está interessado na invenção de um povo alternativo diante do que acontece no mundo todo. Eu queria só que você confirmasse ou não.
Caetano Veloso: Confirmo! Acho que é isso mesmo. [risos] Mais ou menos é que eu estava dizendo a ele, no fundo.
Cacá Diegues: Que estava um pouco na sua conferência também.
Caetano Veloso: Imagino isso mesmo. Acho que a gente tem quase que um dever histórico de afirmar coletivamente isso que você me pede para afirmar aqui. Acho que essas características que descrevi que são fatais: somos um país imenso, de dimensões continentais, no hemisfério sul, falando português, com a população marcadamente mestiça, isso é um dever de originalidade histórica do qual a gente não pode fugir. Mesmo que a gente não faça nada, que venha a ser apenas um país que sumiu, que a língua portuguesa desapareça diante do inglês, do computador... Porque o inglês já domina o mundo, e mais ainda através do computador, que é um novo inglês...
Cacá Diegues: E uma outra coisa que acho também importante, sobre o aspecto do seu pensamento sobre o Brasil, é o exercício da vontade sobre essa realidade. Você não se deixa submeter pela fatalidade dos fatos históricos. Vejo nas suas entrevistas você dizer “quero que o Brasil seja isso!”, “quero que o Brasil seja aquilo”. Nunca é uma análise inconseqüente de fatos históricos, mas um desejo de transformação.
Caetano Veloso: Mas há um fatalismo muito grande nisso. Quando digo “eu quero”, é porque acho que sou condenado a querer exatamente isso!
[risos]
Matinas Suzuki: Isso tem a ver um pouco, Caetano, com a sua indignação, às vezes, com o país, com uma idéia, ou com a imprensa, ou com uma coisa? Porque, na verdade, você poderia, hoje, ser um artista totalmente em paz com o mundo: sua obra é inquestionável, a sua importância é uma... Enfim... Tudo que poderia ser a imagem tradicional ou um lugar comum de um artista, são águas que caminharam na direção do seu leito. No entanto, você se recusa a se manter nesse papel só, de ser artista ser bem-sucedido, essa coisa toda e, de vez em quando, parece que você “passa um pito” na nação. Você cobra da nação, você cobra das pessoas, você cobra das idéias, da imprensa e com uma veemência muito grande.
Caetano Veloso: É, muitas vezes faço isso. Uma vez um jornalista no Rio disse assim: “Mas o Caetano não se contenta em ser um compositor reconhecido, um cantor de sucesso. Ele quer também reescrever todos os segundos cadernos da imprensa brasileira!” E um amigo meu me disse assim: “Mas, justamente! Você deveria fazer”. Falei assim: “Não faço, porque eu não tenho tempo” [risos]. Mas isso é uma piada, né? Na verdade, naturalmente, não tenho condições de fazer isso e não faço planos de ser essa pessoa que você descreveu. Faço até um esforço no sentido de me apaziguar mais e me sinto mais apaziguado. Mas eu não resisto! De vez em quando eu vejo que sou eu mesmo que tenho que dizer algumas coisas. Alguma coisa também herdei do Glauber [Rocha]. Ele gostava de dizer coisas que se destinassem a resolver a questão do Brasil como um todo e que reorientassem o país através da palavra dele. Herdei isso um pouco dele também, embora eu seja totalmente diferente dele. Acontece que tenho uma... Percebo que isso é um elemento a mais, entre várias coisas. Há muitas forças em embate e a gente tem que fazer pesar algumas coisas. Então, de vez em quando, eu tenho que dar aquela espetada, aquela alfinetada porque senão o pessoal perde a noção de algumas coisas que eu, por acaso, na posição em que estou, posso ver melhor. Às vezes, há uma onda que está totalmente por fora. Então vou veementemente [contra]... parece que sou inimigo daqueles grupos ou daquelas instituições ou daquelas posições. Mas é uma inimizade estratégica, entendeu? Tenho consciência disso!
Luiz Tenório Oliveira Lima: Caetano, em relação ainda a esse assunto, você, como artista... O seu trabalho já é uma intervenção no plano estético, pensando a questão do Brasil e a questão da tradição. A esse propósito, há uma coisa que sei que o irrita muito e que é um mal entendido que existe em relação ao Tropicalismo, que é uma leitura que algumas pessoas fazem – às vezes até críticos –, uma leitura paródica do trabalho criativo, estético, do período tropicalista. Justamente como você disse, o trabalho, segundo o meu ponto de vista, implica uma transformação e uma reinterpretação da tradição, da própria tradição na música popular. Isso é reinterpretado e, de certo modo, atualizado com uma intervenção bastante radical naquele momento que gerou, digamos, a repercussão que todos nós sabemos. Há uma tendência, muitas vezes, que é essa de ver isso, como uma forma paródica como no caso, por exemplo, de quando você interpreta a canção de Vicente Celestino [refere-se à canção “Coração materno” que Caetano Veloso gravou em seu disco Tropicália ou panis et circenses], que muitas pessoas tomam aquilo como sendo paródica, e a intervenção é pungente, é belíssima e é uma recuperação dessa tradição lírica e impostada do período anterior. Gostaria de que você falasse sobre isso porque eu sei que esse tipo de leitura às vezes até lhe irrita.
Caetano Veloso: Irrita, porque a impressão que me dá é de que pára na paródia. Porque esse processo tem um momento dele que é paródico, mas ele vai além da paródia. E chega até isso que você falou e pretende ir até além disso, mas então quando a instância paródica é considerada a instância final, fico irritado, porque fico frustrado. Às vezes, não tanto nas opiniões que procuram dizer isso, mas nas criações mesmo que se suponham tributárias dessa atitude tropicalista, entendeu? Às vezes, eu via coisas que eram feitas ostensivamente para parecer paródicas, para parecer uma visão paródica do que nós tivéssemos de pouco menos respeitável culturalmente e, assim, o autor se poria acima daquelas coisas que estavam sendo ali parodiadas. E isso me desagradava muito. Sobretudo logo depois, no pós-Tropicalismo imediato.
Marcos Augusto Gonçalves: Quero fazer uma pergunta ainda ligada ao Tropicalismo. Não sei se você acha isso. Tenho a impressão de que você e outros artistas da sua geração, como o Hélio Oiticica, por exemplo, se encarregaram de terminar o ciclo modernista, num Brasil em que o Modernismo não pode viver, por causa da comunicação de massa, etc. Eu acho que vocês conseguiram impedir que o Modernismo fosse desaguar nessa praia miúda do nacionalismo, do nacional popular, onde poderia ter desaguado. Numa praia, digamos, "submarioandradina" [referência a um dos ícones do Modernismo, Mário de Andrade]. E acho que vocês conseguiram manter a riqueza experimental do Modernismo exatamente nesse momento do Tropicalismo, de uma maneira enfática. Você tinha essa visão? Você tem essa visão? Como é que você relaciona o seu trabalho com o trabalho de música popular - mas que, evidentemente, transcende a música popular. Como você o relaciona com o Modernismo brasileiro que vem de uma tradição, digamos, mais tida como culta... Que vem ligada à literatura. Embora no Brasil isso tudo...
Caetano Veloso: Fui obrigado, no momento mesmo do Tropicalismo, a pensar um pouco essas coisas, porque justamente quando lancei “Alegria, alegria” e o [Gilberto] Gil lançou “Domingo no parque” [ambas de 1967], o Augusto de Campos - o poeta - tinha escrito um artigo sobre mim, sobre um trecho de uma entrevista minha e a minha canção “Boa palavra”, um trecho de uma entrevista do Edu Lobo... Coisas que ele achava que tinham sido bem formuladas. E ele tinha posto como título do artigo dele “Boa palavra”. O Augusto de Campos, quando lancei “Alegria, alegria” e o Gil “Domingo no parque”, me procurou e nós nos encontramos. E ele era um continuador muito rigoroso de uma certa visão do Modernismo. Ele e o grupo dele, um grupo de poesia concreta de São Paulo. Por outro lado, estreava em São Paulo a peça O rei da vela, de Oswald de Andrade. Eu não conhecia o trabalho de Oswald de Andrade, não conhecia a obra de Oswald de Andrade. Eu já tinha ouvido falar dele uma vez, por um colega meu, no clássico [equivalente ao ensino médio], que é Wanderlino Nogueira Neto, que hoje é do Ministério Público e que se referiu ao Oswald de Andrade dizendo que eu gostaria, porque era muito anárquico e uma figura muito interessante, iconoclasta e tal. Mas eu num... Eu me lembro de ouvi-lo falar. Mário de Andrade, sim, porque Mário de Andrade os professores traziam mais, as pessoas falavam mais de Mário de Andrade. O pessoal de música popular no Rio falava em Mário de Andrade, mas Oswald, não. E, naturalmente, a gente conhecia algo de Villa-Lobos e algo da pintura de Di Cavalcanti, de Portinari e tal. Mas o Oswald não era muito conhecido. Mas estreou O rei da vela e fui assistir! O meu disco ainda não estava pronto. As gravações não estavam todas prontas, mas as canções estavam todas prontas. E, quando vi O rei da vela, tive um impacto incrível e comentei com o Augusto de Campos. Ele então me disse: “nós temos um interesse enorme nesse poeta!”. Deu-me, então, o texto do Haroldo [de Campos. (1929-2003) poeta brasileiro, fundou com seu irmão, Augusto de Campos, e Décio Pignatari, o grupo poético Noigandres, que deu origem ao movimento Concretista. "Transcriou" textos de autores consagrados da literatura mundial como Homero, Dante, Goethe e Mallarmé e, ainda, publicou ensaios de teoria literária] sobre o Oswald, me deu livros de poesia do Oswald, me deu romance de Oswald, me deu texto de Décio Pignatari [escritor brasileiro que desde os anos 1950 experimentava a linguagem de forma que, ao lado de Augusto de Campos e Haroldo de Campos, fundou o movimento estético conhecido como Concretismo. Além disso, traduziu obras de Dante Alighieri, Shakespeare e Goethe] sobre Oswald. Então tive que me situar, naquele momento, diante dessas duas grandes figuras do modernismo literário. Tive que pensar um pouco isso. Mas era meio às avessas, porque eu já tinha feito o que aquilo me deveria levar a fazer. Mas, naturalmente, aquilo chegou até mim indiretamente também, né? Enfim... Eu estava vivendo um tempo que já vinha depois daquilo.
Cesare de Florio la Rocca: Caetano, certamente você deve estar se perguntando que diabos está fazendo Cesare aqui, no meio de todas essas celebridades! Te confesso que eu mesmo me perguntei isso quando recebi o convite da TV Cultura. Mas, no fundo, encontrei um porquê. Talvez eu esteja aqui para cutucar o Caetano menos conhecido. Talvez o Caetano e as crianças. Eu queria te dizer o seguinte – e depois te perguntar: quando cheguei, quase 29 anos atrás, ao Brasil, da Europa, nunca tendo vindo antes para a América Latina, me defrontei com uma realidade que me comoveu profundamente: o lugar privilegiado que a criança ocupava na cultura brasileira, do povo brasileiro. Na minha visão de europeu, isso me apareceu como uma coisa extremamente bonita. Ao longo desses 29 anos devo, melancolicamente, dizer que esse lugar veio progressivamente deteriorando. Hoje, a criança, de uma maneira geral, no Brasil, incomoda. Muito mais se forem crianças das classes populares, muito mais se for criança que teve que buscar na rua os meios para sobreviver ou um adolescente que teve que incorporar formas de violência. O que é que você pensa disso?
Caetano Veloso: Bom, logo me tocou quando você, sendo italiano de nascença, falou em como lhe impressionou o modo como a criança... O lugar que a criança ocupava na vida brasileira ao chegar aqui. E me lembrei de um livro de um outro italiano, que é Contardo Calligaris [psicanalista italiano radicado no Brasil], que também confessa ter sofrido o mesmo impacto. E ele, justamente no capítulo em que trata disso, põe - como ele é psicanalista e “afrancesado”, né, meio lacanizado [refere-se ao psicanalista francês Jacques Lacan] – , de uma maneira muito interessante, essa contradição profunda que é o lugar da criança no imaginário brasileiro: como aparece a criança como um rei ao mesmo tempo em que é um país onde as crianças que não têm meios de subsistência, são pior tratadas, possivelmente, no mundo. Um dos países onde pior se trata as crianças pobres no mundo. É um país onde mais ou menos sistematicamente se matam crianças. E aquilo impressiona quando é posto assim, como uma manifestação de um desequilíbrio psíquico coletivo muito significativo. Então, penso e acho curioso, porque talvez fosse o caso de a gente dizer que ser civilizado é não deixar a criança ocupar um lugar tão maravilhoso. É ser mais restrito com a criança comum e isso é o preço de você não ser levado a matar crianças. Entendeu? Mas não quero acreditar assim. Quero acreditar que essa disparidade tão absurda queira dizer que nós temos muita dificuldade em organizar a nossa vida no mundo como ele é hoje. São forças muito grandes que se movem e se dão dentro do Brasil. Isso reflete como essas forças se movem e o Brasil, sendo o que é na história do mundo, passa por essa turbulência brutal, mas seguindo uma trilha que tem - ela própria - beleza. Por isso... Isso é o que me leva a achar interessante, por exemplo, o que você faz na Bahia com o Projeto Axé, que é um trabalho teimoso de não aceitação disso como uma fatalidade. E também de uma desmistificação da grandeza desse mal porque quanto mais nós dizemos que “há um mal imenso [enfatiza]!”, mais a gente se desincumbe de ter que resolvê-lo, entendeu? “É um problema insolúvel, o problema da criança pobre no Brasil”. Não é que seja insolúvel... Naturalmente, o problema da criança pobre no Brasil é um problema dos pobres. Isso é um profundo problema da humanidade hoje. É um profundo problema. Porque... A gente não sabe para onde o mundo poderá andar. A gente não sabe para onde ele poderá andar. Se um cinismo elitista e eficiente será absolutamente necessário, intransponível como ideologia, para ordenar a vida prática, ou se haverá ainda algum lugar na organização das mentes, para a idéia de inclusão da totalidade - ou pelo menos da maioria - dos seres humanos. Se há ainda a possibilidade de se pensar em sociedades inclusivas, includentes. Não excludentes. Porque a tendência atual é de ser muito excludente. O Brasil é um país enorme no hemisfério sul onde quase tudo não funciona. Católico, latino, na América, ou seja... Num ambiente onde ainda, até hoje, nada propriamente funcionou bem, não é? Enfim... Hoje, até quando se fala em Shakespeare parece que está se falando para dizer assim: “a língua inglesa é mesmo a língua que tem que dominar!”. Então, é um modo de falar que você já sente que estão todos lhe dizendo que você não tem nenhum buraquinho por onde escapar. Agora, o meu desejo de não me submeter a isso e de tentar fazer com que coisas como você faz na Bahia com o projeto Axé, possam funcionar... Quer dizer, me interesso por coisas assim, porque acho que é uma teimosia, no sentido de acreditar que há uma trilha bonita possível, que a gente não sabe qual é, mas que é! Mesmo que a gente não a siga, nunca consiga atravessá-la, ela existe e é nossa.
Hubert Aranha: Olha só, Caetano... Acho que você está na grande tradição dos polemistas baianos. Ruy Barbosa,Glauber Rocha... Acho que o baiano tem essa... Alguns, né? Você é baiano? [risos e sobreposição de vozes] Na Bahia é um dos poucos lugares onde você fica uma semana e já fica [dizendo] “porque ,ah... Acho que é um lugar... Não sei o quê...”. Então acho que é um lugar e, voltando o papo do Tropicalismo, você falou que se encontrou com Augusto de Campos, você estava falando de Oswald de Andrade com a peça O rei da vela e, por acaso, estava lendo uns livros – saiu agora um livro do Luis Carlos Maciel, saiu um livro de fotografias, também –... Então, acho que está se discutindo o Tropicalismo outra vez, assim, com essa perspectiva. Algumas pessoas estão colocando... E a impressão que me dá é a seguinte: é que foi uma hora que se juntou a Bahia com São Paulo, embora tenha alguma coisa do Rio de Janeiro, também. Mas acho que é uma coisa inédita, essas duas forças culturais, financeiras e econômicas do Brasil [juntas]. Agora, a gente também sente que não era um movimento, assim, “olha, hoje vamos sair de casa e vamos falar disso”. Eram coisas que iam surgindo... Então, eu queria falar, já que estamos falando de Brasil e tal, li hoje o meu calhamaço que a produção deu, aliás...
Matinas Suzuki: Calhamaço?! “A grange pesquisa...” [risos]
Hubert Aranha: [risos] Pois é! Mas parei no ano de 1979, então só vou poder fazer perguntas até essa data! [risos] Achei uma coisa muito bacana de um crítico que hoje está meio por fora, mas que na época eu achava – tinha 22 anos – irritante, o [José Ramos] Tinhorão [crítico de música popular, conhecido por elaborar ferrenhas críticas à Tom Jobim e outros músicos da bossa nova. Foi entrevistado pelo Roda Viva em 2000], que era um cara nacionalista ferrenho e tal. Mas acho que hoje a música brasileira voltou a ter muita força, aconteceu um monte de coisas... E ele falava do Chico Buarque, na sua Ópera do malandro, e do Caetano, que lançava o Cinema transcendental. Então ele fala dos dois discos. O título é o seguinte: “Como seria bom se a música de Caetano e Chico Buarque correspondessem à sua poesia”. A com crase, né? “À sua poesia”, então. Ele fala assim! [risos] Ele fala do Chico, fala que tem um monte de maxixe, que tem boleros, que tem foxtrot, que é um absurdo, que tinham que tocar samba e tal. Aí ele fala do Cinema transcendental, né, que ele diz que é legal, mas faz umas críticas, olha: “Na primeira faixa, por que acrescentar 'pseudossons' modernos do baixo e dos teclados ao acompanhamento básico que soa ao fundo, marcando o ritmo bonito de um triângulo bem nordestino?”. Depois, ele diz: “Da mesma forma em "Beleza pura", por que o coro de gosto internacional...?” Soul! Ele sabia o que era soul, ele não estava citando [...]... Ele falava “estragando o clima tão gostosamente "caetano-baianista" da música”. Aí ele dizia assim: “Isso tudo é desalentador, porque quando o Caetano, afinal, submete sua poesia tão brasileira à forma musical adequada, resultam obras lindas como a toada moderna “Trilhos urbanos”, a experiência “Araçá azul” e o maravilhoso xaxado-canção “Cajuína”. Ele bota um pedaço de “Cajuína” e fala assim – olha, que engraçado! –: “Que grande poeta para tão pequena compreensão de sua responsabilidade ideológica perante os contemporâneos”. Então eu queria falar, voltando à história do Tropicalismo, essa mistura que você começou a fazer nessa época, desde cedo, no seu trabalho – você começou “bossanovista” –, mas que você botou a banda Black Rio... Me lembro, eu fui nesse show... Aquelas coisas todas e tal. Como você vê isso, hoje, no momento em que tem pessoas – por exemplo, o Carlinhos Brown – fazendo MPB [Música Popular Brasileira], quando, até dez anos atrás, 15 anos atrás – eu me lembro – só se falava de rock. MPB era uma coisa que as pessoas diziam assim: “MPB é coisa de velho, não sei o quê e tal”. Vejo a MPB... nunca saiu do gosto do público. Queria saber o que você acha desse negócio de misturar, já que você está falando do Brasil em relação aos outros lugares do mundo, por que você nunca se poupou de misturar a sua música à outras músicas do mundo? Nunca teve grilo com isso?
Caetano Veloso: Logo no início do Tropicalismo, uma das primeiras coisas que nós pensamos foi justamente de sair desse grilo, né? Esse grilo representava o que o Marquinhos falou, que era uma ameaça de fazer a cultura brasileira estacionar em uma visão errada do que tinha sido o Modernismo, ou seja, virar um mero nacionalismo populista, entendeu? Isso é uma coisa que, evidentemente, nós percebemos e não queríamos.
Hubert Aranha: Você acha que existia música brasileira pura?
Caetano Veloso: Não. E o Tinhorão representava justamente o defensor desse nacionalismo populista que nós queríamos derrubar, para poder...
[sobreposição de vozes]
Matinas Suzuki: Hoje você acha que o Tinhorão foi mais um mal ou mais um bem? [risos] Olhando hoje...
Caetano Veloso: O Tinhorão é interessante. Li os livros dele, aqueles livros que ele publicou, uns em Portugal, outros aqui... Li todos porque ele me interessa. Acho que deve interessar. Acho que quem quer pensar coisa de música popular no Brasil tem que enfrentar o Tinhorão porque ele é um grande arquivista, ele é um sujeito muito organizado e ele pensou, com muita coerência, aquele negócio dele. E a questão do nacionalismo, é uma questão que a gente tem que ver, rever, tem que passar por ela toda hora. Eu acho. Agora, o Tinhorão tem o seguinte, ele... O fato é que ele gostava mesmo de mim, mesmo dessas coisas que eu fazia. [risos] Ele mais gostava do que não gostava. Tanto que essa própria crítica que você leu aí um trecho, demonstra isso. E ele, um dia, me disse pessoalmente. Mas ele tem um problema muito mais profundo: ele não gostava do Tom Jobim. É muito mais profundo. Então não posso concordar com ele. Ele até... O Tropicalismo para ele, afinal de contas, era mais palatável porque, naquela confusão, muitas coisas que soavam populistas vinham de cambulhada [grande quantidade]. A bossa nova, não. A bossa novatinha sido um trabalho mais coerente, profundo, de formas novas e polidas, refinadas, conseguidas...
Eduardo Giannetti da Fonseca: Acho que isso retoma, Caetano, no plano estético, aquela mesma tensão de que eu estava falando. Você trouxe para a música brasileira um acabamento formal, uma sofisticação de ambiência, de arranjo que é muito moderno, que é muito avançado. Mas a sua experiência como criador é brasileira. Profundamente brasileira. E você juntou essas duas coisas. Na arte, maravilhoso! O que volto a perguntar é na vida...
Caetano Veloso: Na prática, se isso é possível... Acho que sim, porque tenho uma visão da vida de artista. E acho que a visão artística é boa para a vida, precisa ser usada e que é pouco usada. Agora, também tem uma coisa de que a gente deve fazer diferença. Acho que esse acabamento, esse tom civilizado quem trouxe foi a bossa nova, quem realizou foi a bossa nova. [sobreposição de vozes concordando com Caetano] O Tropicalismo se beneficiou disso.
Matinas Suzuki: Nós estamos com o nosso tempo estourado. E a gente volta daqui a pouquinho com a segunda parte da entrevista com Caetano Veloso. Até já.
[intervalo]
Matinas Suzuki: Bem, nós voltamos com Roda Viva, que está completando 10 anos e esta noite entrevista Caetano Veloso. Infelizmente, você não poderá enviar suas perguntas para este programa, porque ele foi gravado. Antes de mais nada, o Caetano está lançando, pela Natasha Records, a trilha sonora do filme Tieta do Agreste, que está em circuito nacional, dirigido por Cacá Diegues, que está aqui presente. Caetano, a propósito do Tieta, você fez um show com a Gal Costa e esse show era uma grande homenagem ao cinema, praticamente só feito de músicas que fizeram parte de trilha,ou foram citadas em filmes que você gosta e canções que você gosta. Você tem planos de voltar a fazer cinema, já que esse show foi uma grande homenagem ao cinema e você, pelo que soube, trabalhou bastante com o Cacá nessa trilha, ficou muito envolvido com o filme?
Caetano Veloso: Fiquei muito! Porque gostei muito do filme, eu queria fazer a trilha direitinho. Mas, desde as primeiras imagens que ele me mandou, fiquei muito maravilhado com o filme e achei que ficou lindo no fim das contas. É um filme que enche a gente de esperança. É um filme realmente regenerador, todo mundo vai ver!
Matinas Suzuki: Mas você quer voltar a fazer cinema?
Caetano Veloso: Eu quero! Quer dizer, tenho desejo. Eu queria ser cineasta, né? Escrevia críticas de cinema e pintava e queria dirigir filmes. Mas a música popular é muito forte, terminou me arrebatando! E, aqui no Brasil, ela tem muita força, ela arrasta todo mundo, né? Eu fui e me orgulho muito! Gosto muito de música popular e sempre estaria ligado a ela. E sempre agradeceria ao que quer que eu fizesse à música popular, porque ninguém – de todo mundo de quem a gente já falou aqui e que a gente pode vir a falar ainda hoje – exerceu sobre a minha mente uma ação tão importante quanto o João Gilberto. Mesmo que eu viesse a virar um cirurgião [enfatiza] – entendeu? –, iria agradecer a João Gilberto.
[risos]
[...]: Cirurgião bossa nova!
Caetano Veloso: Pois é, justamente! Não sei por que me ocorreu essa profissão, mas enfim... O que quer que eu fizesse - se fosse escritor ou cineasta ou pintor - , sempre iria dizer de público a minha dívida para com João Gilberto. E ele, para mim, é o maior artista brasileiro e foi o que mais impacto causou em mim, mais determinou o que eu iria fazer. Então, a música popular seria sempre uma maravilha. Mas eu não me sentia à altura para trabalhar em música. Eu não sentia que eu tivesse talento suficiente para trabalhar em música. Mas para o cinema, sim, eu achava que tinha mais talento para cinema. Tenho vontade de fazer filmes, tenho desejo, mas não sei se tenho coragem de armar planos! Porque, depois, descobri, na prática, que para a vida prática do músico tenho mais vocação do que para a vida prática do cineasta! [risos] É muito difícil isso. O cineasta...
Eduardo Giannetti da Fonseca: Caetano, falando sobre futuro, a gente sabe que você está escrevendo um livro. O Luiz Schwarcz [dono da Companhia das Letras, editora que publicou em 1997, o livro Verdades tropicais, de Caetano] me disse que você tem 500 páginas escritas...
Matinas Suzuki: Aliás, essa pergunta o Luiz Schwarcz gostaria de ouvir respondida no Roda Viva!
[risos]
Eduardo Giannetti da Fonseca: O que está acontecendo?!
Caetano Veloso: O que está acontecendo só o Cacá Diegues pode explicar! Eu me misturei demais com os cineastas e fiquei com muito menos tempo para fazer as coisas! [risos] Não, acontece o seguinte: escrevi muito. Esse negócio de 500 páginas deve ser uma conta do Luis Schwarcz, que fica nervoso e viu páginas demais. Não sei contar, porque naquelas páginas do computador... Não tirei cópia para ver quantas páginas de livro aquilo faria, mas ele fez um cálculo lá... Mas, mesmo que fossem 500, não seriam todas utilizáveis em um livro, entendeu? É que escrevo como falo, assim, meio demais, prolixamente. Mas o que aconteceu foi o seguinte: topei escrever, porque um americano me propôs e fiquei muito comovido, na verdade, com isso. Faço piada falando que foi a força do imperialismo! Os brasileiros tinham me pedido diversas vezes e eu não tinha aceito! Mas esse americano me comoveu, porque ele não me conhecia. Ele leu o meu artigo sobre a Carmen Miranda no New York times. E ele é um editor da Knopf [Alfred A. Knopf, parte do Knopf Publishing Group, fundado em 1915, em Nova Iorque e que publicou o livro de Caetano,Tropical truth: a story of music and revolution in Brazil, em 2003] e, lendo esse artigo, ele me procurou. Ele escreveu para o Ballroom [casa noturna do Rio de Janeiro], que era a casa onde eu estava me apresentando, dizendo que queria falar comigo e tal... E ai foi assim, comecei a falar com ele...
Eduardo Giannetti da Fonseca: E é uma grande editora americana!
Caetano Veloso: Pois é! Ele gostou do artigo sobre a Carmen Miranda que saiu no New York Times, porque o New York Times tinha me encomendado. Então, fiquei... E ele me disse assim: “Quero fazer um livro com você. Acho esse artigo... Senti que tem um negócio aí, de uma história do que aconteceu nos anos 1960 no Brasil, que ainda não foi contada para o mundo. Eu não sabia que tinha essa força toda e, no seu artigo sobre a Carmen Miranda, eu senti isso." E fiquei fascinado, queria escrever um livro! Achei que ali tem um embrião de um livro!”. Aí fiquei... Disse para ele: “Falei com todo mundo no Brasil que não vou escrever livro coisa nenhuma” e tal. Mas ele ficou insistindo, [dizia] “vamos ficar nos falando”. Aí ficou insistindo e terminou me convencendo! Então, fui escrever. Mas aí aconteceu que quando eu disse a ele “então tá, vou tentar”, comecei a escrever e aí gostei de estar escrevendo e até do que [enfatiza] estava escrevendo. Então fiquei animado e fui escrevendo. Mas fiz o seguinte: todo esse tempo tenho escrito nas horas de descanso. Se eu tiver, assim, 20 dias de férias, sem show, sem gravação, passo esses 20 dias escrevendo. E, enquanto tenho show; saio do show, chego no hotel e vou escrever. Quando eu estava em Nova Iorque mixando a música de Tieta com Cacá [Diegues] e com o Jaquinho [Jaques Morelenbaum, arranjador e produtor do disco], eu saía do estúdio, chegava ao hotel e ia escrever. Voltava, dormia um pouquinho, acordava de manhã, escrevia, ia para o estúdio e voltava... Enfim, nas horas que eram para o descanso,eu ficava escrevendo. Eu achava que escrever é descansar. Depois, no fim da mixagem de Tieta, voltei para o Rio, me senti exaurido, me senti tão cansado... E achei tão estranho. Falei: “Paulinha [Paula Lavigne, atriz e produtora cultural que foi casada com Caetano Veloso de 1986 a 2005], sabe o que acontece? Eu cheguei aqui e agora vou fechar o livro, já está tudo ali. 99 porcento está escrito. Falta escrever um pedacinho e olhar tudo, dar uma fechada para ver que forma o livro vai ter, finalmente”. E isso não consegui mais fazer, porque fiquei exausto. E o que mais me cansava era pensar que eu ia para a frente do computador! Eu dizia assim: “em ligar o computador me dá um cansaço terrível!”. É porque eu estava trocando, pensando que escrever era descansar. Você deve saber que isso é uma burrice total, né? Escrever não é descansar.
[risos]
Matinas Suzuki: Você, durante uma época, dizia que não gostava de trabalhar muito, que você gostava de fazer shows, fazer disco e tal... Mas, nos últimos anos, você vem trabalhando “para burro”, fazendo uma série de coisas. O que mudou na sua vida?
Caetano Veloso: Rapaz, muita coisa mudou em minha vida. Agora, nunca achei que se deve trabalhar demais. No entanto, sempre trabalhei muito. Sempre trabalhei muito. Tinha períodos maiores entre um show e outro... O que me fez trabalhar mais foi o fato de a gente passar a fazer excursões internacionais. Isso se somou ao Brasil. Então eu, agora mesmo, depois desses shows com Gal, tenho obrigação na Europa, uma turnê de 50 dias. Vou ficar 50 dias entre ônibus, teatro, ônibus, teatro, avião, teatro, ônibus, teatro... Vou ficar 50 dias na Europa entre outubro e novembro.
Eduardo Giannetti da Fonseca: Essa atividade atrapalha o seu trabalho criativo? Você gostaria de ter mais espaço para poder se dedicar à criação?
Caetano Veloso: Rapaz, nunca atrapalhou, entendeu? Porque sempre compus e fiz as coisas, assim, às vezes conversando com as pessoas, durante a excursão e no meio do pessoal. Nunca precisei nem parar nem me retirar para fazer o que quer que fosse. Mesmo escrever – como eu estava lhe contando –, eu misturei com as outras coisas. Nunca parei para escrever. Me prometi que faria isso, mas não fiz e fui escrevendo como quem está descansando enquanto escreve. [Foi] quando me senti cansado que vi... Porque a coisa é a seguinte: tenho 54 anos. Acho que não dá.
Cacá Diegues: Deixe-me fazer uma pergunta de caráter pessoal... É o seguinte: a nossa geração sempre se sentiu muito responsável pelo Brasil. Mas tem algumas pessoas na nossa geração – como o Glauber [Rocha] e como você – que, mais do que isso, parece que estão em permanente estado de vigília em relação a tudo que acontece no Brasil. Quer dizer, você é uma pessoa... Eu estava vendo aqui... Desde que esse programa começou, nós já lhe perguntamos sobre o futuro do Brasil, o casamento de homossexuais, a vida das crianças, o livro que você está escrevendo, que é um livro de pensamentos, suas polêmicas com a imprensa... E você, profissionalmente, é um compositor. É um músico. Esse estado de vigília permanente – que no fundo é a sua vocação, mas também é muito provocado pelas pessoas que o admiram ou até que querem brigar com você – , isso é uma coisa que você faz com naturalidade ou lhe cansa, de vez em quando? De vez em quando você não quer ser mais o vigilante do Brasil, cansa um pouco?
Caetano Veloso: Eu me lembro de Tieta naquela cena dentro do bar em que ela fala: “Por que é que eu tenho que ter opinião sobre tudo? Vou deixar as coisas serem como são mesmo, e pronto!”. Adoro quando a Sônia fala... Vem com uma verdade danada! E ela está danada da vida naquela hora... Sinto assim, um pouco como ela naquele momento, às vezes. Mas reconheço que é, como disse mais cedo, uma condenação. Eu gosto, é uma vocação!
Cacá Diegues: Você fica num estado de vigília permanente...
Caetano Veloso: Cacá também compartilha isso comigo. Ele compartilha.
Matinas Suzuki: Pegando um pouco essa reflexão toda, nosso atual presidente [Fernando Henrique Cardoso] tomou posse citando você. E tem usado você como uma referência muito respeitosa - e até muito bonita da parte dele - no sentido do reconhecimento do poder por um grande artista. Mas outro dia eu ouvi um comentário que me ficou na cabeça... Uma conversa [que dizia] “Mas o Caetano, se continuar nessa, corre o risco de virar um poeta oficial, de virar um compositor oficial do país”. Isto, de alguma maneira, passa pela sua cabeça? Como é que é você tem essa relação com o Fernando Henrique? Como ela é para você?
Caetano Veloso: É muito boa. Eu não sinto problemas, não.
Matinas Suzuki: Dizem que ele te ouve muito, por exemplo. Pergunta coisas para você...
Caetano Veloso: Não é verdade. Não é verdade. Fernando Henrique é um sujeito muito desenvolvido mentalmente. E, para os problemas que tem que resolver, ele está muito atento e pensa e sabe uma porção de coisas que eu não sei. De economia, dos problemas em termos de números... Não há a menor chance de ele precisar ouvir alguma coisa de mim. [risos] Não existe! Tivemos encontros muito fortuitos – os poucos que tivemos – e relativamente pouco significativos. Mas o que ficou, o que causa comentários como esse a que você se referiu aí, foi o fato dele falar em mim no dia da posse. Mas isso é perfeitamente natural, porque... Acho que um cantor de música popular, todo mundo conhece, que é respeitado e, ao mesmo tempo, embora discutido, é agradável e tal. O presidente da República vai se empossar, fala aquele nome.... Acho que soa bem. Pega bem, é simpático! É o tipo da atitude simpática para o público. E de uma maneira elegante. Não é uma... Entendeu? Achei que era isso, não a utilização, assim... Achei que coincidiu de ele ver aquele programa dos meus 50 anos enquanto estava descansando para a posse, entre o dia da eleição e da posse e ele gostou daquilo...
[...]: Você foi convidado para cantar na posse e preferiu não ir?
Caetano Veloso: Acho que me convidaram, é... Acho que me convidaram. Não quis ir para cantar na posse, não. Acho que alguém... Quem organizou a festa me convidou, mas isso eu não queria, não. Até ir para Brasília... Na altura não dava. Sair no verão, acho, de Salvador, não quero. Então não queria. Mas não tenho medo de virar cantor oficial, compositor oficial... [risos] Isso é tão... Não sinto nenhuma probabilidade. Outro dia em que eu estive com o Fernando Henrique – foi no dia do lançamento de Tieta aqui no Banco Real – e a única coisa que ele fazia era gozar da minha roupa porque eu estava de colete! E ele ficou me gozando o tempo todo, dizendo: “Poxa vida, se eu soubesse, eu também tinha botado um colete!”, e me sacaneando porque a minha gravata... Dizia que eu não sabia dar o nó direito, porque ficava caindo, descendo e tal, o nó. Mexendo comigo por causa disso. Quando fui lançar... O que era mesmo?... Fina estampa [1994]! Aí eu ia fazer o Fina estampa no Rio, no Canecão [uma das principais casas de shows do Rio de Janeiro]. Eu ia fazer dois meses. Então eu precisava de publicidade, porque a gente tinha apostado em fazer dois meses e era uma montagem dispendiosa, com uma orquestra grande [enfatiza]... Um show que eu adorava fazer, porque era muito bem acabado, uma coisa maravilhosa, com arranjos de Jacques Morelenbaum, mas tinha uma orquestra grande, era um show que precisava... A gente não podia arcar com a possibilidade do Canecão não estar cheio. Então eu dei entrevistas e recebi todos os jornalistas para fazer publicidade, para falar naquilo, para poder ajudar. Fui orientado nesse sentido pela produção do espetáculo e achei que estivesse tudo certo. Dei várias entrevistas... Uma para o Fantástico [programa exibido aos domingos pela Rede Globo desde 1973], outra para a [revista] Isto É... Pra quem ia chegando, eu ia falando. Para eu lhe dizer, falei sobre algumas coisas – estou usando esses dois veículos, eu falei para vários, mas esses dois foram muito nitidamente significativos –, falei, inclusive, sobre Fernando Henrique, sobre Antônio Carlos Magalhães [(1927-2007) empresário e político com influência muito grande na Bahia, mas também em nível nacional, marcado pela pecha de usar métodos coronelistas na aquisição e condução do poder. Figura de sustenção do regime militar, após seu término continua no poder; em virtude de haver apoiado a candidatura de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, continuou influente junto aos sucessivos governos federais até sua morte] e sobre diversas coisas e... Literalmente tudo que eu falei de negativo, falei a mesma coisa para os dois veículos. A mesma coisa com a mesma complexidade. Basicamente a mesma coisa, tudo que eu falei que soasse contra Fernando Henrique e contra Antônio Carlos Magalhães, saiu só isso na Isto É. E tudo que falei que parecesse a favor, saiu só isso no Fantástico. [risos] Então, na mesma semana, você me via no Fantástico dizendo que o Antônio Carlos Magalhães era maravilhoso e que tinha muita coisa a agradecer, que os baianos todos tínhamos que agradecer a ele a maravilha que era a restauração do Pelourinho [bairro residencial localizado no centro histórico de Salvador onde, durante o período colonial brasileiro, os escravos eram castigados. Durante os anos 1960 ficou extremamente degradado, contudo se tornou parte do Patrimônio Histórico da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) nos anos 1980 e, ao ser revitalizado na década de 1990, tornou-se um dos principais pontos turísticos da cidade e seu principal centro cultural]... E na Isto É, na capa da Isto É, eu estava dizendo assim: “O Fernando Henrique é o culpado da chacina no Pará”, dos sem-terra [conhecido como massacre de Eldorado dos Carajás, a chacina aconteceu no dia 17 de abril de 1996, quando 19 trabalhadores rurais foram mortos pela polícia do estado do Pará]... Tudo isso, mais ou menos, eu disse. Mas era uma coisa completa. E saiu... O que eu dizia de ruim saiu na Isto É. O que eu dizia de bom saiu noFantástico. Então, quero dizer, houve isso por exemplo. Na Isto É, saiu na capa uma fotografia minha e eu falando mal de Fernando Henrique, assim, de uma maneira sem... Grande, escrito como chamado de capa, dizendo que ele era responsável pelas mortes dos sem-terra.
Marcos Augusto Gonçalves: Deixe-me fazer uma pergunta ligada à questão do establishment... Porque é o seguinte: você foi vaiado por estudantes, você sempre teve a sua... Na minha juventude, gostar de Caetano Veloso era uma atitude. Não era uma conseqüência natural do gosto, como é hoje. Era uma atitude. A sua vida era muito ligada a atitudes. Eu me lembro de você cantando de batom, enfim, tomando atitudes muito marcantes mesmo em relação a comportamento. Tudo isso para fazer uma pergunta prosaica, que é a seguinte: você abriu as portas da sua casa para a revista Caras. Quando vi aquilo – pode parecer uma coisa extremamente ingênua, isso [risos] –, a minha reação, não só a minha, porque pude checar esse meu espanto com outras pessoas [que questionaram]: "Mas por que que o Caetano, uma pessoa que fez tanta coisa, faz um negócio tão 'careta' desses como posar para a revista Caras?" Não que eu tenha nada contra a revista Caras.
[...]: Não tive coragem de comprar, viu?
Hubert Aranha: Senti a maior inveja, achei a casa maravilhosa!
[risos]
[sobreposição de vozes]
Hubert Aranha: Sou fã de Caras. Acho que é uma revista que mostra muita coisa do Brasil, especialmente as casas como a do Caetano!
Caetano Veloso: Mas o que você quer saber?
[risos]
Marcos Augusto Gonçalves: Quero saber o seguinte: se isso é um sinal de um... Do tempo? Do quê? Porque me parece uma atitude muito...
Caetano Veloso: Bom, quando comecei a trabalhar não existia a revista Caras. Não existia propriamente nada que fosse correspondente. Mas eu aparecia na revista Intervalo, na revista Fatos e Fotos, na revista Manchete... Eram as revistas que havia.
[...]: No Chacrinha...
Marcos Augusto Gonçalves: O Chacrinha tinha um intuito... Era diferente. Não era a mesma coisa.
Caetano Veloso: Tudo é diferente. Não havia revista Caras, já começa por aí.
Marcos Augusto Gonçalves: Minha pergunta foi no sentido... Porque cansei de te ver em outras revistas. Mas o que significa de establishment, entendeu? A revista é onde aparecem os ricos com suas casas maravilhosas!
Caetano Veloso: É. Nunca tive muito interesse na revista Caras. Não tinha interesse nem de aparecer na revistaCaras ou de ficar olhando a revista Caras, não. Sinceramente, não tinha. As pessoas que me procuraram para fazer a reportagem eram muito gentis, muito simpáticas e terminaram me convencendo. E fiz, mas não havia nada de mal. Dou entrevistas, leio as coisas que disse totalmente deturpadas, leio imbecilidades incríveis nos jornais e nas revistas, entendeu? Eu não tinha uma razão... Aquelas moças, simpaticíssimas, um amor... O fotógrafo é uma maravilha de pessoa. Então, um sujeito maravilhoso [disse]: “Vamos fazer umas fotografias?” Fiz. Paulinha achava legal. “Tá bom, eu faço”. Já tinha... Então, não tive uma razão especial para fazer aquilo. Mas também não encontrei nenhuma razão especial para não fazer aquilo. Por exemplo, tem uns sete anos que não dou entrevista à revista Veja. Não falo. Não falo, porque achei que eles passaram demais do limite do absolutamente suportável comigo. No entanto, a revista Veja é uma revista que apareceu justamente no mesmo período em que comecei a aparecer publicamente, 1967. Ela é minha companheira de viagem. E não pense que tenho dela apenas uma opinião negativa. Não! Acho que... Naturalmente, é chato que a revista seja imitação da Time, que a Isto É seja imitação da Newsweek,que é uma imitação da Time nos Estados Unidos... Tudo isso é chato, podia ser uma coisa totalmente diferente... Como parar de fumar agora. O presidente manda parar de fumar somente porque os americanos proibiram. Acho chato. Por que nunca ninguém no Brasil pensou isso antes? Entendeu? Acho mais interessante, no Brasil, você poder tomar ayahuasca [chá de origem indígena, produzido a partir de um cipó e um arbusto amazônicos. No Brasil, o uso ritual é uma prática legal e se divide em três troncos principais: o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal] e que não seja considerado droga, que não seja proibido. Isso é um fato que só tem no Brasil e é curiosíssimo. Isso me interessa mais do que o negócio de proibir cigarro depois que os americanos proibiram. Isso é chato! Isso é uma coisa de falta de imaginação, falta de liberdade, de iniciativa. Nunca vejo aqui ter uma coisa pela primeira vez! Deveriam liberar a maconha antes aqui ao invés de proibir o cigarro depois dos Estados Unidos, entendeu? Acho que aqui deveria ser... Droga deveria ser livre! Livre e desencorajada. Porque você acaba com o valor que isso tem para o tráfico, com essa economia paralela e acaba com esse moralismo imbecil. Isso não acontece nos Estados Unidos, porque não está... Eleitoralmente, é impossível nos Estados Unidos e na Inglaterra. Esses países não aguentariam sequer a idéia de um senador chegar lá no plenário e dizer: “Eventualmente, acho que se deveria descriminalizar a maconha”. Ou descriminar, como se diz hoje no Brasil. Descriminar [enfatiza o “e”]. Enfim, nos Estados Unidos não pode. Ninguém fala isso! [sobreposição de vozes] Mas aqui se pode fazer, podia ser...
Marcos Augusto Gonçalves: A Holanda consegue fazer isso.
[sobreposição de vozes]
Caetano Veloso: É! A Holanda, a Espanha também fez. Não gosto de droga! Não tomo droga, não gosto nem de chocolate! Nem como chocolate. Não tomo café. Não fumo mais, há muitos anos que não fumo e bebo rarissimamente. Bebia, Tenório sabe disso, mas depois parei. Bebo muito raramente. Não gosto de beber todos os dias. Acho que ninguém deveria beber todo dia! Não sei por que na TV aparece “o fumo faz mal à saúde”, mas não aparece “o álcool faz mal à saúde”. A única explicação... Os americanos, na verdade, ficaram envergonhados por causa da lei seca. Não quiseram fazer com a bebida, porque ia pegar mal. Mas é o mesmo velho puritanismo. Eles fazem com o cigarro, porque aí satisfaz o que eles desejam, o que eles precisam fazer, mas não entram no ridículo da bebida, que já passou. Então vão pelo cigarro que é outro caminho. É só a razão que vejo para não dizer isso da bebida, porque essa idéia de que você fuma e faz o outro fumar, mas que a bebida não atrapalha o vizinho, é uma idéia idiota! Porque uma pessoa bêbada atrapalha muito a gente. Uma pessoa bêbada ao volante mata [enfatiza] as pessoas. Uma pessoa bêbada fora do volante pode acabar com a nossa conversa aqui, pode estragar a nossa vida, pode chatear a nossa noite, pode acabar com o seu casamento, a sua felicidade. Não é bom, não, entendeu? Então, por que que não bota da bebida? Então que o Brasil inventasse de colocar da bebida. Queria alguma coisa assim, feita livremente. Libera a maconha, faz propaganda contra a bebida! Queria alguma coisa diferente. Até o Antonio Callado escreve um texto... Adoro ler o Antonio Callado, mas um dia ele escreve: “Não, a bebida está na tradição, mas a maconha, não. Droga é droga, a bebida é bebida”. Isso é burrice. Embora ele seja maravilhoso.
Cesare de Florio la Rocca: Eu queria tentar uma... ter a ousadia de tentar uma síntese para o desafio da primeira pergunta do Giannetti. Acho que a síntese poderia passar, certamente, por duas vertentes: a criança e a arte. A arte, a beleza, a estética, ou seja, aquilo que você en passant estava dizendo antes, que a visão que o artista tem da vida é uma visão real, e não apenas ideal. No meu trabalho estou verificando isso cada vez mais fortemente. Crianças expulsas da escola porque não aprendem a ler, a escrever, porque não querem ficar, porque não gostam. Em contato com a beleza, com a arte, com a cultura, se educam fantasticamente. Onde está a burrice: na criança que não aprende ou na escola que não sabe ensinar? E a minha percepção é que arte, estética, cultura, não são instrumentos de educação. Elas são educação por si. O que você pensa?
Caetano Veloso: Bom, eu gosto. Concordo, sobretudo, com a conclusão do seu raciocínio [risos]. No meio do caminho, quando você perguntou onde estava a burrice – se na criança que não quer aprender ou na escola que não sabe ensinar –, tive vontade de quase interromper você e dizer “está nos dois lugares”. A gente não pode tentar separar isso. A burrice está em isso poder acontecer dos dois lados, entendeu? Isso tem que ser superado por ambas as partes. Tem que começar de alguns dos lados. Ou de alguém que não esteja em nenhum dos dois lados. Talvez o artista. Ou talvez quem goste de arte [risos], que jogue uma outra coisa e que saia por um outro caminho. Mas eu acho que a gente não pode, também, esquecer das responsabilidades individuais de todos. Inclusive de cada pessoa. E responsabilidade de cada pessoa vai crescendo na medida em que a pessoa vai crescendo. Então, uma criança vai tendo cada vez mais responsabilidade. E as crianças, hoje, devem mesmo ter mais responsabilidades do que tinham há muito tempo atrás porque elas eram mais crianças do que são hoje. Elas não eram expostas a tanto conhecimento da vida como são hoje, por causa da televisão, do modo mesmo como a educação se desenvolveu. E também porque ela se desenvolve com mais velocidade. Há uma série de coisas assim... E os homens, não por serem pobres, estão... Como é que se diz?... Livres de responsabilidades. E, ainda, por serem crianças pobres, não estão livres de responsabilidades. Acho que em cada posto, em cada lugar em que alguém está, deve-se exigir dos indivíduos que estão pertos de si, inclusive no caso em que for preciso punir mesmo, porque há uma tendência meio doentia de parecer... Li no livro desse cara lá do Rio... [tenta se lembrar] Um negócio sobre... Como é o nome do sujeito? Olavo de Carvalho! Um negócio que era bom sobre isso, de que você substituir a responsabilidade individual por uma responsabilidade social, que é sempre superior às responsabilidades individuais, é doentio. Não gosto disso. Tenho horror a ler aquelas senhoras fascistas de Copacabana que escrevem cartas para o Jornal do Brasil dizendo: “Ah, essas crianças precisam ser punidas, os adolescentes...”. São as mulheres chatas, horrorosas que pensam que você deve botar a carrocinha de cachorro para levar menino, entendeu? Detesto elas, porém não acho certo que você pense: “A culpa é da sociedade”. E, se um menino de 17 anos mete uma faca no seu peito, então você acha que está certo? Não está certo! E ele, como indivíduo, tem responsabilidades morais sobre isso e deveria responder legalmente também. Eu não vejo por que não.
Matinas Suzuki: Por falar em crianças, você vai ser pai mais uma vez.
Caetano Veloso: Mais uma vez! [risos] Está se tornando um hábito!
Matinas Suzuki: E o Chico [Buarque] virou avô!
Caetano Veloso: Pois é, que inveja!
[risos]
Matinas Suzuki: Como é que tem sido, para você, ser pai depois dos 50 anos?
Caetano Veloso: Tem sido bom também! Ser pai foi uma coisa... Quando o Moreno nasceu, foi uma mudança muito radical em minha vida. Nada me mudou tanto. Nada foi tão novo como informação para mim quanto isso. E é muito importante, porque foi uma coisa boa. Houve coisas muito ruins na minha vida, que mudaram muito o rumo da minha realidade pessoal. Mas nem uma coisa – nem das muito boas, nem das muito ruins– foi mais capaz do que o nascimento de Moreno de mudar a minha perspectiva, minha orientação, minha sensibilidade, tudo. Foi uma coisa muito boa! E, depois de anos, quando Moreno já tinha 20 anos, nasceu o Zeca. Então foi bom, foi uma confirmação dessa coisa que é incrível... Porque eu pensava, até os 20 e poucos anos de idade... Eu e Dedé [Idelzuíte Gadelha, conhecida como Dedé Veloso, é atriz e foi casada com Caetano Veloso de 1967 a 1983] tínhamos decidido que não íamos ter filhos. Eu estava certo de que nunca ia ter filho. Tinha uma decisão assim... sartriana, “não terei filhos!”. Inclusive influenciado diretamente pelo próprio [Jean-Paul] Sartre [(1905-1980) filósofo existencialista francês que foi um dos pensadores mais influentes do século XX e, da mesma forma que a companheira Simone de Beauvoir, optou por não ter filhos. No livro As palavras, de 1964, afirmou: "Não há bom pai, é a regra; que não se faça disso agravo aos homens e sim ao laço de paternidade que apodreceu. Fazer filhos, não há coisa melhor; tê-los, que iniqüidade!" ]. Mas depois resolvi, me veio um desejo. Quando eu estava em Londres, quando começou a se falar que ia se tornar possível voltar ao Brasil, comecei a ter vontade de ter um filho, uma curiosidade... E, primeiro, Dedé não aceitou, depois a convenci e Moreno nasceu. E eu que nem gostava de criança, detestava criança! Olha aí, você não sabia disso! Eu não gostava de criança! Achava criança um negócio chato.
Cesare de Florio la Rocca: Eu também! [risos]
Caetano Veloso: Ah, então!... Moreno nasceu, mudei isso.
Luiz Tenório de Lima: Caetano, então... Como é que você vê, hoje, a influência que pode ter tido para você a sua experiência com a psicanálise?
Caetano Veloso: Rapaz, a psicanálise... [risos] Vou lhe dizer uma coisa. Você é psicanalista, talvez você não vá gostar, talvez você goste, mas não é uma coisa que agradaria aos psicanalistas... Fiz muitos anos psicanálise e, antes de fazer – você sabe disso – eu tinha uma atração pela idéia da psicanálise. Na verdade, quando criança eu imaginei algo exatamente como a psicanálise embora não soubesse que ela existia - já lhe contei isso...
Hubert Aranha: Você inventou a psicanálise antes?
[risos]
Caetano Veloso: Inventei a psicanálise! Inventei a psicanálise em Santo Amaro! Quando eu tinha assim uns nove ou dez anos de idade, inventei a psicanálise. Pensei que deveria haver um médico – e achei que deveria ser um médico – com quem a gente pudesse falar das nossas angústias, e que aí houvesse uma conversa e que a gente melhorasse...
Hubert Aranha: Tinha um filme... Aquele filme, Próxima parada: bar boêmio, que tem uma mãe judia e o cara fala assim: ”Ah, se o [Sigmund] Freud não tivesse inventado o complexo de Édipo, minha mãe...”.
[sobreposição de vozes]
Caetano Veloso: Pois é, exatamente! Se o Freud não tivesse inventado a psicanálise, acho que eu teria que inventá-la, porque imaginei isso em Santo Amaro. Mas enfim... Então, eu tinha uma atração e uma simpatia muito grande pela psicanálise e gostei muito de ler Freud, que é um escritor brilhantíssimo, escreve “lindissimamente” bem, um homem inteligentíssimo. Mas o negócio da... a empreitada da psicanálise, afinal de contas, me pareceu que... Não quero ser ingrato com a psicanálise porque, com a psicanálise, consegui muitas coisas. Há muitos "conseguimentos" importantes que vieram da prática da psicanálise, de eu ter freqüentado a análise, porém são justamente os aspectos que seriam menos psicanalíticos do que aconteceu lá. [risos] Nenhum dos eventos decisivos na minha história que vieram da prática da psicanálise corroboram as idéias fundamentais da psicanálise. Eu quase que diria que, antes, pelo contrário. É curioso isso, mas é...
Marcos Augusto Gonçalves: Evento decisivo: cita um exemplo!
Caetano Veloso: Posso dar um exemplo de jeito de ser. Fiz psicanálise com três psicanalistas. Primeiro com um em Londres, um psicanalista brasileiro que vivia em Londres, depois com um moço no Rio e por fim com doutora Inês Besouchet [primeira psicóloga a ter formação em psicanálise, fundadora da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro e criadora do Cesac (Centro de Estudos de Antropologia Clínica)]. O primeiro chama-se Abrão Brafman, mora em Londres;,o segundo chama-se Rubens Molina e a terceira doutora Inês Besouchet. Mas foi meio trocado, porque fiz em Londres com Abrão Brafman porque eu estava muito, muito mal. E eu tinha essa curiosidade com a psicanálise desde criança, mas não achava que tinha uma necessidade premente de fazer como um tratamento. Tinha curiosidade intelectual e atração por aquilo, mas em Londres – eu estava exilado – fiquei muito mal psicologicamente. Então Dedé terminou localizando um psicanalista, telefonando para ele e me instigando a ir até lá. E comecei e tal, e fiz. Era muito analítica essa análise, no sentido em que ali esperava-se que o inconsciente falasse, os silêncios eram muito indutivos... Havia toda essa coisa. E não posso dizer que não houve nada, mas sinto que ali... Não posso dizer que as coisas... Mas também não demorei muito tempo lá. Vim para o Brasil e aí fiquei na Bahia sem vontade, nem propriamente necessidade de fazer psicanálise. Mas foi voltando a vontade de retomar para ver até onde aquilo ia e porque permaneceu uma necessidade... E digo: “Bom, tenho que concluir isso”. Não havia na Bahia quem eu fizesse, então vim morar no Rio de Janeiro por isso. Fui morar no Rio para fazer psicanálise. E fui procurar especificamente a doutora Inês Besouchet, porque Carlos Augusto Nicéas, que é um psicanalista de quem me fiz amigo em Paris – mas, no Brasil, ele desapareceu da minha vida –, me tinha falado esse nome com muita admiração e entusiasmo. E havia uma dedicatória de Clarice Lispector, que é uma escritora que adoro desde os meus 19 anos... Desde os meus 17 anos, na verdade. O primeiro conto de Clarice que li... tinha 17 anos e me apaixonei por ela. Então, tem um livro da Clarice que é dedicado a Inês Besouchet. Então, se ela dedicou um livro a essa mulher e Carlos Augusto me falou dessa mulher, disse “vou procurar essa mulher no Rio”. Eu tinha vontade de fazer psicanálise com uma mulher. Por alguma razão achava isso interessante. Se viesse para São Paulo, eu ia procurar a Virgínia Bicudo [(1915-2003) socióloga e psicanalista, usou os meios de comunicação de massa como forma de divulgação da psicanálise]. Mas como era para o Rio que eu queria ir, porque Dedé não queria morar em São Paulo, e sim no Rio, fui procurar a Inês Besouchet, que era uma mulher encantadora, maravilhosa, mas que me atendeu uns três dias para as primeiras entrevistas e, por fim, me disse que não tinha tempo e me indicou um jovem psicanalista, que é Rubens Molina, com quem fiz [análise] muitos anos. E ele era diferente de tudo... [risos] De uma certa forma, o que mais bateu em mim por parte dele foi o fato dele ser muito diferente do que a gente entende ou do que se diz quando se tenta aprofundar a observação sobre a psicanálise. Ele era muito direto e falava das coisas imediatamente – falava quase antes de mim –, ele ia se metendo, dizendo coisas e... Muito rapidamente, entendeu? E aquilo foi muito bom. Mas não sei se aquilo é muito psicanalítico. Alguma coisa, sim, era. Mas as coisas que mais repercutiram em mim, repercutiram porque eram coisas que... se impunham e que eu não tinha chegado a ter coragem de pensar. Ele pegava e dizia. Isso não é psicanálise, isso não é o que se diz profundamente que é psicanálise, não é uma conversa do inconsciênte que aí vai se revelar e então ele é legível. Esse aspecto é que nunca cheguei propriamente a ver na psicanálise, embora tenha ficado muitos anos ali e tivesse tirado muito proveito daquilo. Mas, por exemplo, lendo o livro de [Ernest] Gellner [(1925-1995) filósofo e antropólogo social de grande contribuição nos estudos das sociedades modernas e do nacionalismo. Em 1985, publicou O movimento psicanalítico: ou os ardis da não-razão], onde ele dizima a psicanálise, não encontro no meu próprio histórico uma resposta àquelas críticas, que me parecem, assim, terminantes. [risos]
Matinas Suzuki: Caetano... Cacá, você queria fazer uma pergunta antes?
Caetano Veloso: Mas ainda amo a psicanálise!
[risos]
Cacá Diegues: Eu ia intervir quando o Caetano estava falando das coisas boas e ruins que aconteceram na vida dele, a propósito do nascimento do Moreno como uma coisa boa e importante... Eu ia perguntar se você considera que o seu exílio, sua viagem forçada, sua ida forçada para Londres, foi um momento ruim mesmo na sua vida ou se não. Como é que você vê isso hoje?
Caetano Veloso: Vejo como tendo sido bastante ruim para mim na hora e, de uma certa forma, aquilo me pôs no meu destino de uma maneira que me fez sentir com menos liberdade em relação a planejar a minha vida. Eu tinha desejo de fazer outra coisa que não seria música popular no início. E, depois que já estava fazendo música popular, tinha ambições provisórias em relação a essa atividade. Eu queria fazer coisas que fossem significativas, que dessem uma luz para o ambiente, que dessem uma coisa para aquilo e, então, me retiraria para fazer outra coisa – que eu julgava que pudesse ser cinema, mas que talvez fosse algo mais ligado à literatura, mas não sabia [o quê]–. Ainda tinha muita esperança de... Eu queria me recolher para decidir. Mas quando cheguei a Londres... Até porque fiquei dois meses na cadeia, eu e Gil ficamos dois meses na cadeia e aquilo me abateu muito. Fiquei muito deprimido e muito amedrontado. Então, cheguei a Londres e fiquei deprimidíssimo por estar fora do Brasil, porque eu fui expulso daqui. Você imagine... O Brasil é um negócio tão importante... Ser brasileiro, para mim, não é um acaso indiferente. Pode ser para muitas pessoas. Talvez seja saudável que seja. Mas não é para mim. Para mim, tem um significado essencial, que diz alguma coisa a respeito do meu [enfatiza] ser. Não é algo indiferente. Então, estar expulsa do país uma pessoa que se sente tão ligada a ele é algo assim quase insuportável. Então me senti muito abatido, muito deprimido. E não só procurei a psicanálise, como me tornei menos corajoso em relação a decidir sobre o meu destino. Então, mesmo em Londres, um produtor inglês nos procurou, porque ele já tinha sido ligado à Polygram [fundada em 1972 e parte do grupo Philips, foi uma das gravadoras mais importantes da indústria fonográfica mundial. Em 1998 foi vendida para a canadense MCA Music Entretainment, que já atuava na área, e tornou-se Universal Music. Já em 2006, era a maior gravadora do mundo], chamava-se Ralph Mace, a mim e a Gil. Ele já estava em outra gravadora, o pessoal da Polygram não teve interesse, embora nós tivéssemos levado uma carta. E ele, que tinha ido para uma outra gravadora, ficou curioso. “O que serão esses brasileiros?” Foi nos procurar e se disse encantado! E produziu aqueles discos nossos na Famous Records [selo do grupo Paramaount Records], em Londres. Aquele que tem “London, London” [o álbum Caetano Veloso, de 1970] e o Transa [de 1971]. E o disco do Gil [chamado Gilberto Gil, de 1971]. Esse sujeito fazer isso, para mim, foi uma coisa miraculosa. A gente ali, jogado fora, o sujeito se interessou, achou bom, achou interessante o que a gente fazia, ficou entusiasmado... Bom, fiquei muito pequeno... O “eu-mínimo” [conceito da psicanálise], entendeu? [risos] Disse assim: “Em time que está ganhando não se mexe. Se a música popular está funcionando, pelo menos isso eu faço, vou fazendo...”. Então, isso já era a minha vida. E depois voltei para o Brasil e continuei a música popular. Mas a impressão que tinha é de que, se eu não tivesse sido tão abalado por aqueles acontecimentos, teria mudado de rumo. Mas não sei se seria melhor, porque acho que o meu destino é esse mesmo, de música popular. E gosto muito!
Cacá Diegues: Deixa eu te fazer uma pergunta... Aquele seu filme, Cinema falado [1986], entre outras coisas, é um filme de cineasta. Tem uma integridade de cineasta muito grande. Por que você não se empenha em fazer outro filme?
Caetano Veloso: Rapaz, tenho vontade! De vez em quando esboço... Não posso dizer que sou muito encorajado, mas eu, de vez em quando, esboço. Faz um ano e pouco cheguei a trabalhar um roteiro com Hermano Vianna [antropólogo e produtor cultural que escreveu livros como O mistério do samba e O baile funk carioca] e com Serginho Metler, sobre aquela peça Ó, paí, ó!, do Bando de Teatro Olodum [grupo de atores negros formado em 1990 e ligado, inicialmente, ao Olodum, bloco-afro do carnaval de Salvador e que foca, em suas produções a questão do negro no Brasil, utilizando uma linguagem experimental própria. Atores de grande destaque, como Lázaro Ramos, fizeram parte do Bando], para fazer com os próprios atores. E, justamente, apareceram uns americanos que souberam que eu tinha esse sonho e queriam – diziam querer – produzir. Mas os americanos, quando se metem, começam a dizer como é que um roteiro deve ser, que com dez páginas um conflito tem que ser negado e que, na página 27, alguém tem que centrar e... Ah! É muito chato, porque era peça. Já era uma peça, entendeu? Era uma peça que tinha a graça de ser aquilo que foi, criado coletivamente pelo pessoal do Bando de Teatro Oludum, que era a vida no Pelourinho antes da reforma e tal. Num cortiço no Pelourinho e nas ruas e a saída no Carnaval, os blocos de percussão e tal. Aquilo, eu achava que filmar com a arquitetura e o urbanismo da Bahia e a geografia, ia ficar uma coisa encantadora. E acho que ficaria de fato. Mas aí os americanos ficaram assim e eu ia ter que batalhar uma produção, então, pelo Brasil. Isso era possível, mas ainda estava num período muito difícil. Agora seria talvez mais viável, porque agora os caminhos para que se financiem os filmes no Brasil estão mais desimpedidos...
Matinas Suzuki: Caetano, dos últimos filmes brasileiros, de quais que você gostou? Quais você acha que são... Você já falou de Tieta, mas estou te perguntando isso, porque há uma produção agora... Volta-se a fortalecer a produção do cinema brasileiro e [ele] volta a despertar interesses.
Caetano Veloso: É muito bom que haja interesse em se botar dinheiro em filme e a gente precisa. O Glauber Rocha não ia... Como você vê no livro do [Pedro] Maciel, que você citou, quando ele conta que chegou de Porto Alegre em Salvador – e Porto Alegre ele diz que é uma cidade mais desenvolvida do que Salvador, europeizada e eles eram um grupo de críticos de cinema, jovens –, eles não imaginavam a possibilidade de fazer filmes. Eles tinham ambições intelectuais de escrever sobre filmes estrangeiros, mas fazer um filme pretensioso no Brasil era algo impensável. Ele foi cair em Salvador mais ou menos por acaso e alguém deu o telefone do Glauber, ele telefonou para ver quem era essa pessoa. E então, quando encontrou o Glauber, que era um garoto de 20 anos de idade, o Glauber já falava com ele como se ele, Glauber, fosse um cineasta importante! [risos] E se sentia como alguém que ia fazer filmes importantes. E não tinha dúvidas quanto a isso! Ele achou: “Que sujeito louco! Nunca vi isso!” Foi morar na Bahia o Maciel, né? Foi morar na Bahia! [risos] Então esse desejo que apareceu no Glauber não pode se referir a nada. É o nosso desejo, como povo, de criar uma cultura audiovisual em que a gente se veja e se enriqueça, se “complexifique”. E que possa crescer vendo, entendeu? E acho que isso está acontecendo com Tieta, agora.
Hubert Aranha: Mas, olha só, você vai lançar um livro agora. Então vai acontecer...
Caetano Veloso: Se conseguir terminar de escrever! [risos]
Hubert Aranha: É, pois é! Mas me lembro de que esse seu filme, eu até estava na estréia no FestRio...
Caetano Veloso: Você estava naquela noite?
Hubert Aranha: É. FestRio, né? Teve uma crítica instantânea. Mal o filme acabou, já tinha um sujeito lá atrás gritando que era uma droga...
Caetano Veloso: Não era quando acabou! Era durante o filme. Durante a projeção.
Hubert Aranha: Pois é, era um crítico violento! Então, acho o seguinte: ao mesmo tempo em que você é um sujeito muito... O Marcos fica chateado quando vê você na Caras, porque você é o herói dele, que pintava a boca de batom, botava plumas e você saiu na Caras e tal. Então acho que as pessoas esperam muito de você e isso deve ser chato, não é? E acho que... Você vai lançar um livro agora e muita gente que não fala mal de você ou, digamos, não tem coragem de falar mal de você, em relação à sua música, [e não falaria] “essa música é uma droga! Caetano em espanhol é uma porcaria” ou sei lá, alguma coisa assim, porque as pessoas têm medo de falar o que pensam no Brasil. Muita gente tem, não é o seu caso evidentemente... Você não ficou chocado? Você não tem grilo de isso acontecer de novo por você ser um cara respeitado enquanto [exerce] uma determinada profissão e você vai e se aventura, como o Chico Buarque, que escreveu um livro agora [Estorvo, 1991] e todo mundo [disse] “não, é uma porcaria! É uma droga, não sei o quê”... Você não acha que tem uma coisa meio cruel nessa adoração que as pessoas têm por você? Nesses momentos em que o artista quer fazer um outro troço diferente?
Caetano Veloso: Ah, tem sim. Aquele dia, quando aquele filme passou no Rio, a primeira vez que passou o Cinema falado, fiquei chocado, porque aquele sujeito xingava. Ele gritava, ele me xingava! Xingava e gritava o meu nome durante a projeção do filme. Fiquei parado, quieto, mas fiquei... Sofri muito. Não conhecia ele, não sabia quem era. Dizem que ele faz cinema. Chama-se Arthur Omar. Foi bom, porque ele fez propaganda, aí nunca mais esqueci o nome dele. [risos] Mas ainda não vi nenhum filme dele. Mas fiquei mal à beça, porque ele xingava muito. Depois, naFolha [de S. Paulo], umas cineastas mulheres deram entrevista. As três não tinham visto o filme – faziam questão de dizer que não tinham visto – e as três me xingavam porque tinha feito o filme. Elas não tinham visto, diziam que não iam ver...
Hubert Aranha: Você fez com o seu dinheiro? Você é que produziu o filme?
Caetano Veloso: Foi. Eu com o Guilherme Araújo [(1937-2007) produtor musical]. Baratíssimo o filme, não gastamos nada. Era filmado uma vez cada cena. Gostei muito do filme, gostei de fazer e gostei do resultado. Saiu exatamente o que eu queria!
Matinas Suzuki: Desculpe. [interrompe] Continue, porque eu ia mudar um pouco de assunto na mesma ordem.
Caetano Veloso: Eu ia terminar [dizendo] que... Acho, por exemplo, se eu escrever, porque a pergunta dele era “e se o livro sair?”... Acho que existe agora um ambiente bastante hostil à própria idéia de que um livro meu saia. [risos] Porque há uma moda muito grande de as pessoas se utilizarem do recesso daquelas aberturas dos anos 1960 e de querer dizer que "pão-pão, queijo-queijo”, “cada macaco no seu galho" e que alta cultura é alta cultura e que baixa cultura é baixa cultura [alta cultura (high brow) tem um caráter acadêmico e engloba o que foi produzido de relevante a respeito da humanidade como um todo, constituindo conhecimentos universais. A baixa cultura (low brow), por outro lado, é constituída pela cultura popular, local]. E ficam com raiva dos músicos populares no Brasil. O Glauber Rocha escreveu um romance. Publicou um romance. E ele era um cineasta! Vários cineastas americanos publicaram romance. [Elia] Kazan [(1909-2003) cineasta grego radicado nos Estados Unidos, ganhador de quatro Globos de Ouro e diversos prêmios em festivais internacionais de cinema] escreveu alguns romances. Nunca vi ninguém protestar e achar que o mundo do romance foi maculado pela presença do cineasta. E cinema é show business!
Hubert Aranha: O [Arnaldo] Jabor está se revelando um excelente jornalista.
Caetano Veloso: Pois é, o Jabor é jornalista, mas jornalismo é outra coisa. Agora, o Chico Buarque, porque faz música popular e escreveu um romance... O Chico Buarque, quando saiu o Estorvo, a primeira coisa que disse aos meus amigos – Péricles Cavalcanti deve se lembrar disso, porque foi a primeira pessoa para quem disse – foi: “Isso é um estilo que honra a terra de Machado de Assis”. Isso é a única coisa que você pode dizer do estilo de escrita do Chico Buarque. Não há como você fugir dessa evidência. Ele escreve bem [enfatiza]! O que dói nessas pessoas é o fato de saberem, elas, que o bem da escrita do Chico vem, em grande parte, do seu treinamento com letras de músicas popular, entendeu? Em grande parte, não só daí. Chico é um menino que cresceu em ambiente literário, filho de um grande [enfatiza] escritor [Sérgio Buarque de Hollanda], não é? Agora, ele desenvolveu o trato com as palavras na música popular e há ecos dessa sonoridade bonita nos dois romances dele. Ambos têm um texto de altíssimo nível! Indiscutivelmente belo como texto. No entanto, críticos respeitadíssimos... Por isso é que no Fantástico fiz um... Xinguei!... Porque também tenho que demonstrar aquele batom a que você se refere. Não sou um sujeito obrigado a dizer coisas razoáveis, entendeu? Não vou ouvir “carão”, porque cheguei no Fantástico e gritei: “É porcaria o artigo do Wilson Martins!”. É, de fato, uma porcaria aquele artigo. Não preciso conhecer toda obra do Wilson Martins, a história da inteligência brasileira, para dizer que aquilo é uma porcaria. Bastava que lesse somente aquilo! E aquilo é uma porcaria. Não que eu não o respeite, que não seja capaz de respeitá-lo em outras instâncias, entendeu? Mas aquilo ali, evidentemente, era uma porcaria que nem sequer se explicava. Era um artigo que nem sequer tinha um mínimo de pudor de esconder o escândalo de que ele estava sendo escrito apenas porque estava – como o Arthur Omar, na noite do lançamento do meu filme – indignado com o mero fato de Chico Buarque ter escrito um romance. E, pior ainda, que seja bem escrito. Porque ele dizia assim: “Que exista uma literatura comercial, tudo bem. Mas essa imitação de boa literatura é que é mais nociva”, quer dizer, como a pessoa pode imitar boa literatura? Só fazendo boa literatura! Não entendo o que seja isso. Nisso daí há algo de muito suspeito, algo de terrível. Na verdade, há um desejo de direita truculenta, no Brasil, que se manifesta em vários lugares – truculenta! –, fingindo-se de liberal e que é brutal! Brutal! [fala bravo] E que nos ameaça cotidianamente.
Matinas Suzuki: Caetano, infelizmente nós já estamos com 50 minutos no nosso segundo tempo, que é de 45, então tivemos prorrogação nesse caso! [risos]
Caetano Veloso: Puxa vida...
Matinas Suzuki: Diga!
Caetano Veloso: Nada! É porque eu estava falando e daí eu ia falar com Giannetti por causa da... Gosto tanto daquele livro dele, o Vícios privados, benefícios públicos, porque ele é um economista que apresenta um pensamento liberal com... Li também o livro de Roberto Campos! Grossão, mas li. Eu me interesso muito pelos pensadores de direita. Acho muito importante, muito interessante, porque eu não sou nem de direita nem de esquerda. Sempre estive ligado à esquerda, mas aquela ligação automática do artista popular com a esquerda, acho intolerável, em primeiro lugar. E depois porque eu era meio suspeito! O Tropicalismo oscilava entre ser uma pretensão de verdadeira... À esquerda da esquerda e uma barretada ao mercado, à força da competitividade livre. Isso era absolutamente explícito no Tropicalismo, então nós somos – eu e Gil – pessoas muito suspeitas politicamente. Quando aqueles estudantes de esquerda nos vaiavam, eles não estavam sem razão. Agora, por isso mesmo não aceito aquele liberalismo que aparece com as perguntas. Como ele aparece no livro do Giannetti, aquilo me interessa enormemente. Agora, ouvir desaforo de quatro ou cinco caras truculentos que querem fazer com que a violência seja antipopular e anti-humana, se torne algo respeitável, não abaixo a cabeça para esse negócio, não. Não abaixo a cabeça para esse negócio. Não abaixarei a minha cabeça de brasileiro para esse negócio!
Matinas Suzuki: Caetano, muito obrigado pela sua presença aqui, esta noite! Eu queria agradecer os nossos entrevistadores, essa bancada de entrevistadores, agradecer a sua atenção e lembrar que o Roda Viva está comemorando 10 anos e volta na próxima segunda-feira às dez e meia da noite. Até lá! Uma boa noite para todos e uma boa semana!
Psicopolítica eemancipação intercultural
ResponderExcluirA questão Galiza,Brasil e Lusofonia
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Evandro Vieira Ouriques
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Boletim da Academia Galega da Língua Portuguesa
Resumo
O autor trata da perspectiva psicopolítica como a melhor convergência para a açãoemancipatória e examina a questão estratégica que envolve Galiza, Brasil e Lusofonia:O desafio da Galiza é um complexo e sistêmico efeito do estado mental
crescimentoilimitado. Mostra como este estado mental é construído com operações psicológicaspara gerar efeitos políticos (como fazem a dupla panóptica da concentração de mídiaaliada à da vigilância digital, fortalecida pela neurociência para fins políticos e merca-dológicos) e incluem para isto a cartilha do sujeito do auto-controle e dos balançosanuais. O artigo trata, então, de como fazer a apropriação emancipatória desta cartilhaque liberta do ataque epistemocida inserido no primeiro de seus cincos treinamentos,permite que Galiza, Brasil e Lusofonia (reintegrados) dêem exemplo ao mundo decomo emancipar a comunicação intercultural.
http://www.academia.edu/2235615/_Galiza_Nov_2012._Artigo_Científico_Psicopolítica_e_Emancipação_Intercultural_a_questão_Galiza_Brasil_e_Lusofonia
https://www.facebook.com/caetanodable/posts/10218099004249672
ResponderExcluirO Gianetti plageou o meu post como um livro "dele" !
ResponderExcluirAbsurdo isso... rs
https://www.facebook.com/caetanodable/posts/10218000057776072