quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Os nossos novos heróis por Žižek

Os nossos novos heróis

por Žižek


Todos nos lembramos do rosto sorridente do presidente Obama, cheio de esperança e confiança, em sua primeira campanha: “Yes, we can!” — nós podemos nos livrar do cinismo da era Bush e trazer justiça e bem-estar para o povo americano. Agora que os EUA continuam suas operações secretas e expandem sua rede de inteligência e espionagem até mesmo na direção de seus aliados, podemos imaginar manifestantes gritando para Obama: “Como você pode usar os drones para matar? Como você pode espiar nossos aliados?” Obama murmura com um sorriso zombeteiro: “Yes, we can.”
Mas a personalização perde o sentido: a ameaça à liberdade revelada pelos whistleblowers tem raízes mais profundas, sistêmicas. Edward Snowden deve ser defendido não só por que seus atos envergonharam os serviços secretos dos EUA; ele revelou algo que não só os EUA, mas também todos os grandes (e não tão grandes) poderes – da China à Rússia, da Alemanha a Israel – estão fazendo (na medida em que são tecnologicamente capazes de fazê-lo).
Seus atos forneceram uma base factual para as nossas suspeitas de que estamos sendo monitorados e controlados – a lição é global, muito além do padrão americano. Nós realmente não soubemos nada através de Snowden (ou Manning) que já não presumíssemos que fosse verdade. Mas uma coisa é suspeitar de maneira geral, outra é obter dados concretos. É um pouco como saber que um parceiro sexual está traindo você – pode-se aceitar o conhecimento abstrato, mas a dor surge com os detalhes picantes, as fotos do que eles estavam fazendo etc.
Em 1843, o jovem Karl Marx afirmou que o ancien régime da Alemanha “apenas imagina que acredita em si mesmo e exige que o mundo imagine a mesma coisa”. Em tal situação, colocar a culpa em quem está no poder torna-se uma arma. Ou, como Marx continua: “A pressão deve ser mais premente adicionando-lhe a consciência da pressão, a vergonha deve ser mais vergonhosa ao ser divulgada”.
Esta, exatamente, é a nossa situação hoje: estamos diante do cinismo descarado dos representantes da ordem global existente, que só imaginam que acreditam em suas ideias de democracia, direitos humanos etc.
Em seu texto clássico “O que é o Ilusionismo”, Kant contrasta o uso “público” e “privado” da razão — “privado” é, para Kant, a ordem institucional em que vivemos (o nosso estado, nossa nação…), enquanto o “público” é a universalidade transnacional do exercício da razão: “O uso público da razão deve ser sempre livre e só ele pode trazer entendimento entre os homens; o uso privado da razão, por outro lado, pode muitas vezes ser muito limitado, sem particularmente impedir o progresso do entendimento. Por uso público da razão eu me refiro ao que um acadêmico faz perante o público leitor.”
Segundo Kant, o domínio do Estado é “privado” e contido por interesses particulares, enquanto indivíduos que refletem sobre questões gerais usam a razão de forma “pública”. Esta distinção kantiana é especialmente pertinente com a internet e outras novas mídias. Em nossa era da computação em nuvem, não precisamos mais de grandes computadores individuais: softwares e informações são fornecidos sob demanda e os usuários podem acessar as ferramentas ou aplicativos da web através de browsers.
Este maravilhoso novo mundo, no entanto, é apenas um lado da história. Usuários estão acessando programas e arquivos de software que são mantidos longe de salas climatizadas com milhares de computadores.
Para gerenciar uma nuvem é preciso um sistema de monitoramento que controla o seu funcionamento, e este sistema é, por definição, escondido dos usuários. Quanto menor e mais personalizado o item (smartphone) que eu tenho em mãos, e mais fácil de usar, mais sua configuração tem de confiar no trabalho que está sendo feito em outro lugar, num vasto circuito de máquinas que coordena a experiência do usuário. Quanto mais a nossa experiência é espontânea e transparente, mais ela é regulada pela rede invisível controlada por agências estatais e grandes empresas privadas, que seguem suas agendas secretas.
Uma lei secreta, desconhecida dos indivíduos, legitima o despotismo arbitrário daqueles que a exercem, como indicado no título de um recente relatório sobre a China: “Mesmo o que é segredo é um segredo na China.” Intelectuais incômodos que informam sobre a opressão política, catástrofes ecológicas, a pobreza rural etc ficam anos na prisão por trair um segredo de Estado. Como muitas das leis são confidenciais, torna-se difícil para as pessoas saberem como e quando as estão violando.
O que torna o controle de nossas vidas tão perigoso não é o fato de que perdemos nossa privacidade e que todos os nossos segredos íntimos são expostos ao Big Brother. Não existe agência estatal capaz de exercer tal controle – não porque eles não saibam o suficiente, mas porque sabem demais. A quantidade de dados é muito grande, e apesar de todos os programas para a detecção de mensagens suspeitas, os computadores são demasiado estúpidos para interpretar e avaliar corretamente, resultando erros ridículos em que pessoas inocentes são listadas como potenciais terroristas — e isso faz com que o controle estatal das comunicações seja mais perigoso. Sem saber por quê, sem fazer nada ilegal, todos nós podemos ser listados como potenciais terroristas.
Lembre-se da resposta lendária de um editor de um jornal do grupo Hearst à dúvida do dono de por que ele não tirava longas e merecidas férias: “Tenho medo de que se eu sair haverá caos e tudo vai desmoronar – mas eu tenho ainda mais medo de descobrir que, se eu sair, as coisas vão continuar normalmente sem mim, a prova de que eu não sou realmente necessário!” Algo semelhante pode ser dito sobre o controle estatal das nossas comunicações: devemos temer que não temos segredos, que as agências estatais secretas sabem tudo, mas devemos temer ainda mais que elas não consigam se sair bem nessa empreitada.
É por isso que os whistleblowers têm um papel crucial na manutenção da “razão pública”. Assange, Manning, Snowden são os nossos novos herois, casos exemplares da nova ética que convém à nossa era de controle digital. Eles não são mais apenas os denunciantes das práticas ilegais de empresas privadas e autoridades públicas; eles denunciam essas próprias autoridades públicas quando elas se engajam no “uso privado da razão”.
Precisamos de Manning e Snowden na China, na Rússia, em todos os lugares. Há estados muito mais opressivas do que os EUA – apenas imagine o que teria acontecido a alguém como Manning em um tribunal russo ou chinês (provavelmente sem direito a julgamento público). No entanto, não se deve exagerar a suavidade dos EUA: é verdade, os EUA não tratam os prisioneiros com tanta brutalidade como a China ou a Rússia – por causa de sua prioridade tecnológica, os Estados Unidos simplesmente não precisam da abordagem brutal. Nesse sentido, os EUA são ainda mais perigosos do que a China na medida em que suas medidas de controle não são percebidas, enquanto a brutalidade chinesa é exibida abertamente.
Portanto, não é suficiente jogar um Estado contra o outro (como Snowden, que usou a Rússia contra os EUA): precisamos de uma nova rede internacional para organizar a proteção dos denunciantes e a disseminação de sua mensagem. Denunciantes são nossos herois porque eles provam que, se quem está no poder faz o que faz, nós também podemos fazer.
Publicado originalmente no Common Dreams. O autor, o esloveno Slavoj Zizek, é filósofo e teórico crítico, professor da European Graduate School e de insituições americanas como a Universidade de Columbia, e Universidade de Michigan.


Fonte: 
http://www.revistababel.com.br/zizek-os-nossos-novos-herois/

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