O
USO E A CONTEMPLAÇÃO
por
OCTAVIO PAZ
trad. ALEXANDRE BANDEIRA
Neste que é um de seus mais respeitados ensaios, inédito em português, o escritor mexicano Octavio Paz posiciona o artesanato no centro de uma balança que pesa a beleza e a utilidade, a arte e a tecnologia.
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trad. ALEXANDRE BANDEIRA
Neste que é um de seus mais respeitados ensaios, inédito em português, o escritor mexicano Octavio Paz posiciona o artesanato no centro de uma balança que pesa a beleza e a utilidade, a arte e a tecnologia.
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FIRME,
DE PÉ.
Tão firme que não parece ter sido posto: é como se tivesse brotado
ali mesmo. Ocre, da cor de mel queimado. A cor de um sol há mil anos
enterrado, descoberto apenas ontem. Listras verdes e laranja
percorrem o seu corpo ainda cálido. Círculos, padrões ornamentais:
vestígios esparsos de um alfabeto perdido? A barriga de uma mulher
prenhe, o pescoço de um pássaro.
Se taparmos e destaparmos sua boca com a palma de nossa mão, ouviremos como resposta um murmúrio grave, o som de água em ebulição, erguendo-se do seu fundo; se batermos em suas laterais com nossos dedos, emitirá uma risada aguda, como moedas de prata caindo sobre uma pedra. Poliglota, conhece a linguagem do barro e dos minerais, do ar que corre por entre as paredes de um cânion, de lavadeiras esfregando roupa no rio, de céus tempestuosos, da chuva. Um pote de argila cozida: não o coloque numa vitrine, ao lado de objetos raros e preciosos. Pareceria fora do lugar. Sua beleza está relacionada ao líquido que ele contém e à sede que deve saciar. Sua beleza é corpórea: eu posso vê-lo, tocá-lo, sentir o seu cheiro, ouvi-lo. Se estiver vazio, deve ser enchido; se estiver cheio, deve ser esvaziado. Eu o tomo pela alça como a uma mulher pelo braço, ergo-o e derramo numa bacia o leite ou o pulque – líquidos lunares que abrem e fecham as portas da aurora e da escuridão, da vigília e do sono.
Uma jarra de vidro, uma cesta de palha, um vestido rústico de musselina, uma bandeja de madeira: objetos belos, não apesar de sua utilidade, mas por causa dela. Sua beleza lhes é inerente, como o perfume ou a cor das flores. É inseparável de sua função: são coisas belas porque são coisas úteis. O artesanato pertence a um mundo anterior à distinção entre o útil e o belo. Tal distinção é mais recente do que se imagina. Muitos dos artefatos que chegaram até nossos museus e coleções particulares pertenciam a um mundo no qual a beleza não era um valor isolado e autônomo.
A sociedade era dividida em dois grandes domínios: o profano e o sagrado. Em ambos, a beleza era uma qualidade subordinada: no domínio do profano, subordinada à utilidade do objeto em questão, e no domínio do sagrado, ao seu poder mágico. Um utensílio, um talismã, um símbolo: a beleza era a aura em torno do objeto, resultante – quase sempre involuntariamente – da relação secreta entre sua forma e seu significado. Forma: o modo como uma coisa é fabricada; significado: o propósito para o qual é fabricada.
Hoje todos esses objetos, inevitavelmente arrancados de seu contexto histórico, de sua função específica, de seu significado original, postos à nossa frente em suas vitrines, parecem-nos divindades enigmáticas, exigem nossa adoração. Sua transferência da catedral, do palácio, da tenda do nômade, da alcova de uma cortesã ou da caverna de uma bruxa para o museu foi uma transmutação mágico-religiosa. Objetos tornaram-se ícones. Essa idolatria começou na Renascença, e do século 17 em diante tornou-se uma das religiões do Ocidente (a outra sendo a política). Há muito tempo, no auge do período barroco, Soror Juana Inés de la Cruz cunhou uma frase espirituosa, fazendo troça da estética enquanto admiração supersticiosa: “A mão de uma mulher é branca e bela porque feita de carne e osso, e não de mármore ou prata; eu a estimo não porque seja esplendorosa, mas porque seu aperto é firme”.
A religião da arte, como a religião da política, brotou das ruínas do cristianismo. A arte herdou da religião que a precedera o poder de consagrar as coisas e dotá-las de uma espécie de eternidade: os museus são nossos locais de adoração, e os objetos neles exibidos estão à margem da história. A política – ou, para ser mais preciso, a revolução –, por sua vez, apoderou-se de outra função religiosa: a de mudar o homem e a sociedade. A arte tornou-se um ato de heroísmo espiritual; a revolução, a construção de uma igreja universal. A missão do artista era transformar o objeto; a do líder revolucionário era transformar a natureza humana. Picasso e Stalin. O processo foi de mão dupla: na esfera da política, idéias foram convertidas em ideologias, e ideologias em idolatrias; obras de arte, por outro lado, tornaram-se ídolos, e estes ídolos foram transformados em idéias. Contemplamos as obras de arte com a mesma reverente admiração – embora com menores recompensas espirituais – que o sábio da Antiguidade dedicava ao céu estrelado: como corpos celestes, essas pinturas e esculturas são idéias puras. A religião da arte é um neoplatonismo que não ousa confessar o nome – isso quando não é uma guerra santa declarada contra hereges e infiéis. A história da arte moderna pode ser dividida em duas correntes: a contemplativa e a combativa. Escolas como o cubismo e o expressionismo abstrato pertencem à primeira; movimentos como o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo, à segunda. Místicos e cruzados.
Antes da revolução estética, o valor das obras de arte apontava para outro valor: a interconexão entre beleza e significado. Objetos artísticos eram coisas, que eram formas perceptíveis, que por sua vez eram signos. O significado de uma obra era múltiplo, mas todas as interpretações trilhavam o mesmo caminho de significação, segundo o qual o propósito e a existência fundiam-se numa raiz indissolúvel: a divindade. Qual a transposição moderna? Para nós, o objeto artístico é uma realidade autônoma, auto-suficiente, e seu significado último não se encontra além, mas dentro dele, em si e por si mesmo. É um significado à margem do significado: não se refere ao que não lhe esteja contido. Como a divindade cristã, as pinturas de Jackson Pollock não querem dizer nada: elas são.
Nas modernas obras de arte, o significado se apaga diante da pura emanação do ser. O ato de ver é transformado num processo intelectual que é também um rito mágico: ver é compreender, e compreender é participar do sacramento da comunhão. E além da divindade e dos fiéis, temos os teólogos: críticos de arte. Suas elaboradas interpretações não são menos herméticas que as da escolástica medieval ou dos pensadores bizantinos, embora sejam debatidas com bem menos rigor. As questões a que Orígenes, Albertus Magnus, Abelardo e Santo Tomás de Aquino dedicavam suas mais sérias reflexões reaparecem nas picuinhas de nossos críticos de arte, mas agora sob fantasias extravagantes ou reduzidas a meras obviedades. A comparação vai ainda mais longe: na religião da arte, não encontramos apenas as divindades com seus atributos e os teólogos que os decifram, mas também os mártires. No século 20 testemunhamos o Estado soviético perseguir poetas e artistas tão impiedosamente como os dominicanos extirparam a heresia albigense no século 13.
Não surpreende que a exaltação e a santificação da obra de arte tenham conduzido a revoltas e profanações periódicas. O fetiche é arrancado do seu altar, é coberto de tinta, ganha orelhas e rabo de burro e é assim exibido pelas ruas, é arrastado na lama, perfurado para se provar que o seu interior é apenas serragem, que não é nada nem ninguém e não tem significado algum – e em seguida é devolvido ao trono. O dadaísta Richard Huelsenbeck chegou a exclamar, num momento de irritação: “A arte deveria receber uma bela surra”. Ele tinha razão – exceto pelo fato de que os hematomas no corpo do objeto dadaísta seriam como medalhas no peito de generais: elas simplesmente elevariam a sua respeitabilidade. Nossos museus estão a ponto de estourar com tantas antiobras de arte e obras de antiarte. A religião da arte foi, afinal, mais astuta que a romana: ela assimilou cada dissidência que apareceu.
Se taparmos e destaparmos sua boca com a palma de nossa mão, ouviremos como resposta um murmúrio grave, o som de água em ebulição, erguendo-se do seu fundo; se batermos em suas laterais com nossos dedos, emitirá uma risada aguda, como moedas de prata caindo sobre uma pedra. Poliglota, conhece a linguagem do barro e dos minerais, do ar que corre por entre as paredes de um cânion, de lavadeiras esfregando roupa no rio, de céus tempestuosos, da chuva. Um pote de argila cozida: não o coloque numa vitrine, ao lado de objetos raros e preciosos. Pareceria fora do lugar. Sua beleza está relacionada ao líquido que ele contém e à sede que deve saciar. Sua beleza é corpórea: eu posso vê-lo, tocá-lo, sentir o seu cheiro, ouvi-lo. Se estiver vazio, deve ser enchido; se estiver cheio, deve ser esvaziado. Eu o tomo pela alça como a uma mulher pelo braço, ergo-o e derramo numa bacia o leite ou o pulque – líquidos lunares que abrem e fecham as portas da aurora e da escuridão, da vigília e do sono.
Uma jarra de vidro, uma cesta de palha, um vestido rústico de musselina, uma bandeja de madeira: objetos belos, não apesar de sua utilidade, mas por causa dela. Sua beleza lhes é inerente, como o perfume ou a cor das flores. É inseparável de sua função: são coisas belas porque são coisas úteis. O artesanato pertence a um mundo anterior à distinção entre o útil e o belo. Tal distinção é mais recente do que se imagina. Muitos dos artefatos que chegaram até nossos museus e coleções particulares pertenciam a um mundo no qual a beleza não era um valor isolado e autônomo.
A sociedade era dividida em dois grandes domínios: o profano e o sagrado. Em ambos, a beleza era uma qualidade subordinada: no domínio do profano, subordinada à utilidade do objeto em questão, e no domínio do sagrado, ao seu poder mágico. Um utensílio, um talismã, um símbolo: a beleza era a aura em torno do objeto, resultante – quase sempre involuntariamente – da relação secreta entre sua forma e seu significado. Forma: o modo como uma coisa é fabricada; significado: o propósito para o qual é fabricada.
Hoje todos esses objetos, inevitavelmente arrancados de seu contexto histórico, de sua função específica, de seu significado original, postos à nossa frente em suas vitrines, parecem-nos divindades enigmáticas, exigem nossa adoração. Sua transferência da catedral, do palácio, da tenda do nômade, da alcova de uma cortesã ou da caverna de uma bruxa para o museu foi uma transmutação mágico-religiosa. Objetos tornaram-se ícones. Essa idolatria começou na Renascença, e do século 17 em diante tornou-se uma das religiões do Ocidente (a outra sendo a política). Há muito tempo, no auge do período barroco, Soror Juana Inés de la Cruz cunhou uma frase espirituosa, fazendo troça da estética enquanto admiração supersticiosa: “A mão de uma mulher é branca e bela porque feita de carne e osso, e não de mármore ou prata; eu a estimo não porque seja esplendorosa, mas porque seu aperto é firme”.
A religião da arte, como a religião da política, brotou das ruínas do cristianismo. A arte herdou da religião que a precedera o poder de consagrar as coisas e dotá-las de uma espécie de eternidade: os museus são nossos locais de adoração, e os objetos neles exibidos estão à margem da história. A política – ou, para ser mais preciso, a revolução –, por sua vez, apoderou-se de outra função religiosa: a de mudar o homem e a sociedade. A arte tornou-se um ato de heroísmo espiritual; a revolução, a construção de uma igreja universal. A missão do artista era transformar o objeto; a do líder revolucionário era transformar a natureza humana. Picasso e Stalin. O processo foi de mão dupla: na esfera da política, idéias foram convertidas em ideologias, e ideologias em idolatrias; obras de arte, por outro lado, tornaram-se ídolos, e estes ídolos foram transformados em idéias. Contemplamos as obras de arte com a mesma reverente admiração – embora com menores recompensas espirituais – que o sábio da Antiguidade dedicava ao céu estrelado: como corpos celestes, essas pinturas e esculturas são idéias puras. A religião da arte é um neoplatonismo que não ousa confessar o nome – isso quando não é uma guerra santa declarada contra hereges e infiéis. A história da arte moderna pode ser dividida em duas correntes: a contemplativa e a combativa. Escolas como o cubismo e o expressionismo abstrato pertencem à primeira; movimentos como o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo, à segunda. Místicos e cruzados.
Antes da revolução estética, o valor das obras de arte apontava para outro valor: a interconexão entre beleza e significado. Objetos artísticos eram coisas, que eram formas perceptíveis, que por sua vez eram signos. O significado de uma obra era múltiplo, mas todas as interpretações trilhavam o mesmo caminho de significação, segundo o qual o propósito e a existência fundiam-se numa raiz indissolúvel: a divindade. Qual a transposição moderna? Para nós, o objeto artístico é uma realidade autônoma, auto-suficiente, e seu significado último não se encontra além, mas dentro dele, em si e por si mesmo. É um significado à margem do significado: não se refere ao que não lhe esteja contido. Como a divindade cristã, as pinturas de Jackson Pollock não querem dizer nada: elas são.
Nas modernas obras de arte, o significado se apaga diante da pura emanação do ser. O ato de ver é transformado num processo intelectual que é também um rito mágico: ver é compreender, e compreender é participar do sacramento da comunhão. E além da divindade e dos fiéis, temos os teólogos: críticos de arte. Suas elaboradas interpretações não são menos herméticas que as da escolástica medieval ou dos pensadores bizantinos, embora sejam debatidas com bem menos rigor. As questões a que Orígenes, Albertus Magnus, Abelardo e Santo Tomás de Aquino dedicavam suas mais sérias reflexões reaparecem nas picuinhas de nossos críticos de arte, mas agora sob fantasias extravagantes ou reduzidas a meras obviedades. A comparação vai ainda mais longe: na religião da arte, não encontramos apenas as divindades com seus atributos e os teólogos que os decifram, mas também os mártires. No século 20 testemunhamos o Estado soviético perseguir poetas e artistas tão impiedosamente como os dominicanos extirparam a heresia albigense no século 13.
Não surpreende que a exaltação e a santificação da obra de arte tenham conduzido a revoltas e profanações periódicas. O fetiche é arrancado do seu altar, é coberto de tinta, ganha orelhas e rabo de burro e é assim exibido pelas ruas, é arrastado na lama, perfurado para se provar que o seu interior é apenas serragem, que não é nada nem ninguém e não tem significado algum – e em seguida é devolvido ao trono. O dadaísta Richard Huelsenbeck chegou a exclamar, num momento de irritação: “A arte deveria receber uma bela surra”. Ele tinha razão – exceto pelo fato de que os hematomas no corpo do objeto dadaísta seriam como medalhas no peito de generais: elas simplesmente elevariam a sua respeitabilidade. Nossos museus estão a ponto de estourar com tantas antiobras de arte e obras de antiarte. A religião da arte foi, afinal, mais astuta que a romana: ela assimilou cada dissidência que apareceu.
Eu não nego que contemplar três sardinhas num prato ou um triângulo e um retângulo possam nos enriquecer o espírito; eu apenas afirmo que a repetição desse ato logo se degenera num ritual entediante. Justamente por essa razão os futuristas, confrontados com o neoplatonismo dos cubistas, estimularam uma volta à arte de mensagem. A reação dos futuristas era saudável, mas ingênua. Bem mais perspicazes, os surrealistas também insistiam que a obra de arte deveria dizer alguma coisa, mas como perceberam que seria bobagem reduzir a obra ao seu conteúdo ou mensagem, lançaram mão de um conceito que Freud havia transformado em moeda corrente: a do conteúdo latente. O que a obra de arte diz não está no seu conteúdo manifesto, mas antes naquilo que ela diz sem realmente dizer: o que está por trás das formas, das cores, das palavras. Essa era a maneira de afrouxar o nó teológico que unia ser e significar sem desatá-lo por completo, de modo a preservar, o máximo possível, a relação ambígua entre os dois termos.
O mais radical dos vanguardistas foi Marcel Duchamp: a obra de arte é recebida pelos sentidos, mas seu verdadeiro objetivo está além. Não é uma coisa: é um leque de signos que, à medida que abre e fecha, revela e esconde o seu significado, alternadamente. A obra de arte é um sinal inteligente emitido para a frente e para trás, entre significado e não-significado. O perigo dessa abordagem – um perigo que Duchamp nem sempre conseguiu evitar – é que ela pode conduzir longe demais na direção errada, ficando o artista com o conceito e sem o objeto, com o achado e sem a coisa. Este, o destino que se abateu sobre os imitadores de Duchamp. Aliás, freqüentemente eles não ficam nem com o objeto, nem com o conceito. Não deveria ser preciso repetir aqui que a arte não é um conceito: arte é um objeto dos sentidos. Especulações em torno de um pseudoconceito conseguem ser ainda mais entediantes que a contemplação de uma natureza-morta. Por isso a moderna religião da arte está sempre voltando para si mesma sem jamais encontrar o caminho para a salvação: ela permanece indo de um lado para o outro, da negação do significado em favor do objeto, à negação do objeto em favor do significado.
A
REVOLUÇÃO INDUSTRIAL
foi o outro lado da moeda da revolução artística. A produção
cada vez maior de objetos cada vez mais perfeitos, idênticos, foi o
contraponto exato da consagração da obra de arte como um objeto
único. Enquanto nossos museus ficavam abarrotados de objetos
artísticos, nossas casas se encheram de utensílios engenhosos.
Ferramentas precisas, obedientes, mudas e anônimas. Mas seria errado
chamá-los de feias. Nos primórdios da Revolução Industrial, as
considerações estéticas representavam papel quase insignificante
na produção de objetos úteis. Ou melhor, essas considerações
produziam resultados bem diferentes do que os fabricantes
esperavam.
É a sobreposição responsável pela feiúra de muitos objetos criados na pré-história do desenho industrial (uma feiúra que tinha um certo charme): o elemento “artístico”, na maioria das vezes tomado emprestado da arte acadêmica do momento, era simplesmente “adicionado” ao objeto.
Os resultados nem sempre são desagradáveis. Muitos desses objetos – estou pensando particularmente naqueles da era vitoriana e naqueles com um chamado “estilo moderno” – pertencem à mesma família das sereias e esfinges. Uma família regida pelo que podemos chamar de estética da incongruência. No geral, a evolução do objeto industrializado para uso diário seguiu a evolução dos estilos artísticos. Era quase sempre um empréstimo – algumas vezes uma caricatura, algumas vezes uma cópia bastante feliz – da tendência artística mais em voga no momento. Daí que o desenho industrial chegava irremediavelmente atrasado, imitando estilos artísticos somente depois de eles terem perdido seu frescor original e estivessem em via de se tornar clichês estéticos.
O design moderno tomou outros caminhos – seus próprios – na busca por um acordo entre utilidade e estética. Às vezes é um acordo bem-sucedido, mas o resultado tem sido paradoxal. O ideal estético da arte funcional é aumentar a utilidade do objeto na mesma proporção em que reduz a sua materialidade. A simplificação das formas e da maneira como funcionam se torna a fórmula: a eficiência máxima deve ser atingida com um mínimo de presença. Uma estética afeita ao campo da matemática, onde a elegância de uma equação depende da simplicidade de sua formulação e da inevitabilidade de sua solução. O ideal do design moderno é a invisibilidade: quanto menos visível forem os objetos funcionais, mais belos serão. Trata-se de uma adaptação curiosa dos contos de fadas e lendas árabes para um mundo governado pela ciência e pela noção de utilidade e eficiência: o designer sonha objetos que, como um jinni (N.R.: na mitologia islâmica, um demônio ou espírito, como o gênio da lâmpada de Aladim), sejam servos mudos e intangíveis. Precisamente o oposto do artesanato: uma presença física que nos chega pelos sentidos e na qual o princípio da máxima utilidade é violado continuamente em favor da tradição, da imaginação, e até mesmo de puro capricho. A beleza do desenho industrial é conceitual por natureza: se ele expressa alguma coisa, essa coisa é a precisão de uma fórmula. É o signo de uma função. Sua racionalidade o condiciona a uma e somente uma alternativa: ou um objeto funciona ou não funciona. No segundo caso, deve ser jogado na cesta de lixo. Mas não é só a utilidade que torna o artesanato tão cativante. Ele vive em contato íntimo com nossos sentidos, e é por isso que é tão difícil abandoná-lo. Seria como expulsar de casa um velho amigo.
Chega um momento, porém, em que o objeto industrializado finalmente se torna uma presença de valor artístico: quando perde sua utilidade. Ele é então transformado em símbolo, emblema. A locomotiva cantada por Whitman é uma máquina que parou de correr e de transportar passageiros ou cargas: é um monumento imóvel à velocidade. Os discípulos de Whitman – Valéry Larbaud e os futuristas italianos – deixaram-se extasiar com a beleza das locomotivas e dos trilhos precisamente no momento em que outros meios de transporte – o avião, o automóvel – começaram a substituir os trens. As locomotivas desses poetas são o equivalente às ruínas falsas do século 18: elas complementam a paisagem. O culto ao mecânico é a adoração da natureza virada de ponta-cabeça: a utilidade se tornando beleza inútil, um órgão sem função. Com as ruínas, a história se torna novamente uma parte integrante da natureza, seja quando contemplamos as paredes de pedra destruídas em Nínive ou o cemitério de locomotivas na Pensilvânia.
Esse afeto por máquinas e geringonças que caíram em desuso não é apenas mais uma prova da incurável nostalgia do homem. Ele também revela o ponto em que a sensibilidade moderna se mostra obtusa: somos incapazes de relacionar beleza e utilidade. Dois obstáculos se colocam no nosso caminho: a religião da arte nos proíbe de considerar belo o útil; o culto à utilidade nos leva a perceber a beleza não como uma presença, mas como uma função. Esta bem pode ser a razão pela qual a tecnologia tem sido extremamente pobre como fonte de mitos: a aviação é a realização de um sonho milenar de todas as sociedades, mas nem por isso conseguiu criar figuras comparáveis a Ícaro ou a Faetonte.
O objeto industrializado tende a desaparecer como forma e a se tornar indistinto de sua função. Sua existência é seu significado e seu significado é ser útil. É o extremo oposto da obra de arte. Já o artesanato é o meio-termo entre esses dois pólos: suas formas não são governadas pelo princípio da eficiência, mas pelo do prazer, que é sempre dispendioso, e que não prescreve regra alguma. O objeto industrializado não dá espaço ao supérfluo; o artesanato entrega-se ao prazer da decoração. Sua predileção pelos ornamentos viola o princípio da eficiência. Os padrões decorativos do artesanato geralmente não têm função nenhuma; daí por que são eliminados impiedosamente pelo designer industrial. A persistência e a proliferação de motivos puramente decorativos no artesanato nos revelam uma zona intermediária entre utilidade e contemplação estética. No trabalho do artesão, há um constante movimento pendular entre utilidade e beleza. Esse intercâmbio contínuo tem um nome: prazer. As coisas são prazerosas porque são úteis e belas. A conjunção aditiva define o artesanato, assim como a conjunção alternativa define a arte e a tecnologia: utilidade ou beleza. O artesanato satisfaz uma necessidade não menos imperativa que a fome ou a sede: a necessidade de se encantar com as coisas que vemos e tocamos, quaisquer que sejam seus usos diários.
Essa necessidade não pode ser reduzida ao ideal matemático que rege o desenho industrial, ou aos rituais ortodoxos da religião da arte. O prazer que o artesanato nos dá é uma dupla transgressão: contra o culto à utilidade e contra o culto à arte.
Uma vez que é feita por mãos humanas, a peça de artesanato preserva as impressões digitais – reais ou metafóricas – do artesão que a criou. Essas impressões não são a assinatura do artista; elas não são um nome. Nem são uma marca registrada. Antes, são um signo: a cicatriz quase invisível que denota a irmandade original dos homens, e sua separação. Além de ser feito por mãos humanas, o artesanato também é feito para mãos humanas: não apenas podemos vê-lo, mas tocá-lo com nossos dedos. Nós vemos a obra de arte, mas não a tocamos. O tabu religioso que nos proíbe de encostar nas imagens dos santos no altar – “Queimará as mãos aquele que tocar no Santo Tabernáculo”, nos diziam quando éramos crianças – também se aplica a pinturas e esculturas. Nossa relação com o objeto industrializado é funcional; com a obra de arte, semi-religiosa; com a peça de artesanato, corpórea. A última, na verdade, não é nem uma relação, mas um contato. A natureza transpessoal do artesanato está expressa, direta e imediatamente, na sensação: o corpo é participação. Sentir é, antes de tudo, ter consciência de algo ou de alguém além de si mesmo. Mais ainda: é sentir com alguém. Para ser capaz de sentir a si mesmo, o corpo procura por outro corpo. Nós sentimos por meio dos outros. Os laços físicos, corporais que nos amarram a outros são tão fortes quanto os laços legais, econômicos e religiosos. O objeto feito à mão é um signo que expressa a sociedade humana de uma forma própria: não como ferramenta (tecnologia), não como símbolo (arte, religião), mas como uma forma de vida física e simbiótica.
A jarra de água ou de vinho no centro da mesa é um ponto de confluência, um pequeno sol que faz de todos reunidos um só. Mas essa jarra que serve para saciar a sede de todos também pode ser transformada num vaso de flores pela minha esposa. Sua sensibilidade e fantasia pessoais podem redirecionar o objeto de sua função usual e mudar o seu significado: não é mais um recipiente usado para conter um líquido, mas para exibir um cravo. Esse redirecionamento e essa mudança conectam o objeto à outra região da sensibilidade humana: a imaginação. Essa imaginação é social: o cravo na jarra é também um sol metafórico compartilhado por todos. Nas festas e celebrações, a radiação social do objeto é ainda mais intensa e abrangente. Numa festa a coletividade exerce a comunhão por meio de objetos ritualísticos, que quase invariavelmente são feitos à mão. Se as festas existem para compartilhar um tempo primordial – a coletividade literalmente partilha entre seus membros, como o pão abençoado, as datas a serem comemoradas –, o artesanato é um tipo de festa do objeto: ele transforma o utensílio do dia-a-dia em um signo de participação.
É a sobreposição responsável pela feiúra de muitos objetos criados na pré-história do desenho industrial (uma feiúra que tinha um certo charme): o elemento “artístico”, na maioria das vezes tomado emprestado da arte acadêmica do momento, era simplesmente “adicionado” ao objeto.
Os resultados nem sempre são desagradáveis. Muitos desses objetos – estou pensando particularmente naqueles da era vitoriana e naqueles com um chamado “estilo moderno” – pertencem à mesma família das sereias e esfinges. Uma família regida pelo que podemos chamar de estética da incongruência. No geral, a evolução do objeto industrializado para uso diário seguiu a evolução dos estilos artísticos. Era quase sempre um empréstimo – algumas vezes uma caricatura, algumas vezes uma cópia bastante feliz – da tendência artística mais em voga no momento. Daí que o desenho industrial chegava irremediavelmente atrasado, imitando estilos artísticos somente depois de eles terem perdido seu frescor original e estivessem em via de se tornar clichês estéticos.
O design moderno tomou outros caminhos – seus próprios – na busca por um acordo entre utilidade e estética. Às vezes é um acordo bem-sucedido, mas o resultado tem sido paradoxal. O ideal estético da arte funcional é aumentar a utilidade do objeto na mesma proporção em que reduz a sua materialidade. A simplificação das formas e da maneira como funcionam se torna a fórmula: a eficiência máxima deve ser atingida com um mínimo de presença. Uma estética afeita ao campo da matemática, onde a elegância de uma equação depende da simplicidade de sua formulação e da inevitabilidade de sua solução. O ideal do design moderno é a invisibilidade: quanto menos visível forem os objetos funcionais, mais belos serão. Trata-se de uma adaptação curiosa dos contos de fadas e lendas árabes para um mundo governado pela ciência e pela noção de utilidade e eficiência: o designer sonha objetos que, como um jinni (N.R.: na mitologia islâmica, um demônio ou espírito, como o gênio da lâmpada de Aladim), sejam servos mudos e intangíveis. Precisamente o oposto do artesanato: uma presença física que nos chega pelos sentidos e na qual o princípio da máxima utilidade é violado continuamente em favor da tradição, da imaginação, e até mesmo de puro capricho. A beleza do desenho industrial é conceitual por natureza: se ele expressa alguma coisa, essa coisa é a precisão de uma fórmula. É o signo de uma função. Sua racionalidade o condiciona a uma e somente uma alternativa: ou um objeto funciona ou não funciona. No segundo caso, deve ser jogado na cesta de lixo. Mas não é só a utilidade que torna o artesanato tão cativante. Ele vive em contato íntimo com nossos sentidos, e é por isso que é tão difícil abandoná-lo. Seria como expulsar de casa um velho amigo.
Chega um momento, porém, em que o objeto industrializado finalmente se torna uma presença de valor artístico: quando perde sua utilidade. Ele é então transformado em símbolo, emblema. A locomotiva cantada por Whitman é uma máquina que parou de correr e de transportar passageiros ou cargas: é um monumento imóvel à velocidade. Os discípulos de Whitman – Valéry Larbaud e os futuristas italianos – deixaram-se extasiar com a beleza das locomotivas e dos trilhos precisamente no momento em que outros meios de transporte – o avião, o automóvel – começaram a substituir os trens. As locomotivas desses poetas são o equivalente às ruínas falsas do século 18: elas complementam a paisagem. O culto ao mecânico é a adoração da natureza virada de ponta-cabeça: a utilidade se tornando beleza inútil, um órgão sem função. Com as ruínas, a história se torna novamente uma parte integrante da natureza, seja quando contemplamos as paredes de pedra destruídas em Nínive ou o cemitério de locomotivas na Pensilvânia.
Esse afeto por máquinas e geringonças que caíram em desuso não é apenas mais uma prova da incurável nostalgia do homem. Ele também revela o ponto em que a sensibilidade moderna se mostra obtusa: somos incapazes de relacionar beleza e utilidade. Dois obstáculos se colocam no nosso caminho: a religião da arte nos proíbe de considerar belo o útil; o culto à utilidade nos leva a perceber a beleza não como uma presença, mas como uma função. Esta bem pode ser a razão pela qual a tecnologia tem sido extremamente pobre como fonte de mitos: a aviação é a realização de um sonho milenar de todas as sociedades, mas nem por isso conseguiu criar figuras comparáveis a Ícaro ou a Faetonte.
O objeto industrializado tende a desaparecer como forma e a se tornar indistinto de sua função. Sua existência é seu significado e seu significado é ser útil. É o extremo oposto da obra de arte. Já o artesanato é o meio-termo entre esses dois pólos: suas formas não são governadas pelo princípio da eficiência, mas pelo do prazer, que é sempre dispendioso, e que não prescreve regra alguma. O objeto industrializado não dá espaço ao supérfluo; o artesanato entrega-se ao prazer da decoração. Sua predileção pelos ornamentos viola o princípio da eficiência. Os padrões decorativos do artesanato geralmente não têm função nenhuma; daí por que são eliminados impiedosamente pelo designer industrial. A persistência e a proliferação de motivos puramente decorativos no artesanato nos revelam uma zona intermediária entre utilidade e contemplação estética. No trabalho do artesão, há um constante movimento pendular entre utilidade e beleza. Esse intercâmbio contínuo tem um nome: prazer. As coisas são prazerosas porque são úteis e belas. A conjunção aditiva define o artesanato, assim como a conjunção alternativa define a arte e a tecnologia: utilidade ou beleza. O artesanato satisfaz uma necessidade não menos imperativa que a fome ou a sede: a necessidade de se encantar com as coisas que vemos e tocamos, quaisquer que sejam seus usos diários.
Essa necessidade não pode ser reduzida ao ideal matemático que rege o desenho industrial, ou aos rituais ortodoxos da religião da arte. O prazer que o artesanato nos dá é uma dupla transgressão: contra o culto à utilidade e contra o culto à arte.
Uma vez que é feita por mãos humanas, a peça de artesanato preserva as impressões digitais – reais ou metafóricas – do artesão que a criou. Essas impressões não são a assinatura do artista; elas não são um nome. Nem são uma marca registrada. Antes, são um signo: a cicatriz quase invisível que denota a irmandade original dos homens, e sua separação. Além de ser feito por mãos humanas, o artesanato também é feito para mãos humanas: não apenas podemos vê-lo, mas tocá-lo com nossos dedos. Nós vemos a obra de arte, mas não a tocamos. O tabu religioso que nos proíbe de encostar nas imagens dos santos no altar – “Queimará as mãos aquele que tocar no Santo Tabernáculo”, nos diziam quando éramos crianças – também se aplica a pinturas e esculturas. Nossa relação com o objeto industrializado é funcional; com a obra de arte, semi-religiosa; com a peça de artesanato, corpórea. A última, na verdade, não é nem uma relação, mas um contato. A natureza transpessoal do artesanato está expressa, direta e imediatamente, na sensação: o corpo é participação. Sentir é, antes de tudo, ter consciência de algo ou de alguém além de si mesmo. Mais ainda: é sentir com alguém. Para ser capaz de sentir a si mesmo, o corpo procura por outro corpo. Nós sentimos por meio dos outros. Os laços físicos, corporais que nos amarram a outros são tão fortes quanto os laços legais, econômicos e religiosos. O objeto feito à mão é um signo que expressa a sociedade humana de uma forma própria: não como ferramenta (tecnologia), não como símbolo (arte, religião), mas como uma forma de vida física e simbiótica.
A jarra de água ou de vinho no centro da mesa é um ponto de confluência, um pequeno sol que faz de todos reunidos um só. Mas essa jarra que serve para saciar a sede de todos também pode ser transformada num vaso de flores pela minha esposa. Sua sensibilidade e fantasia pessoais podem redirecionar o objeto de sua função usual e mudar o seu significado: não é mais um recipiente usado para conter um líquido, mas para exibir um cravo. Esse redirecionamento e essa mudança conectam o objeto à outra região da sensibilidade humana: a imaginação. Essa imaginação é social: o cravo na jarra é também um sol metafórico compartilhado por todos. Nas festas e celebrações, a radiação social do objeto é ainda mais intensa e abrangente. Numa festa a coletividade exerce a comunhão por meio de objetos ritualísticos, que quase invariavelmente são feitos à mão. Se as festas existem para compartilhar um tempo primordial – a coletividade literalmente partilha entre seus membros, como o pão abençoado, as datas a serem comemoradas –, o artesanato é um tipo de festa do objeto: ele transforma o utensílio do dia-a-dia em um signo de participação.
EM
TEMPOS IDOS,
o artista ansiava tornar-se como seus mestres, ser merecedor deles
por meio da cuidadosa imitação. O artista moderno quer ser
diferente, e sua homenagem à tradição toma a forma da negação.
Se ele busca uma tradição, ele vai procurar em algum lugar fora do
Ocidente, na arte de povos primitivos ou de outras civilizações.
Porque são negações da tradição ocidental, a qualidade arcaica
do artesanato primitivo ou a antiguidade dos objetos maias ou
sumérios são, paradoxalmente, formas de novidade. A estética da
mudança constante exige que cada trabalho seja novo e totalmente
diferente daqueles que o precederam; a novidade implica a negação
da tradição mais próxima. A tradição é, assim, convertida em
uma série de cortes bruscos. A busca frenética pela mudança também
governa a produção industrial, ainda que por razões diferentes:
cada novo objeto, resultante de um novo processo, retira do mercado o
objeto imediatamente anterior. A história do artesanato, entretanto,
não é uma sucessão de novas invenções ou de novos e únicos (ou
supostamente únicos) objetos. A bem da verdade, o artesanato nem tem
história, se considerarmos história uma série ininterrupta de
mudanças. Não há cortes bruscos mas sim continuidade, entre
passado e presente. O artista moderno deseja conquistar a eternidade,
e o designer, conquistar o futuro; o artesão deixa-se conquistar
pelo tempo. Tradicional sem ser histórico, intimamente ligado ao
passado, mas não datado, o objeto feito à mão refuta as miragens
da história e as ilusões de futuro. O artesão não busca vencer o
tempo, mas participar de sua corrente. Por meio de repetições, que
vêm na forma de variações imperceptíveis mas genuínas, seus
trabalhos se tornam parte de uma tradição perene. E ao fazê-lo,
eles existem por muito mais tempo que o objeto da “última
moda”.
O desenho industrial tende a ser impessoal. Ele é subserviente à tirania da função, e sua beleza reside nessa subserviência. Mas somente na geometria a beleza funcional pode se realizar completamente, e somente nesse universo verdade e beleza são uma coisa só; nas artes propriamente ditas, a beleza nasce de uma necessária violação das normas. A beleza – ou melhor: a arte – é uma violação da funcionalidade. A soma dessas transgressões constitui o que chamamos de estilo. Se fosse seguir seus princípios lógicos até o limite, o ideal do designer seria a ausência de qualquer estilo: formas reduzidas às suas funções; do mesmo modo que, para o artista, cada nova obra representaria o começo e um fim de um estilo próprio. (Talvez tenha sido este o objetivo que Mallarmé e Joyce determinaram para si mesmos.) A única dificuldade é que nenhuma obra de arte é seu próprio começo e seu próprio fim. Cada uma exprime uma linguagem ao mesmo tempo pessoal e coletiva: um estilo, uma maneira.
Os estilos são reflexos de experiências comunitárias, e toda verdadeira obra de arte é ao mesmo tempo uma fuga e uma confirmação de um estilo do seu próprio tempo e lugar. Ao violar esse estilo, a obra realiza todas as suas potencialidades. O artesanato, mais uma vez, se localiza bem no meio desses dois pólos: como o desenho industrial, ele é anônimo; como a obra de arte, tem um estilo. Comparado ao desenho industrial, porém, o artesanato é anônimo, mas não impessoal; comparado à obra de arte, ele enfatiza a natureza coletiva do estilo e demonstra para todos que o eu orgulhoso do artista é na verdade um nós.
O desenho industrial tende a ser impessoal. Ele é subserviente à tirania da função, e sua beleza reside nessa subserviência. Mas somente na geometria a beleza funcional pode se realizar completamente, e somente nesse universo verdade e beleza são uma coisa só; nas artes propriamente ditas, a beleza nasce de uma necessária violação das normas. A beleza – ou melhor: a arte – é uma violação da funcionalidade. A soma dessas transgressões constitui o que chamamos de estilo. Se fosse seguir seus princípios lógicos até o limite, o ideal do designer seria a ausência de qualquer estilo: formas reduzidas às suas funções; do mesmo modo que, para o artista, cada nova obra representaria o começo e um fim de um estilo próprio. (Talvez tenha sido este o objetivo que Mallarmé e Joyce determinaram para si mesmos.) A única dificuldade é que nenhuma obra de arte é seu próprio começo e seu próprio fim. Cada uma exprime uma linguagem ao mesmo tempo pessoal e coletiva: um estilo, uma maneira.
Os estilos são reflexos de experiências comunitárias, e toda verdadeira obra de arte é ao mesmo tempo uma fuga e uma confirmação de um estilo do seu próprio tempo e lugar. Ao violar esse estilo, a obra realiza todas as suas potencialidades. O artesanato, mais uma vez, se localiza bem no meio desses dois pólos: como o desenho industrial, ele é anônimo; como a obra de arte, tem um estilo. Comparado ao desenho industrial, porém, o artesanato é anônimo, mas não impessoal; comparado à obra de arte, ele enfatiza a natureza coletiva do estilo e demonstra para todos que o eu orgulhoso do artista é na verdade um nós.
A
TECNOLOGIA É INTERNACIONAL. Suas
realizações, seus métodos e seus produtos são os mesmos em
qualquer canto do mundo. Ao suprimir as particularidades e
peculiaridades nacionais e regionais, ela empobreceu o mundo. Tendo
se espalhado de uma ponta à outra da Terra, a tecnologia se tornou o
agente mais poderoso da entropia histórica. Suas conseqüências
negativas podem ser resumidas em uma frase sucinta: ela impõe
uniformidade sem promover unidade. Ela nivela as diferenças entre
culturas e estilos nacionais distintos, mas não consegue erradicar
as rivalidades e os ódios entre povos e estados. Após transformar
rivais em gêmeos idênticos, ela fornece as mesmas armas para ambos.
O que é pior, o perigo da tecnologia não está apenas no poder
destrutivo de muitas de suas invenções, mas no fato de que ela
constitui uma ameaça grave à própria essência do processo
histórico. Ao eliminar a diversidade de sociedades e culturas,
elimina a própria história. A maravilhosa variedade de diferentes
sociedades é a verdadeira origem da história: encontros e
conjunções de grupos e culturas dessemelhantes, com técnicas e
idéias muito divergentes. O processo histórico é sem dúvida
análogo ao fenômeno que os geneticistas chamam de inbreeding e
outbreeding, e os antropólogos, de endogamia e exogamia. As grandes
civilizações do mundo foram sínteses de culturas diferentes e
diametralmente opostas. Quando uma civilização não se expõe à
ameaça e ao estímulo de outra – como foi o caso na América
pré-colombiana no século 16 –, ela está fadada a ver o tempo
passar enquanto fica andando em círculos.
A experiência do Outro é o segredo da mudança. E da vida.
A tecnologia moderna trouxe transformações numerosas e profundas. Todas elas, porém, tiveram o mesmo fim e o mesmo interesse: a eliminação do Outro. Ao deixar soltos todos os impulsos destrutivos dos seres humanos e reduzir a humanidade à uniformidade, ela aumentou as forças que levam à extinção do homem. O artesanato, pelo contrário, nem mesmo é nacional: é local. Indiferente às fronteiras e aos sistemas de governo, ele sobreviveu a repúblicas e impérios: a arte de fazer potes de barro, cestas de palha e os instrumentos musicais representados nos afrescos de Bonampak sobreviveu aos altos sacerdotes maias, aos guerreiros astecas, aos monges espanhóis, aos presidentes mexicanos. Essas artes também sobreviverão aos turistas americanos.
Os artesãos não têm pátria: suas verdadeiras raízes estão nas suas vilas nativas – ou mesmo em um único quarteirão, ou em suas famílias. Os artesãos nos defendem da uniformidade artificial da tecnologia e da improdutividade da geometria: ao preservar as diferenças, eles preservam a fertilidade da história.
O artesão não se define em termos de nacionalidade ou de religião. Ele não é fiel a uma idéia, nem mesmo a uma imagem, mas a uma disciplina prática: seu trabalho. Sua oficina é um microcosmo social governado por suas próprias leis especiais. Seu dia de trabalho não é ditado rigidamente por um relógio de ponto, mas por um ritmo que tem mais a ver com o corpo e sua sensibilidade do que com as necessidades abstratas de produção. Enquanto trabalha, ele pode conversar com outras pessoas e até desatar a cantar. Seu chefe não é um executivo invisível, mas um homem de muita idade que ele tomou como mestre, quase sempre um parente, ou pelo menos um vizinho. É revelador notar que, apesar de sua natureza marcadamente coletiva, a oficina de um artesão nunca serviu de modelo para nenhuma das grandes utopias do Ocidente. Da Cidade do Sol, de Tommaso Campanella, passando pelos falanstérios de Charles Fourier, até as coletividades comunistas da era industrial, o protótipo do que seria o homem social perfeito nunca foi o artesão, mas o padre-sábio, o jardineiro-filósofo, o trabalhador universal, nos quais a práxis diária e o conhecimento científico estejam associados. Naturalmente não quero afirmar que a oficina de um artesão seja a imagem da perfeição. Mas acredito que, justamente por causa de suas imperfeições, ela pode indicar uma forma de humanizar nossa sociedade: suas imperfeições são dos homens, e não do sistema. Devido ao seu tamanho físico e ao número de pessoas que a constituem, uma comunidade de artesãos privilegia as formas democráticas de vida em conjunto; sua organização é hierárquica mas não autoritária, tal hierarquia sendo baseada não em poderes, mas em níveis de habilidade: mestres de ofício, artesãos, aprendizes; e o trabalho final dá espaço para o divertimento e para a criatividade. Não bastasse ter nos dado uma lição em sensibilidade e no uso livre da imaginação, o artesanato também nos ensina sobre organização social.
Até poucos anos atrás, era comum pensar que o artesanato estava fadado a desaparecer, substituído pela produção industrial. Hoje, todavia, é justamente o contrário que está acontecendo: artefatos feitos à mão estão agora desempenhando um papel considerável no mercado mundial. Peças do Afeganistão e do Sudão estão sendo vendidas nas mesmas lojas que os mais recentes produtos dos estúdios de design de fábricas italianas e japonesas.
A tecnologia moderna trouxe transformações numerosas e profundas. Todas elas, porém, tiveram o mesmo fim e o mesmo interesse: a eliminação do Outro. Ao deixar soltos todos os impulsos destrutivos dos seres humanos e reduzir a humanidade à uniformidade, ela aumentou as forças que levam à extinção do homem. O artesanato, pelo contrário, nem mesmo é nacional: é local. Indiferente às fronteiras e aos sistemas de governo, ele sobreviveu a repúblicas e impérios: a arte de fazer potes de barro, cestas de palha e os instrumentos musicais representados nos afrescos de Bonampak sobreviveu aos altos sacerdotes maias, aos guerreiros astecas, aos monges espanhóis, aos presidentes mexicanos. Essas artes também sobreviverão aos turistas americanos.
Os artesãos não têm pátria: suas verdadeiras raízes estão nas suas vilas nativas – ou mesmo em um único quarteirão, ou em suas famílias. Os artesãos nos defendem da uniformidade artificial da tecnologia e da improdutividade da geometria: ao preservar as diferenças, eles preservam a fertilidade da história.
O artesão não se define em termos de nacionalidade ou de religião. Ele não é fiel a uma idéia, nem mesmo a uma imagem, mas a uma disciplina prática: seu trabalho. Sua oficina é um microcosmo social governado por suas próprias leis especiais. Seu dia de trabalho não é ditado rigidamente por um relógio de ponto, mas por um ritmo que tem mais a ver com o corpo e sua sensibilidade do que com as necessidades abstratas de produção. Enquanto trabalha, ele pode conversar com outras pessoas e até desatar a cantar. Seu chefe não é um executivo invisível, mas um homem de muita idade que ele tomou como mestre, quase sempre um parente, ou pelo menos um vizinho. É revelador notar que, apesar de sua natureza marcadamente coletiva, a oficina de um artesão nunca serviu de modelo para nenhuma das grandes utopias do Ocidente. Da Cidade do Sol, de Tommaso Campanella, passando pelos falanstérios de Charles Fourier, até as coletividades comunistas da era industrial, o protótipo do que seria o homem social perfeito nunca foi o artesão, mas o padre-sábio, o jardineiro-filósofo, o trabalhador universal, nos quais a práxis diária e o conhecimento científico estejam associados. Naturalmente não quero afirmar que a oficina de um artesão seja a imagem da perfeição. Mas acredito que, justamente por causa de suas imperfeições, ela pode indicar uma forma de humanizar nossa sociedade: suas imperfeições são dos homens, e não do sistema. Devido ao seu tamanho físico e ao número de pessoas que a constituem, uma comunidade de artesãos privilegia as formas democráticas de vida em conjunto; sua organização é hierárquica mas não autoritária, tal hierarquia sendo baseada não em poderes, mas em níveis de habilidade: mestres de ofício, artesãos, aprendizes; e o trabalho final dá espaço para o divertimento e para a criatividade. Não bastasse ter nos dado uma lição em sensibilidade e no uso livre da imaginação, o artesanato também nos ensina sobre organização social.
Até poucos anos atrás, era comum pensar que o artesanato estava fadado a desaparecer, substituído pela produção industrial. Hoje, todavia, é justamente o contrário que está acontecendo: artefatos feitos à mão estão agora desempenhando um papel considerável no mercado mundial. Peças do Afeganistão e do Sudão estão sendo vendidas nas mesmas lojas que os mais recentes produtos dos estúdios de design de fábricas italianas e japonesas.
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