quarta-feira, 21 de outubro de 2015

MATURANA - Viver e conviver na diversidade cultural

Viver e conviver na diversidade cultural

XIMENA DÁVILA, HUMBERTO MATURANA E HUMBERTO GUTIÉRREZ*

Os problemas humanos não surgem de erros no raciocinar, mas de conflitos no emocionar. Os erros do raciocinar surgem como equívocos ao se operar com coerências lógicas em um domínio particular de coerências operacionais, e se resolvem revisando as operações nesse domínio. Já os problemas humanos surgem no entrecruzamento inconsciente de desejos contraditórios, e se resolvem desde um meta-domínio reflexivo que permite ao indivíduo, como um ato na emoção, olhar para esses desejos e assumir se quer ou não o mundo e o habitar que surgiriam caso desejasse que um ou outro desses desejos guiasse o seu agir. Nesse sentido, o entender e o atuar é sempre um ato individual que surge no ser co-criador com outros de um habitar em uma comunidade. Todo ser vivo existe em um mundo que surge com ele, e o habitar ocorre como uma trama relacional de múltiplas dimensões que constitui o âmbito em que se realiza o seu viver. O atuar de um ser vivo ocorre sempre em um lugar operacional desde onde não se vê, mas implica, toda a trama relacional do habitar. Nós, humanos, vivemos em comunidades constituí- das como redes de conversação em uma biosfera que nos contém e torna possíveis como o âmbito biológico do nosso viver. Todo ser vivo existe na realização de seu viver como indivíduo, e opera como centro corporal dinâmico onde se entrecruzam todas as dimensões da existência que surge a partir do próprio organismo. Por isso todo ser vivo opera como o centro do cosmos desde seu existir como totalidade fechada, irredutível enquanto sistema autopoiético (1) . Nós, humanos, enquanto seres existindo no linguajar, vemos o cosmos que vivemos como aquilo que nos contém, a partir do explicar nosso existir enquanto seres conscientes. Nós, seres vivos, existimos em comunidades de classes distintas. Os humanos, em particular, existem em comunidades integradas por indivíduos conscientes de si mesmos, que podem refletir sobre sua própria existência e ser conscientes de que, com seu viver, vão configurando os mundos que vivem, e que esses mundos não preexistem o seu viver. A convivência em comunidade ocorre como um âmbito de existência que se configura no conviver dos indivíduos que a compõe a partir de seu viver individual. Reciprocamente, o viver individual dos membros de uma comunidade se configura na convivência, gerado com a participação do indivíduo no conviver na comunidade que integra. Tudo o que nós, humanos, fazemos ou pensamos, ocorre em nossa realização enquanto indivíduos, quer nos encontremos sós ou em comunidade. Mais que isso, tudo o que nós, humanos, fazemos, pensamos ou sentimos, ocorre desde o nosso existir fundamental como seres conscientes que operam ou podem operar na reflexão, com consciência de si mesmos. O indivíduo humano de uma classe ou outra surge segundo o conviver que se vive em uma comunidade que ele integra, e o conviver na comunidade surge com um caráter ou outro segundo o viver individual de quem integra essa comunidade com o seu viver. Ainda que as comunidades humanas sejam compostas por seres que operam ou podem operar como indivíduos conscientes de si, elas não são conscientes de si. Só seres humanos, existindo na linguagem, são capazes de operar com consciência de si, de apontar para seus atos e desejos e perguntar se querem esse agir e desejar, e se querem o que dizem que querem. Comunidades humanas não podem fazer isso enquanto comunidades, e seu operar como conjuntos humanos parecerá, a um observador, implicar mais ou menos consciência social, ética, espiritual ou ecológica segundo o operar daqueles que a integram. Só os indivíduos podem ser conscientes e, portanto, responsáveis pelo que ocorre no interior da comunidade que integram, e pelas conseqüências que o modo de ser da comunidade traz para o entorno biológico e não-biológico que a contém e a torna possível. De acordo com tudo o que foi dito, pensamos que o problema central que vivemos, como humanidade no presente de nossa cultura patriarcal/matriarcal, surge da oposição de desejos de poder, controle e dominação, que constituem o pano de fundo emocional dessa cultura, e o desejo de cuidado e conservação do humano e do entorno, o respeito por si mesmo e pelos outros que no fundo todos temos como parte de uma história humana comum. Um dos contextos mais esclarecedores desse conflito central no atual momento da história humana, que é a oposição da trama emocional da cultura patriarcal/matriarcal com a biologia do amar, se dá ao entendermos o fenômeno social ou da convivência aplicando noções dualistas que fundamentalmente expressam uma oposição entre as dimensões individual e coletiva, outorgando a cada uma, uma natureza distinta. Assim, no mais das vezes, ao queremos dar conta de sua compreensão, terminamos por reduzir uma à outra, dissociando-as sem considerar a integralidade fenomênica implicada - a perspectiva sistêmica. Compreender que toda comunidade é um conviver que se orienta desde cada viver individual, segundo um emocionar ou desejar que, como tal, fundamenta tanto nosso viver quanto o conviver, é fundamental para entender a natureza do social. É, então, na realização de nosso viver e conviver que surge o mundo que vivemos e convivemos, como uma expansão de nossa corporalidade, e que, ao ser resultado de um curso histórico, momento a momento em uma co-deriva estrutural, aparece para nós, como surgindo do nada, a nossa identidade coletiva. A identidade coletiva surge do co-emocionar que modula a co-deriva estrutural que surge em nosso presente individual como o mundo social que vivemos e convivemos, como se não houvéssemos participado de sua geração. Isso de fato, se deu no trânsito inconsciente de nossa transformação na convivência com o mundo e no viver o nosso ser que surge como resultado de um fazer-com-os-outros, em uma história de conservação e mudança. Desse modo, a transformação se dá no interactuar de uns e outros como indivíduos, que, enquanto co-emocionam, conservam um modo particular de viver e conviver que, por sua vez, ao depender dos desejos e emoções como um pano de fundo que determina o curso desse conviver, sempre está aberto a orientar-se para uma co-deriva distinta daquela conservada até o momento. Isso quer dizer que uma cultura tem como pano de fundo uma multidimensionalidade que a todo momento e circunstância pode mudar, e que são os próprios indivíduos e seus desejos que os levam a querer orientar-se para um modo distinto de querer agir com os outros, que delimitam a multidimensionalidade de fundo, resultando em um curso de transformação no conviver. Há então, em toda cultura, um fundo multidimensional, que é propriamente a “multidimensionalidade individual” desde onde é gerado um âmbito de interações suficientemente intensas com outros no emocionar e no linguajar, que pode resultar seja um modo específico de interagir ou um modo de vida a conservar. Nesse último caso, pode-se dizer que há uma maior amplitude da multidimensionalidade de fundo envolvida que no primeiro. Em qualquer caso, são os desejos de conservar ou de mudar o conservado o que sempre está em jogo, e portanto uma cultura fundamenta-se na conservação dos desejos que os próprios participantes vivem individualmente em seu conviver social. Assim, os modos de viver e conviver conservados são tanto o pano de fundo quanto o suceder do mundo que surge do nosso agir no mundo que vivemos e convivemos, e desde onde se constituem como uma rede de configurações sensório-motoras que vão modulando e modelando nosso espaço psíquico relacional, dando um caráter ou outro ao nosso ser e ao nosso agir segundo a trama emocional que vivemos e na realização presente desse modo de viver e conviver. Que somos como vivemos e vivemos do jeito que somos parece óbvio. O que não é óbvio é que tanto nossa identidade individual quanto coletiva repousam no mesmo fundamento: a trama de desejos que conservamos em nosso viver e conviver desde nossa corporalidade no habitar que vivemos e convivemos. Tudo o que foi exposto leva-nos a concluir que a diversidade cultural tem seu fundamento nos desejos dos indivíduos que geram, em seu interactuar com outros, a própria cultura que eles mesmos integram. A partir desse olhar, podemos compreender que na base da constituição da diversidade cultural estão os distintos desejos dos muitos indivíduos que se orientam de modos distintos em seu viver e conviver a multidimensionalidade, que como pano de fundo inconsciente do viver, encontra-se sempre implicada, e que são os desejos que determinam os diferentes modos de viver essa multidimensionalidade, resultando em um conviver particular que se distingue de outros conviveres a partir do curso dos próprios desejos individuais que se vivem na convivência. Ao distinguir uma diversidade cultural distinguimos, ao mesmo tempo, distintos desejos que se conservam e que resultam em distintos modos de viver e de conviver, e que como tais constituem uma diversidade cultural no viver humano que surge naturalmente de nossa condição de ser seres humanos. É a nossa condição natural de existência, ou melhor, de co-existência.


(Tradução de Flávia Rodrigues e Beto Vianna)

* Ximena Dávila, Humberto Maturana e Humberto Gutiérrez são docentes e investigadores do Instituto Matríztico, um espaço de reflexão, investigação, formação e colaboração entre comunidades humanas criado a partir do encontro de Ximena Dávila e Humberto Maturana com a distinção que denominaram Matriz Biológica Cultural da Existência, dando origem ao trabalho cientí- fico conhecido hoje como Biologia Cultural. 11 (1) Abstração do operar dos seres vivos apresentada pela primeira vez em 1970 por Humberto Maturana e Francisco Varela na Universidade de Illinois. Uma rede fechada de produções moleculares que produz de modo recursivo a mesma rede de produções moleculares que a produziu e define seu limite permanecendo aberta ao fluxo de matéria através dela é um sistema autopoiético e um sistema autopoiético é um sistema vivo.

http://www.biolinguagem.com/imagens/cadernos/04_caderno_biologia.pdf

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