quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Nelson M. Vaz - O LINGUAGEAR É O MODO DE VIDA QUE NOS TORNOU HUMANOS

Ciência e Cultura

On-line version ISSN 2317-6660

Cienc. Cult. vol.60 no.spe1 São Paulo July 2008

 http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252008000500011&script=sci_arttext



O LINGUAGEAR É O MODO DE VIDA QUE NOS TORNOU HUMANOS

Nelson M. Vaz

FILOGÊNESE OU ONTOGÊNESE Como nada parte do zero, exceto o Big-Bang, como quer a maioria dos cientistas, podemos discutir a gênese da vida humana de muitos pontos de partida, com diversas escalas de tempo, atualidade e complexidade. Se o adjetivo "humano" é o que nos importa mais, podemos nos afastar de problemas sérios como a gênese molecular da vida, a gênese das células, a gênese dos animais na explosão Cambriana, para nos concentrarmos nos últimos 6-8 milhões de anos. Ou podemos decidir que a paleoantropologia está além de nossos limites e não nos determos naquilo que separou o humano do chimpanzé e dos bonobos. Se partirmos do Homo sapiens sapiens já constituído como uma linhagem, poderemos considerar aquilo que, afinal, o distingue de outras linhagens de primatas.
Em resumo, por um lado, temos a opção de considerar problemas evolutivos básicos sobre a origem das diversas linhagens de seres vivos, entre as quais nos incluímos como mais uma linhagem. Incluídos nessa opção estão problemas fundamentais à bioquímica, na genética e na biologia propriamente dita. Por outro lado, temos a opção de discutir o que temos de especial nas origens (na gênese) do ser humano já configurado como linhagem. Mesmo aí, há uma dicotomia: podemos considerar o Homo sapiens sapiens ainda nômade, no pastoreio pré-agrícola, ou tomar como ponto de partida o chamado grande salto para a frente (the great leap forward) que deu origem à cultura, à religião, às artes, à civilização, enfim. Todas essas são preocupações para o lado, digamos, filogênico da gênese da vida humana.
Finalmente, há ainda sua dimensão ontogênica, que levanta um debate com profundo significado ético e muito atual, que Francisco Mauro Salzano discute em detalhe (pp. 57-59 desta edição). No outro extremo da vida humana, aquele próximo a seu fim, há um dilema semelhante em relação às pessoas atingidas por lesões ou enfermidades que as colocam em estados ditos "vegetativos", sem possibilidade de recuperação. Embriões humanos, que ainda não viveram uma vida autônoma, e seres humanos que perderam totalmente sua autonomia ao viver podem ser objeto de considerações éticas semelhantes — embora possa haver casos, dentre os últimos, em que já se tenha optado durante a vida normal sobre o que fazer com o próprio corpo nessas situações.
A meu ver, as discussões sobre a gênese da vida humana dependem da definição de diferenças entre nosso viver como Homo sapiens sapiens, como organismos de primatas com características zoológicas especiais, e nosso viver como pessoas, como seres humanos no conviver com outros seres humanos. De certa forma, Salzano indaga onde colocar um limite ontogênico entre um embrião de H. sapiens e um ser humano em formação. Para isso, é importante explicitar um consenso sobre aquilo que nos caracteriza como seres humanos, como pessoas. Similarmente, no decurso da filogênese, podemos indagar como e por que surgiram os seres humanos com sua conduta característica.
A PERGUNTA ZERO Nenhum de nós tem a pretensão de responder cabalmente à pergunta sobre a gênese da vida humana, uma pergunta que pode ser entendida como a origem das realidades humanas, ou de nosso entendimento sobre o mundo — enfim, a pergunta que muitos vêem como a maior e mais complexa de todas as perguntas, cuja resposta conteria a explicação de quase tudo. Mas, em meu modo de ver, antes dessa pergunta "número um", há uma "pergunta zero", usualmente negligenciada, que, mesmo quando explicitada, não é compreendida ou aceita por muitos. Essa "pergunta zero" será meu fio orientador.
"Como somos capazes de perguntar qualquer coisa?" — ou seja, "como somos capazes de conversar, ouvir, entender e falar a outros seres humanos?" —, um problema intimamente ligado à linguagem e à natureza do ser humano. Como se dá esse nosso experienciar da realidade? O que tem ele em comum com o experienciar de outras realidades por outros seres vivos? Todos concordamos em que uma mosca enxerga; mexemos a mão, e ela voa. Mas, curioso, o que ela vê? O que é ver? Enfim, nossa tarefa poderia tomar o rumo dessas indagações.
Aceitar ou rejeitar essa "pergunta zero" delineia dois caminhos distintos. Posso não aceitá-la e admitir que o "processamento de informações", a consciência e o conversar são propriedades dos seres humanos. Se faço isso, encontro-me imediatamente colocado em um mundo, uma realidade que quero explicar mas, ao mesmo tempo, me sinto alienado, estranho a essa realidade que habito e, se contemplo meu próprio corpo, ele também me parece algo estranho. Por outro lado, se aceito essa "pergunta zero", me encontro com a minha biologia de Homo sapiens sapiens, isto é, vejo a mim mesmo como um primata linguageante que vive a participar de conversas com outros seres humanos. Posso aceitar que, de alguma forma, preciso explicar essa minha conduta com base em minha biologia deHomo sapiens sapiens, de primata, apoiado em minha dinâmica estrutural e relacional como um sistema vivo.
BIOLOGIA DA COGNIÇÃO E DA LINGUAGEM Se aceito e discuto essa "pergunta zero", a discussão se dará em uma arena que é essencialmente biológica, mas levanta preocupações de natureza ética e trata de temas que preocupam filósofos e profissionais de várias outras áreas. Essa é a postura seguida na biologia da cognição e da linguagem (Maturana, 2002; Maturana & Poerksen, 2004), um corpo de conhecimentos originado do pensamento do neurobiólogo chileno Humberto Maturana, que ele assim define:
A biologia da cognição é uma proposta explicativa que tenta mostrar como os processos cognitivos humanos brotam da operação de seres humanos como sistemas vivos. Como tal, a biologia da cognição envolve reflexões orientadas para compreender os sistemas vivos, sua história evolutiva, a linguagem como um fenômeno biológico, a natureza das explicações, e a origem da humanidade. Como uma reflexão sobre como nós fazemos o que fazemos como observadores, ela é um estudo na epistemologia do conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, como uma reflexão sobre como nós existimos na linguagem como seres linguageantes, ela é um estudo em relações humanas (Maturana, 1997).
Maturana é também conhecido como o autor da teoria da autopoiese, mas esta é de certo modo enganadora. A noção de autopoiese (autocriação/manutenção) é central, mas por si mesma insuficiente para expressar as propostas da biologia da cognição e da linguagem e não deve ser entendida como um princípio explicativo:
A autopoiese, a organização autopoiética, em meu modo de ver, como a concebo, é a organização de uma classe de sistemas que satisfazem esta organização. Não é mais que isso. Os sistemas vivos são sistemas autopoiéticos no espaço molecular, i.e., sistemas autopoiéticos cujos componentes são moléculas, nos quais as produções são produções moleculares […]. Nesta maneira de ver, não vejo a autopoiese como um paradigma explicativo para os sistemas (em geral), mas sim como a caracterização de uma certa classe de sistemas, que são exatamente isto: sistemas caracterizados por sua organização autopoiética. Você me pede um paradigma explicativo. Para mim, um paradigma explicativo é o das explicações científicas, no sentido pelo qual entendo paradigmas explicativos como procedimentos capazes de gerar explicações. Portanto, não considero a autopoiese como um paradigma explicativo (Maturana, 1997).
Uma das frases famosas atribuídas a Albert Einstein diz que: "O mais incompreensível a respeito do Universo é que ele seja compreensível". Maturana, por sua vez, diz que o Universo não existiria se não fosse compreensível; na verdade, ele não fala do Universo, mas sim de multiversa, de múltiplas realidades em que podemos estar imersos em nosso viver humano. Ele diz que seu objetivo não é explicar "o que é a realidade", mas sim explicar como fazemos o que fazemos e que a "pergunta zero" é: "Explicar o observador em seu observar". Outro pensador importante do século XX, Heinz von Foerster, é conhecido como o criador da "cibernética de segunda ordem", ou seja, aquela que inclui o observador na observação. Maturana diz que isso é um adiamento do problema, pois, para caracterizar o observador na observação, é necessário invocar um meta-observador colocado em um meta-meio, que por sua vez também requer um meta-meta-observador, e isso cria uma regressão infinita. É necessário, portanto, darmos conta do que se passa conosco, humanos, quando observamos, isto é, fazemos distinções de objetos e fenômenos enquanto participamos do linguagear com outros seres humanos (Maturana & Mpodozis, 1987). Ou, em termos mais gerais: "Como experienciamos a realidade humana?".
Perguntas desse tipo, em geral, são encaradas como pertinentes à neurobiologia, ao estudo do sistema nervoso e, mais particularmente, do cérebro e da consciência humana. Mas é evidente que experienciar realidades não se restringe a seres humanos ou a animais dotados de um sistema nervoso; plantas e seres unicelulares também exibem condutas que, evidentemente, são "cognitivas", ou seja, expressam como ações efetivas alguma forma do conhecer. Maturana afirma que um protozoário tem um "sistema nervoso" molecular, não-neuronal, com o qual ele se mantém em congruência com suas circunstâncias (conserva sua "adaptação"). Enfim, temos um espaço no qual podemos discutir "as bases biológicas do conhecer" — encarado como o desempenho de ações efetivas. Ou seja, um ser vivo "sabe" continuar vivo; nós, como seres humanos, dotados desses organismos de Homo sapiens sapiens, sabemos conversar.
Assim como Gregory Bateson (1973), Maturana não está em busca de "princípios explicativos" (Maturana, 1987) e se detém em explicitar a natureza das explicações, em geral, e daquilo que caracteriza as explicações científicas (Maturana, 1990). Um aspecto peculiar em sua abordagem é a descrição de sistemas "fechados" em sua organização, dos quais os sistemas vivos, como sistemas autopoiéticos, são apenas um exemplo. Para ele, o sistema nervoso é uma rede neuronal fechada, na qual estados relativos de atividade neuronal podem apenas conduzir a outros estados relativos de atividade neuronal. Ele assim descreve um rádio como um sistema "fechado" em si mesmo:
Considere um rádio portátil. É um sistema fechado no fluir da eletricidade. A antena não traz a corrente elétrica. A antena encontra ondas eletromagnéticas (um domínio), estas afetam o fluir da eletricidade (um domínio diferente) e isto produz um som (um terceiro domínio). O rádio não recebe corrente elétrica da antena. A corrente elétrica não é um input. Nada externo penetra no rádio (comunicação pessoal ao autor).
Na obra de Maturana "viver, como um processo, é um processo cognitivo" e descrever como um ser vivo conhece equivale a identificar quais são as ações eficazes que ele desempenha, segundo o ponto de vista de um observador humano. Uma aranha conhece várias coisas: sabe fazer uma teia, sabe achar um parceiro sexual, sabe fugir de predadores, andar pelo chão da floresta… sabe, enfim, "aranhar". Então, o conhecer, nesse modo de ver, é o conjunto de ações efetivas. Por isso, discutir a origem da vida — e da vida humana, em particular — implica descrever as ações que constituem o conhecer. Essa preocupação está explícita no título de um livro recente: Do ser ao fazer (Maturana & Poerksen, 2004). Para Maturana (1985), "a mente não está na cabeça: a mente está na conduta".
E, se vamos falar da vida humana, se vamos enfatizar esse ponto, temos de adentrar a filogênese, quando aparecem condutas e características que vamos chamar de, efetivamente, humanas. Os chimpanzés e os bonobos são nossos primos mais próximos, e a grande pergunta seria: "o que aconteceu nesses 4 a 6 milhões de anos atrás, durante os quais nós nos transformamos em primatas que conversam, que falam uns com os outros, enquanto os chimpanzés não fazem isso?". Porque é desse conversar, é a partir dessa coordenação de condutas consensuais que nós transformamos o planeta da maneira que transformamos e criamos a cultura humana; primeiro a agricultura, depois cidades, e agora somos assim, como uma doença de pele em volta de todo o planeta.
Como seres humanos, vivemos imersos em um fluir incessante de ações que Maturana chama de "linguagear". A linguagem é usualmente entendida como a transmissão de informação simbólica. Mas, em seu trabalho, Maturana deixa o conceito de informaçãocompletamente de fora; diz que os símbolos são secundários ao ato de linguagear, que é essa coordenação de condutas. Então, o linguagear é um modo de viver caracteristicamente humano, no qual somos imersos desde crianças. Em nossa educação, aprendemos e nos transformamos nessa coordenação de condutas com outros seres humanos. Eu consigo, eventualmente, coordenar condutas e coordenar coordenações de condutas com o meu cachorro. Mas o meu cão não vive em coordenação de condutas; ele não vive na linguagem; ele não linguageia com outros cães. Mas eu vivo fazendo isso que estou fazendo agora, continuamente. Todos nós fazemos isso. Só somos humanos porque participamos desse tipo de atividade.
Somos imersos nesse linguagear desde crianças. Em nossa educação, aprendemos, nos transformamos durante essa coordenação de condutas com outros seres humanos. E eu vivo fazendo isso que estou fazendo agora. Todos nós fazemos isso. Só somos humanos porque participamos desta atividade: o conversar. Então, a "gênese da vida humana", para mim, é a gênese do conversar. O conversar é uma fusão do linguagear — que é essa coordenação de coordenação de condutas —, com o emocionar. As emoções são estados do corpo. Chego em casa depois de um engarrafamento de uma hora e meia gritando com o cachorro, empurrando a cadeira e minha mulher diz: "Você nem me beijou?". Eu respondo: "Ah, eu vou me mudar dessa cidade" —, porque nesse estado emocional eu não consigo beijar ninguém.Quer dizer, as emoções são estados do corpo que delimitam os domínios de ação. Então, ao coordenar condutas com outros seres humanos, eu gero emoções, vivo emoções, e vou nessa cadeia de coordenações com emoções. E vou conversando. E quem não conversa não é humano. Isso lembra um pouco o Abelardo Chacrinha, não é? — que dizia: "Quem não se comunica, se estrumbica". Mas, para Maturana, a comunicação não existe; o que existe é essa coordenação de condutas. E, se não houver um acoplamento estrutural entre os parceiros, não acontece nada.
Como se situam essas afirmações em relação aos grandes campos da pesquisa biológica, tais como a genética e a teoria evolutiva?
A GENÉTICA A genética sempre foi importante na discussão das questões biológicas mais profundas, desde que a semente e o ovo são objetos tentadores como possibilidades de estudar o viver, nos quais o viver parece condensado em uma essência. Ultimamente, a genética molecular e a genômica alcançaram uma grande proeminência na biologia, graças a experimentos possibilitados pela metodologia de análise e manipulação de ácidos nucleicos. O projeto Genoma Humano, que pode ser considerado um marco na biologia, levantou uma grande coleção de novas perguntas e teve um aspecto frustrante por não revelar nada espetacular, ou particular, em relação à natureza humana (Keller, 2002).
A grande importância da genética se traduz na composição do painel de cientistas reunidos pela SBPC para discutir "A gênese da vida humana": dos seis cientistas presentes, dois são geneticistas conhecidos (Antonio Cordeiro e Francisco Salzano) e um terceiro, bioquímico (Hernan Chaimovich), estuda soluções coloidais e a importância de ácidos nucleicos na origem da vida. Dos três cientistas restantes, dois estão ligados a temas biomé­dicos: um é microbiologista (Isaac Roitman), e eu mesmo (Nelson Vaz) sou imunologista. O cientista restante, um físico, presentemente estuda a teologia e a ciência das religiões (Eduardo da Cruz). Então, é natural que uma parte significativa dos temas abordados durante nossa discussão envolva problemas genéticos. No entanto, a perspectiva genética se modificou tanto nos últimos anos que o próprio significado do termo "gene" foi posto em discussão (Keller, 2002). Trata-se, portanto, de entender os problemas genéticos por novos enfoques.
No âmbito da biologia da cognição e da linguagem, Maturana fala de um "genótipo total", que inclui muito mais que o DNA; diz que tudo o que se passa no ser vivo precisa ser permitido pelo genótipo, mas argumenta que: "o genótipo determina apenas a possibilidade inicial"; todo o resto é determinado (especificado, orientado, guiado) pela maneira de viver, por uma dinâmica de um "fenótipo ontogênico" em um "nicho ontogênico" (Maturana & Mpodozis, 2000).
A EVOLUÇÃO A discussão sobre a gênese da vida humana está também muito relacionada à teoria da evolução, uma área que atravessa um período de intenso interesse. Devemos a Darwin dois importantes apercebimentos: primeiro, que todos os seres vivos estão relacionados por uma descendência comum (propinquity of descent); segundo, que uma explicação inicial para o surgimento dos seres vivos que encontramos atualmente adaptados aos mais diferentes meios é o processo que ele denominou seleção natural. Em meados do século XX, um grupo de cientistas de diversas áreas, variando da genética de populações à paleontologia (T. Dobzhansky, E. Mayr, G. Gaylord Simpson e G. L. Stebbins), acrescentou muitos aspectos às idéias de Darwin, criando o neo-darwinismo, ou teoria sintética da evolução, um conjunto de postulados que, de certa forma, representa o esqueleto central do pensamento biológico contemporâneo tradicional.
Muitos pesquisadores ressaltam que algo que a teoria sintética deixou flagrantemente de fora foi a biologia do desenvolvimento e sua subdisciplina, a embriologia, que prosseguiram como disciplinas isoladas, até que nos anos 1990 surgiu o campo hoje denominado "evo-devo" (evolutionary developmental biology), impulsionado pela nova metodologia desenvolvida na genética molecular, mas buscando resultados mais amplos que os anteriormente contemplados. Os pesquisadores em "evo-devo" se notabilizaram por enfrentar problemas como os da origem de estruturas biológicas complexas, como olhos, asas, corações e cérebros.
Esse grande progresso na "evo-devo" teve como contrapartida o recrudescimento de movimentos antievolucionistas, apoiados em crenças religiosas ou místicas (o criacionismo). Massimo Pigliucci (2001) afirma não compreender
porque a existência de fenômenos naturais que são atualmente difíceis de explicar, por um lado, reforçam a opinião de que "há algo errado com a teoria" (como querem os criacionistas que defendem o "intelligent design" e, por outro lado, tornam vocais os defensores da teoria sintética, que insistem em que "não há nada errado e tudo já foi explicado". Por sua própria natureza, a ciência lida com coisas e fenômenos para os quais nós não dispomos de explicações.
Ou seja, devemos admitir que há problemas para os quais não temos explicações, mas que isso não nos obriga a aceitar uma solução transcendente (divina ou extraterrestre) para os mesmos.
Nosso problema não é o de um "projeto inteligente", mas sim um processo inteligível. A nova maneira de formular a problemática biológica, que enfatiza a flexibilidade somática, tem sido amplamente descrita em livros recentes (Pigliucci, 2001; West Eberhard, 2003; Kirschner & Gehart, 2005; Jablonka & Lamb, 2005; Pigliucci & Kaplan, 2006; entre muitos outros).
Antes do surgimento do "evo-devo", a teoria evolutiva tinha deficiências mais sérias, tais como um exagero sobre a importância de genes individuais como unidades determinantes do desenvolvimento, além de crenças incorretas, como a que ficou conhecida como "lei biogenética" de Haeckel, hoje rejeitada pela maioria dos biólogos. Exagerando semelhanças entre embriões de espécies animais diferentes durante o chamado "estágio filotípico", Haeckel propôs que "a ontogênese recapitula a filogênese", afirmando, por exemplo, que um embrião humano atravessa o desenvolvimento de outros animais, que tem guelras de peixes e exibe uma cauda. Na realidade, houve uma confusão entre o que foi proposto por Von Baer, ao estabelecer aspectos comuns em formas de embriões de uma dada classe, enquanto Haeckel propôs que organismos de surgimento mais recente na evolução passavam por estágios em que se assemelhavam ao estágio adulto de organismos mais primitivos. Darwin apoiava a visão de Von Baer, mas sua opinião foi eclipsada pela interpretação de Haeckel1. Maturana diverge radicalmente de todos os biólogos em sua interpretação do processo evolutivo, que ele define como uma deriva natural. Juntamente com Mpodozis, ele propõe que a seleção natural pode ser legitimamente encarada como o resultado do processo evolutivo, mas não como seu mecanismo (Maturana & Mpodozis, 2000). Mas esta é uma outra história.

Nelson M. Vaz é professor-titular aposentado do Departamento de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB-UFMG). É membro da Academia Brasileira de Ciências, sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Imunologia e membro honorário da Sociedade Portuguesa de Imunologia.


NOTAS
1. Haeckel tinha opiniões ainda mais radicais, precursoras do nazismo. Ele propunha, por exemplo, que: "As raças inferiores estão fisiologicamente mais próximas dos mamíferos — macacos e cães — que dos europeus civilizados. Devemos, portanto, atribuir um valor totalmente diferente às suas vidas" e "Ele (Jesus) é geralmente considerado como sendo puramente judeu. Porém, as características que distinguem Sua personalidade elevada e nobre, que conferem uma impressão distinta à sua religião, certamente não são judias. São aspectos da raça ariana superior" (Haeckel apud Gilbert, 2001).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATESON, G. 1973. Steps to an ecology of mind. Nova York: Ballantine Books.
GILBERT, Scott. 2001. Teaching evolution through development. 61st Annual Meeting of the Society for Developmental Biology. Madison, Wisconsin.
JABLONKA, E. & LAMB, M. J. 2005. Evolution in four dimensionsGenetic, epigenetic, behavioral and symbolic variation in the history of life. Cambridge: MIT Press.
KELLER, Evelyn Fox. 2002. O século do gene. Tradução de Nelson M. Vaz. Belo Horizonte: Crisálida.
KIRSCHNER, M. W. & GERHART, J. C. 2005. The plausibility of life: resolving Darwin’s dilemma. New Haven: Yale University Press.
MATURANA, H. R. 1985. "The mind is not in the head". J. Social Biol. Struct. 8, pp. 308-311.
____. 1987. "Everything is said by an observer". In Gaia: a way of knowing. Political implications of the new biology. Edição de W. I. Thompson. New York: Lindisfarne Press.
____. 1990. "Science and daily life: the ontology of scientific explanations". In Self-organization: portrait of a scientific revolution. Edição de W. Krohn, G. Kuppers e H. Nowotny. Dordrecht: Kluwer Academic.
____. 1997. "Autopoiese: núcleo duro e cinturón protector hace mucho, muchíssimo, tiempo". Entrevista realizada por Victor Bronstein e Alejandro Piscitelli, Buenos Aires [disponível em www.matriztica.org].
____. 2002. "Autopoiesis, structural coupling and cognition: a history of these and other notions in the biology of cognition". Cybernetics & Human Knowing 9 (3-4), pp. 5-34 [pdf disponível por meio de maturana@matriztica.org].
MATURANA, H. R. & MPODOZIS, J. 1987. "Perception: behavioral configuration of the object".Arch. Biol. Med. Exp. (Santiago) 20 (3-4), pp. 319-324.
____. 2000. "The origin of species by means of natural drift". Revista Chilena de Historia Natural, 73, pp. 261-310 .
MATURANA, H. & B. POERKSEN. 2004. From being to doing: the origins of biology of cognition. Heidelberg: Carl-Auer.
PIGLIUCCI, M. 2004. Phenotypic evolution, beyond nature and nurture (syntheses in ecology and evolution). Baltimore: The John Hopkins University Press.
____. 2006. "Have we solved Darwin’s dilemma?". American Scientist, 94 (3), pp. 272-273.
PIGLIUCCI, M. & KAPLAN, J. 2006. Making sense of evolution: the conceptual foundations of evolutionary biology. Chicago: University of Chicago Press.
WEST EBERHARD, M. J. 2003. Developmental plasticity and evolution. Oxford: Oxford University Press.
 

Nós e o espaço relacional (biológico) da linguagem

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Nós e o espaço relacional (biológico) da linguagem


Costumamos considerar o comportamento algo facilmente mutável, ou, pelo menos, mais maleável do que a “constituição biológica”. Se levarmos a sério o caminho explicativo das abordagens sistêmicas, no entanto, a situação é bem outra. Modos de vida, ou seja, as relações estabelecidas com o meio, são modos específicos de realizar a organização - seja humana, símia ou mamífera, no nosso caso -  e necessariamente conservadores, pois implicam a própria manutenção de nossa condição de ser-e-estar-vivos (durante a ontogenia) e a continuidade da linhagem (no fenômeno da reprodução). Mesmo no estabelecimento de uma nova linhagem, o organismo conserva parte do modo de vida, pois realiza sua ontogenia inicial no contexto do modo de vida parental. Nossa constiuição orgânica, ao contrário, pode variar imensamente: pode variar tanto quanto permita a realização do nosso viver. Se prestarmos atenção a um grupo qualquer de seres humanos, nos impressionamos com a diversidade de anatomias, estaturas, fisionomias e fisiologias, conformações físicas as mais variadas que, no entanto, prestam-se todas a um modo de vida comum. Mesmo entre as mais variadas culturas humanas é conservado um modo de vida que tem a ver com a história de nossa linhagem, e que nos diferencia de outros organismos. Não é isso que distingüimos quando dizemos que só o humano “tem linguagem”? Ou “tem cultura”? Ou uma existência espiritual ou simbólica? Com os organismos não-humanos ocorre o mesmo. A diversidade de formas da natureza sempre impressionou Darwin, e, em A origem, ele diz que uma compreensão abrangente da evolução passa por descobrirmos as “Leis da Variação” (DARWIN, 2002, p. 130-156).

Ao contemplar outra organização que também faz parte de nós, humanos, como a de grandes símios, identificamos rapidamente as enormes diferenças nos atributos físicos, ou, pelo menos entre “nós” e “eles” (nem todos sabemos distingüir um orangotango de um gorila, apesar de sermos mais aparentados ao gorila que o organgotango). Se atentarmos para os modos de vida que foram conservados em nossa antiga linhagem de grandes símios (que remonta a mais de 10 milhões de anos) nos impressionamos com o fato de seres tão diferentes realizarem coisas tão parecidas: a criação amorosa dos filhotes, a intricada rede social, o manuseio de alimentos e de outros objetos, a confecção (manual) deinstrumentos e muitos outros modos de conhecer, ou seja, de operar em interação com os elementos do entorno que nos permitem realizar nossa organização de grandes símios.

Como um tipo particular do modo de vida - a relação organismo-meio - temos a relação estabelecida entre dois ou mais organismos, aco-ontogenia (VIANNA, 2006, p. 308-313). Tal como em relação ao entorno, dois organismos em acoplamento estrutural irão mudar suas estruturas de modo correspondente, na interação. Se essa história de relações durar o suficiente, se a interação for recorrente e houver uma recursividade nessa interação (ou seja, se as mudanças em cada um dos organismos em interação servir para a mudanças subseqüentes nos dois sistemas) temos umacoordenação de ações ente os organismos, que é o estabelecimento de um domínio lingüístico, base da formação de um sistema social. Assim, se atentarmos, não para o “conteúdo” ou a “forma” dessas relações, para os elementos que são utilizados no proceso de interação e a maneira como são utilizados, mas prestarmos atenção na recursividade do processo interacional co-ontogênico, estaremos decrevendo os fundamentos biológicos do fenômeno da linguagem. 

O principal estranhamento entre minha própria abordagem e a da Biologia do Conhecer, é que, nesse sistema explicativo, é preciso não apenas que haja coordenações de ações (o domínio lingüístico que descrevi acima), mas coordenações de coordenações de ações, ou seja, que o próprio domínio consesual do encontro recorrente (de gestos, posturas, sons entre outros) seja utilizado, recursivamente, no processo de coordenar ações dos organismos. Para Maturana, é na linguagem (ou “linguajar”; MATURANA, 1997b, p. 175) que surge o humano, e, como modo de conservar sua organização, o humano vive nesse “fluir de interações recorrentes” (MATURNA, 1997b, p. 168). Concordo com Maturana, e concordo principalmente sobre o que ele diz sobre “denotação” (MATURANA, 1997, p. 150):

[Denotação] não é uma operação primitiva. Ela requer concordância - consenso - para a especificação tanto do denotante quanto do denotado. Se a denotação, portanto, não é primitiva, não pode ser tampouco uma operação lingüística primitiva.

É por concordar com a Biologia do Conhecer sobre o que é uma operação primitiva - o domínio consensual - que considero a realização do domínio consensual humano na linguagem um caso particular do espaço relacional co-ontogênico em que vive todo e qualquer organismo. Tudo aquilo que argumentei sobre a cognição e a evolução - ou seja, que apontar para informações prévias no mundo ou na mente não explica o fenômeno do conhecer, e apontar para informações prévias no ambiente ou no genoma não explica o fenômeno da deriva evolutiva -, serve, igualmente, para a linguagem. 



Darwin, CharlesA origem das espécies. Tradução de Eugênio Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002
Maturana, Humberto. Biologia da linguagem: a epistemologia da realidade. Tradução de Cristina Magro. In: MAGRO, Cristina; GRACIANO, Miriam; VAZ, Nelson (Orgs.). A ontologia da realidade/Humberto Maturana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. p. 123-166.
Maturana, Humberto. Ontologia do conversar. Tradução de Cristina Magro e Nelson Vaz. In: MAGRO, Cristina; GRACIANO, Miriam; VAZ, Nelson (Orgs.).  A ontologia da realidade/Humberto MaturanaBelo Horizonte: Editora UFMG, 1997b. p. 167-181.
Vianna, Beto. Nós primatas em linguagem: relações lingüísticas como um processo biológico. Belo Horizonte, 2006. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais.

Quantas músicas tem a música?

http://www.editorapeiropolis.com.br/2010/01/08/quantas-musicas-tem-a-musica/


LEITURAS
Quantas músicas tem a música?
Por Teca Alencar de Brito

Apesar das muitas diferenças que caracterizam as diversas culturas humanas – do Oriente ou do Ocidente, das grandes metrópoles ou de pequenas aldeias –, todos os seres humanos vivem no linguajar (Maturana, 1997), são seres simbólicos, produtores de arte, que criam e recriam a sua própria história, entre tantos outros aspectos. E se valem da Música, entre outras ricas possibilidades expressivas.

As “muitas músicas da Música” – o choro ou a congada no Brasil, o blues norte-americano, as canções de ninar que as mães cantam para seus bebês ao redor do mundo, assim como as brincadeiras musicais das crianças, entre tantos exemplos – sonorizam modos de perceber, de pensar, de sentir, de dar sentido e de reinventar a própria vida. E se existem músicas com as quais nos identificamos mais, por fazerem parte de nossa cultura, de nosso ambiente, é importante, além de fascinante, conhecer a produção musical de outros povos, de outros tempos e lugares (sendo que alguns nem estão longe de nós, inclusive!).

No século XX, o advento de gravadores e de outros meios de difusão e comunicação, incluindo a internet, ampliou admiravelmente as possibilidades de trocas de informações interculturais, aproximando a produção musical da humanidade e relativizando valores e hegemonias. Pudemos (e podemos) escutar a diversidade musical de tempos e espaços distintos, valendo lembrar que cada qual tem sintonia com modos de perceber o mundo de quem as produz.

Escutando as produções musicais de outros povos, de outras culturas, podemos contribuir no sentido de minimizar diferenças e preconceitos, abrindo caminhos para a aceitação do outro, do estranho, integrando-nos mais enquanto seres humanos. Visando favorecer o contato consigo mesmo e com o outro e, ao mesmo tempo, enriquecer a experiência e o aprendizado musical de crianças e adolescentes, o projeto pedagógico-musical da oficina de música que dirijo em São Paulo valoriza, de modo especial, o contato com a diversidade musical. Escutando, cantando e experimentando tocar instrumentos de procedências diversas, os alunos redimensionam suas ideias de música e de mundo, formando uma consciência integradora que percebe o ser humano, de modo geral, e sua música, em particular, irmanados em um mesmo fazer.

As distinções entre as produções musicais apenas valorizam cada produção, de modo que as músicas do Brasil e de outras partes do mundo convivem em harmonia, sem hierarquias. Rótulos como “erudito”, “popular” ou “étnico”, entre outros, não fazem sentido quando entramos em contato com múltiplas possibilidades que valorizamos e respeitamos, formando ouvintes democráticos e em condições de analisar e criticar, inclusive. Desse modo, é possível instaurar espaços abertos, suscetíveis ao novo, ao diferente, favorecendo a abertura para o outro.

Em sintonia com as reflexões apresentadas acima desenvolvemos, na Teca Oficina de Música, um projeto musical que resultou na produção do livro/CD intitulado Quantas músicas tem a Música? – Algo estranho no museu. Tal projeto utilizou o material musical produzido na escola durante o ano de 2008, lembrando que a convivência com a diversidade musical é uma constante em nosso espaço de convivência musical e humana.

Aproveitando materiais musicais que vinham sendo trabalhados nos distintos grupos de musicalização, estruturamos o projeto no decorrer do processo, lembrando os dizeres do poeta espanhol Antonio Machado: “Caminante no hay camino, el camino se hace ao andar”. Estabelecendo relações entre os distintos trabalhos, dialogando com os alunos para decidirmos – juntos – o que gravar, com disposição para inserir novas propostas ou mudar a rota, construímos um percurso que resultou na produção final do CD e, na sequência, do livro.

Integramos improvisações, composições e interpretações de canções, trabalhando com grande número de instrumentos musicais: latinoamericanos, africanos, chineses, japoneses, europeus e brasileiros, além de brinquedos sonoros e objetos. Estes foram tocados – muitas vezes – por crianças que “não sabiam tocá-los”, pela ótica e pela escuta tradicionais. Aproveitamos o contexto para estimular a exploração de gestos e a produção de timbres, que resultaram em bonitas sonoridades. A partir de um jogo de improvisação realizado costumeiramente em nossas aulas, elaborei uma trama de relações entre as distintas produções musicais, que resultaram na história que deu vida ao livro.

A “brincadeira do museu” é um dos jogos de improvisação que, há muitos anos, captura as crianças de um modo singular: estátuas de músicos com seus instrumentos se movem e tocam quando os visitantes, ou o vigia, se distraem. O contraste entre sons e silêncios, as sensações de expectativa, de surpresa, o inusitado, ao lado da possibilidade de escolher os materiais sonoros a serem explorados, ou conquistados, conferem ao jogo um valor todo especial. Por isso, um dos grupos, formado por crianças com idades entre seis e oito anos, sugeriu que inseríssemos uma versão “do museu” em nosso novo CD, usando instrumentos de diferentes países, ideia que naturalmente foi aceita.

Até então eu não sabia que tal jogo se tornaria o fio condutor do projeto em sua totalidade, até que, dando asas à imaginação, surgiu a história que re-significou todo o trabalho, resultando no livro/CD Quantas músicas tem a Música? – Algo estranho no Museu.

Canções em português, francês, italiano, espanhol, alemão, inglês, japonês e no idioma de Gana, África, compartilharam espaços com canções tradicionais brasileiras e também com as criações das crianças, vocais e instrumentais, criando um espaço de integração onde “isto convive com aquilo”, onde misturamos e arriscamos possibilidades, transcendendo o jogo puramente musical para nos integrar no jogo maior – da vida.

Referências bibliográficas:

GREINER, Christine. Seminário de Estudos Avançados: O outro na comunicação – orientalismos e a criação de novos vínculos. Programa de Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, 2006.

MATURANA, Humberto R. A ontologia da realidade. Cristina Magro, Miriam Graciano, Nelson Vaz (org.). Belo Horizonte: Ed.UFMG, 1997.

MATURANA - Viver e conviver na diversidade cultural

Viver e conviver na diversidade cultural

XIMENA DÁVILA, HUMBERTO MATURANA E HUMBERTO GUTIÉRREZ*

Os problemas humanos não surgem de erros no raciocinar, mas de conflitos no emocionar. Os erros do raciocinar surgem como equívocos ao se operar com coerências lógicas em um domínio particular de coerências operacionais, e se resolvem revisando as operações nesse domínio. Já os problemas humanos surgem no entrecruzamento inconsciente de desejos contraditórios, e se resolvem desde um meta-domínio reflexivo que permite ao indivíduo, como um ato na emoção, olhar para esses desejos e assumir se quer ou não o mundo e o habitar que surgiriam caso desejasse que um ou outro desses desejos guiasse o seu agir. Nesse sentido, o entender e o atuar é sempre um ato individual que surge no ser co-criador com outros de um habitar em uma comunidade. Todo ser vivo existe em um mundo que surge com ele, e o habitar ocorre como uma trama relacional de múltiplas dimensões que constitui o âmbito em que se realiza o seu viver. O atuar de um ser vivo ocorre sempre em um lugar operacional desde onde não se vê, mas implica, toda a trama relacional do habitar. Nós, humanos, vivemos em comunidades constituí- das como redes de conversação em uma biosfera que nos contém e torna possíveis como o âmbito biológico do nosso viver. Todo ser vivo existe na realização de seu viver como indivíduo, e opera como centro corporal dinâmico onde se entrecruzam todas as dimensões da existência que surge a partir do próprio organismo. Por isso todo ser vivo opera como o centro do cosmos desde seu existir como totalidade fechada, irredutível enquanto sistema autopoiético (1) . Nós, humanos, enquanto seres existindo no linguajar, vemos o cosmos que vivemos como aquilo que nos contém, a partir do explicar nosso existir enquanto seres conscientes. Nós, seres vivos, existimos em comunidades de classes distintas. Os humanos, em particular, existem em comunidades integradas por indivíduos conscientes de si mesmos, que podem refletir sobre sua própria existência e ser conscientes de que, com seu viver, vão configurando os mundos que vivem, e que esses mundos não preexistem o seu viver. A convivência em comunidade ocorre como um âmbito de existência que se configura no conviver dos indivíduos que a compõe a partir de seu viver individual. Reciprocamente, o viver individual dos membros de uma comunidade se configura na convivência, gerado com a participação do indivíduo no conviver na comunidade que integra. Tudo o que nós, humanos, fazemos ou pensamos, ocorre em nossa realização enquanto indivíduos, quer nos encontremos sós ou em comunidade. Mais que isso, tudo o que nós, humanos, fazemos, pensamos ou sentimos, ocorre desde o nosso existir fundamental como seres conscientes que operam ou podem operar na reflexão, com consciência de si mesmos. O indivíduo humano de uma classe ou outra surge segundo o conviver que se vive em uma comunidade que ele integra, e o conviver na comunidade surge com um caráter ou outro segundo o viver individual de quem integra essa comunidade com o seu viver. Ainda que as comunidades humanas sejam compostas por seres que operam ou podem operar como indivíduos conscientes de si, elas não são conscientes de si. Só seres humanos, existindo na linguagem, são capazes de operar com consciência de si, de apontar para seus atos e desejos e perguntar se querem esse agir e desejar, e se querem o que dizem que querem. Comunidades humanas não podem fazer isso enquanto comunidades, e seu operar como conjuntos humanos parecerá, a um observador, implicar mais ou menos consciência social, ética, espiritual ou ecológica segundo o operar daqueles que a integram. Só os indivíduos podem ser conscientes e, portanto, responsáveis pelo que ocorre no interior da comunidade que integram, e pelas conseqüências que o modo de ser da comunidade traz para o entorno biológico e não-biológico que a contém e a torna possível. De acordo com tudo o que foi dito, pensamos que o problema central que vivemos, como humanidade no presente de nossa cultura patriarcal/matriarcal, surge da oposição de desejos de poder, controle e dominação, que constituem o pano de fundo emocional dessa cultura, e o desejo de cuidado e conservação do humano e do entorno, o respeito por si mesmo e pelos outros que no fundo todos temos como parte de uma história humana comum. Um dos contextos mais esclarecedores desse conflito central no atual momento da história humana, que é a oposição da trama emocional da cultura patriarcal/matriarcal com a biologia do amar, se dá ao entendermos o fenômeno social ou da convivência aplicando noções dualistas que fundamentalmente expressam uma oposição entre as dimensões individual e coletiva, outorgando a cada uma, uma natureza distinta. Assim, no mais das vezes, ao queremos dar conta de sua compreensão, terminamos por reduzir uma à outra, dissociando-as sem considerar a integralidade fenomênica implicada - a perspectiva sistêmica. Compreender que toda comunidade é um conviver que se orienta desde cada viver individual, segundo um emocionar ou desejar que, como tal, fundamenta tanto nosso viver quanto o conviver, é fundamental para entender a natureza do social. É, então, na realização de nosso viver e conviver que surge o mundo que vivemos e convivemos, como uma expansão de nossa corporalidade, e que, ao ser resultado de um curso histórico, momento a momento em uma co-deriva estrutural, aparece para nós, como surgindo do nada, a nossa identidade coletiva. A identidade coletiva surge do co-emocionar que modula a co-deriva estrutural que surge em nosso presente individual como o mundo social que vivemos e convivemos, como se não houvéssemos participado de sua geração. Isso de fato, se deu no trânsito inconsciente de nossa transformação na convivência com o mundo e no viver o nosso ser que surge como resultado de um fazer-com-os-outros, em uma história de conservação e mudança. Desse modo, a transformação se dá no interactuar de uns e outros como indivíduos, que, enquanto co-emocionam, conservam um modo particular de viver e conviver que, por sua vez, ao depender dos desejos e emoções como um pano de fundo que determina o curso desse conviver, sempre está aberto a orientar-se para uma co-deriva distinta daquela conservada até o momento. Isso quer dizer que uma cultura tem como pano de fundo uma multidimensionalidade que a todo momento e circunstância pode mudar, e que são os próprios indivíduos e seus desejos que os levam a querer orientar-se para um modo distinto de querer agir com os outros, que delimitam a multidimensionalidade de fundo, resultando em um curso de transformação no conviver. Há então, em toda cultura, um fundo multidimensional, que é propriamente a “multidimensionalidade individual” desde onde é gerado um âmbito de interações suficientemente intensas com outros no emocionar e no linguajar, que pode resultar seja um modo específico de interagir ou um modo de vida a conservar. Nesse último caso, pode-se dizer que há uma maior amplitude da multidimensionalidade de fundo envolvida que no primeiro. Em qualquer caso, são os desejos de conservar ou de mudar o conservado o que sempre está em jogo, e portanto uma cultura fundamenta-se na conservação dos desejos que os próprios participantes vivem individualmente em seu conviver social. Assim, os modos de viver e conviver conservados são tanto o pano de fundo quanto o suceder do mundo que surge do nosso agir no mundo que vivemos e convivemos, e desde onde se constituem como uma rede de configurações sensório-motoras que vão modulando e modelando nosso espaço psíquico relacional, dando um caráter ou outro ao nosso ser e ao nosso agir segundo a trama emocional que vivemos e na realização presente desse modo de viver e conviver. Que somos como vivemos e vivemos do jeito que somos parece óbvio. O que não é óbvio é que tanto nossa identidade individual quanto coletiva repousam no mesmo fundamento: a trama de desejos que conservamos em nosso viver e conviver desde nossa corporalidade no habitar que vivemos e convivemos. Tudo o que foi exposto leva-nos a concluir que a diversidade cultural tem seu fundamento nos desejos dos indivíduos que geram, em seu interactuar com outros, a própria cultura que eles mesmos integram. A partir desse olhar, podemos compreender que na base da constituição da diversidade cultural estão os distintos desejos dos muitos indivíduos que se orientam de modos distintos em seu viver e conviver a multidimensionalidade, que como pano de fundo inconsciente do viver, encontra-se sempre implicada, e que são os desejos que determinam os diferentes modos de viver essa multidimensionalidade, resultando em um conviver particular que se distingue de outros conviveres a partir do curso dos próprios desejos individuais que se vivem na convivência. Ao distinguir uma diversidade cultural distinguimos, ao mesmo tempo, distintos desejos que se conservam e que resultam em distintos modos de viver e de conviver, e que como tais constituem uma diversidade cultural no viver humano que surge naturalmente de nossa condição de ser seres humanos. É a nossa condição natural de existência, ou melhor, de co-existência.


(Tradução de Flávia Rodrigues e Beto Vianna)

* Ximena Dávila, Humberto Maturana e Humberto Gutiérrez são docentes e investigadores do Instituto Matríztico, um espaço de reflexão, investigação, formação e colaboração entre comunidades humanas criado a partir do encontro de Ximena Dávila e Humberto Maturana com a distinção que denominaram Matriz Biológica Cultural da Existência, dando origem ao trabalho cientí- fico conhecido hoje como Biologia Cultural. 11 (1) Abstração do operar dos seres vivos apresentada pela primeira vez em 1970 por Humberto Maturana e Francisco Varela na Universidade de Illinois. Uma rede fechada de produções moleculares que produz de modo recursivo a mesma rede de produções moleculares que a produziu e define seu limite permanecendo aberta ao fluxo de matéria através dela é um sistema autopoiético e um sistema autopoiético é um sistema vivo.

http://www.biolinguagem.com/imagens/cadernos/04_caderno_biologia.pdf

Nelson Vaz - O ensino e a saúde: um olhar biológico

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X1999000600017

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Cadernos de Saúde Pública

On-line version ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.15  suppl.2 Rio de Janeiro  1999

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X1999000600017 

OPINIÃO OPINION
 



Nelson Vaz 1












O ensino e a saúde: um olhar biológico
Teaching and health: a biological view




1 Departamento de Bioquímica e Imunologia, ICB, Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Alfredo Balena 190, Belo Horizonte, MG 30130-100, Brasil.nvaz@mono.icb.ufmg.br 
Abstract Living systems are structure determined systems. Teaching is never feasible, but learning is inevitable, a comment by an observer about some aspect of the constant changes occurring while life goes on. Teachers are all those who open up spaces for conviviality and allow congruent changes to take place. There are no instructive interactions in nature. Health and the biology of living systems are phenomena studied in different domains. What is healthy or unhealthy for humans, is defined by human culture. As biological phenomena, health and disease are relational configurations of the organism and its medium. From this perspective, individual health is a social phenomenon.
Key words Health Education; Epistemology; Education; Health
Resumo Os seres vivos são sistemas determinados por suas estruturas. O ensino é impossível, mas a aprendizagem é inevitável, um comentário de um observador sobre algum aspecto das mudanças constantes que ocorrem durante o viver. Professor é aquele que abre um espaço de convivência. Não existem interações instrutivas na natureza. A saúde e a biologia dos seres vivos são fenômenos estudados em domínios distintos, a primeira sendo definida pela cultura. Como um fenômeno biológico, a saúde ou a doença são configurações relacionais do organismo com seu meio e, como tais, são fenômenos descritos no domínio das interações do organismo. Por esse entendimento, a saúde individual é um fenômeno social. Palavras-chave Educação em Saúde; Epistemologia; Educação; Saúde


Introdução

Na imunologia, predominam interesses biomédicos, mas gosto de pensar em meu trabalho como biológico, e nosso laboratório na Universidade Federal de Minas Gerais se chama laboratório de imunobiologia. Ao discutir o ensino de temas relativos à saúde, não vou me referir a vacinas, como seria esperado. Vou abordar temas mais gerais. Quero convidá-los a refletirmos juntos sobre:
1) a biologia do ensino;
2) saúde e biologia.


1) A biologia do ensino

Parece estranho falar da biologia do ensino. É natural que biólogos estejam acostumados a estudar as relações entre biologia e aprendizagem; a adaptação e a evolução são exemplos notáveis. Na imunologia, a aprendizagem é um assunto natural, pois, na imunização, o organismo parece lidar com novidades moleculares; por exemplo, aprende a lidar mais eficazmente com germes e vírus. A imunização pode ser vista como uma forma celular/molecular de aprendizagem. Muitos imunologistas designam as respostas imunes específicas como 'imunidade adaptativa'. É fácil também estabelecer paralelos entre a aprendizagem e outros fenômenos biológicos.
Aqui há uma bifurcação importante, cujo significado não devemos menosprezar. O que dizer sobre o ensino? Alguém, ou algo, 'ensina' os organismos em suas modificações evolutivas? Existe algum sentido em afirmar que o antígeno 'ensina' o organismo a responder imunologicamente? Por acaso a vacina contra a poliomielite 'ensina' uma lição molecular, dá uma aula ao organismo das crianças, que as torna vacinadas, uniformemente mais resistentes à poliomielite?
O que aprendemos sobre a organização e a estrutura dos seres vivos nos últimos cinqüenta anos nos obriga a responder a essas perguntas com um enfático não. Na biologia, como no resto da natureza, não ocorrem interações instrutivas. Os seres vivos não podem ser vergados em direções arbitrárias, ditadas por suas interações com o ambiente. Isso parece contraditório porque as primeiras soluções sugeridas para problemas biológicos tendem a ser instrutivas (Jerne, 1967). Bactérias são expostas à penicilina e surgem variedades resistentes; pinta-se de branco a parede da fábrica e as borboletas sobre elas se tornam mais claras; um coelho é injetado com hemácias de carneiro e logo surgem anticorpos específicos. Tudo se passa como se a penicilina ensinasse as bactérias a serem resistentes; o branco da parede ensinasse às borboletas a mudar de cor; e o antígeno, as hemácias, guiasse a formação dos anticorpos. Depois surgem as explicações seletivas: a cultura de bactérias já incluía mutantes resistentes à penicilina; a população de borboletas já incluía indivíduos mais claros; o coelho já produzia anticorpos anti-hemácias em pequena quantidade - a exposição às hemácias apenas favoreceu a sobrevivência de células que os produziam. Em todos esses casos, tudo se passa como se um elemento externo ao sistema interagisse com elementos do sistema e os favorecesse. Esta é a metáfora em que Darwin se apoiou na Teoria de Seleção Natural (Darwin, 1979), para explicar a origem das espécies, pois tudo se passa como se a natureza selecionasse os indivíduos mais aptos, ou de maior eficiência reprodutiva (Young, 1985).
Assim, embora possamos atribuir certas mudanças nas características dos seres vivos a uma aprendizagem, esta não decorre de alguma forma de ensino, mas sim como da própria estrutura dos seres vivos. Elas dependem do desenrolar de seqüências de mudanças estruturais desencadeadas por um pareamento de interações do ser vivo em seu ambiente com a dinâmica estrutural própria do ser vivo. Os seres vivos são sistemas determinados por sua estrutura (Magro et al., 1997; Maturana & Varela, 1980; Maturana, 1988).
Estamos acostumados a encarar o ensino e a aprendizagem como duas faces da mesma moeda, porém o que propomos aqui é radicalmente diferente. Estamos propondo que não existe instrução (ensino), mas a aprendizagem é inevitável. Aprender é um fenômeno trivial, constitutivo dos seres vivos, que ocorre incessantemente em virtude da sua dinâmica interna e pelas interações incessantes que ele realiza em seu ambiente.
Na concepção usual, as interações com o ambiente são encaradas como estímulos e as mudanças ocasionadas nos seres vivos vistas como respostas. Na imunologia, por exemplo, é possível falar de estímulos antigênicos e respostas imunes específicas. Os estímulos antigênicos, porém, não ensinam ao organismo como responder. Para constituir um estímulo antigênico, o material deve encontrar no organismo uma coleção pré-formada de estruturas moleculares nas quais possa se encaixar com energia suficiente. As moléculas e células que funcionam como se fossem receptores específicos já estão presentes no organismo antes do contato com o material antigênico. Podemos optar por ver tais moléculas e células como dotadas da função (ou propósito) de reagir com o antígeno; entretanto, elas são componentes do organismo que só persistem enquanto mantêm relações com outros componentes do organismo. As noções de estímulos antigênicos e respostas imunes específicas desaparecem em uma linguagem que descreva o organismo em termos de sua conectividade interna. Mas, enveredar pela imunologia não é minha intenção aqui. Retomemos, portanto, a questão inicial.
Em uma abordagem celular/molecular dos fenômenos biológicos, vemos o ensino como uma noção imprópria, enquanto a aprendizagem é vista como um fenômeno incessante, decorrente da dinâmica estrutural dos seres vivos. Todavia, como transportar isso para a sala de aula? Afinal, se não existe ensino, o que é uma aula? O que é um texto didático?


A aprendizagem como um comentário

De acordo com Maturana & Varela (1980), os alunos são sistemas determinados por sua estrutura e as interações instrutivas são biologicamente impossíveis. Mas, se o professor não está ensinando a seus alunos, como podemos entender o que ocorre em uma aula, ou em uma seqüência de aulas? Como negar que o ensino ocorre se o professor comprova, por meio de perguntas e outras formas de avaliação, que a aprendizagem ocorreu? É verdade que alunos diferentes sofrem mudanças diferentes no decorrer da convivência com o professor, mas todos, ao seu modo, parecem aprender alguma coisa.
Que os alunos mudem durante a convivência e que cada um tenha seu modo de mudar não é surpreendente, nem pode ser usado como argumento para demonstrar que o ensino ocorreu. Estamos propondo que a aprendizagem, como uma forma de mudança atribuída por alguém a um outro alguém (o aprendiz), é uma decorrência inevitável do existir em convivência. Como seres vivos que somos, estamos em contínua mudança. Tais mudanças ocorrem, em parte, como decorrência de nossa própria dinâmica interna; em parte, por interações com elementos de nosso ambiente. As pessoas com as quais convivemos são elementos muito importantes nas mudanças que atravessamos como seres humanos. Na verdade, se esta convivência não se estabelecesse nos períodos precoces de nossa existência, não sobreviveríamos e, se o fizéssemos, não adquiriríamos características típicas de nossa espécie, como a capacidade de andar ereto em dois pés, a mímica facial, ou a fala.
Grande parte do desenvolvimento do comportamento de aves e mamíferos depende de condutas recursivas e recíprocas realizadas com o auxílio e/ou na companhia de outros animais da mesma espécie - a mãe, pai, irmãos, membros de uma comunidade. A corte sexual em muitas espécies de aves e peixes constitui um bom exemplo de padrões de interações recíprocas. Maturana se refere aos comportamentos que ocorrem em domínios consensuais, como estes, de comportamentos lingüísticos.
A linguagem humana constitui um claro exemplo de comportamento lingüístico, mas Maturana inclui qualquer domínio de interações gerado mutuamente pelos participantes como linguagem. A linguagem, encarada como um domínio consensual, é uma padronização de comportamentos que, mutuamente, orientam-se. Uma coordenação de ações, e não uma transmissão de informações, como usualmente a interpretamos.
Em nossa interpretação habitual, fazemos uso do que Reddy chamou "a metáfora do tubo" (Reddy, 1979). Imaginamos que comunicação é algo gerado em um ponto (emissor), conduzido por um 'tubo', e entregue a outro ponto (receptor). Dessa forma, existe algo que se comunica, que se desloca pelo tubo. Segundo Maturana & Varela (1980), essa imagem é falsa, pois pressupõe uma interação instrutiva. O fenômeno da comunicação não depende do que se entrega e sim do que se passa na coordenação da conduta. Isso é muito diferente da idéia de transmitir informações.
Para um observador dessa coordenação de condutas, porém, tudo se passa como se ocorresse a transmissão de informações. Estamos acostumados a pensar que palavras e frases se referem a objetos e coisas que existem independentemente de nós. De acordo com Maturana (1993), como seres biológicos que somos, não podemos conhecer uma realidade externa. Temos uma estrutura que reflete uma história de interações com o meio, tanto recente (ontogenia), como remota (filogenia), mas o meio não é composto de coisas conhecíveis. Quando falamos de um mundo, estamos agindo como observadores deste mundo e fazendo distinções em um domínio consensual.
Um dos aforismos centrais na perspectiva descrita por Maturana & Varela (1980:13) é:
"Tudo é dito por um observador a outro observador, que pode ser ele mesmo."
A idéia de distinções geradas pelo observador não foi criada por Maturana. Na psicologia da Gelstat, por exemplo, Kohler (1925) argumentava que todos os eventos perceptivos são internos ao observador. Maturana propõe a idéia de domínios consensuais, de algum tipo de interação social na qual o observador está, necessariamente, envolvido. Este autor não afirma que nosso discurso se refere somente a eventos internos, como pensamentos e sentimentos (o que constituiria uma posição solipsista), mas sim que todos os discursos existem em um domínio consensual (um domínio de coordenação de ações entre organismos). Para Maturana, a realidade não é nem objetiva, nem individual. A atividade tipicamente humana, o linguajar, é uma atividade coletiva.


Quem é o professor?

Se não estamos transmitindo informações simbólicas ao nossos aprendizes - porque esta transmissão é impossível e não ocorrem interações instrutivas -, as modificações de conduta que eles atravessam em sua convivência conosco dependem deste conviver, deste viver juntos. Nesse novo contexto, quem é o professor? Para responder a essa pergunta, transcrevo literalmente um trecho de uma aula de Maturana, em Santiago:
(...)
Alguma outra pergunta?
Sim, Professor: Que é um professor? Ou, quem é um professor?
Humm
(Pausa, risos)
(Escreve ao quadro negro: "Professor, Mestre".)
E, portanto, está aqui: ensinar. Creio que aqui aparece este conceito. O que é ensinar? Eu lhes ensinei a Biologia do Conhecer? Sim, se alguém abre a porta desta sala...
(Desloca-se até a porta, simula ouvir alguém que bate à porta e, então, desculpa-se a alguém que diz em voz baixa a outro alguém fictício: "Nesta sala está o Professor Humberto Maturana ensinando Biologia do Conhecer". Desloca-se de volta.)
Eu lhes ensinei a Biologia do Conhecer? Em um sentido, com relação à responsabilidade perante a Faculdade, eu lhes ensinei a Biologia do Conhecer.
(Risos)
Mas o que fizemos nós ao longo deste semestre?
Desencadear mudanças estruturais.
Desencadear mudanças estruturais, desencadear perturbações. Estupendo! E como fizemos isso?
Em coordenações de coordenações de ações.
Em coordenações de coordenações de ações. Ou, seja: vivendo juntos. Claro, uma vez por semana, viver juntos uma hora, uma hora e meia, duas horas, ou, alguns estudantes, que permaneceram comigo mais horas... Isso era viver juntos. Vocês podem dizer: "Sim, mas eu estava sentado escutando". Isso se estavam verdadeiramente escutando, como espero.
(Risos)
Estavam sendo tocados, alegrados, entristecidos, enraivecidos... Quer dizer, se passaram todas as coisas do viver cotidiano. Mexeram com as idéias, rejeitaram algumas. Saíram daqui conversando isto e mais aquilo... "Estou fazendo um trabalho....". Estavam imersos na pergunta: "Como prosseguir de acordo com o que lhes ia passando, vivendo juntos, comigo, em um espaço que se ia criando comigo". Então, qual foi a minha tarefa? Criar um espaço de convivência. Isto é ensinar.
(Escreve ao quadro: Criar um espaço de convivência.)
Bem, eu ensinei a vocês. E vocês, ensinaram a mim?
Sim.
Claro que sim! Ensinamo-nos mutuamente. "Ah, mas acontece que eu tinha a responsabilidade do curso, e ia guiando o que acontecia". De certa forma, sim, de certa forma, não. De certa forma, sim, porque há certas coisas que eu entendo da responsabilidade e do espaço no qual me movo nesta convivência, e tinha uma certa orientação, um fio condutor, um certo propósito. Mas vocês, com suas perguntas, foram empurrando esta coisa para lá, e para cá, e foram criando algo que foi se configurando como nosso espaço de convivência.
E o maravilhoso de tudo isso é que vocês aceitaram que eu me aplicasse em criar um espaço de convivência com vocês. Vocês se dão conta do significado disso? Foi exatamente igual ao que ocorreu quando vocês chegaram, como crianças, ao jardim de infância, e estavam tristes, emburrado; a mamãe se foi, estão chorando, "Aaahh, eu quero minha mãe". Chega a professora, oferece a mão, e vocês a recusam, mas ela insiste, então, vocês pegam sua mão. E o que se passa quando a criança pega na mão da professora? Aceita um espaço de convivência.
Com vocês se passou a mesma coisa. Em algum momento, aceitaram minha mão. E, no momento em que aceitaram minha mão, passamos a ser co-ensinantes. Passamos a participar juntos neste espaço de convivência. E nos transformamos, em congruência... De maneiras diferentes, porque, claro, temos vidas diferentes, temos diferentes espaços de perguntas, temos experiências distintas. Mas nos transformamos juntos, e agora podemos ter conversas que antes não podíamos.
E quem é o professor? Alguém que se aceita como guia na criação deste espaço de convivência. No momento em que eu digo a vocês:" Perguntem", e aceito que vocês me guiem com suas perguntas, eu estou aceitando vocês como professores, no sentido de que vocês me estão mostrando espaços de reflexão onde eu devo ir.
Assim, o professor, ou professora, é uma pessoa que deseja esta responsabilidade de criar um espaço de convivência, este domínio de aceitação recíproca que se configura no momento em que surge o professor em relação com seus alunos, e se produz uma dinâmica na qual vão mudando juntos."


Realidade

Maturana é um pensador radical. Ele insiste em que o problema da realidade é o mais importante enfrentado pela humanidade hoje em dia, tanto para as pessoas que estão conscientes disso, quanto para as que não estão, porque tudo o que fazemos como indivíduos ou como sociedades depende de, apóia-se na noção que temos sobre a realidade (Magro et al., 1997; Maturana, 1988).
Eis aqui um de seus parágrafos iniciais:
"Na verdade, eu afirmo que a resposta implícita ou explícita que cada um de nós dá à questão da Realidade determina como ele ou ela vive sua vida, assim como sua aceitação ou rejeição de outros seres humanos na rede de sistemas sociais e não-sociais que ele ou ela integra. E, finalmente, desde que nós sabemos pela vida diária que o observador é um sistema vivo porque sua competência cognitiva é alterada se sua biologia é alterada, eu afirmo que não é possível ter uma compreensão adequada dos fenômenos sociais e não-sociais na vida humana se essa questão não é propriamente respondida, e que esta questão pode ser propriamente respondida somente se o observar e a cognição forem explicados como fenômenos biológicos gerados através da operação do observador como um ser humano" (Maturana, 1988:25).


Saúde e biologia

O modo de olhar e as conversações que guiam esse olhar configuram o que se vê e o que se faz. Não apenas isso: o modo de olhar configura as perguntas aceitas como importantes (Maturana, 1993). No modo de olhar usual na imunologia, os fenômenos imunológicos surgem ligados à saúde, isto é, à proteção do corpo contra a invasão por materiais estranhos, principalmente os de germes, vírus e parasitas. No modo de olhar que propomos para a imunobiologia, os fenômenos imunológicos surgem como fenômenos biológicos e não como fenômenos ligados à saúde. Na visão habitual, essa última frase não faz sentido, porque os fenômenos ligados à saúde são vistos como fenômenos biológicos, por exemplo, como fenômenos ligados à vida dos micróbios e à resistência dos seres humanos a infecções. Mas a saúde e o viver podem também ser vistos de outro modo. Quero explicitar isso melhor.
O que constitui a saúde, ou o que é desejável no viver, é um fenômeno cultural. Na Coréia, a carne de cães é parte de pratos tradicionais. Comer o fígado e os intestinos de um leão-marinho recém-abatido, ainda quentes, com seu conteúdo incluindo vermes, parece-nos um costume abominável. Para os esquimós, é uma conduta essencial à sobrevivência em um ambiente onde vitaminas são pouco acessíveis. Em muitas culturas, o corpo humano é deliberadamente modificado, cortado, esticado de maneiras que nos parecem mutilações ou deformações. Para membros de outras culturas, o físico flácido e obeso comum em nossa vida sedentária de 'civilizados' é visto como deformado. A dieta do homem 'civilizado' gera cáries dentárias e doenças metabólicas ausentes em outras culturas.
Por outro lado, "O que constitui o viver?" e "Qual a organização dos seres vivos?" são perguntas adequadas à investigação biológica atual. Digo isso no sentido literal, pois já existem propostas bastante claras para respondê-las. Já foram descritos mecanismos capazes de gerar e diversificar o enorme número de linhagens dos seres vivos que surgiram na história do planeta. Esses são os mesmos mecanismos de autogeração que mantêm vivendo os seres vivos atuais. Nesse modo de ver, já sabemos como se constituem os seres vivos e podemos ser mais explícitos sobre isso.
Ao descrever os seres vivos, Maturana também descreve a nós, seres humanos e nossa origem, como observadores operando na linguagem. Aceitar o que constitui as explicações em geral e as explicações científicas, em particular, é essencial para aceitar o que constitui o viver e o que são os seres vivos. Portanto, não posso partir de premissas tacitamente aceitas. Quando falo do viver, não falo da saúde, embora a história do viver através dos tempos tenha sido a história dos seres saudáveis.
No modo de olhar característico da imunologia, os fenômenos imunológicos surgem como fenômenos ligados à saúde, isto é, à proteção do corpo contra a invasão por materiais estranhos. Concordo com Maturana quando ele afirma que, em seu viver, os seres vivos não têm saúde, nem doença. Podemos ver os fenômenos imunológicos como fenômenos próprios do viver, parte da operacionalidade constitutiva do organismo. Nesse modo de olhar, a saúde surge como uma preocupação indireta, embora importante.
Como um fenômeno cultural, a saúde deixa de ser um atributo do organismo e passa a ser uma configuração relacional organismo/meio, um fenômeno descrito no domínio das interações do organismo. Por esse entendimento, a saúde individual é um fenômeno social. Na definição proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a saúde é definida pela ausência de doença ou de desconforto psíquico. Mas interdefinir a saúde e a doença não adianta muito. Definir o que falta quando se perde a saúde importa menos que a descrição de mecanismos capazes de gerar e manter a saúde da população e conter o abuso social. Mesmo argumentos imunológicos podem ser usados politicamente. Meu colega imunologista Tomaz Mota Santos, hoje reitor da UFMG, dizia que "com as campanhas de vacinação, os governos querem que o corpo resolva nossas contradições sociais". Para Virchow, "se a doença é uma conseqüência do desequilíbrio individual, então, as epidemias surgem em sociedades desequilibradas".
Uma rápida consulta ao The Cambridge World History of Human Disease (Kiple, 1993), uma alentada coleção de 1.200 páginas, mostra que, durante a história da humanidade, as doenças infecciosas estiveram mais associadas a fenômenos sociais, como desastres agrícolas, guerras, grandes migrações etc., do que aos fenômenos sobre os quais a imunologia pode influir. A peste que atingiu a Europa no século XIII, por exemplo, surgiu após dois anos de chuvas quase ininterruptas. As doenças infecciosas não foram um fator importante na evolução dos seres humanos ou de qualquer outro animal (Mckeow, 1988). Essa é uma afirmação difícil de aceitar em uma época como a nossa, quando parecem ressurgir ameaças de pestilências que acreditávamos haver superado.


Uma mudança de perspectiva

Quando propomos olhar os fenômenos imunológicos como fenômenos biológicos e não como ligados à saúde, propomos uma mudança não trivial, pois isso tem duas conseqüências (Maturana, 1993):
1) Muda toda a imunologia, uma vez que mudam os fenômenos que a constituem: já não se trata de uma luta do organismo contra agentes externos, e sim de uma visão de interações do organismo consigo mesmo e com componentes de seu ambiente.
2) Amplia-se a visão sistêmica do organismo: o espaço interno se transforma em uma dinâmica relacional molecular/celular fechada, uma dinâmica que participa da definição do organismo, em vez de ser definida por ele.
Em outras palavras, desaparecem as noções de ataque e defesa. O organismo deixa de estar em oposição a um ambiente que o ameaça, e passamos a ver a dinâmica que integra o organismo e seu meio. Segundo Maturana (1993), o meio em que o organismo opera surge em nossas distinções quando distinguimos o organismo, no mesmo ato de distinção. Deixando de ver o meio como um agressor, como algo externo ao organismo, podemos vê-lo como o âmbito que torna o organismo possível.
Nesse entendimento, assim como o meio externo, também o meio interno recupera seu caráter dinâmico relacional. O organismo deixa de ser um agregado de células, órgãos e funções e passa a ser uma rede de relações de produções celulares e moleculares que surge como uma totalidade na realização dessa dinâmica no ambiente em que fica definido como tal organismo. Ao mesmo tempo, o organismo é o âmbito onde surgem muitas outras redes de relações de produções celulares e moleculares, que se entrecruzam com o organismo em sua realização como tal. Essas outras redes - como o sistema nervoso, o sistema endócrino, o sistema hemopoiético, ou o sistema imune - constituem-se como unidades em outros domínios de descrição. Discutiremos como esses diferentes sistemas se entrecruzam no organismo e como eles se mantêm fechados em sua organização.
Vendo o meio como o âmbito que torna o organismo possível, a alimentação - a ingestão de alimentos - passa a ter uma grande influência na atividade imunológica deste, como a forma mais importante e cotidiana de contato com proteínas e, portanto, de interferências do ambiente do organismo sobre a atividade imunológica. Ao alimentar-se, o organismo contata uma enorme variedade de macromoléculas sintetizadas por outros organismos. A mucosa intestinal é duzentas vezes maior que a pele e, além disso, abriga até 90% das células secretoras de imunoglobulinas do organismo. Muitas moléculas dos alimentos ingeridos são absorvidas intactas ou incompletamente degradadas, e a ativação linfocitária também envolve uma etapa de degradação (processamento) de proteínas, semelhante a uma digestão parcial no meio intracelular.
Por esses motivos, consideramos a alimentação como de grande relevância para a atividade imunológica e capaz de influenciar todos os fenômenos imunológicos, não apenas por uma perspectiva nutricional, mas também em relação a interferências que o contato com proteínas no tubo digestivo possam ter sobre a atividade imunológica e, indiretamente, sobre todo o organismo.


A imunologia atual é uma abordagem 'de baixo para cima' (bottom-up)

Diferentemente da genética e da fisiologia, que nasceram do estudo de plantas e animais, a imunologia nasceu associada com a medicina e a bacteriologia médica. Foi a primeira forma bem sucedida de biotecnologia e, de certa forma, isso é o que ela ainda é, embora não tão bem sucedida quanto antes. O objetivo original de produzir novas vacinas falhou quase totalmente. Exceto por algumas vacinas antivirais produzidas nos aos 50-60, quando os métodos de cultura de tecidos foram desenvolvidos, virtualmente nenhuma vacina importante foi produzida desde o período fundador, a despeito de grandes esforços e dispêndios em pesquisa. Exceções seriam as vacinas para hepatite-B e para H. influenza. A busca de novas vacinas, apesar de muitas inovações (Dickler & Collier, 1996), permanece um processo, basicamente, empírico.
A grande transformação da imunologia moderna reside, exatamente, na definição de componentes celulares e moleculares envolvidos na atividade imunológica, uma realização mais pertinente à ciência que à tecnologia. A dificuldade atual encontra-se em aplicar esse enorme corpo de conhecimentos biológicos (bioquímicos, genéticos etc.) especializados à medicina. Esse é um problema geral, não particular à imunologia, mas nesta ele assume características especiais.
Movimentadas por um dilúvio de dados sobre componentes celulares e moleculares, as ciências biológicas contemporâneas também se preocupam em organizar esse conhecimento em quadros coerentes sobre a operação de órgãos, sistemas de órgãos e do organismo como um todo. Na neurobiologia, por exemplo, os conhecimentos celulares e moleculares sobre o cérebro precisam ser correlacionados com conhecimentos sobre a cognição e a conduta do organismo como um todo. Para estabelecer essas correlações, duas tendências são identificáveis: top-down (de cima para baixo) e bottom-up (de baixo para cima):
top-down: descubra o que o cérebro/mente faz ® descubra como implementar tais funções;
bottom-up: descubra quais são os componentes ® descubra o que grandes coleções de tais componentes podem fazer.
Na neurobiologia, a abordagem top-down tem estado presente, como exemplificado pelos títulos dos trabalhos de um dos mais famosos neurobiólogos dos anos 50-60, Waren McCulloch (MacCulloch & Pitts, 1965; MacCulloch, 1965). A abordagem bottom-up, por sua vez, vem ganhando um prestígio crescente, principalmente por sua associação com a informática e a 'inteligência artificial', sendo atualmente designadacomputational neuroscience, como mostram alguns de seus títulos importantes (Churchland & Sejnowsky, 1988, 1992).
Na imunologia, por motivos históricos, a abordagem bottom-up tem sido dominante. Desde a invenção da noção de anticorpos específicos (Von Behring & Kitasato, 1961), a tarefa dos imunologistas tem sido:
1) elucidar a natureza bioquímica dos antígenos e anticorpos;
2) inventar esquemas eficazes de imunização contra doenças infecciosas (inventar esquemas eficazes de induzir a produção de anticorpos).
Inicialmente, as doenças infecciosas foram entendidas como um duelo entre toxinas microbianas e anticorpos neutralizantes (antitoxinas) ou facilitadores da fagocitose (opsoninas). Somente nos anos 60, foram identificadas as células (plasmócitos) responsáveis pela produção desses anticorpos. A imunologia celular daquela década, como a de hoje, tinha como preocupação fundamental a elucidação dos mecanismos de formação dos anticorpos. Uma abordagem top-down nunca teve lugar na imunologia, na qual as preocupações mais gerais, como as propostas de articular os componentes celulares e moleculares em um só sistema dotado de propriedades globais não foram comuns. Virtualmente, todas as teorias partiram das propriedades de moléculas, como anticorpos, ou células, como linfócitos.
Mais recentemente, a imunologia sofreu uma grande transformação por associar-se a ramos da bioquímica, como a genética molecular e a biologia celular. Isso teve dois resultados: por um lado, os componentes celulares e moleculares têm se multiplicado em ritmo vertiginoso; por outro, foram caracterizados alguns mecanismos fundamentais da atividade imunológica, como o processamento/apresentação de peptídeos e as conexões idiotipo/anti-idiotipo.
Todo esse conhecimento, no entanto, tem sido incapaz de vencer o problema que a imunologia se propôs resolver em sua criação: a produção de novas vacinas e novos métodos de tratamento. Os imunologistas, em geral, assim como a sociedade que financia suas pesquisas, permanecem convencidos de que a vacinação é o objetivo central no controle das doenças infecciosas. Mais de um século de repetidos insucessos em produzir vacinas eficazes pela injeção de inumeráveis preparações antigênicas não foram suficientes para sugerir uma mudança de atitude. Aqui e ali surgem exemplos de vacinas efetivas, como as antipoliomielite, que podem levar à erradicação completa da doença do planeta (Nature, 1976), como ocorreu com a varíola (Henderson, 1976).
Essa insistência em vacinar deriva principalmente da crença de que o corpo, de alguma forma, reconhece materiais estranhos e organiza suas defesas em resposta a esse reconhecimento. É surpreendente constatar quanto do conhecimento imunológico estabelecido tem sido dominado por crenças não desafiadas e mesmo não examinadas.


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