segunda-feira, 13 de julho de 2015

Washington Novaes: Cláudio Abramo, o revolucionário

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Cláudio Abramo, o revolucionário

Por Washington Novaes em 04/07/2005 na edição 336
Quando Cláudio Abramo morreu, há quase 20 anos, escrevi, emocionado, um artigo sobre ele, para um jornal que já não existe. Mas nada mudou substancialmente, desde então – a não ser a saudade, que não pára de aumentar. Transcrevo o artigo:
‘Na noite de 31 de março de 1964, sentado debaixo da mesa da sala de jantar da casa do jornalista Cláudio Abramo, em São Paulo, eu tentava captar, num radinho de pilha que teimava em só funcionar ali, notícias sobre o golpe militar, em alguma rádio que ainda não estivesse sob censura. Nas poltronas ao lado, Cláudio, sua mulher, Radha, e o diretor de teatro Flávio Rangel, todos muito nervosos, sofriam e torciam as mãos.
Flávio declamava trechos de O Grande Ditador, de Chaplin, e dizia que gostaria de ter em mãos uma metralhadora. Cláudio lamentava não estar em uma redação de jornal. Era um dos momentos de ostracismo que sofreu em sua longa e brilhante carreira. Havia deixado O Estado de S.Paulo, onde comandara uma revolução que tornara o velho matutino o melhor jornal paulista – com uma redação onde escreviam Lívio Xavier e Bráulio Pedroso, Delmiro Gonçalves e Décio Almeida Prado, Vladimir Herzog e Fernando Pacheco Jordão, Perseu Abramo e Fernando Pedreira, Oliveiros S. Ferreira e Thomaz Souto Correa, Diogo Pacheco e Alexandre Gambirasio, Hélio Bicudo e Luiz Weis, além de Ruy Mesquita e Gianino Carta, que comandavam a editoria de notícias internacionais, e Frederico Heller, editor de Economia.
Amargurado com a deslealdade de companheiros a quem dera a mão no jornal, com as dificuldades financeiras que enfrentava (sobrevivia quase só fazendo capas para a revista Visão, a convite de seu amigo Hideo Onaga), Cláudio antevia a falta de perspectivas na ditadura que se inaugurava.
Esse foi o tema recorrente nas conversas em sua casa, nos meses que se seguiram, quando por lá desfilaram muitos dos foragidos e perseguidos pela ditadura – Paulo Francis, Tarso de Castro, Paulo Silveira, Antônio Maria (que ajudava Radha a fazer sopa de cebola, para poder ‘chorar sem vergonha’). Muitos.
Cláudio também temia ser preso, por causa de seu passado político trotskista. Mas isso só viria a acontecer 12 anos depois, nos porões do DOI-CODI paulista. E não foi pelo passado. Radha e Cláudio viveram momentos de terror por não renegarem um amigo comunista perseguido e preso. De qualquer forma, o episódio acabaria custando caro: nos meses que se seguiram, a corporação dos porões intensificou as pressões sobre a Folha de S.Paulo, que Cláudio secretariava e dirigia desde 1965 e havia colocado na liderança do mercado editorial paulista. Acabou deixando a direção da Folha, triste, para tornar-se correspondente na Europa.
A carreira brilhante, a liderança do mercado em dois jornais, nada disso era fruto do acaso ou circunstância. Além de homem da prática, da ‘cozinha’ de jornal, Cláudio era um estudioso do jornalismo. E embora sua formação intelectual e política estivesse muito mais ligada aos autores europeus (menos na science fiction, uma de suas paixões), era o jornalismo norte-americano que ele mais admirava e conhecia e tentava transformar em modelo nas redações por que passou.
Já no final da década de 50, o Estadão, tal como os grandes jornais norte-americanos, era todo pré-diagramado por volta das 18 horas, muito antes que os redatores e repórteres começassem a escrever suas matérias – num tempo em que sequer existia telex e as matérias das sucursais e correspondentes eram recebidas pelo telefone. O próprio Cláudio diagramava as páginas mais importantes. E quem trabalhava a seu lado aprendeu a dar a uma página o equilíbrio gráfico e o bom-gosto que só um talento plástico como o dele era capaz (Cláudio ganhara um prêmio nacional de desenho, anos antes; foi para a Europa, passou um tempo e voltou dizendo que não havia nada mais para desenhar, tudo já fora feito pelos grandes mestres; a partir daí, nunca mais desenhou; e enquanto conversava, rabiscava intermináveis redes de canos que se interligavam).
Ele se orgulhava de sua capacidade de planejar o jornal. E, principalmente, de um episódio em que essa capacidade foi posta à prova no limite.
Era 1959. O presidente Eisenhower, dos Estados Unidos, resolvera visitar Brasília, que ainda não passava de um acampamento de obras, sem qualquer espécie de comunicação com o resto do país: não havia estradas de rodagem nem aviões de carreira, nem telefone nem telex. Nada.
Estadão fretou um avião, um velho Convair. E saímos de manhã, uns 15 repórteres e fotógrafos.
Já dentro do avião, cada um de nós recebeu um envelope onde se descrevia a tarefa para que fora designado, o local onde deveria ficar, o número de linhas a escrever, quantas fotos precisaria escolher para ilustrar sua matéria, a quem deveria encaminhar outras notas interessantes sobre fatos que presenciasse e o que fazer em qualquer situação de emergência.
Fui designado para a rampa do Palácio do Planalto, ainda em construção, onde se postavam mais uns 10 ou 12 jornalistas, entre eles o então jovem Carlos Lemos, que era do Jornal do Brasil. Vi o presidente norte-americano chegar, com sua cara de doente, apesar das bochechas rosadas, assustado com o poeirão e com as pessoas que tentavam agarrá-lo. E o vi subir e descer a rampa, de braço com Juscelino Kubitschek.
No avião, de volta a São Paulo, recebemos, cada um, outro envelope com novas instruções: como deveria ser o título das matérias (quantas linhas, quantas letras), que instruções deveriam ser marcadas no texto para orientar a composição nas oficinas (que compunham em linotipos), o número de caracteres de cada legenda de foto etc.
Diante da poltrona de cada um de nós, uma máquina datilográfica. Na frente do avião, no lugar reservado à copa, fora montado um pequeno laboratório fotográfico, onde Oswaldo Palermo revelou os filmes e fez as cópias das fotos em tamanho pequeno, para permitir a escolha e ampliação das que seriam publicadas.
Quando chegamos à redação do jornal, por volta das 8 horas da noite, estavam prontas – escritas, diagramadas, legendadas e marcadas para a oficina – 12 páginas de jornal. Só faltava fazer a cópia ampliada das fotos e escolher uma delas para a primeira página.
Cláudio Abramo decidira aproveitar a visita de Eisenhower para quebrar uma tradição do jornal. Até ali, só eram publicadas na primeira página notícias do exterior (a primeira página nacional na verdade era a última do jornal). Mas como se tratava de um presidente dos Estados Unidos, havia um bom pretexto para quebrar a tradição – que nunca mais foi restaurada.
Cláudio morreu sem fortuna, como sempre vivera. De seu, só tinha o apartamento onde morava. Num tempo em que o jornalismo tanto serviu e tem servido de gazua, a morte digna volta a realçar o comportamento de toda uma vida.
Ele, Cláudio, talvez recebesse com uma frase sarcástica – uma de suas marcas – uma observação dessa natureza. Não importa. Debaixo do sarcasmo que ajudava a enfrentar a crueza e rudeza do mundo do jornalismo, morou sempre uma alma gentil e leal, que lutou até o último dia para fazer de sua profissão o que dela esperam seus semelhantes. Principalmente os mais necessitados.
Talvez num futuro próximo se venha a reconhecer que o jornalismo não é profissão que se exerça em nome próprio, e sim por representação da sociedade, a quem pertence a informação. Talvez nesse futuro a sociedade exija eleger, ela mesma, os seus representantes (jornalistas), em eleição direta, por voto secreto.
Pena que nesse dia Cláudio Abramo não esteja vivo. A sociedade teria com certeza um bom candidato, provado em décadas de fidelidade ao social.’
Foi esse o artigo que escrevi por ocasião da morte do Cláudio. Poderia acrescentar muito mais. Falar de sua importância na abertura política promovida pela Folha de S.Paulo e que teve profunda influência nos rumos políticos do país. Poderia falar da reforma que empreendeu no jornal durante uma década – a partir de 1965, quando Pimenta Neves, Aloysio Biondi, Alexandre Gambirasio e o autor destas linhas fomos seus assistentes. Poderia falar da sua ‘ética do marceneiro’, que não diferiria da ética do jornalista. Mas não é preciso. Além do mais, agravaria a saudade já insuportável.
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Jornalista, articulista do Estado de S.Paulo, comentarista da TV Cultura e supervisor do programaRepórter Eco

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