quinta-feira, 27 de março de 2014

Facebook e os reprodutores do senso comum


Facebook e os reprodutores do senso comum
Jacob Burckhardt, historiador suíço do século XIX, dizia que um dos problemas da modernidade era que “enquanto as condições materiais da sociedade ficam mais complexas, suas relações sociais se tornam mais cruas”. Um dos sintomas do que ele chamou de brutal simplificação socialdizia respeito ao fato das pessoas se projetarem categoricamente em identidades fixas. Não surpreende que um sujeito autoproclamado de bem, se sinta não apenas superior, mas também incumbido da tarefa de limpar a sociedade daquilo que julga ser o problema.
Na plateia, enfileirados, estão os reprodutores do senso comuns, prontos para proclamarem corajosas palavras de ordem no seu Facebook (!). O clima parece entusiasmar a cooperação prática, e todos então se sentem seduzidos a oferecerem suas sugestões logo após proclamarem seu mantra: bandido bom é bandido morto. O que se segue é um conjunto de frases rabiscadas pelo contra senso e apresentadas como prognóstico de solução. “Não é a melhor justiça, mas é melhor do que justiça nenhuma!”, “é porque não foi contigo! Quando for, você vai querer fazer o mesmo com eles”.... Como se não bastasse a ignorância ao admitir publicamente um jargão protofascista como sua própria opinião, o discurso machão não se caracteriza como um erro de cálculo, mas como cálculo nenhum. A reprodução automática endossa passivamente um comportamento mais do que praticado, mas que salta aos olhos de um ignorante dessa natureza como uma ilusão de retribuição pelas injustiças que testemunha diariamente. Trata-se, portanto, de um delírio de vingança traduzido por um entendimento rasteiro sobre interações sociais.
Como gostava de lembrar George Orwell, “a vingança é um ato que se quer cometer quando se está impotente e porque se está impotente”. Nesse caso, uma dupla impotência. A primeira, assumida, diz respeito à constatação de que existe injustiça. Em outras palavras, que de fato estamos cercados de uma estrutura social nociva que normaliza patologicamente um sentimento perene de injustiça. A segunda se refere precisamente à impossibilidade desse tipo de discurso oferecer qualquer diagnóstico coerente. Ele é perfeitamente capaz de identificar a violência mais óbvia, aquela que se manifesta como perturbação da ordem, mas falha miseravelmente em perceber que a própria ordem depende de muita violência para se impor. Pense quanta violência é necessária para manter estável e constante a grosseira distribuição de renda no Brasil.
Para que esse (des) equilíbrio absurdo se mantenha, também é necessário sujeitos brilhantes como esses que repetem o jargão e discutem soluções para o Brasil em redes sociais. Na topologia do óbvio, criam a sensação de movimento, de que algo precisa ser feito, de preferencia algo muito radical. Na escola do bom senso, onde juram ter se formado, são sabedores de verdades sociológicas de bem. No fim, a ilusão de movimento sustenta um status quo ad aeternum.
No país com a segunda pior distribuição de renda do mundo, ninguém sabe o que são direitos humanos – já que nossos gênios sugerem que eles existem exclusivamente para proteger criminosos – mas todo mundo conhece o código de defesa do consumidor e onde fica o PROCON mais próximo. Todos aprenderam a comprar conscientemente assistindo ao Fantástico. O não consumidor é também o não cidadão. Chegamos ao ponto de termos esse ponto de vista abertamente defendido no legislativo pela fabulosa Leila do Flamengo, que não tem qualquer constrangimento em admitir: “Defendo as famílias e os moradores, não os desocupados”, ao lembrar seus eleitores que mendigos não são cidadãos.
Ao querer acertar as contas com seus criminosos, escapa ao cálculo dos defensores passivos da máxima bandido bom é bandido morto que também são eles, os bandidos, resultado direto de uma estrutura social covarde e abjeta, montada historicamente por tipos sociais obcecados por uma ilusão de ordem. Falta, portanto, clareza e abstração suficiente para que o sujeito se de conta de que mais de que não apenas está defendendo como novidade algo que há muito ocorre, como está brigando de forma quixotesca pela manutenção da mesma estrutura que supõe condenar. Os vigilantes do bairro do Flamengo nada mais são do que a repetição trágica de formas análogas de polícia privada, como as milícias que há um tempo circulam no imaginário urbano carioca.  Justiça, a quem interessar, é algo bem diferente disso tudo.

fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/bandido-bom-e-bandido-oi


  

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