JORNALISMO PÓS-INDUSTRIAL
Adaptação aos novos tempos
Por C.W. Anderson, Emily Bell e Clay Shirky em 25/04/2013 na edição nº 743Tradução de Ada Félix
Preparado
no âmbito do Tow Center for Digital Journalism da Escola de Jornalismo
da Universidade Columbia, o documento a seguir foi traduzido com
exclusividade para a Revista de Jornalismo ESPM, que autorizou sua reprodução neste Observatório.
Trata-se de um relatório de pesquisa sobre o jornalismo pós-industrial,
lançado em 2012, e dividido em três partes: Jornalistas, Instituições e
Ecossistema. Para ler a íntegra do material, clique aqui e peça a sua Revista de Jornalismo ESPM.
O documento apresenta o atual estágio do jornalismo, em que as
condições técnicas, materiais e os métodos empregados na apuração e
divulgação das notícias até o fim do século 20 já não se aplicam.
Estamos em meio a uma revolução, e a adaptação às novas fronteiras da
profissão é a condição de sobrevivência nesse cenário, que prevê o uso
intensivo de bases de dados, além da interação com múltiplas fontes e
com o público.
O foco do trabalho é a imprensa norte-americana, mas as lições a serem
tiradas da análise servem a todos os interessados nos rumos dessa
indústria.
Introdução
Transformação do jornalismo norte-americano é inevitável
Parte pesquisa e parte manifesto, o presente dossiê trata do exercício
do jornalismo e de práticas de jornalistas nos Estados Unidos. Não é,
contudo, um documento sobre o “futuro da indústria jornalística”.
Primeiro, porque boa parte desse futuro já chegou. E, segundo, porque já
não há mais uma indústria jornalística, por assim dizer.
Antigamente, havia uma. Era uma indústria que se mantinha em pé por
coisas que em geral mantêm um setor em pé: a similitude de métodos entre
um grupo relativamente pequeno e uniforme de empresas e a incapacidade
de alguém de fora desse grupo de criar um produto competitivo. Essas
condições não se cumprem mais.
Se quisesse resumir em uma sentença a última década no ecossistema
jornalístico, a frase poderia ser a seguinte: de uma hora para outra,
todo mudo passou a ter muito mais liberdade. Produtores de notícias,
anunciantes, novos atores e, sobretudo, a turma anteriormente conhecida
como audiência gozam hoje de liberdade inédita para se comunicar, de
forma restrita ou ampla, sem as velhas limitações de modelos de
radiodifusão e da imprensa escrita. Nos últimos 15 anos houve uma
explosão de técnicas e ferramentas. E, mais ainda, de premissas e
expectativas. Tudo isso lançou por terra a velha ordem.
Não há como olhar para organizações distintas como Texas Tribune,
SCOTUSblog e Front Porch Forum, ou mesmo plataformas como Facebook,
YouTube e Storify, e notar qualquer coerência. Não há como olhar para
novas experiências no jornalismo sem fins lucrativos, como o trabalho de
Andy Carvin na National Public Radio (NPR) durante a Primavera Árabe, e
acreditar que o jornalismo está seguro nas mãos de empresas voltadas ao
lucro. E não há como olhar para experiências de financiamento coletivo
de jornalismo pelo site de crowdfunding Kickstarter, ou para a cobertura
de manifestações de protesto via celular, e acreditar que só
profissionais e instituições da imprensa podem tornar a informação
pública.
Muitas das mudanças discutidas na última década como parte da futura
realidade do jornalismo já ocorreram; boa parte do futuro vislumbrado
para o jornalismo já se converteu em presente (é como disse o escritor
William Gibson lá atrás: “O futuro já chegou, só não está uniformemente
distribuído”). Nossa meta, em vez de ficar tecendo conjecturas, é
escrever sobre o que já ocorreu, o que está acontecendo neste instante e
que lições é possível tirar disso tudo.
As transformações em curso no ecossistema jornalístico já tiveram o
efeito de derrubar a qualidade da cobertura jornalística nos Estados
Unidos. Estamos convencidos de que, antes de melhorar, a situação do
jornalismo em solo norte-americano irá piorar ainda mais – e, em certos
lugares (sobretudo em cidades de médio e pequeno porte, sem um jornal
diário), piorar muito. Nossa esperança é limitar o alcance, a
profundidade e a duração dessa derrocada. Como? Sugerindo saídas para a
produção de um jornalismo de utilidade pública, com a adoção de
ferramentas, técnicas e premissas nem sequer imagináveis dez anos atrás.
Também mostramos que novas possibilidades para o jornalismo exigem
novas formas de organização. Até aqui, a tendência de veículos de
comunicação tradicionais foi a de preservar tanto métodos de trabalho
como hierarquias, mesmo com o colapso de velhos modelos de negócios e a
incompatibilidade de novas oportunidades com velhos padrões. Em
entrevista após entrevista com representantes da imprensa tradicional
focados no digital, constatamos a frustração causada por velhos
processos. A adaptação a um mundo no qual o povo até então chamado de
“audiência” já não é mero leitor e telespectador, mas sim usuário e
editor, vai exigir mudanças não só em táticas, mas também na concepção
que o jornalismo tem de si. Incorporar um punhado de técnicas novas não
será suficiente para a adaptação ao novo ecossistema; para tirar
proveito do acesso a indivíduos, multidões e máquinas, também será
preciso mudar radicalmente a estrutura organizacional de veículos de
comunicação (estamos cientes de que muitas das organizações de hoje
verão nessas recomendações um despautério).
Este dossiê é dirigido a diversos públicos – a veículos de comunicação
tradicionais que queiram se adaptar, a novos atores (sejam eles
jornalistas independentes, novos projetos de jornalismo ou até
organizações que não pertenciam ao ecossistema jornalístico) – e a
organizações e entidades que afetam o ecossistema da notícia, sobretudo
governos e faculdades de jornalismo, além de empresas e instituições sem
fins lucrativos.
Partimos de cinco grandes convicções:
1. O jornalismo é essencial.
2. O bom jornalismo sempre foi subsidiado.
3. A internet acaba com o subsídio da publicidade.
4. A reestruturação se faz, portanto, obrigatória.
5. Há muitas oportunidades de fazer um bom trabalho de novas maneiras.
O jornalismo é essencial
O jornalismo expõe a corrupção, chama a atenção para a injustiça, cobra
políticos e empresas por promessas e obrigações assumidas. Informa
cidadãos e consumidores, ajuda a organizar a opinião pública, explica
temas complexos e esclarece divergências fundamentais. O jornalismo
exerce um papel insubstituível tanto em regimes democráticos como em
economias de mercado.
A atual crise de instituições norte-americanas de jornalismo nos
convence de duas coisas. A primeira é que não há como preservar ou
restaurar o jornalismo no formato praticado ao longo dos últimos 50
anos. E a segunda é que é mister que busquemos, de modo conjunto, novas
saídas para o exercício de um jornalismo capaz de evitar que os Estados
Unidos descambem para a venalidade e a pura defesa de interesses
pessoais.
É óbvio que nem todo jornalismo é essencial. Muito do que se produz
hoje não passa de entretenimento ou diversão. Aqui, no entanto, iremos
lidar apenas com o lado sério do jornalismo – o que alguns chamam de hard news, accountability journalism
ou o “núcleo duro da notícia”. Na crise atual, a notícia séria é o que
importa. Em vez de tentar enumerar ou definir tudo aquilo que distingue a
notícia séria da futilidade, decidimos adotar a célebre prova dos noves
de Lord Northcliffe: “Notícia é algo que alguém, em algum lugar, não
quer ver publicado. Todo o resto é publicidade”.
Isso não significa que o material produzido por veículos de comunicação
possa ser precisamente dividido em duas categorias, a de notícias
sérias e a de futilidades. Às vezes, o caderno de economia vai dar uma
matéria sobre estampas de gravatas; em outras, o caderno de moda trará
uma reportagem sobre algum negócio realizado no mundo da moda. No
momento em que escrevo, o site do New York Daily News traz um
texto sobre o novo corte de cabelo da cantora Miley Cyrus e um sobre a
persistente e elevada taxa de desemprego em Nova York.
Mesmo cientes dessa diversidade, o hard news é o que distingue o
jornalismo de outra atividade comercial qualquer. Sempre haverá público
para a cobertura de esportes, de celebridades, de jardinagem, de
culinária – mas não haveria grande impacto para o país se toda essa
atividade fosse feita por amadores ou máquinas. O que tem impacto, sim, é
a cobertura de fatos importantes e reais capazes de mudar os rumos da
sociedade. A cobertura do insistente abrigo de pedófilos no seio da
Igreja Católica, da contabilidade fraudulenta da norte-americana Enron e
do escândalo envolvendo uma operação do Departamento de Justiça
norte-americano, a Fast and Furious [operação Velozes e Furiosos, ligada
ao tráfico de armas a cartéis de drogas mexicanos] se encaixa nessa
definição.
Já que narrar fatos reais é vital, o valor do jornalismo não pode ser
reduzido a outras necessidades, secundárias. Embora o jornalismo
desempenhe várias funções que se sobrepõem, nunca houve muita urgência
em defini-las. Na época em que o discurso público era escasso (ou seja,
durante toda a história até hoje), o jornalismo era simplesmente aquilo
que jornalistas faziam; jornalistas eram simplesmente gente contratada
por empresários da comunicação, que constituíam o grupo relativamente
pequeno de indivíduos com acesso aos meios para tornar público esse
discurso.
Acreditamos que o papel do jornalista – como porta-voz da verdade,
formador de opinião e intérprete – não pode ser reduzido a uma peça
substituível para outro sistema social; jornalistas não são meros
narradores de fatos. Precisamos, hoje e num futuro próximo, de um
exército de profissionais que se dedique em tempo integral a relatar
fatos que alguém, em algum lugar, não deseja ver divulgados, e que não
se limite apenas a tornar disponível a informação (mercadoria pela qual
somos hoje inundados), mas que contextualize a informação de modo que
chegue ao público e nele repercuta.
Um crescente volume de informação obtida em primeira mão é fornecido
por cidadãos – muito do que sabemos sobre o desastre nuclear de
Fukushima Daiichi, no Japão, e do massacre de Pearl Roundabout, no
Bahrein, veio de indivíduos que se encontravam na cena do ocorrido. Mas
isso não significa que todo jornalista profissional vá ser substituído,
nem que possa ou deva sê-lo. Significa, isso sim, que seu papel vai
mudar, que vai se sobrepor ao do indivíduo (ao da multidão, ao da
máquina) cuja presença caracteriza o novo cenário jornalístico.
O bom jornalismo sempre foi subsidiado
A questão do subsídio à atividade jornalística vem gerando polêmica há
algum tempo. Observadores do meio jornalístico como Steve Coll, David
Swensen e Michael Schmidt, além de Michael Schudson e Len Downie, já
sugeriram a migração da imprensa norte-americana para um modelo de
subsídio mais explícito. A sugestão provocou respostas acaloradas de
outros analistas – Jeff Jarvis, Jack Shafer, Alan Mutter –, para quem
somente veículos comerciais teriam como garantir os recursos e a
liberdade que a imprensa norte-americana exigiria.
A nosso ver, é uma falsa dicotomia. Subsídios volta e meia são vistos
como sinônimo de aporte direto pelo Estado, o que levantaria óbvios e
sérios temores. Mas o subsídio, no sentido do apoio dado a uma atividade
considerada de interesse público, pode assumir várias formas. Pode ser
direto ou indireto, pode vir de fontes públicas ou privadas. Doações de
cidadãos são subsídio – tanto quanto um concedido pelo Estado.
O bom jornalismo sempre foi subsidiado; o mercado nunca foi capaz de
suprir o volume de informação que uma democracia exige. A forma mais
óbvia é o subsídio público indireto: em troca do acesso gratuito ao
espectro eletromagnético, emissoras de rádio e TV precisam (ou
precisavam) montar uma operação jornalística de credibilidade. Empresas
são obrigadas a pagar pela inserção de publicidade legal em jornais.
Publicações impressas recebem tarifas postais favoráveis.
Há desdobramentos alentadores envolvendo a cobrança direta do leitor
pelo consumo de conteúdo digital. No caso, o modelo usado é o da
cobrança após ultrapassado certo número de artigos. Esses fundos
obviamente são bem-vindos. Contudo, apenas alguns dos grandes veículos
de comunicação que adotaram o sistema conseguiram obter 5% que seja de
adesão de usuários na versão digital, e a liberação de certo número de
artigos praticamente garante que a maioria dos usuários jamais terá de
pagar. O resultado é que, embora sirva para retardar a queda no
faturamento, a nova receita não impede o declínio, e muito menos o
reverte.
A maior fonte de subsídio no meio jornalístico sempre foi indireta e
privada, vinda de anunciantes. É como disse o jornalista norte-americano
Henry Luce 75 anos atrás: “Se tivermos de ser subsidiados por alguém,
creio que o anunciante apresenta possibilidades extremamente
interessantes”.
Há, no meio jornalístico, um punhado de publicações cujos leitores
pagam diretamente pelo trabalho da redação. Mas são uma parcela ínfima
do ecossistema jornalístico e se concentram em áreas de especialização
profissional (finanças, direito, medicina), com um punhado de casos
excepcionais, como o da revista norte-americana Ms., cuja
promessa é libertar o leitor da publicidade. A maioria dos veículos de
notícias não atua no mercado jornalístico, mas no mercado da
publicidade.
O mais importante na relação entre a publicidade e o jornalismo é que
não há relação. A ligação entre anunciante e meio de comunicação não é
uma parceria – é uma operação comercial na qual o meio tem (ou tinha) a
primazia. A fonte básica do subsídio publicitário é a falta de opção;
enquanto o anunciante tiver de contar com o meio de comunicação para
aparecer, esse meio vai poder usar os fundos obtidos para bancar o
jornalismo, independentemente da preferência do anunciante. A Nine West
não está interessada em manter aberta uma sucursal em Washington. O que
quer é vender sapatos. Mas, para chegar a potenciais consumidores, a
Nine West precisa pagar a uma organização que se interessa, sim, com o
destino da tal sucursal em Washington.
Além da publicidade, há muitas outras formas de subsídio privado.
Durante boa parte da história norte-americana, certos empresários
aceitaram publicar jornais e revistas mesmo com prejuízo. Em troca,
buscavam prestígio ou influência. Tanto a revista The New Yorker como o jornal New York Post
operam no vermelho. Esses veículos sobrevivem no formato atual porque
seus abastados proprietários decidiram que não deveriam deixá-los
totalmente expostos às forças do mercado. Na prática, uma publicação
dessas é uma entidade sem fins lucrativos.
Na mesma linha, o controle de um jornal por uma família era uma
proteção contra o imperativo do lucro imediatista, em parte porque o
empresário em geral se dispunha a receber alguma remuneração na forma de
prestígio (salário à parte, era bom ser o dono de um jornal local) e em
parte porque o controle familiar significava administrar de olho na
viabilidade a longo prazo, não na extração imediata de receita, outra
forma de estar no mercado mas sem se submeter a ele.
Embora a recente discussão do subsídio ao jornalismo tenha se
concentrado no aporte público, e não no privado, o fato é que distintas
modalidades de subsídio são bastante emaranhadas. Todo ano, General
Motors e Diageo gastam somas consideráveis em spots de 30 segundos na TV
ou anúncios de página inteira por estarem legalmente obrigadas a fazer
publicidade da marca. A GM até que gostaria de vender diretamente da
fábrica, como faz a Dell, e a Diageo adoraria vender a um clicar do
mouse, como faz a grife de chocolates Ghirardelli em seu site. Só que,
em seu caso, leis estaduais proíbem o uso do marketing direto. A
publicidade de carros, caminhões, cerveja e destilados é sustentada por
um subsídio, imposto pelo governo, que impede certas empresas de
investir em outras alternativas.
O público norte-americano nunca pagou integralmente pela cobertura
jornalística feita em seu nome. A atividade sempre foi bancada por
outras fontes, não por leitores, ouvintes ou telespectadores. Neste
dossiê, não vamos explorar de onde poderia ou deveria vir esse subsídio
no futuro, e nem mesmo como deveria ser direcionado. Essa receita pode
vir de anunciantes, patrocinadores, usuários, doadores, mecenas ou
filantropos; a redução de custo pode se dar com parcerias,
terceirização, crowdsourcing ou automação. Não há uma solução
universal: qualquer saída para ter mais receita do que custo é uma boa
saída, seja a organização grande ou pequena, de nicho ou generalista,
voltada ou não ao lucro. O que está patente é que o modelo há muito
adotado pela maioria dos meios de comunicação – uma entidade comercial
que subsidia a redação com receita da publicidade – está em risco.
A internet acaba com o subsídio da publicidade
O foco deste relatório é o modo como jornalistas exercem sua função, e
não práticas comerciais de instituições que abrigam esses profissionais.
Há, contudo, um ponto crucial de interseção de práticas comerciais e
práticas jornalísticas: o apoio da publicidade, principal fonte de
subsídio do jornalismo norte-americano desde a década de 1830, está
desaparecendo (no caso de jornais, grande parte dessa receita já
evaporou; e há mais má notícia a caminho para jornais, revistas e
emissoras de rádio e TV).
Anunciantes nunca tiveram interesse no patrocínio propriamente dito de
meios de comunicação; o elo entre receita publicitária e salário de
jornalistas sempre foi uma função da capacidade do veículo de
comunicação de atrair essa receita. Até deu certo no século 20, quando o
poder de barganha no mercado de mídia estava nas mãos de quem vendia,
no caso os meios. Hoje, esse modelo já não serve.
Embora tenha começado para valer com a chegada da internet comercial na
década de 1990, a ruptura foi camuflada durante uma década pelo aumento
da receita publicitária de veículos de comunicação tradicionais e pelo
estouro da bolha pontocom, o que levou muitos veículos a crerem que a
ameaça da internet fora superestimada. Embora a receita trazida pela
publicidade tradicional tenha começado a cair em 2006, a transformação
do mercado publicitário subjacente já estava, àquela altura, bastante
avançada. A perda da receita era um indicador tardio de um cenário já
transformado.
Meios de comunicação tradicionais não vendem conteúdo como se fosse um
produto. Seu negócio é a prestação de serviços, com a integração
vertical de conteúdo, reprodução e distribuição. Uma emissora de TV
também mantém recursos para a difusão de conteúdo via satélite ou cabo;
uma revista opera ou contrata serviços tanto de impressão como de
distribuição do material. Na integração vertical, o custo de capital é
elevado, reduzindo a concorrência e, às vezes, criando um gargalo no
qual o público poderia ser induzido a pagar.
A internet acaba com essa integração vertical, pois todo mundo paga
pela infraestrutura – que é, então, usada por todos. O público segue
mais do que disposto a pagar pela reprodução e pela distribuição, embora
hoje paguemos à Dell por computadores, à Canon por impressoras e à
operadora Verizon pela entrega, em vez de pagar à Conde Nast, à Hearst
ou à Tribune Co. por um pacote com todos esses serviços.
Quando queremos ler algo no papel, é cada vez mais comum imprimirmos o
material em uma pequena impressora a poucos passos de nós, quando bem
entendermos, em vez de pagar alguém situado a quilômetros de distância
para imprimir algo que vai chegar com um dia de atraso. Quando queremos
ouvir algo ou assistir a um vídeo, usamos cada vez mais a infraestrutura
genérica da internet, e não a infraestrutura especializada (e
financiada) de torres de transmissão e redes de cabo.
Meios de comunicação também costumam promover uma integração
horizontal, juntando num mesmo saco notícias relevantes e horóscopo,
colunas sociais, receitas e esportes. No passado, quem sintonizava um
determinado canal ou comprava uma publicação para ler um artigo
específico seguia vendo ou lendo o que mais houvesse nesse pacote por
pura inércia. Embora o fenômeno volta e meia fosse chamado de
fidelidade, na maioria das vezes era pura preguiça – ler outro artigo
bom o bastante no mesmo jornal era mais fácil e cômodo do que buscar uma
excelente reportagem em outra publicação.
A internet acaba com a integração horizontal. Antes dela, reunir uma
dezena de textos bons – ainda que não excelentes – num pacote só
costumava ser o suficiente para impedir que alguém saísse à cata dos dez
melhores textos em uma dezena de publicações distintas. Num mundo de links e feeds,
no entanto, em geral é mais fácil achar a próxima coisa a ser lida,
vista ou ouvida por indicação de amigos do que pela fidelidade
inabalável a uma determinada publicação. Hoje, a preguiça favorece a
dispersão; em muitos sites jornalísticos de interesse geral, a categoria
mais comum de leitor é aquela formada por gente que confere um único
artigo por mês.
Como se não bastasse, a competição está mais acirrada. Como observou o
jornalista Nicholas Carr em 2009, uma busca no Google por informações
sobre o resgate pela Marinha norte-americana do capitão de um cargueiro
de bandeira dos Estados Unidos sequestrado por piratas na Somália rendeu
11.264 fontes possíveis de matérias sobre o episódio – a maioria
meramente reproduzindo um mesmo conteúdo sindicalizado. A internet
derruba o valor de publicar um mesmo artigo de agências de notícias em
St. Louis e em San Luis Obispo.
Além das mudanças trazidas pela tecnologia, a popularização de redes
sociais fez surgir uma nova categoria de anúncios que, embora vinculada à
mídia, não subsidia a criação de conteúdo. Na década de 1990, muitos
sites tinham fóruns de discussão que geravam enorme interesse entre
internautas – mas pouca receita, já que anunciantes temiam que o
material produzido por usuários não fosse seguro para sua marca.
O MySpace foi o primeiro grande site a transpor esse obstáculo. Assim como na revolução dos junk bonds
na década de 1980, o MySpace usou o argumento de que um inventário de
anúncios de baixa qualidade poderia ser um bom investimento para o
anunciante se agregado em volume suficiente e vendido a um valor baixo o
bastante. O discurso feito era basicamente o seguinte: “Dependendo do
preço pago, os page views do MySpace podem ter valor para sua empresa mesmo com taxas de clique [click-through rates] minúsculas”.
Com isso, abriram-se as comportas. Quando um número satisfatório de
empresas decidiu que redes sociais eram um meio aceitável, o estoque
disponível de anúncios passou a ser função do (ilimitado) interesse das
pessoas umas nas outras, e não da capacidade do veículo de comunicação
de criar conteúdo ou manter a audiência. Quando a demanda gera oferta a
um custo pouco acima de zero, o efeito nos preços é previsível.
Os últimos 15 anos também testemunharam o surgimento da publicidade
como um serviço independente. A perda de anúncios classificados para
concorrentes superiores como Craigslist, HotJobs e OkCupid já foi
exaustivamente dissecada. Menos discutida é a popularização de
indicações de usuário para usuário em ambientes comerciais, como o da
Salesforce e o da Amazon. Uma recomendação dessas assume parte das
funções da publicidade B2B (empresa a empresa) ou B2C (empresa a
consumidor), mas sem nenhum subsídio do conteúdo (ou nem mesmo o
pagamento a qualquer ator que se assemelhe a um veículo de comunicação).
E um serviço desses dá pouco ou nenhum subsídio a meios de comunicação.
Durante 15 meses, a Amazon testou comerciais de TV – mas desistiu da
ideia para a maioria de seus produtos, pois concluiu que um anúncio
desses teria menos impacto nas vendas do que gastar a mesma verba para
oferecer frete grátis.
Até veículos que entendem que a receita perdida não será reposta, e que
a receita trazida pelo impresso (e a produção) vai continuar caindo,
seguem com esperança de que a mudança no subsídio publicitário possa, de
algum modo, ser revertida.
O fato de que a internet, mesmo sendo um meio visualmente flexível,
tenha se adaptado mais depressa ao marketing direto do que à publicidade
convencional foi uma decepção para veículos de comunicação, que sempre
tiveram um ganho desproporcional com a velha publicidade. Na última
década, volta e meia se afirmou que o marketing direto como forma de
publicidade na internet seria só uma fase – e que alguém iria reinventar
a publicidade convencional no meio digital. É, basicamente, afirmar que
anunciantes vão começar a investir cifras volumosas em anúncios
gráficos com animação e em transmissão de vídeo com pouca expectativa de
retorno além da certeza de que a marca terá conquistado mais
visibilidade.
Parece pouco provável. A migração da lógica da propaganda convencional
para a lógica do marketing direto é só um sintoma da mudança maior
promovida pela internet, que representa a vitória, em todos os lugares,
da mensuração. A publicidade tradicional era rentável porque ninguém
sabia ao certo como funcionava, de modo que tampouco se sabia como
otimizá-la. Produzir um comercial de TV era mais como rodar um pequenino
filme para o cinema do que conduzir um grande experimento psicológico.
Hoje, na internet, o anunciante espera, cada vez mais, que até a
publicidade tradicional tenha resultados mensuráveis – e a aposta na
publicidade mensurável derruba as altas margens da fase áurea. A célebre
dúvida do criador do conceito da loja de departamentos, o empresário
norte-americano John Wanamaker – a de não saber exatamente qual metade
da verba de publicidade era dinheiro jogado fora –, explica por que a
mensurabilidade na publicidade põe ainda mais pressão sobre a receita.
Outra fonte de esperança para o restabelecimento da receita
publicitária era a especificidade maior que a internet permitiria. (“É
possível dirigir o anúncio exclusivamente a advogados tributaristas no
Estado de Montana!”) Todo mundo achava que essa segmentação precisa
justificaria a cobrança de preços mais altos pela publicidade, pelo
menos em certos sites; uma segmentação melhor traria melhores
resultados, o que faria compensar o custo maior.
Só que a migração para a publicidade de baixo custo com resultados
mensuráveis também derruba boa parte da lógica da segmentação. Vejamos
um exemplo simplificado: atingir mil pessoas com publicidade online não
segmentada custa cerca de US$ 0,60. Um espaço publicitário que custe US$
12 por mil visualizações (uma estimativa muito discutida em 2010 para
certos sites de nicho) pode até ser mais eficiente em razão da
segmentação, mas para fazer sentido do ponto de vista econômico a
publicidade dirigida teria de ser 2.000% mais eficiente. Se for menos
que isso, a relação custo-benefício do estoque de baixa qualidade é
melhor.
Agora que redes sociais já exibem anúncios, o extremo da curva de
custos que abriga esse inventário inferior é realmente baratíssimo, o
suficiente para exercer constante pressão sobre o preço superior de
anúncios segmentados. O que uma empresa quer não é chegar ao público com
seus anúncios. O que a empresa quer é vender o que faz. A capacidade de
entender quem realmente compra seus produtos ou serviços online
significa que, hoje, muitos anunciantes podem arbitrar anúncios caros e
baratos como bem entenderem.
Embora ainda possa haver uma fonte desconhecida de receita
publicitária, para que a saúde do jornalismo bancado por publicidade
fosse restituída, o acesso a essa pedra filosofal teria de ser exclusivo
de veículos de comunicação – e não de redes sociais ou sites só de
publicidade. E, para justificar o retorno ao custo elevado lá de trás,
essa fonte teria de ser muito mais eficaz do que qualquer outro método
de publicidade atual. E, de quebra, gerar receitas imunes à pressão que a
concorrência em larga escala exerce sobre preços.
Partindo de evidências atuais, isso tudo parece improvável. O poder de
meios de comunicação sobre anunciantes está evaporando; desde a chegada
da web, houve uma grande migração, de meios para anunciantes, do valor
líquido de cada dólar investido em publicidade. Além disso, há mais
sinais indicando uma intensificação da tendência do que sua reversão.
Até veículos dispostos a apostar todas as fichas nessa promessa de
salvação deveriam traçar um plano B para seguir produzindo um jornalismo
de qualidade caso o subsídio da publicidade continue a cair.
A reestruturação é obrigatória
A virada basicamente negativa na sorte de meios de comunicação
tradicionais nos leva a duas conclusões: o custo de produção de notícias
precisa cair e essa redução de custo deve ser acompanhada de uma
reestruturação de modelos e processos organizacionais.
Vários fatores sugerem que a receita publicitária seguirá caindo nos
próximos anos – e pouca coisa indica que subirá. Embora a fase mais
aguda de queda da receita tenha chegado ao fim, o fato é que no momento
em que redigimos este dossiê estamos no 23º trimestre consecutivo de
declínio anual das receitas. Os últimos três anos de queda ocorreram num
período de crescimento econômico; além do efeito cumulativo da perda de
receita, a incapacidade de elevá-la mesmo com a economia crescendo
sugere que velhas empresas de comunicação sofrerão um baque descomunal
quando tiver início a próxima recessão, o que certamente ocorrerá dentro
de alguns anos.
A receita por leitor trazida pela publicidade online nunca chegou nem
perto da tradicional – e no caso de plataformas móveis é ainda pior.
Enquanto isso, à medida que vai avançando, a publicidade no meio digital
vem passando totalmente ao largo de veículos de comunicação
tradicionais. Já fontes sonhadas de receita direta – paywalls, micropagamentos, aplicativos móveis, assinaturas digitais – não surtiram efeito ou ficaram aquém das expectativas.
Dentre todas essas soluções, a assinatura digital nos moldes praticados por jornais como Los Angeles Times, Minneapolis Star-Tribune e The New York Times
foi a que melhor se saiu. E, mesmo assim, o efeito líquido dessas
assinaturas não anulou as perdas no impresso. De resto, já que a
assinatura digital em geral é concebida para aumentar a circulação em
papel, seu efeito no curto prazo é aumentar ainda mais a dependência da
receita oriunda do impresso, apesar da deterioração no longo prazo do
papel.
A nosso ver, o arrastado colapso da receita publicitária tradicional
não será compensado por outras plataformas num período de três a cinco
anos. A próxima fase da existência da grande maioria dos meios de
comunicação vai ser parecida com a última. Haverá uma redução
obrigatória de custo, embora de forma menos urgente (e, esperamos, mais
estratégica), levando em conta novas técnicas de cobertura jornalística e
novos modelos organizacionais.
Na década de 1980, muita tinta foi gasta no meio acadêmico para
discutir o “paradoxo da produtividade”: os fracos resultados produzidos
por duas décadas de pesado investimento da iniciativa privada em
tecnologia da informação. Um punhado de empresas, contudo, registrou
fortes ganhos de produtividade em decorrência do investimento em TI lá
atrás. Essas empresas de sucesso não se limitaram a informatizar
processos correntes. O que fizeram foi alterar esses processos à medida
que incorporavam computadores às operações. Viraram outro tipo de
organização. Já aquelas que simplesmente instalaram computadores sem
mexer em processos que já existiam não registraram nenhum avanço
evidente em rendimento ou eficiência.
A nosso ver, há uma dinâmica similar nos dias de hoje – dinâmica que
resolvemos chamar de jornalismo pós-industrial, termo originalmente
empregado em 2001 pelo jornalista Doc Searls para sugerir um “jornalismo
que já não é organizado segundo as regras da proximidade do maquinário
de produção” (lá atrás, a lógica da redação não era administrativa, mas
prática: o pessoal da redação, que produzia o texto, tinha de estar
perto das máquinas que reproduziriam esse texto, em geral instaladas no
subsolo).
Observadores do meio jornalístico, como David Simon, já disseram,
acertadamente, que “fazer mais com menos” é o mantra de todo veículo que
teve de demitir uma dezena de repórteres e editores. Contudo, já que
nessa equação a parte do “com menos” é obrigatória, é preciso tentar
fazer com que a parte do “fazer mais” funcione, o que significa menos
tergiversação sobre cortes de pessoal e mais reestruturação, a fim de
tirar partido de novas formas de fazer jornalismo.
O jornalismo pós-industrial parte do princípio de que instituições
atuais irão perder receita e participação de mercado e que, se quiserem
manter ou mesmo aumentar sua relevância, terão de explorar novos métodos
de trabalho e processos viabilizados pelas mídias digitais.
Nessa reestruturação, todo aspecto organizacional da produção de
notícias deverá ser repensado. Será preciso ter mais abertura a
parcerias, um maior aproveitamento de dados de caráter público; um maior
recurso a indivíduos, multidões e máquinas para a produção de
informação em estado bruto; e até um uso maior de máquinas para produzir
parte do produto final.
Serão mudanças sofridas, pois irão afetar tanto a rotina diária como a
autoimagem de todos os envolvidos na produção e distribuição de
notícias. Sem isso, no entanto, a redução dos fundos disponíveis para a
produção do jornalismo fará com que no futuro a única opção seja fazer
menos com menos. Não há, na crise atual, solução capaz de preservar o
velho modelo.
Há muitas oportunidades de fazer um bom trabalho de novas maneiras
Se concluirmos que o jornalismo é essencial, e que não há solução para a
crise, a única maneira de garantir a sobrevivência do jornalismo de que
a sociedade precisa no cenário atual é explorar novas possibilidades.
Graças a fenômenos como o movimento da transparência e a disseminação
de redes de detecção, um jornalista hoje em dia tem acesso a muito mais
informação do que antes. Tem novas ferramentas para transmitir a
informação de forma visual e interativa. Tem muito mais maneiras de
fazer seu trabalho chegar ao público – a ubiquidade da busca, a
popularização de fontes constantemente atualizadas (o Facebook com sua
linha do tempo, o Twitter em sua totalidade), o wiki como formato para a inserção de novas informações. Tudo isso faz o público ter muito mais meios de obter e processar notícias.
Com a superdistribuição – a propagação de conteúdo por redes sociais –,
um artigo importante de uma publicação minúscula pode chegar a um
público enorme sem custo adicional. Agora que muitos levam no bolso
câmeras de vídeo conectadas a redes, uma quantidade cada vez maior de
informação visual vem dos próprios cidadãos.
Com a proliferação de novas possibilidades de apuração, interpretação e
distribuição de informações, é possível ver organizações tirando
partido de métodos de trabalho que nem sequer existiam dez anos atrás. É
o que faz a Narrative Science ao automatizar a produção de notícias
extraídas de mares de dados. Ou a ProPublica ao disponibilizar dados e
modelos para a reprodução de notícias, como na iniciativa Dollars for
Docs. Também há quem vasculhe dados existentes para descobrir fatos
novos, como fez o caçador independente de fraudes financeiras Harry
Markopolos no caso do investidor norte-americano Bernard Madoff, que
ocasionou perdas bilionárias a instituições bancárias, grupos de
investimentos, fundações, entre outros (uma das grandes oportunidades
perdidas do jornalismo norte-americano na última década).
O que une gente digitalmente empreendedora de organizações tradicionais – Anjali Mullany, ex-Daily News; John Keefe, da rádio WNYC; Gabriel Dance, da sucursal do The Guardian
nos Estados Unidos – e meios que já nasceram digitais, como WyoFile,
Technically Philly e Poligraft, é o fato de organizarem suas premissas e
processos em torno daquilo que agora é possível, como incluir
interatividade em gráficos, dar ao público acesso direto a bancos de
dados, solicitar imagens e informação ao público ou distribuir uma
matéria por redes sociais. Não há como saber se o Poligraft (aliás, nem
se o Daily News) ainda existirá daqui a dez anos, mas a
experimentação em curso nessas organizações é um exemplo do bom uso de
novas ferramentas na busca de objetivos jornalísticos.
O aspecto mais animador e transformador do atual cenário jornalístico é
poder explorar novas formas de colaboração, novas ferramentas de
análise e fontes de dados e novas maneiras de comunicar o que é de
interesse do público. A maioria de nossas recomendações ao longo do
presente dossiê terá a ver com essas oportunidades.
O que é “público”, o que é “audiência” – e o caso especial do New York Times
Antes de entrarmos no relatório propriamente dito, é preciso um
esclarecimento sobre duas palavrinhas controversas – público e
audiência. E, ainda, discutir o caso especial do New York Times, que a nosso ver não serve como símbolo do estado geral do jornalismo norte-americano.
Mas, primeiro, o público. O conceito de “público” como grupo de pessoas
para o qual se produzem notícias é o “termo divino” do jornalismo, como
diz James Carey:
...é o termo final, o termo sem o qual nada conta; por ele, jornalistas
justificam seus atos, defendem o ofício, sustentam sua tese em termos
do direito do público à informação, de seu papel como representantes do
público, de sua capacidade de falar ao público e pelo público.
O público é o grupo cujos interesses deveriam ser servidos pelo
ecossistema jornalístico. E é um conceito de dificílima definição.
A ideia de “público” ocupa um lugar central no pensamento
norte-americano sobre o jornalismo desde uma célebre resposta de John
Dewey a Walter Lippmann na década de 1920. Lippmann duvidava de que,
numa sociedade de massas com complexas engrenagens econômicas e
técnicas, o indivíduo comum pudesse se tornar o cidadão informado que o
grosso da teoria democrática preconizava. Em resposta, Dewey alegou a
existência de vários públicos sobrepostos que poderiam ser “ativados”
com o surgimento de questões específicas. A ideia de meios de
comunicação voltados a públicos distintos, porém sobrepostos, até hoje é
fundamental para a lógica organizacional deles.
Desde o surgimento dessas duas visões da comunicação de massas e da
sociedade de massas, a conceitualização da esfera pública virou um
elemento central da obra de filósofos como Jurgen Habermas, Nancy
Fraser, James Carey, Michael Schudson e Yochai Benkler – o que
enriqueceu, e complicou, qualquer descrição de uma mídia que sirva a um
(ou ao) público.
Vamos adotar a estratégia do covarde: a de expor – mas não solucionar –
o dilema. Não temos a intenção de dar uma definição mais rigorosa do
que a seguinte:
O público é o grupo de consumidores ou cidadãos que tem interesse em
forças que exercem influência sobre sua vida e que busca alguém para
monitorar tais forças e mantê-lo informado, para que possa agir com base
nessa informação.
É uma definição insatisfatória, prenhe de interrogações, mas ao menos
respeita a barafunda de opiniões sobre aquilo que realmente constitui um
“público”.
O termo “audiência” é igualmente problemático. Quando o mundo da
comunicação estava claramente dividido em meios (impresso, radiodifusão)
e comunicação (telégrafo, telefone), o conceito de audiência era
igualmente claro: significava a massa de indivíduos que recebia conteúdo
produzido e distribuído por meios. Filmes, música, jornais, livros –
tudo isso tinha audiências claras.
Um dos efeitos mais desnorteantes da internet foi combinar modelos de
meios e de comunicação num único canal. Quando alguém no Twitter
compartilha uma matéria com um grupinho de amigos, a impressão é a do
velho papo informal na sala do cafezinho. Quando essa mesma pessoa
divide o mesmo artigo com outras duas mil pessoas, a impressão é a de
que está agindo como um meio de difusão, ainda que nos dois casos a
ferramenta e a ação tenham sido as mesmas. Além disso, cada destinatário
desses pode fazer o conteúdo circular ainda mais. A posição
privilegiada da fonte original do conteúdo diminuiu drasticamente.
Ao constatar que no mundo atual membros da audiência tinham se tornado
mais do que meros recipientes da informação, o acadêmico Jay Rosen, da
New York University, cunhou o termo “The People Formerly Known as the
Audience” – algo como “a turma antes conhecida por audiência” – para
descrever de que maneira grupos até então passivos de consumidores
tinham se convertido em criadores, editores, juízes e veículos da
informação. Neste dossiê, adotamos a visão que Rosen tem dessa
transformação; mas não usamos o termo (nem a sigla em inglês TPFKATA),
que é rebuscado demais.
Ao longo do dossiê iremos, portanto, falar de “audiência”. Tenha em
mente que, com isso, nos referimos à turma antes conhecida por audiência
– gente hoje dotada de um grau inédito de poder de comunicação.
Por último, uma palavrinha sobre a razão para não nos atermos muito à situação do New York Times.
Uma bela parte de tudo o que se escreveu sobre a sorte do jornalismo
norte-americano na última década girou em torno do destino do jornal
nova-iorquino. A nosso ver, essa atenção foi contraproducente.
No decorrer da última geração, o New York Times deixou de ser um
excelente jornal diário que concorria com vários outros de igual
calibre e virou uma instituição cultural de importância única em escala
mundial (paralelamente, aqueles outros jornais – The Washington Post, Chicago Tribune, Los Angeles Times, Miami Herald – encolhiam tanto em termos de cobertura como de ambição). Com isso, o New York Times ficou numa categoria só dele. Logo, qualquer frase que comece com “Peguemos o exemplo do New York Times...” dificilmente irá explicar ou descrever muito o resto do setor.
A redação do New York Times é fonte de muitos experimentos
interessantes – na visualização de dados, em parcerias, na integração de
blogs. Fomos falar com muitos de nossos amigos e colegas ali dentro
para tentar aprender com essas experiências e, com base nelas, dar
sugestões a outras organizações jornalísticas. Só que, por o jornal
estar numa categoria só dele, decisões que sua gestão pode tomar, e o
resultado dessas escolhas, não representam nem preveem a realidade da
maioria dos demais veículos de comunicação, seja qual for seu porte ou
tempo de vida. Logo, passaremos relativamente pouco tempo discutindo seu
destino. Embora sirva de inspiração para meios de comunicação mundo
afora, o jornal é menos útil como modelo ou termômetro para outras
instituições.
Organização
Este dossiê foi redigido com diversos públicos em mente: novas empresas
de mídia, organizações tradicionais tentando se adaptar, faculdades de
jornalismo e entidades que dão apoio ou forma ao ecossistema, como o
Pulitzer Prize Board e o governo norte-americano.
A esta introdução se seguem três grandes seções: Jornalistas, Instituições e Ecossistema.
Partimos indagando o que cada jornalista pode e deve fazer hoje, já que
seu trabalho é o mais importante – e já que a obsessão com a
sobrevivência de instituições nos últimos anos ocultou o óbvio ululante:
a importância de instituições reside no fato de que permitem o trabalho
de jornalistas, e não o contrário.
Em seguida, perguntamos o que uma instituição pode fazer para apoiar o
trabalho de jornalistas. Aqui, não usamos o termo “instituição” no
sentido coloquial de “meio de comunicação tradicional”, mas sim com a
significação sociológica de “um conjunto de pessoas e bens com padrões
relativamente estáveis de comportamento”. Nessa acepção, o Huffington
Post é uma instituição tanto quanto a Harper’s. Estamos interessados
tanto na institucionalização de novas organizações de notícias quanto na
adaptação de velhas instituições à nova realidade.
Por último, analisamos o ecossistema jornalístico, que nesse caso
significa todo o aspecto da produção de notícias que não está sob
controle direto de uma instituição. O ecossistema atual tem novos
recursos, como uma explosão de dados digitais e de capacidade de
processamento. Traz, ainda, novas oportunidades, como a capacidade de
criação de parcerias e consórcios de baixo custo. Esse ecossistema
também abarca forças que afetam organizações jornalísticas – de
premissas e apoios (ou obstáculos) criados por faculdades, empresas e o
poder público.
Em nossa breve conclusão, usamos várias dessas forças atuais para
traçar um cenário para o fim da presente década e descrevemos quais, a
nosso ver, seriam algumas das principais características do cenário
jornalístico em 2020.
Nem de longe imaginamos que alguma organização possa seguir todas as
recomendações aqui feitas, ou no mínimo a maioria delas, pois são coisas
muito diversas, voltadas a atores de natureza muito distinta. Tampouco
acreditamos que o que sugerimos aqui seja uma direção estratégica
acabada. Vivemos nitidamente numa era na qual é mais fácil saber o que
não funciona do que o que funciona, e na qual teorias e práticas daquilo
que costumávamos chamar de indústria jornalística estão abrindo espaço a
uma constelação muito mais diversa de entidades do que qualquer coisa
que tenhamos testemunhado no século 20.
Acreditamos, sim, (ou, no mínimo, esperamos) é que as recomendações a
seguir sejam úteis para organizações que não só queiram evitar o pior do
anacronismo entre processos tradicionais e oportunidades atuais, mas
também tirar partido das possibilidades que hoje se abrem.
[Continua]
observatoriodaimprensa.com.br/news/view/adaptacao_aos_novos_tempos
Impresso no site do Observatório da Imprensa | www.observatoriodaimprensa.com.br | 13/08/2013 11:46:24
Outros textos:
ResponderExcluir(dicas do Henrique K.)
Um especial da The Economist, sobre jornalismo, muito bom: http://www.economist.com/ideasarena/news
Um apanhado da Pública, sobre a zebra geral do sistema: http://www.apublica.org/2013/06/existe-uma-crise-nos-impressos-nada-declarar-respondem-os-jornais/
Outra síntese da Pública, sobre a pior profissão do mundo: http://www.apublica.org/2013/06/pior-profissao-mundo/