"Ninguém aqui está mendigando elogios, mas exigindo compreensão. Mesmo porque seria estarmos na mais desprezível das precariedades morais julgar-se um serviço público mercedor de elogios pelo fato de apaixonadamente servir.
E nisto estamos, senhores diplomandos. Uma tradição, não quero lembrar em que tempos nascida, de tudo desconfia e a tudo arrasa. Nós não lutamos pela vida: nós nos queixamos da vida. A isso nos acostumaram, e neste detestável costume perseveramos ainda. A uma iniciativa cultural, todos se queixam porque faltam hospitais ou porque a situação financeira não permite luxos. De uma proteção à cultura todos desconfiam porque ainda não se percebeu em nossa terra que a cultura é tão necessária como o pão, e que uma fome consolada jamais não equilibrou nenhum ser e nem felicitou qualquer país. E em nosso caso brasileiro particular, não é a sublime insatisfação humana do mundo que rege o coral das queixas e desconfianças, mas a falta de convicção do que verdadeiramente seja a grandeza do ser racional. Nós não sabemos siquer muito vagamento o que faz a realeza do homem sobre a Terra; e da própria minoria que ainda soergue a medo o pavilhão da cultura, muitos o fazem porque ouviram dizer, o fazem porque europeus fazem assim. De forma que si elogiam e pedem a Cultura, ainda continuam desprotegendo ou combatendo quaisquer iniciativas culturais. Nós não estamos ainda convencidos de que a cultura vale como o pão. E essa é a nossa mais dolorosa imoralidade cultural.
O quê viestes fazer aqui ?…
(...)
Eu não vos convido à ilusão! Nem vos convido muito menos à conformista esperança, pois que fui o primeiro a vos substituir o vinho alegre desta cerimônia pela água salgada da realidade. Eu não vos convido siquer à felicidade, pois que da experiência que dela tenho, a felicidade individual me parece mesquinha, desumana, muito inútil. Eu vos quero alterados por um tropical amor do mundo, porque eu vos trago o convite da luta. Permiti-me a incorreção desta vulgaridade; ela porém não será talvez tão vulgar, pois que não vos convido à luta pela vossa vida, nem à caridosa dedicação pela vida enferma ou pobre, mas exatamente a luta por uma realidade mais alta e mais de todos.
Há grave ausência de homens que queiram aceitar este ideal. O maior número se refugia, acovardado, na luta pela sua própria existência. Mas se há falta de homens, façam-se homens! E esse é o dever irrecusável da mocidade a que pertenceis. Há sempre uma aurora para qualquer noite, e essa aurora sois vós. Quem quer freqüente os concertos públicos, se surpreende ante a verdadeira multidão de rapazes e de garotas que desejam ouvir. Abre-se um curso de etnografia e imediatamente se faz necessário desdobrar as aulas ante o número dos que exigem saber. Inaugura-se uma biblioteca infantil e numa semana os meninos se elevam a uma freqüência de cem diários; joga-se nos jardins uma biblioteca circulante, e os operários que a buscam tornam-a logo insuficiente. Há sempre uma aurora para qualquer noite, e essa aurora sois vós. E pois que a noite ainda é profunda e vai em meio, eu vos convido a forçar a entrada da manhã. Eu vos trago o presente perfeito da imediata luta por uma realidade mais de todos. Há toda uma mística nova a envergar sobre os ombros, para que o destino não se desvirtue na procura mesquinha do nosso bem pessoal. Não desprezo o indivíduo e sei glorificar as criações, as forças e riquezas de que só ele é capaz: porém foram tais os descaminhos humanos na exaltação egoística do indivíduo, que nos vemos num momento ogro do mundo em que qualquer idealidade tem de equiparar-se à religião, cujo resultado é fundir. Essa a mística que se exige de vós, e para a qual eu vos convido, senhores diplomandos! É a luta por uma realidade mais alta, mais completa e mais de todos. Vosso domínio é a música, e infame será quem julgar menos útil cuidar da música que do algodão. Tanto num como noutro destino, encontrareis sempre, como fim final de tudo, a humanidade. E todos os sacrifícios que me custaram as frases deste discurso, todos eu fiz por vós, fiz contente, buscando abrir-vos de par em par, em toda a sua soberania insaciável, as portas da humanidade."
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Pascoal da Conceição em “Os Malefícios do Tabaco”
no Teatro #EmCasaComSesc
https://youtu.be/MwYNd1PT76c?t=1065
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Mário de Andrade
ORAÇÃO DE PARANINFO
(escrita aos alunos do Conservatório de Música, em 1935
Tenho a impressão, senhores diplomandos, de que talvez este momento, em que recebeis o atestado público do curso que fizestes, seja mais importante para mim do que para vós. Por três vezes já que simpatias perdoáveis, levaram diplomandos do Conservatório a me consagrar paraninfo de suas formaturas. Por três vezes tenho agora a consciência de que traí a missão que me foi dada, escrevendo discursos com o desejo de agradar.
Hoje não poderei agir assim. Não serei breve, nem serei discreto, e vou expor coisas escuras. Porém não trairei o valor deste encargo. e trago comigo a decisão de não vos cantar mais as serenatas da alegria. E esta decisão de só encarar o real, me veio da enorme, da radical transformação que deu-se em minha existência.
Chamado a um posto oficial, embora não político, me vi de chofre desanuviado dos sonhos em que sempre me embalei. Sempre conservara a ilusão de que era um homem útil, apenas porque escrevia no meu canto, livros de luta em prol da arte, da renovação das artes e da nacionalização do Brasil. Mas depois que baixei ao purgatório dum posto de comando, depois que me debati na espessa goma da burocracia, depois que lutei contra a angustiosa nuvem dos necessitados de emprego, depois que passaram pelas minhas mãos dinheiros que não eram meus e de mim derivaram proveitos ou prejuízos, veio se avolumando em mim um como que desprezo pelo que ora dantes.
Eu fui o filho da felicidade. Nunca sofri. Tive energia bastante para repudiar o sofrimento do espírito e forças físicas suficientes para impedir os sofrimentos do corpo. Dominei com facilidade e, sobretudo com inalterável otimismo, todas as ladeiras de meu caminho. Desenvolvia a luta com uma filosofia egoística, de espírito eminentemente esportivo, que fizera de mim literalmente um gozador.
Também suportei omissões e desgraças. Mas eu era um milionário detestável, que acumulava e desperdiçava as suas riquezas e imolava frio as visagens do mundo, para conforto do seu próprio ser. Não rico de dinheiro, mas afortunado duma fartura vaidosa de ilusões e defesas pessoais. Minhas cóleras de crítico, minhas violências jornalísticas, minhas peleias literárias, minhas dores de amor e revoltas contra a vida ambiente, em que fui tão sincero, hoje me parecem fantasmagorias gostosas em que pus em prática uma encantada satisfação de viver. E já agora, com um sentimento menos teórico da vida porque apalpei sua quotidianidade mais de perto, eu só posso, não me perdoar, porém me compadecer do que fui, lembrando a escuridão da minha total ignorância: eu não sabia!
Agora, tendes à vossa frente um órfão. Não mais o filho da felicidade, a felicidade morreu, mas o apaixonado, o ganancioso compartilhador da precariedade humana. Não vou, senhores diplomandos, expor aos vossos olhares o panorama da minha existência atual. De resto, nem ela é feita apenas de tristezas. Há momentos de conquista, há triunfos admiráveis, alegrias dum fulgor sublime. Porém desapareceu aquele prazer de mim mesmo que eu tinha dantes. As alegrias, as soluções, os triunfos não satisfazem mais, porque não se dirigem às exigências do meu ser, que eu domino, nem dele se originam; antes, nascem da coletividade, a ela se dirigem, a esta coletividade monstruosa, insaciável, imperativa, que eu não domino por ser dela apenas uma parte menoríssima. Um copo de leite dado a uma criança subnutrida, implica a fome de outras; uma biblioteca nova ilumina o rastejo dos analfabetos; uma orquestra mantida supõe músicos sem emprego, um coral dado ao povo desafina ao som gago dos que nem sequer sabem ouvir. É a ganância que domina e veio turvar tudo, a mesma ganância insofrida que faz a miséria dos acumuladores de riquezas. É a ganância, o desejo tempestuoso de fazer, de fazer mais, de fazer tudo, num retorno invencível da ingenuidade. Deixei de ser feliz, mas a inocência nasceu.
Como pois, senhores diplomandos, poderia dizer-vos apenas as palavras irresponsáveis de prazer com que outras vezes traí? Poderia agradar-vos, saudando a vossa formatura, quando justamente agora principia o áspero caminho? Poderei glorificar-vos por um diploma vencido, quando eu sei que não estais aparelhados para vencer? Poderia disfarçando a importância desta solenidade, falar-vos sobre as grandezas da música, quando a música anda por todos desvirtuada?…
Talvez estejais ainda lembrados da armadilha com que quase todos os anos inicio os meus cursos de História da Música…
A pergunta que faço sobre o que os meus alunos vieram estudar no Conservatório, todos respondem, um que veio estudar piano, outro canto, outro violino. Há catorze anos faço tal pergunta. Não tive até hoje um só aluno que me respondesse ter vindo estudar música!
Insistireis, senhores, sobre a dolorosa significação desta anedota. Ela é exatamente o símbolo da situação precaríssima da nossa cultura, digo mais: da nossa “moral cultural”. Porque não é apenas a cultura que anda desnorteada por aí, antes, a reação moral diante dos problemas da cultura é que ainda não se elevou nada; anda répril, viscosa, preguicenta, envenenando tudo.
Se os alunos vêm ao Conservatório com o único fim de estudar piano ou violino, se o ideal dessa juventude não passa duma confusão e também duma vaidade que sacrifica os valores nobres da arte pela esperança dum aplauso público: a culpa é dessa mocidade frágil? Não é. Não sois vós os culpados, mas vossos pais, vossos professores e os poderes públicos. O vosso engano proveio duma incultura muito mais escancarada e profunda, em que a confusão moral entre música e virtuosidade, está na própria base.
Os pais, inflamados de amor, desejam glória aos filhos. Está quase certo. Mas a glória preferida é que está errada. Os pais, violentados pelo amor aos filhos, não têm sacrifício que não façam para que estes alcancem a glória destinada. Está certíssimo agora. Os sacrifícios feitos é que foram improfícuos, porque o fim pretendido estava inicialmente errado.
Qual o pai que desejou tornar o filho um músico completo? Talvez: nenhum. Qual o pai que desejou ver o filho um pianista, ou cantor .célebre? Talvez todos. Nós não andamos à procura da vida, e por isso a vida nos surpreende e assalta a cada esquina. Nós andamos apenas suspirando pela glória. . A glória é uma palavra curta em nosso espírito, e significa apenas aplauso e dinheiro. Nós nem queremos ser gloriosos, nós desejamos ser apenas célebres. Conta-se de crianças que reproduzem crimes vistos no cinema, agidas pela aspiração de se verem fotografadas nos jornais. Haverá muita distância entre esses infelizes e a nossa prática familiar de dirigir um filho para a celebridade pianística? Tudo tem como resultado uma fotografia nos jornais…
Mas a essa desorientação que desce as crianças do berço, vem completar a desorientação dos professores. O contraste entre os nossos progressos viageiros e a nossa principiante civilização, nos leva a importar professores de terras mais completas. E esses professores musicais emigrados, não emigraram por prazer; está claro, ninguém emigra por prazer. Dá-se necessariamente uma conformação nova de ideal, provocada em parte pela confusão existente na terra nova, em parte pela própria ambição, e a música é substituída pelo comércio musical, a que só escapam alguns raros. Quase do mesmo naipe, se mostra o professorado nacional, que devia combater esse erro. Porém, ainda aqui com raras exceções, o nosso professorado não faz senão conformar-se às exigências do mesmo comércio, ao mesmo tempo que, em luta com o professorado estrangeiro, por não ter deste o lustre de profetas e as mesmas tradições culturais, se converte em nacionalista e invoca a pátria quando se trata de investir com o outro porque este possui mais alunos. E desta miserável mutação de música em comércio, pois que o freguês pede virtuose, o ensino musical tem se preocupado apenas em nos dar virtuoses. Não se ensina música no Brasil, vende-se virtuosidade.
Ainda por essa conversão da música em comércio, é que os conservatórios brasileiros vivem numa pressão angustiosa. A própria circunstância de serem eles institutos em que o ensino se sistematiza, se moraliza por assim dizer, os obriga a estatuir um ensino mais legítimo de música. E assim, inicialmente eles nascem atormentados pelo seu próprio destino, que os torna indestinados num país onde todos pedem tocadores e ninguém pede música. A maioria dos conservatórios se comercializa então, engolidos pela torrente niveladora. Se tornam produtores de pianistas e violinistas, confundindo a elevação cultural da sua finalidade com as acomodações despoliciadas do ensino particular. Não são conservatórios, são cooperativas de professores particulares.
Quereríeis talvez observar o fenômeno do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo? Quem quer lhe conheça os estatutos e a constituição didática, se convencerá da finalidade popular da nossa casa. Pelos seus preços, pelas poucas credenciais de educação escolar que exige dos seus alunos, é evidente que o Conservatório não se destina à formação de elites musicais refinadíssimas, porém à popularização da música. Compreendeis certamente o que significam estes enxames sonoros de diplomandos que o Conservatório solta anualmente sobre o corpo do nosso Estado. São já muitas centenas de artistas menores que se perderam na multidão nacional, tocando e ensinando. Não me orgulha ter saído das salas conservatorianas um Francisco Mignone, por exemplo. Porque na formação dum grande artista entra um sem número de contingências e condições, todos de decisório valor. O que me orgulha sois vós, senhores diplomandos, é o enxame. O que me orgulha é a professorinha anônima do Bexiga ou da Moóca, a mulher de Taquaritinga ou Sorocaba, que ensina seu Beethoven ou, dormidos os filhos, inda soletra aos ouvidos da rua algum noturno de Chopin.
Não nego que num estabelecimento de ensino, onde uns saem formados com distinção e outros com um simplesmente, muita execução será medíocre. Não nego também que não estais musicalmente bem aparelhados para uma perfeita digressão estética, uma completa distinção de estilos, e mesmo, os que menos quiseram aprender, incapazes de analisar uma forma e determinar uma harmonia. Mas se esta casa não se fez como órgão seletivo, é uma verdadeira idiossincrasia patusca, exigir-se dos nossos alunos, serem todos bichos ensinados de exceção. Pois é justamente de vós, senhores diplomandos, que se faz a maior pedra de escândalo contra o Conservatório. Ninguém quer compreender a vossa honrosa finalidade, e o que todos pedem a esta casa é a formação das elites pequenas. Se ao menos pedissem elites de musicistas completos, seria apenas esquecer a finalidade do Conservatório, mas o que pedem são tocadores deslumbrantes, na mais mesquinha perversão não só da música, mas da própria virtuosidade. Campeia em toda parte, nos lares como nos jornais, nas sociedades artísticas como nas escolas, no povaréu das ruas como no povinho dos concertos, na política. como na politicagem, a mais completa ignorância da cultura musical, e em vez de buscarem na música as elevações estéticas e sociais da arte, só buscam a sensualidade dum malabarismo virtuosístico.
Contra essa doença geral, os conservatórios não podem lutar sozinhos. Faz-se absolutamente necessário que se oficialize o ensino musical, porque só a defesa de verbas garantidas permitirá a sobrevivência de escolas ensinadoras de música, exigências severas nos exames, estudos completos de humanidades, multiplicação de disciplinas complementares, disseminação dos processos de música de conjunto e o combate ao conceito fogueteiro da virtuosidade. E só assim teremos de esperar apenas o ajutório dos anos ou culpar as qualidades da raça, para a formação de elites exemplares e elevação mais íntima do nível cultural do povo. Sem o alicerece duma proteção oficial os conservatórios, as orquestras, os corais, os conjuntos de câmara, a composição permanente, ainda não poderão existir entre nós.
Direis talvez que tudo isso poderá existir pela proteção dos capitalistas, mas ainda nesse ponto a experiência permite garantir que quaisquer esperanças se fundam na areia mais movediça. Quem já viu um verdadeiro mecenas entre nós! São aliás raríssimas no Brasil, riquezas enormes que permitam o exercício dum permanente mecenismo. Mas esse não é o maior empecilho, porém. O mais profundo obstáculo ao mecenismo nacional, alguém já disse, é a obsessão da Santa-Casa. Nós inda sofremos o peso dessa tradição culturalmente devastadora, pela qual quem quer e pode fazer um benefício, dá dinheiro pra Santa-Casa, dá dinheiro pra velhice, dá dinheiro aos pobres. Inda bem que se ajunta a essa caridade, o dar às vezes mais iluminadamente dinheiro para as criancinhas também. Mas a tradição grudenta, o imperativo que organiza inconscientemente os gestos dos benfeitores, é o horror da doença ou da pobreza que esmola na rua. De sorte que a função quase única do conceito nacional de humanidade, é uma proteção negativa, por assim dizer; . protege-se a doença e a incapacidade, ninguém não lembra de proteger sãos e capazes. Se arrumem!… Não é à toa que brilha misteriosamente entre os provérbios brasileiros aquele inexplicável “Em tempo de murici, cada um cuide de si!“…
Parece mesmo que o Brasil sempre viveu em tempo de murici… Atentai bem, senhores diplomandos e meus senhores: eu não quero com estas afirmativas ásperas, acusar a caridade em si mesma, nem sequer recusar a proteção a santas casas e asilos. Reconheço mesmo, sem o menor receio de invalidar a minha tese, que essa forma de proteção que qualifiquei de negativa, sempre de algum modo é positiva também, porque defende os capazes, tirando do seu meio o mau exemplo da doença e da pobreza-ofício. O que eu indigito como espécie da nossa incultura, é este viver dentro da morte, esse desgalhamento da visão católica do outro mundo, que nos leva a uma caridade assustada, a uma caridade supersticiosa, a uma caridade esquecida de que a própria vida é uma oração. Ninguém aceita a vida como um benefício de Deus. Ninguém compreende a existência como uma luta, mas como um perigo de ir pro inferno. E de tamanho obscurantismo, talvez não haja outro país onde o único sistema de emprestar a Deus seja dar aos pobres e aos doentes. Dá-se ao incapaz que vai morrer recusa-se ao capaz que vai fazer.
Há uma monotonia opaca em nossas riquezas particulares. É essa compreensão monocórdia da vida, esse apoucamento da humanidade de cada um na comoção fucílima e garantida dos hospitais. A doença do corpo inda movimenta os nossos ricos. E não quero indagar até que ponto, a vaidade. Mas como poderão muitos perceber a doença do espírito, esta generalizada incultura, si eles próprios sofrem desse mal e se imaginam sãos! Por isso os nossos museus, as nossas bibliotecas, nossas sociedades culturais, nossos conservatórios, nossas orquestras nascem lerdos e vivem maleiteiro, sofrendo de maleita mais roedora que a remanseada nas águas barrentas dos rios. O que me revolta, neste momento final da nossa vida em comum, senhores diplomandos, não é a caridade e nem mesmo essa neologística “filantropia” que a pretendeu substituir, mas o desequilíbrio da nossa compreensão social. que si dum lado, a proteção à doença, sem ser muita, é tudo, do outro lado a proteção à inteligência, a bem dizer, é nula. Não existe um mecenas no Brasil. Nesta contingência, esperar que a sustentação da música nasça da Riqueza particular, é o mesmo que deixar a herdeiros a esperança. Nós só podemos realmente contar com as iniciativas oficiais.
Aproveito, senhores diplomandos, esta ocasião solene, que me proporcionais, para lançar de vosso meio um apelo grave ao Governo do Estado, para que se oficialize e se desenvolva o ensino da música entre nós. Todos vimos com malferido espanto, que na constituição da nossa Universidade, si todas as outras artes eram reconhecidas e oficialmente contempladas, a música fora esquecida. Não haverá por acaso um lugarzinho para a mais dinâmica, para a mais socializadora das artes, no seio da Universidade de São Paulo?
É certo que teoricamente eu me concluo contrário à intromissão de escolas de artes no âmbito das universidades. Há disciplinas nascidas das artes que; essas sim, fazem parte do espírito universitário, como a Estética, a História comparada das artes, a História de cada arte em particular, a Musicologja. Mas existe nas artes um lado ofício, um lado ensino profissional. uma ascensão gradativa e não seccionável da prática dos instrumentos e do material, que em teoria me parece aberrar do conceito de universidade. Mas se a teoria me leva a esta convicção, por outro lado estou convencidíssimo, já agora, que para o nosso país, a fusão dos conservatórios nas universidades, principalmente si tivermos as cidades universitárias, será praticamente utillssima. O nosso músico precisa da existência universitária, precisa do contacto diuturno, da amizade e do exemplo dos outros estudantes, o nosso músico precisa imediatamente contagiar-se do espírito universitário, porque a inobservância do nosso músico quanto a cultura geral, é simplesmente inenarrável. Nenhum não sabe nada, nenhum se preocupa de nada, os interesses completamente fechados, duma estreiteza inconcebível, só é exclusivamente entreaberto para as coisas da música. Nem isso siquer! Cada qual traz a sua preocupação voltada apenas para a parte da música em que se especializou. Quem quer tenha convivido com nossos músicos, ou apenas seguido o ramerrão dos concertos, sabe disso tanto como eu. Os violinistas vão aos recitais de seus próprios alunos ou dos violinistas célebres, os pianistas só se interessam por teclados. Essa a regra comum, quase uma lei cultural entre nós. Uma curteza de espírito assombrosa; um afastamento desleal das outras artes, das ciências, da vida econômica e política do país e do mundo; uma incapacidade lastimável para aceitar a existência, compreendê-Ia, agarrá-la; uma rivalidade vulgaríssima; uma vaidade de zepelin sozinho no ar. .Cada qual se julga dono da música e recordista em especialidade. A vida, a vida totalizada, se restringe a um dar lições, preparar de vez em longe algum recitalzinho e falar mal dos colegas. Vida tão exangue e inodora que não se sabe mais si estamos dentro da música ou dum mosqueiro de passagem.
Esta situação do nosso ambiente musical é que me obriga, escudado em vós, senhores diplomandos, a implorar a inclusão dum conservatório em nossa Universidade. Um conservatório qualquer. Eu não pleiteio sequer a oficialização desta nossa casa benemérita. Sem dúvida alguma, o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, pelo seu passado, pela sua finalidade básica, precisa, merece, deve, exige receber o apoio oficial. Mas ele, pelo fim a que se destinou, está mais apto a oficializar-se em sua ação popular, como um estudo apenas secundário da música. Ao passo que um instituto criado e defendido financeiramente pelo Governo, conformado pelas exigências culturais da vida universitária, se destinará fatalmente à formação das elites técnicas, das elites didáticas, dos compositores e alta virtuosidade. E poderá forçar as portas ainda apenas entreabertas para nós, das expressões coletivas da música. E assim definido o instituto universitário em crisol selecionador das elites, esta nossa casa se definirá milhormente em sua finalidade primeira de vulgarizadora da música no povo, esta finalidade igualmente virtuosa em que a não compreendem e atacam os enfastiados do endêmico diletantismo nacional.
A situação angustiosa da música entre nós, não se prova apenas pelo problema dos conservatórios. Pelo contrário: o ensino, a pedagogia técnica dos instrumentos principalmente, ainda é justo a parte da manifestação musical que se apresenta mais ou menos organizada. O resto é um total descalabro, que denuncia minuciosamente, aquela falta de moralidade cultural que denunciei faz pouco. Si fosse apenas a incultura, teríamos apenas de começar; mas o nosso organismo musical está cheio de coisas mal começadas, de vícios adquiridos, de tradições errôneas, de egoísmos insaciáveis, de velharias falsamente respeitadas, fazendo com que a imoralidade cultural grasse em nosso meio, buscando enfraquecer as tentativas mais sinceras.
Não há dúvida que a Municipalidade de São Paulo subvencionou este ano uma orquestra sinfônica. Mas, poderemos concertar artisticamente a condição das nossas orquestras enquanto as exigências sindicais tornam impossível a constituição de orquestras novas e os próprios músicos se recusam a concurso?…
Não há dúvida que hoje São Paulo possui um magnífico piano de concerto, quando por muitos anos nos envergonhou o desespero dos grandes virtuose por não encontrarem na terra instrumento aceitável. Era uma situação insolúvel, si o Governo não a auxiliasse, pois com a queda do mil-réis, os representantes das grandes marcas não se arriscavam a importar instrumentos que valiam como casas. Não há dúvida que São Paulo mantém agora um trio de primeira ordem, se esmera na constituição dum quarteto com maiores probabilidades de permanência, apresenta um coral já excelente, e ensaia o primeiro agrupamento madrigalístico do país…Quem quer tenha a mais mínima decência cultural, reconhece a longa dificuldade de constituição desses agrupamentos que exigem anos para alcançar uma legítima perfeição. Lucien Capet, o organizador do famoso quarteto que foi uma glória musical de França, aplicou-se dez anos ao trabalho quartetístico, antes de se apresentar com seu quarteto. Mas num meio deficiente como o nosso, onde é desesperadora a ausência de artistas dotados de cultura estética, e a maioria dos que se presumem de cultos são apenas pedantes condoreiros do culto de si mesmos, como justificação dos duzentos e treze contos gastos com todas estas tentativas e fixações, os pedantes exigem imediata perfeição sem limite, e os ignaros a barulheira, a música de pancadaria nenhuma arte e diários sons.
A muitos soará talvez, eu me aproveite desta solenidade que não me pertence, para elogiar o Governo. Senhores diplomandos, eu não vim aqui sinão por mandado vosso, e não pleiteio sinão pelo vosso destino. Sempre me conservei fora da política e posso gritar a qualquer vento que fui chamado a um posto que não desejei, e que representa apenas para mim o sacrifício de toda aquela amenidade, de toda aquela prosperidade pessoal e de toda aquela feliz ilusão em que sempre vivi. O meu trabalho não é político sinão naquela necessária condição dos serviços públicos, em que o que se fizer reverte em justificativa daqueles que o permitiram fazer.
De resto não hesito em afirmar que o já realizado é muito pouco para servir de orgulho a qualquer um. As dotações e iniciativas novas, embora incomparáveis com o que já se tem feito entre nós, vêm apenas remediar sumariamente a penúria musical em que vivíamos; e o esforço terá de ser muito maior para que possamos atingir uma posição levantada. Aliás ninguém aqui está mendigando elogios, mas exigindo compreensão. Mesmo porque seria estarmos na mais desprezível das precariedades morais julgar-se um serviço público mercedor de elogios pelo fato de apaixonadamente servir.
E nisto estamos, senhores diplomandos. Uma tradição, não quero lembrar em que tempos nascida, de tudo desconfia e a tudo arrasa. Nós não lutamos pela vida: nós nos queixamos da vida. A isso nos acostumaram, e neste detestável costume perseveramos ainda. A uma iniciativa cultural, todos se queixam porque faltam hospitais ou porque a situação financeira não permite luxos. De uma proteção à cultura todos desconfiam porque ainda não se percebeu em nossa terra que a cultura é tão necessária como o pão, e que uma fome consolada jamais não equilibrou nenhum ser e nem felicitou qualquer país. E em nosso caso brasileiro particular, não é a sublime insatisfação humana do mundo que rege o coral das queixas e desconfianças, mas a falta de convicção do que verdadeiramente seja a grandeza do ser racional. Nós não sabemos siquer muito vagamento o que faz a realeza do homem sobre a Terra; e da própria minoria que ainda soergue a medo o pavilhão da cultura, muitos o fazem porque ouviram dizer, o fazem porque europeus fazem assim. De forma que si elogiam e pedem a Cultura, ainda continuam desprotegendo ou combatendo quaisquer iniciativas culturais. Nós não estamos ainda convencidos de que a cultura vale como o pão. E essa é a nossa mais dolorosa imoralidade cultural. O quê viestes fazer aqui?…
O que ireis fazer da vossa vida?… Acaso vos sentis bem aparelhados para vencer o rodamoinho voraz?… O meu anseio de amigo vosso, senhores diplomandos, chega a lembrar-me de vos desaconselhar o caminho que encetastes. Mas há sempre uma ingenuidade contra qualquer crime haverá sempre uma pureza contra qualquer vício
Eu não vos convido à ilusão! Nem vos convido muito menos à conformista esperança, pois que fui o primeiro a vos substituir o vinho alegre desta cerimônia pela água salgada da realidade. Eu não vos convido siquer à felicidade, pois que da experiência que dela tenho, a felicidade individual me parece mesquinha, desumana, muito inútil. Eu vos quero alterados por um tropical amor do mundo, porque eu vos trago o convite da luta. Permiti-me a incorreção desta vulgaridade; ela porém não será talvez tão vulgar, pois que não vos convido à luta pela vossa vida, nem à caridosa dedicação pela vida enferma ou pobre, mas exatamente a luta por uma realidade mais alta e mais de todos.
Há grave ausência de homens que queiram aceitar este ideal. O maior número se refugia, acovardado, na luta pela sua própria existência. Mas se há falta de homens, façam-se homens! E esse é o dever irrecusável da mocidade a que pertenceis. Há sempre uma aurora para qualquer noite, e essa aurora sois vós. Quem quer freqüente os concertos públicos, se surpreende ante a verdadeira multidão de rapazes e de garotas que desejam ouvir. Abre-se um curso de etnografia e imediatamente se faz necessário desdobrar as aulas ante o número dos que exigem saber. Inaugura-se uma biblioteca infantil e numa semana os meninos se elevam a uma freqüência de cem diários; joga-se nos jardins uma biblioteca circulante, e os operários que a buscam tornam-a logo insuficiente. Há sempre uma aurora para qualquer noite, e essa aurora sois vós. E pois que a noite ainda é profunda e vai em meio, eu vos convido a forçar a entrada da manhã. Eu vos trago o presente perfeito da imediata luta por uma realidade mais de todos. Há toda uma mística nova a envergar sobre os ombros, para que o destino não se desvirtue na procura mesquinha do nosso bem pessoal. Não desprezo o indivíduo e sei glorificar as criações, as forças e riquezas de que só ele é capaz: porém foram tais os descaminhos humanos na exaltação egoística do indivíduo, que nos vemos num momento ogro do mundo em que qualquer idealidade tem de equiparar-se à religião, cujo resultado é fundir. Essa a mística que se exige de vós, e para a qual eu vos convido, senhores diplomandos! É a luta por uma realidade mais alta, mais completa e mais de todos. Vosso domínio é a música, e infame será quem julgar menos útil cuidar da música que do algodão. Tanto num como noutro destino, encontrareis sempre, como fim final de tudo, a humanidade. E todos os sacrifícios que me custaram as frases deste discurso, todos eu fiz por vós, fiz contente, buscando abrir-vos de par em par, em toda a sua soberania insaciável, as portas da humanidade.
Fonte: https://escritosdevagner.wordpress.com/2019/05/17/oracao-de-paraninfo-mario-de-andrade/
E nisto estamos, senhores diplomandos. Uma tradição, não quero lembrar em que tempos nascida, de tudo desconfia e a tudo arrasa. Nós não lutamos pela vida: nós nos queixamos da vida. A isso nos acostumaram, e neste detestável costume perseveramos ainda. A uma iniciativa cultural, todos se queixam porque faltam hospitais ou porque a situação financeira não permite luxos. De uma proteção à cultura todos desconfiam porque ainda não se percebeu em nossa terra que a cultura é tão necessária como o pão, e que uma fome consolada jamais não equilibrou nenhum ser e nem felicitou qualquer país. E em nosso caso brasileiro particular, não é a sublime insatisfação humana do mundo que rege o coral das queixas e desconfianças, mas a falta de convicção do que verdadeiramente seja a grandeza do ser racional. Nós não sabemos siquer muito vagamento o que faz a realeza do homem sobre a Terra; e da própria minoria que ainda soergue a medo o pavilhão da cultura, muitos o fazem porque ouviram dizer, o fazem porque europeus fazem assim. De forma que si elogiam e pedem a Cultura, ainda continuam desprotegendo ou combatendo quaisquer iniciativas culturais. Nós não estamos ainda convencidos de que a cultura vale como o pão. E essa é a nossa mais dolorosa imoralidade cultural.
O quê viestes fazer aqui ?…
(...)
Eu não vos convido à ilusão! Nem vos convido muito menos à conformista esperança, pois que fui o primeiro a vos substituir o vinho alegre desta cerimônia pela água salgada da realidade. Eu não vos convido siquer à felicidade, pois que da experiência que dela tenho, a felicidade individual me parece mesquinha, desumana, muito inútil. Eu vos quero alterados por um tropical amor do mundo, porque eu vos trago o convite da luta. Permiti-me a incorreção desta vulgaridade; ela porém não será talvez tão vulgar, pois que não vos convido à luta pela vossa vida, nem à caridosa dedicação pela vida enferma ou pobre, mas exatamente a luta por uma realidade mais alta e mais de todos.
Há grave ausência de homens que queiram aceitar este ideal. O maior número se refugia, acovardado, na luta pela sua própria existência. Mas se há falta de homens, façam-se homens! E esse é o dever irrecusável da mocidade a que pertenceis. Há sempre uma aurora para qualquer noite, e essa aurora sois vós. Quem quer freqüente os concertos públicos, se surpreende ante a verdadeira multidão de rapazes e de garotas que desejam ouvir. Abre-se um curso de etnografia e imediatamente se faz necessário desdobrar as aulas ante o número dos que exigem saber. Inaugura-se uma biblioteca infantil e numa semana os meninos se elevam a uma freqüência de cem diários; joga-se nos jardins uma biblioteca circulante, e os operários que a buscam tornam-a logo insuficiente. Há sempre uma aurora para qualquer noite, e essa aurora sois vós. E pois que a noite ainda é profunda e vai em meio, eu vos convido a forçar a entrada da manhã. Eu vos trago o presente perfeito da imediata luta por uma realidade mais de todos. Há toda uma mística nova a envergar sobre os ombros, para que o destino não se desvirtue na procura mesquinha do nosso bem pessoal. Não desprezo o indivíduo e sei glorificar as criações, as forças e riquezas de que só ele é capaz: porém foram tais os descaminhos humanos na exaltação egoística do indivíduo, que nos vemos num momento ogro do mundo em que qualquer idealidade tem de equiparar-se à religião, cujo resultado é fundir. Essa a mística que se exige de vós, e para a qual eu vos convido, senhores diplomandos! É a luta por uma realidade mais alta, mais completa e mais de todos. Vosso domínio é a música, e infame será quem julgar menos útil cuidar da música que do algodão. Tanto num como noutro destino, encontrareis sempre, como fim final de tudo, a humanidade. E todos os sacrifícios que me custaram as frases deste discurso, todos eu fiz por vós, fiz contente, buscando abrir-vos de par em par, em toda a sua soberania insaciável, as portas da humanidade."
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Pascoal da Conceição em “Os Malefícios do Tabaco”
no Teatro #EmCasaComSesc
https://youtu.be/MwYNd1PT76c?t=1065
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Mário de Andrade
ORAÇÃO DE PARANINFO
(escrita aos alunos do Conservatório de Música, em 1935
Tenho a impressão, senhores diplomandos, de que talvez este momento, em que recebeis o atestado público do curso que fizestes, seja mais importante para mim do que para vós. Por três vezes já que simpatias perdoáveis, levaram diplomandos do Conservatório a me consagrar paraninfo de suas formaturas. Por três vezes tenho agora a consciência de que traí a missão que me foi dada, escrevendo discursos com o desejo de agradar.
Hoje não poderei agir assim. Não serei breve, nem serei discreto, e vou expor coisas escuras. Porém não trairei o valor deste encargo. e trago comigo a decisão de não vos cantar mais as serenatas da alegria. E esta decisão de só encarar o real, me veio da enorme, da radical transformação que deu-se em minha existência.
Chamado a um posto oficial, embora não político, me vi de chofre desanuviado dos sonhos em que sempre me embalei. Sempre conservara a ilusão de que era um homem útil, apenas porque escrevia no meu canto, livros de luta em prol da arte, da renovação das artes e da nacionalização do Brasil. Mas depois que baixei ao purgatório dum posto de comando, depois que me debati na espessa goma da burocracia, depois que lutei contra a angustiosa nuvem dos necessitados de emprego, depois que passaram pelas minhas mãos dinheiros que não eram meus e de mim derivaram proveitos ou prejuízos, veio se avolumando em mim um como que desprezo pelo que ora dantes.
Eu fui o filho da felicidade. Nunca sofri. Tive energia bastante para repudiar o sofrimento do espírito e forças físicas suficientes para impedir os sofrimentos do corpo. Dominei com facilidade e, sobretudo com inalterável otimismo, todas as ladeiras de meu caminho. Desenvolvia a luta com uma filosofia egoística, de espírito eminentemente esportivo, que fizera de mim literalmente um gozador.
Também suportei omissões e desgraças. Mas eu era um milionário detestável, que acumulava e desperdiçava as suas riquezas e imolava frio as visagens do mundo, para conforto do seu próprio ser. Não rico de dinheiro, mas afortunado duma fartura vaidosa de ilusões e defesas pessoais. Minhas cóleras de crítico, minhas violências jornalísticas, minhas peleias literárias, minhas dores de amor e revoltas contra a vida ambiente, em que fui tão sincero, hoje me parecem fantasmagorias gostosas em que pus em prática uma encantada satisfação de viver. E já agora, com um sentimento menos teórico da vida porque apalpei sua quotidianidade mais de perto, eu só posso, não me perdoar, porém me compadecer do que fui, lembrando a escuridão da minha total ignorância: eu não sabia!
Agora, tendes à vossa frente um órfão. Não mais o filho da felicidade, a felicidade morreu, mas o apaixonado, o ganancioso compartilhador da precariedade humana. Não vou, senhores diplomandos, expor aos vossos olhares o panorama da minha existência atual. De resto, nem ela é feita apenas de tristezas. Há momentos de conquista, há triunfos admiráveis, alegrias dum fulgor sublime. Porém desapareceu aquele prazer de mim mesmo que eu tinha dantes. As alegrias, as soluções, os triunfos não satisfazem mais, porque não se dirigem às exigências do meu ser, que eu domino, nem dele se originam; antes, nascem da coletividade, a ela se dirigem, a esta coletividade monstruosa, insaciável, imperativa, que eu não domino por ser dela apenas uma parte menoríssima. Um copo de leite dado a uma criança subnutrida, implica a fome de outras; uma biblioteca nova ilumina o rastejo dos analfabetos; uma orquestra mantida supõe músicos sem emprego, um coral dado ao povo desafina ao som gago dos que nem sequer sabem ouvir. É a ganância que domina e veio turvar tudo, a mesma ganância insofrida que faz a miséria dos acumuladores de riquezas. É a ganância, o desejo tempestuoso de fazer, de fazer mais, de fazer tudo, num retorno invencível da ingenuidade. Deixei de ser feliz, mas a inocência nasceu.
Como pois, senhores diplomandos, poderia dizer-vos apenas as palavras irresponsáveis de prazer com que outras vezes traí? Poderia agradar-vos, saudando a vossa formatura, quando justamente agora principia o áspero caminho? Poderei glorificar-vos por um diploma vencido, quando eu sei que não estais aparelhados para vencer? Poderia disfarçando a importância desta solenidade, falar-vos sobre as grandezas da música, quando a música anda por todos desvirtuada?…
Talvez estejais ainda lembrados da armadilha com que quase todos os anos inicio os meus cursos de História da Música…
A pergunta que faço sobre o que os meus alunos vieram estudar no Conservatório, todos respondem, um que veio estudar piano, outro canto, outro violino. Há catorze anos faço tal pergunta. Não tive até hoje um só aluno que me respondesse ter vindo estudar música!
Insistireis, senhores, sobre a dolorosa significação desta anedota. Ela é exatamente o símbolo da situação precaríssima da nossa cultura, digo mais: da nossa “moral cultural”. Porque não é apenas a cultura que anda desnorteada por aí, antes, a reação moral diante dos problemas da cultura é que ainda não se elevou nada; anda répril, viscosa, preguicenta, envenenando tudo.
Se os alunos vêm ao Conservatório com o único fim de estudar piano ou violino, se o ideal dessa juventude não passa duma confusão e também duma vaidade que sacrifica os valores nobres da arte pela esperança dum aplauso público: a culpa é dessa mocidade frágil? Não é. Não sois vós os culpados, mas vossos pais, vossos professores e os poderes públicos. O vosso engano proveio duma incultura muito mais escancarada e profunda, em que a confusão moral entre música e virtuosidade, está na própria base.
Os pais, inflamados de amor, desejam glória aos filhos. Está quase certo. Mas a glória preferida é que está errada. Os pais, violentados pelo amor aos filhos, não têm sacrifício que não façam para que estes alcancem a glória destinada. Está certíssimo agora. Os sacrifícios feitos é que foram improfícuos, porque o fim pretendido estava inicialmente errado.
Qual o pai que desejou tornar o filho um músico completo? Talvez: nenhum. Qual o pai que desejou ver o filho um pianista, ou cantor .célebre? Talvez todos. Nós não andamos à procura da vida, e por isso a vida nos surpreende e assalta a cada esquina. Nós andamos apenas suspirando pela glória. . A glória é uma palavra curta em nosso espírito, e significa apenas aplauso e dinheiro. Nós nem queremos ser gloriosos, nós desejamos ser apenas célebres. Conta-se de crianças que reproduzem crimes vistos no cinema, agidas pela aspiração de se verem fotografadas nos jornais. Haverá muita distância entre esses infelizes e a nossa prática familiar de dirigir um filho para a celebridade pianística? Tudo tem como resultado uma fotografia nos jornais…
Mas a essa desorientação que desce as crianças do berço, vem completar a desorientação dos professores. O contraste entre os nossos progressos viageiros e a nossa principiante civilização, nos leva a importar professores de terras mais completas. E esses professores musicais emigrados, não emigraram por prazer; está claro, ninguém emigra por prazer. Dá-se necessariamente uma conformação nova de ideal, provocada em parte pela confusão existente na terra nova, em parte pela própria ambição, e a música é substituída pelo comércio musical, a que só escapam alguns raros. Quase do mesmo naipe, se mostra o professorado nacional, que devia combater esse erro. Porém, ainda aqui com raras exceções, o nosso professorado não faz senão conformar-se às exigências do mesmo comércio, ao mesmo tempo que, em luta com o professorado estrangeiro, por não ter deste o lustre de profetas e as mesmas tradições culturais, se converte em nacionalista e invoca a pátria quando se trata de investir com o outro porque este possui mais alunos. E desta miserável mutação de música em comércio, pois que o freguês pede virtuose, o ensino musical tem se preocupado apenas em nos dar virtuoses. Não se ensina música no Brasil, vende-se virtuosidade.
Ainda por essa conversão da música em comércio, é que os conservatórios brasileiros vivem numa pressão angustiosa. A própria circunstância de serem eles institutos em que o ensino se sistematiza, se moraliza por assim dizer, os obriga a estatuir um ensino mais legítimo de música. E assim, inicialmente eles nascem atormentados pelo seu próprio destino, que os torna indestinados num país onde todos pedem tocadores e ninguém pede música. A maioria dos conservatórios se comercializa então, engolidos pela torrente niveladora. Se tornam produtores de pianistas e violinistas, confundindo a elevação cultural da sua finalidade com as acomodações despoliciadas do ensino particular. Não são conservatórios, são cooperativas de professores particulares.
Quereríeis talvez observar o fenômeno do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo? Quem quer lhe conheça os estatutos e a constituição didática, se convencerá da finalidade popular da nossa casa. Pelos seus preços, pelas poucas credenciais de educação escolar que exige dos seus alunos, é evidente que o Conservatório não se destina à formação de elites musicais refinadíssimas, porém à popularização da música. Compreendeis certamente o que significam estes enxames sonoros de diplomandos que o Conservatório solta anualmente sobre o corpo do nosso Estado. São já muitas centenas de artistas menores que se perderam na multidão nacional, tocando e ensinando. Não me orgulha ter saído das salas conservatorianas um Francisco Mignone, por exemplo. Porque na formação dum grande artista entra um sem número de contingências e condições, todos de decisório valor. O que me orgulha sois vós, senhores diplomandos, é o enxame. O que me orgulha é a professorinha anônima do Bexiga ou da Moóca, a mulher de Taquaritinga ou Sorocaba, que ensina seu Beethoven ou, dormidos os filhos, inda soletra aos ouvidos da rua algum noturno de Chopin.
Não nego que num estabelecimento de ensino, onde uns saem formados com distinção e outros com um simplesmente, muita execução será medíocre. Não nego também que não estais musicalmente bem aparelhados para uma perfeita digressão estética, uma completa distinção de estilos, e mesmo, os que menos quiseram aprender, incapazes de analisar uma forma e determinar uma harmonia. Mas se esta casa não se fez como órgão seletivo, é uma verdadeira idiossincrasia patusca, exigir-se dos nossos alunos, serem todos bichos ensinados de exceção. Pois é justamente de vós, senhores diplomandos, que se faz a maior pedra de escândalo contra o Conservatório. Ninguém quer compreender a vossa honrosa finalidade, e o que todos pedem a esta casa é a formação das elites pequenas. Se ao menos pedissem elites de musicistas completos, seria apenas esquecer a finalidade do Conservatório, mas o que pedem são tocadores deslumbrantes, na mais mesquinha perversão não só da música, mas da própria virtuosidade. Campeia em toda parte, nos lares como nos jornais, nas sociedades artísticas como nas escolas, no povaréu das ruas como no povinho dos concertos, na política. como na politicagem, a mais completa ignorância da cultura musical, e em vez de buscarem na música as elevações estéticas e sociais da arte, só buscam a sensualidade dum malabarismo virtuosístico.
Contra essa doença geral, os conservatórios não podem lutar sozinhos. Faz-se absolutamente necessário que se oficialize o ensino musical, porque só a defesa de verbas garantidas permitirá a sobrevivência de escolas ensinadoras de música, exigências severas nos exames, estudos completos de humanidades, multiplicação de disciplinas complementares, disseminação dos processos de música de conjunto e o combate ao conceito fogueteiro da virtuosidade. E só assim teremos de esperar apenas o ajutório dos anos ou culpar as qualidades da raça, para a formação de elites exemplares e elevação mais íntima do nível cultural do povo. Sem o alicerece duma proteção oficial os conservatórios, as orquestras, os corais, os conjuntos de câmara, a composição permanente, ainda não poderão existir entre nós.
Direis talvez que tudo isso poderá existir pela proteção dos capitalistas, mas ainda nesse ponto a experiência permite garantir que quaisquer esperanças se fundam na areia mais movediça. Quem já viu um verdadeiro mecenas entre nós! São aliás raríssimas no Brasil, riquezas enormes que permitam o exercício dum permanente mecenismo. Mas esse não é o maior empecilho, porém. O mais profundo obstáculo ao mecenismo nacional, alguém já disse, é a obsessão da Santa-Casa. Nós inda sofremos o peso dessa tradição culturalmente devastadora, pela qual quem quer e pode fazer um benefício, dá dinheiro pra Santa-Casa, dá dinheiro pra velhice, dá dinheiro aos pobres. Inda bem que se ajunta a essa caridade, o dar às vezes mais iluminadamente dinheiro para as criancinhas também. Mas a tradição grudenta, o imperativo que organiza inconscientemente os gestos dos benfeitores, é o horror da doença ou da pobreza que esmola na rua. De sorte que a função quase única do conceito nacional de humanidade, é uma proteção negativa, por assim dizer; . protege-se a doença e a incapacidade, ninguém não lembra de proteger sãos e capazes. Se arrumem!… Não é à toa que brilha misteriosamente entre os provérbios brasileiros aquele inexplicável “Em tempo de murici, cada um cuide de si!“…
Parece mesmo que o Brasil sempre viveu em tempo de murici… Atentai bem, senhores diplomandos e meus senhores: eu não quero com estas afirmativas ásperas, acusar a caridade em si mesma, nem sequer recusar a proteção a santas casas e asilos. Reconheço mesmo, sem o menor receio de invalidar a minha tese, que essa forma de proteção que qualifiquei de negativa, sempre de algum modo é positiva também, porque defende os capazes, tirando do seu meio o mau exemplo da doença e da pobreza-ofício. O que eu indigito como espécie da nossa incultura, é este viver dentro da morte, esse desgalhamento da visão católica do outro mundo, que nos leva a uma caridade assustada, a uma caridade supersticiosa, a uma caridade esquecida de que a própria vida é uma oração. Ninguém aceita a vida como um benefício de Deus. Ninguém compreende a existência como uma luta, mas como um perigo de ir pro inferno. E de tamanho obscurantismo, talvez não haja outro país onde o único sistema de emprestar a Deus seja dar aos pobres e aos doentes. Dá-se ao incapaz que vai morrer recusa-se ao capaz que vai fazer.
Há uma monotonia opaca em nossas riquezas particulares. É essa compreensão monocórdia da vida, esse apoucamento da humanidade de cada um na comoção fucílima e garantida dos hospitais. A doença do corpo inda movimenta os nossos ricos. E não quero indagar até que ponto, a vaidade. Mas como poderão muitos perceber a doença do espírito, esta generalizada incultura, si eles próprios sofrem desse mal e se imaginam sãos! Por isso os nossos museus, as nossas bibliotecas, nossas sociedades culturais, nossos conservatórios, nossas orquestras nascem lerdos e vivem maleiteiro, sofrendo de maleita mais roedora que a remanseada nas águas barrentas dos rios. O que me revolta, neste momento final da nossa vida em comum, senhores diplomandos, não é a caridade e nem mesmo essa neologística “filantropia” que a pretendeu substituir, mas o desequilíbrio da nossa compreensão social. que si dum lado, a proteção à doença, sem ser muita, é tudo, do outro lado a proteção à inteligência, a bem dizer, é nula. Não existe um mecenas no Brasil. Nesta contingência, esperar que a sustentação da música nasça da Riqueza particular, é o mesmo que deixar a herdeiros a esperança. Nós só podemos realmente contar com as iniciativas oficiais.
Aproveito, senhores diplomandos, esta ocasião solene, que me proporcionais, para lançar de vosso meio um apelo grave ao Governo do Estado, para que se oficialize e se desenvolva o ensino da música entre nós. Todos vimos com malferido espanto, que na constituição da nossa Universidade, si todas as outras artes eram reconhecidas e oficialmente contempladas, a música fora esquecida. Não haverá por acaso um lugarzinho para a mais dinâmica, para a mais socializadora das artes, no seio da Universidade de São Paulo?
É certo que teoricamente eu me concluo contrário à intromissão de escolas de artes no âmbito das universidades. Há disciplinas nascidas das artes que; essas sim, fazem parte do espírito universitário, como a Estética, a História comparada das artes, a História de cada arte em particular, a Musicologja. Mas existe nas artes um lado ofício, um lado ensino profissional. uma ascensão gradativa e não seccionável da prática dos instrumentos e do material, que em teoria me parece aberrar do conceito de universidade. Mas se a teoria me leva a esta convicção, por outro lado estou convencidíssimo, já agora, que para o nosso país, a fusão dos conservatórios nas universidades, principalmente si tivermos as cidades universitárias, será praticamente utillssima. O nosso músico precisa da existência universitária, precisa do contacto diuturno, da amizade e do exemplo dos outros estudantes, o nosso músico precisa imediatamente contagiar-se do espírito universitário, porque a inobservância do nosso músico quanto a cultura geral, é simplesmente inenarrável. Nenhum não sabe nada, nenhum se preocupa de nada, os interesses completamente fechados, duma estreiteza inconcebível, só é exclusivamente entreaberto para as coisas da música. Nem isso siquer! Cada qual traz a sua preocupação voltada apenas para a parte da música em que se especializou. Quem quer tenha convivido com nossos músicos, ou apenas seguido o ramerrão dos concertos, sabe disso tanto como eu. Os violinistas vão aos recitais de seus próprios alunos ou dos violinistas célebres, os pianistas só se interessam por teclados. Essa a regra comum, quase uma lei cultural entre nós. Uma curteza de espírito assombrosa; um afastamento desleal das outras artes, das ciências, da vida econômica e política do país e do mundo; uma incapacidade lastimável para aceitar a existência, compreendê-Ia, agarrá-la; uma rivalidade vulgaríssima; uma vaidade de zepelin sozinho no ar. .Cada qual se julga dono da música e recordista em especialidade. A vida, a vida totalizada, se restringe a um dar lições, preparar de vez em longe algum recitalzinho e falar mal dos colegas. Vida tão exangue e inodora que não se sabe mais si estamos dentro da música ou dum mosqueiro de passagem.
Esta situação do nosso ambiente musical é que me obriga, escudado em vós, senhores diplomandos, a implorar a inclusão dum conservatório em nossa Universidade. Um conservatório qualquer. Eu não pleiteio sequer a oficialização desta nossa casa benemérita. Sem dúvida alguma, o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, pelo seu passado, pela sua finalidade básica, precisa, merece, deve, exige receber o apoio oficial. Mas ele, pelo fim a que se destinou, está mais apto a oficializar-se em sua ação popular, como um estudo apenas secundário da música. Ao passo que um instituto criado e defendido financeiramente pelo Governo, conformado pelas exigências culturais da vida universitária, se destinará fatalmente à formação das elites técnicas, das elites didáticas, dos compositores e alta virtuosidade. E poderá forçar as portas ainda apenas entreabertas para nós, das expressões coletivas da música. E assim definido o instituto universitário em crisol selecionador das elites, esta nossa casa se definirá milhormente em sua finalidade primeira de vulgarizadora da música no povo, esta finalidade igualmente virtuosa em que a não compreendem e atacam os enfastiados do endêmico diletantismo nacional.
A situação angustiosa da música entre nós, não se prova apenas pelo problema dos conservatórios. Pelo contrário: o ensino, a pedagogia técnica dos instrumentos principalmente, ainda é justo a parte da manifestação musical que se apresenta mais ou menos organizada. O resto é um total descalabro, que denuncia minuciosamente, aquela falta de moralidade cultural que denunciei faz pouco. Si fosse apenas a incultura, teríamos apenas de começar; mas o nosso organismo musical está cheio de coisas mal começadas, de vícios adquiridos, de tradições errôneas, de egoísmos insaciáveis, de velharias falsamente respeitadas, fazendo com que a imoralidade cultural grasse em nosso meio, buscando enfraquecer as tentativas mais sinceras.
Não há dúvida que a Municipalidade de São Paulo subvencionou este ano uma orquestra sinfônica. Mas, poderemos concertar artisticamente a condição das nossas orquestras enquanto as exigências sindicais tornam impossível a constituição de orquestras novas e os próprios músicos se recusam a concurso?…
Não há dúvida que hoje São Paulo possui um magnífico piano de concerto, quando por muitos anos nos envergonhou o desespero dos grandes virtuose por não encontrarem na terra instrumento aceitável. Era uma situação insolúvel, si o Governo não a auxiliasse, pois com a queda do mil-réis, os representantes das grandes marcas não se arriscavam a importar instrumentos que valiam como casas. Não há dúvida que São Paulo mantém agora um trio de primeira ordem, se esmera na constituição dum quarteto com maiores probabilidades de permanência, apresenta um coral já excelente, e ensaia o primeiro agrupamento madrigalístico do país…Quem quer tenha a mais mínima decência cultural, reconhece a longa dificuldade de constituição desses agrupamentos que exigem anos para alcançar uma legítima perfeição. Lucien Capet, o organizador do famoso quarteto que foi uma glória musical de França, aplicou-se dez anos ao trabalho quartetístico, antes de se apresentar com seu quarteto. Mas num meio deficiente como o nosso, onde é desesperadora a ausência de artistas dotados de cultura estética, e a maioria dos que se presumem de cultos são apenas pedantes condoreiros do culto de si mesmos, como justificação dos duzentos e treze contos gastos com todas estas tentativas e fixações, os pedantes exigem imediata perfeição sem limite, e os ignaros a barulheira, a música de pancadaria nenhuma arte e diários sons.
A muitos soará talvez, eu me aproveite desta solenidade que não me pertence, para elogiar o Governo. Senhores diplomandos, eu não vim aqui sinão por mandado vosso, e não pleiteio sinão pelo vosso destino. Sempre me conservei fora da política e posso gritar a qualquer vento que fui chamado a um posto que não desejei, e que representa apenas para mim o sacrifício de toda aquela amenidade, de toda aquela prosperidade pessoal e de toda aquela feliz ilusão em que sempre vivi. O meu trabalho não é político sinão naquela necessária condição dos serviços públicos, em que o que se fizer reverte em justificativa daqueles que o permitiram fazer.
De resto não hesito em afirmar que o já realizado é muito pouco para servir de orgulho a qualquer um. As dotações e iniciativas novas, embora incomparáveis com o que já se tem feito entre nós, vêm apenas remediar sumariamente a penúria musical em que vivíamos; e o esforço terá de ser muito maior para que possamos atingir uma posição levantada. Aliás ninguém aqui está mendigando elogios, mas exigindo compreensão. Mesmo porque seria estarmos na mais desprezível das precariedades morais julgar-se um serviço público mercedor de elogios pelo fato de apaixonadamente servir.
E nisto estamos, senhores diplomandos. Uma tradição, não quero lembrar em que tempos nascida, de tudo desconfia e a tudo arrasa. Nós não lutamos pela vida: nós nos queixamos da vida. A isso nos acostumaram, e neste detestável costume perseveramos ainda. A uma iniciativa cultural, todos se queixam porque faltam hospitais ou porque a situação financeira não permite luxos. De uma proteção à cultura todos desconfiam porque ainda não se percebeu em nossa terra que a cultura é tão necessária como o pão, e que uma fome consolada jamais não equilibrou nenhum ser e nem felicitou qualquer país. E em nosso caso brasileiro particular, não é a sublime insatisfação humana do mundo que rege o coral das queixas e desconfianças, mas a falta de convicção do que verdadeiramente seja a grandeza do ser racional. Nós não sabemos siquer muito vagamento o que faz a realeza do homem sobre a Terra; e da própria minoria que ainda soergue a medo o pavilhão da cultura, muitos o fazem porque ouviram dizer, o fazem porque europeus fazem assim. De forma que si elogiam e pedem a Cultura, ainda continuam desprotegendo ou combatendo quaisquer iniciativas culturais. Nós não estamos ainda convencidos de que a cultura vale como o pão. E essa é a nossa mais dolorosa imoralidade cultural. O quê viestes fazer aqui?…
O que ireis fazer da vossa vida?… Acaso vos sentis bem aparelhados para vencer o rodamoinho voraz?… O meu anseio de amigo vosso, senhores diplomandos, chega a lembrar-me de vos desaconselhar o caminho que encetastes. Mas há sempre uma ingenuidade contra qualquer crime haverá sempre uma pureza contra qualquer vício
Eu não vos convido à ilusão! Nem vos convido muito menos à conformista esperança, pois que fui o primeiro a vos substituir o vinho alegre desta cerimônia pela água salgada da realidade. Eu não vos convido siquer à felicidade, pois que da experiência que dela tenho, a felicidade individual me parece mesquinha, desumana, muito inútil. Eu vos quero alterados por um tropical amor do mundo, porque eu vos trago o convite da luta. Permiti-me a incorreção desta vulgaridade; ela porém não será talvez tão vulgar, pois que não vos convido à luta pela vossa vida, nem à caridosa dedicação pela vida enferma ou pobre, mas exatamente a luta por uma realidade mais alta e mais de todos.
Há grave ausência de homens que queiram aceitar este ideal. O maior número se refugia, acovardado, na luta pela sua própria existência. Mas se há falta de homens, façam-se homens! E esse é o dever irrecusável da mocidade a que pertenceis. Há sempre uma aurora para qualquer noite, e essa aurora sois vós. Quem quer freqüente os concertos públicos, se surpreende ante a verdadeira multidão de rapazes e de garotas que desejam ouvir. Abre-se um curso de etnografia e imediatamente se faz necessário desdobrar as aulas ante o número dos que exigem saber. Inaugura-se uma biblioteca infantil e numa semana os meninos se elevam a uma freqüência de cem diários; joga-se nos jardins uma biblioteca circulante, e os operários que a buscam tornam-a logo insuficiente. Há sempre uma aurora para qualquer noite, e essa aurora sois vós. E pois que a noite ainda é profunda e vai em meio, eu vos convido a forçar a entrada da manhã. Eu vos trago o presente perfeito da imediata luta por uma realidade mais de todos. Há toda uma mística nova a envergar sobre os ombros, para que o destino não se desvirtue na procura mesquinha do nosso bem pessoal. Não desprezo o indivíduo e sei glorificar as criações, as forças e riquezas de que só ele é capaz: porém foram tais os descaminhos humanos na exaltação egoística do indivíduo, que nos vemos num momento ogro do mundo em que qualquer idealidade tem de equiparar-se à religião, cujo resultado é fundir. Essa a mística que se exige de vós, e para a qual eu vos convido, senhores diplomandos! É a luta por uma realidade mais alta, mais completa e mais de todos. Vosso domínio é a música, e infame será quem julgar menos útil cuidar da música que do algodão. Tanto num como noutro destino, encontrareis sempre, como fim final de tudo, a humanidade. E todos os sacrifícios que me custaram as frases deste discurso, todos eu fiz por vós, fiz contente, buscando abrir-vos de par em par, em toda a sua soberania insaciável, as portas da humanidade.
Fonte: https://escritosdevagner.wordpress.com/2019/05/17/oracao-de-paraninfo-mario-de-andrade/
Caetano DC, José Caetano Dable Corrêa, Dedé Tarkinho, Caetano Dable e Tales de Mileto
Local: Escola de Música da UFRJ (-22.913594610682, -43.178083677053)
Endereço: Rua do Passeio, 98, Lapa., 20.021-290 Rio de Janeiro, RJ