domingo, 31 de agosto de 2014

Homem/animal : arte como anti-humanismo - Deleuze por Catarina Pombo Nabais

Homem/animal - arte como anti-humanismo

  • por Catarina Pombo Nabais in Omar Kohan, Walter e Müller Xavier, Ingrid (orgs.), ABeCedário de criação filosófica, Belo Horizonte, ed. Autêntica, 2009, pp. 133-8.
O Homem é um animal racional. Desde Aristóteles que esta definição, incessantemente retomada, nos persegue e nos enaltece. Ela constitui uma tentativa quase obsessiva de distanciar o homem face ao animal, de o expulsar do mundo opaco e mudo da animalidade. O homem seria detentor de uma característica única, a racionalidade, que irremediavelmente o elevava acima de todos os outros animais. Ao homem ficava reservada a possibilidade de fazer Filosofia, Ciência, Arte. Curiosamente, também foi Aristóteles quem primeiro definiu a Arte como mimésis da Natureza. A arte é uma actividade exclusivamente humana mas em profunda relação com o mundo natural. A obra de arte imita a Natureza porque, em primeiro lugar, a desdobra nos seus duplos, a replica, e porque, em segundo lugar, é pensada a partir do estatuto de um ser vivo, como totalidade orgânica, como a articulação funcional das partes de um todo à semelhança de um organismo. Isto significa que, para Aristóteles, a arte é uma técnica do orgânico artificial, daquilo que, criado pela habilidade humana (techne), tem todas as características do ser vivo – singularidade, totalidade, autonomia, finalidade interna.
No século XX, Deleuze foi o filósofo que mais profundamente rompeu com a visão aristotélica do homem. Em vez de pensar a essência do homem como o único animal racional, Deleuze explora os lugares de indeterminação e de indiscernabilidade entre o homem e o animal. Uma vez mais, é a arte que serve de operador. Ela é o exemplo por excelência, o lugar que melhor deixa perceber essa indistinção. De facto, para Deleuze a arte é expressão de um mundo que existe por si, de um espaço no qual o homem e o animal se tornam indiscerníveis. Deleuze faz assim da arte o denominador máximo de um anti-humanismo cerrado contra a tradição aristotélica.
Como Deleuze afirma: «A arte não é privilégio do homem. Messiaen tem razão em dizer que muitos pássaros são, não só virtuosos, mas artistas, e são-no em primeiro lugar pelos seus cantos territoriais»[1]. Segundo Deleuze, a arte começa com impressões territoriais que não reenviam a nenhum sujeito humano que as capte. Ela deve por isso ser pensada a partir das marcas constituintes de domínios estabelecidos por animais nas suas demarcações de territórios, de moradas, de marcas expressivas, de assinaturas. «As qualidades expressivas – escreve Deleuze em Mil Planaltos – as cores dos corais, são auto-objectivas, ou seja, elas encontram uma objectividade no território que elas traçam»[2]. É neste sentido que Deleuze insiste na tese segundo a qual o gesto primordial da arte é recortar, talhar, delimitar um território, para nele fazer surgir as sensações. «A arte começa com o animal, pelo menos com o animal que talha um território e faz uma casa»[3]. Demarcar um território é o primeiro momento da criação artística. «Eis tudo o que é necessário para fazer arte: uma casa, posturas, cores e cantos»[4]. Em limite, a arte é o acontecimento primordial das próprias formas da Natureza, o movimento auto-expressivo do sensível, uma epifania de formas de vida.
Segundo Deleuze, a arte renvia a uma teoria dos estratos e da estratificação do mundo, a uma tópica dos códigos, dos meios, dos ritmos a partir dos quais a expressão emerge. É portanto uma Filosofia da Natureza que este hiperrealismo, não do homem, mas da Natureza, convoca. Conceitos que pertencem à geologia, à biologia, à psico-química – como coagulação, sedimentação, ou conjuntos moleculares – misturam-se com categorias semiológicas para descrever o fenómeno da obra de arte. A criação artística, atraversada por forças não-humanas, projecta-se no universo, no cosmos, na vida inorgânica. O anti-humanismo de Deleuze apresenta-se pois como um programa cosmológico, um estudo das forças que trabalham no artista, seja ele homem, animal ou planta.
Para melhor perceber a relação do artista com as forças inhumanas, Deleuze propõe o conceito de devir. Devir é a experiência da absoluta alteridade, do absoluto desnudamento de si-mesmo, de todos os traços que caracterizam alguém como um indivíduo particular e estratificado. O artista, enquanto aquele que entra em processo de devir, é um ser de absorção, de captação, de assimilação, em suma, é uma esponja do mundo. Nessa captação do mundo, o artista descobre uma multidão que o constitui, pré-individualidades e singularidades anteriores a toda a forma constituída como «indivíduo» ou «sujeito». No estado a-subjectivo, a existência acontece entre a singularidade e a multidão: enquanto único e singular, o artista em devir existe como uma multidão, e essa multidão faz dele um elemento da Natureza.
Devir é então tornar-se Natureza, é popular-se com a Natureza, é tornar o seu corpo um fragmento do cosmos universal: animal, flor ou rio. O devir, segundo Deleuze, é um fenómeno que pertence ao mundo dos afectos e dos perceptos puros, onde uma vida se manifesta como vida imanente e liberta das suas amarras subjectivas, uma vida independente das vivências pessoais. Devir é romper as coordonadas subjectivas, é desenraizar as referências humanas. O mundo do devir está para lá de toda a esfera pessoal e subjectiva: lembranças, imaginações, viagens, sonhos, opiniões, estados perceptivos e passagens afectivas das vivências. Como Deleuze explica : «o percepto é a paisagem antes do homem, na ausência do homem (…). Os afectos são precisamente esses devires não humanos do homem, como os perceptos (incluindo a cidade) são as paisagens não humanas da natureza»[5]. O devir é então esse estado não humano do homem, essa paisagem não humana da Natureza, onde os afectos e os perceptos existem por si, em si, como devires, na ausência do homem.
O artista é aquele que entra em devir, isto é, que encontra e se junta ao mundo, que se mistura com a Natureza, que entra numa zona de indiscernabilidade com o universo. Van Gogh entra no devir-girassol, Kafka no devir-animal, Melville no devir-baleia de Moby Dick, Messiaen no devir-ritmo e melodia. Essa zona de indiscernabilidade, esse ponto de indistinção entre o homem e o animal ou o mundo inteiro, isto é, o devir, dá-se no afecto. Por isso, como Deleuze escreve: «O artista é o mostrador de afectos, o inventor de afectos, o criador de afectos, em relação com os perceptos ou as visões que ele nos dá. E não é só na sua obra que ele os cria. Ele também nos dá afectos e faz-nos devir com eles (…). A flor vê (…). A arte é a linguagem das sensações, que o artista passa pelas palavras, pelas cores, pelos sons e pelas pedras»[6].
O afecto, explica Deleuze, «é uma zona de indeterminação, de indiscernabilidade, como se as coisas, os animais, e as pessoas (Achab e Moby Dick Pentesileia e a cadela) tivessem atingido, em cada caso, esse ponto que, apesar de infinito, precede imediatamente a sua diferenciação natural»[7]. O afecto é o estado de uma vida que precede a diferenciação natural entre os seres formados, o estado onde toda a forma se dissolve. Ele pertence a um estado pré-individual, onde o homem não se distingue do animal ou do vegetal, onde todos os seres são a-subjectivos. O afecto é o grau zero do mundo, sem ser por isso um retorno ao estado primitivo da vida. É antes a sua recriação, o recomeço do mundo. Nas palavras de Deleuze: «Não se trata senão de nós, aqui e agora; mas aquilo que em nós é animal, vegetal, mineral ou humano já não se distingue»[8].
A radicalização do programa anti-humanista é ainda mais forte quando Deleuze afirma que o pensamento – aquilo que, como vimos, constituía para Aristoteles o que há de mais específico no homem – tem a forma de um rizoma. Para o modelo clássico, o pensamento é como uma árvore, organizado segundo a lógica dicotómica da oposição, e constitui-se a partir da ideia de verticalidade e totalidade segundo a qual os pontos ramificam-se e unem-se a outros que são da mesma dimensão. A árvore define um centro, hierarquiza. Mas, para Deleuze, o pensamento tem um funcionamento diferente. Pela transbordância, pela intersecção, pela simbiose, ele escapa constantemente a uma organização segundo a imagem-árvore, isto é, ele ultrapassa toda a dualidade. Num rizoma, um ponto qualquer pode ser ligado a todos os outros. À dicotomia, à oposição, à ordem arborescente, o rizoma opõe cadeias de conexão múltiplas e heterogéneas, sem eixo ou estrutura central. E, porque que ele é descentrado, o rizoma torna possível o cruzamento de diversas dimensões. Ao contrário de uma árvore, um rizoma não tem rupturas marcadas e significantes, que separam segmentos ou estruturas. Num rizoma, o que está bloqueado, partido, interrompido, retoma as suas conexões através de outras das suas linhas, nomeadamente as linhas de fuga ou de desterritorialização, sem cortes abruptos, definitivos e significantes. No rizoma não existem senão linhas, as quais fazem proliferar o pensamento na sua multiplicidade. Em lugar da dupla sujeito/objecto, o que existe são intensidades e singularidades, existências a-subjectivas que, funcionando como rizomas, se encontram, se cruzam por meros acasos e formam uma multiplicidade heterogénea.
Definir o pensamento como rizoma significa portanto descentrar o pensamento das faculdades que lhe estão desde sempre associadas: razão, imaginação, entendimento, sensibilidade. No lugar das faculdades, Deleuze propõe o conceito de cérebro, de micro-cérebro, como existência de um pensamento presente em todas as formas da Natureza, mesmo ao nível das plantas e dos rochedos. O pensamento deixa portanto de ser exclusivo do homem. O pensamento encontra-se nas existências mais elementares, nas mais embrionárias, enquanto pura faculdade de sentir. Este vitalismo essencial a toda e qualquer forma de existência, este pensamento tanto do homem como das plantas e dos rochedos, Deleuze condensa-o numa expressão: a vida inorgânica das coisas. «Nem todo o organismo é cerebrado, e nem toda a vida é orgânica, mas há por todo o lado forças que constituem micro-cérebros, ou uma vida inorgânica das coisas»[9]. No momento de pensar o cérebro, Deleuze faz a sua afirmação mais radical do seu programa anti-humanista: «É o cérebro que pensa e não o homem, o homem é só uma cristalização cerebral (…). A filosofia, a arte, a ciência não são objectos mentais de um cérebro objectivado, mas os três aspectos segundo os quais o cérebro se torna sujeito, Pensamento-cérebro»[10]. Nesta perspectiva, a arte é experimentação cerebral, isto é criação artística de uma vida inorgânica imanente ao homem, ao animal, às plantas e aos minerais. Por outras palavras, a arte é, para Deleuze, um exercício inorgânico do micro-cérebro como uma nova forma de pensamento.

***

Na imanência do cérebro em todas as formas de existência, desde os organismos vivos até ao inorgânicos, podemos pois perceber que a arte como dispositivo de delimitação de território – cores dos peixes, posturas e cantos dos pássaros, tropismos botânicos – e como processo de devir-mundo, não é senão a expressão de um Pensamento-cérebro. Trata-se pois de uma nova experiência do pensamento, já não como racionalidade exclusiva do Homem, mas como conexão rizomática com o mundo.

Deleuze transformou por completo a nossa compreensão do Homem, forçando-nos a entrar na escola da Etologia, da Geodesia, da Topologia, da Neurologia, qualquer coisa como uma Biologia do inorgânico. Como ele escreve: «não há mais distinção homem-natureza: a essência humana da natureza e a essência natural do homem identificam-se na natureza (…). Não o homem enquanto rei da criação, mas antes aquele que é tocado pela vida profunda de todas as formas ou de todos os géneros, que está carregada de estrelas e mesmo de animais (...). Homem e natureza não são como dois termos (...), mas uma única e mesma realidade»[11]. Mais de dois mil anos depois de Aristóteles, a fronteira entre o homem e o animal é assim dissolvida. Homo Natura em vez de Homo Sapiens.
[1] Mille Plateaux, Paris : Minuit, 1980, p. 389 (nossa tradução).
[2] MP, p. 390.
[3] Qu’est-ce que la Philosophie, Paris : Minuit, 1991, p. 174 (nossa tradução).
[4] QPh, p. 175.
[5] QPh, pp. 159-160.
[6] QPh, p. 166.
[7] QPh, p. 164.
[8] QPh, pp. 164-5.
[9] QPh, p. 200.
[10] QPh, pp. 197-8.
[11] L’Anti-Oedipe, Paris : Minuit, 1972, p. 10 (nossa tradução).

Heidegger - Quando a tecnologia e o dinheiro tiverem conquistado o mundo

“Quando a tecnologia e o dinheiro tiverem conquistado o mundo; quando qualquer acontecimento em qualquer lugar e a qualquer tempo se tiver tornado acessível com rapidez; quando se puder assistir em tempo real a um atentado no ocidente e a um concerto sinfônico no oriente; quando tempo significar apenas rapidez online; quando o tempo, como história, houver desaparecido da existência de todos os povos, quando um esportista ou artista de mercado valer como grande homem de um povo; quando as cifras em milhões significarem triunfo, – então, justamente então — reviverão como fantasmas as perguntas: Para quê? Para onde? E agora? A decadência dos povos já terá ido tão longe, que quase não terão mais força de espírito para ver e avaliar a decadência simplesmente como… Decadência.
Essa constatação nada tem a ver com pessimismo cultural, nem tampouco, com otimismo…
O obscurecimento do mundo, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odiosa contra tudo que é criador e livre, já atingiu tais dimensões, que categorias tão pueris, como pessimismo e otimismo, já haverão de ter se tornado ridículas.”


~ Martin Heidegger (1889-1976), em Introdução à Metafísica

Fonte: http://tvcultura.cmais.com.br/provocacoes/programa-510-



Num texto forte e visionário publicado em seu livro “Introdução à Metafísica“, em 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) revelou uma (pre)visão particular sobre os anos e décadas que provavelmente iriam se seguir, para o momento, como ele diz, “quando a tecnologia e o dinheiro tiverem conquistado o mundo; quando qualquer acontecimento em qualquer lugar e a qualquer tempo se tiver tornado acessível com rapidez; quando se puder assistir em tempo real a um atentado no ocidente e a um concerto sinfônico no oriente” (e seguem-se outras circunstâncias). Aparentemente este momento chegou, estamos nele. E o texto segue abaixo, como foi declamado pelo ator, diretor de teatro e apresentador Antônio Abujamra em seu programa Provocações, na TV Cultura. Abaixo dele, o vídeo do programa, e depois uma nova tradução do alemão para o inglês, publicada em 2000 pela Yale University Press (que vale a pena ler para notar algumas diferenças).

O mesmo trecho segue numa nova tradução para inglês, por Gregory Fried e Richard Polt, publicado pela Yale University Press, em 2000. Note algumas mudanças pequenas mas significativas: 1) o sentido da primeira frase é “quando o canto mais longínquo do mundo tiver sido conquistado tecnologicamente e puder ser explorado economicamente“; 2) a expressão original traduzida como “decadência dos povos” acima é originalmente “decadência espiritual“; 3) Heidegger usou sua expressão “Dasein” numa frase que denota a ausência de reflexão e percepção sobre o “tempo como história”, enquanto na tradução acima se diz apenas que “o tempo, como história, houver desaparecido da existência de todos os povos”; e 4) a tradução em inglês fala em “experimentar” eventos distantes no planeta e não somente “assistir”, como está na tradução em português acima. Há uma outra tradução para o português que se aproxima mais desses sentidos, e pode ser encontrada no blog Legio Victrix, e segue abaixo, logo depois da nova tradução para o inglês.
Os novos tradutores informam que “Introdução à Metafísica” foi escrito por Heidegger originalmente em 1935, portanto quase 20 anos antes, a partir de uma palestra, e então foi separado e publicado como livro em 1953, com anotações e atualizações. Para mais informações, procure a nova edição referida, ainda sem tradução para o português.
NOVA TRADUÇÃO PARA O INGLÊS (2000):
“When the farthest corner of the globe has been conquered technologically and can be exploited economically; when any incident you like, in any place you like, at any time you like, becomes accessible as fast as you like; when you can simultaneously “experience” an assassination attempt against a king in France and a symphony concert in Tokyo; when time is nothing but speed, instantaneity, and simultaneity, and time as history has vanished from all Dasein of all peoples; when a boxer counts as the great man of a people; when the tallies of millions at mass meetings are a triumph; then, yes then, there still looms like a specter over all this uproar the question: what for?—where to?—and what then? The spiritual decline of the earth has progressed so far that peoples are in danger of losing their last spiritual strength, the strength that makes it possible even to see the decline [which is meant in relation to the fate of "Being"] and to appraise it as such. This simple observation has nothing to do with cultural pessimism—nor with any optimism either, of course; for the darkening of the world, the flight of the gods, the destruction of the earth, the reduction of human beings to a mass, the hatred and mistrust of everything creative and free has already reached such proportions throughout the whole earth that such childish categories as pessimism and optimism have long become laughable.”
Martin Heidegger, em “Introduction to Metaphysics”
A tradução em português que mais se aproxima desta em inglês, como foi publicada no blog Legio Victrix.
“Quando o recanto mais remoto do globo tiver sido conquistado pela técnica e explorado pela economia, quando um qualquer acontecimento se tiver tornado acessível em qualquer lugar a qualquer hora e com uma rapidez qualquer, quando se puder “viver” simultaneamente um atentado a um rei na França e um concerto sinfônico em Tóquio, quando o tempo for apenas rapidez, momentaneidade e simultaneidade e o tempo enquanto História tiver de todo desaparecido da existência de todos os povos, quando o pugilista for considerado o grande homem de um povo, quando os milhões de manifestantes constituírem um triunfo – então, mesmo então continuará a pairar e estender-se, como um fantasma sobre toda esta maldição, a questão: para quê? – para onde? – e depois, o que? O declínio espiritual da terra está tão avançado que os povos ameaçam perder a sua última força espiritual que [no que concerne o destino do “Ser”] permite sequer ver e avaliar o declínio como tal. Esta simples constatação nada tem a ver com um pessimismo cultural, nem tão-pouco, como é óbvio, com um otimismo; pois o obscurecimento do mundo, a fuga dos deuses, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odienta contra tudo que é criador e livre, atingiu, em toda a terra, proporções tais que categorias tão infantis como pessimismo e otimismo já há muito se tornaram ridículas”.
Martin Heidegger, em “Introdução à Metafísica”
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Se não fosse o Brasil, jamais Barack Obama teria nascido

Se não fosse o Brasil, jamais Barack Obama teria nascido

Na noite do dia 25 de setembro de 1956, estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro a peça Orfeu da Conceição, do poeta brasileiro Vinícius de Morais (1913-1980). Esta peça é uma adaptação do mito grego do lendário cantor Orfeu, cuja lira, dotada de sons melodiosos, amansava as feras que vinham deitar-se-lhe aos pés. Filho da musa Calíope, ele resgatou a sua esposa Eurídice do Inferno, após ela ter sido picada por serpente. A história de Vinícius decorre numa favela carioca, durante os três dias de carnaval.
Em 1959, o diretor francês MarceI Camus transpôs a peça para o cinema. Daí surgiu o filme Orfeu Negro, com músicas de Luiz Bonfá e Tom Jobim, a negra atriz americana Marpessa Dawn, os negros brasileiros Breno Mello, Lourdes de Oliveira e Adhemar da Silva. Cheio de belas imagens, como a do romper do sol na favela, a do aparecimento da Morte numa central elétrica, e ainda com o som dos sambas empolgantes, a película baseada na obra do letrista de "Garota de Ipanema", além de alcançar grande sucesso comercial, ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cinema de Cannes e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em Hollywood.
Pois bem, nesse ano de 1959, uma jovem americana de dezesseis anos, extremamente branca, sem um pingo de sangue negro, chamada Stanley Ann Dunham, nascida no Kansas, resolveu assistir em Chicago ao primeiro filme estrangeiro de sua existência. Foi ver o Orfeu Negro, só com atores negros, paisagens brasileiras, música brasileira, história brasileira. Ela saiu do cinema em estado de êxtase, maravilhada. Adorou aqueles negros encantadores de um país tropical e logo admitiu:
"Nunca vi coisa mais linda, em toda a minha vida."
Depois de tal arrebatamento, a jovem Stanley embarcou para o Havaí. E ali, aos dezoito anos, ela se tornou colega, numa aula de russo, de um jovem negro de vinte e três anos, Barack Hussein Obama, nascido no Quênia. A moça branca do Kansas, influenciada pelo filme Orfeu Negro, entregou-se a ele e dessa união inter-racial, nasceu em 4 de agosto de 1961 um menino, a quem ela deu o mesmo nome do pai e que é agora, aos quarenta e seis anos, o primeiro candidato negro à presidência dos Estados Unidos.
Eis um detalhe perturbador: comparando duas fotografias, descobri enorme semelhança física entre o brasileiro Breno Mello, o Orfeu do filme Orfeu Negro, e o queniano Barack Hussein Obama, pai do filho da americana Stanley Ann Dunham.
No começo da década de 1980, ao visitar o seu filho em Nova York, a senhora Stanley o convidou para ver o filme Orfeu Negro. Segundo o depoimento do próprio Barack, no meio do filme ele se sentiu entediado, quis ir embora. Disposto a fazer isto, desistiu do seu propósito, no momento em que olhou o rosto da mãe, iluminado pela tela. A fisionomia da senhora Stanley mostrava deslumbramento. Então o filho pôde entender, como se deduz da sua autobiografia, porque ela, tão branca, tão anglo-saxônica, uniu-se ao seu pai, tão negro, tão africano...
Não há dúvida, a sexualidade às vezes percorre caminhos misteriosos, que alteram de modo decisivo os rumos da história universal.
Se não fosse o fascínio da branca mãe de Barack Obama pelo filme Orfeu Negro, ela não se entregaria ao rapaz queniano, um preto retinto.
A rigor, sem o Brasil, sem a história do poeta brasileiro Vinícius de Morais, o filme Orfeu Negro não existiria. Portanto, se não fosse o Brasil, jamais Barack Obama teria nascido.
Apresenta uma lógica perfeita, a nossa conclusão. E avanço mais: se ele for eleito, o meu país, a pátria de Lula, será a causa da mudança da historia dos Estados Unidos. Aliás, o Brasil já mudou essa história...

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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor do livro “Vida, obra e época de Paulo Setúbal, um homem de alma ardente”, cuja 2ª edição foi lançada pela Geração Editorial.

http://fernandojorge88.blogspot.com.br/2008/07/se-no-fosse-o-brasil-jamais-barack.html

Sair do próprio eu é um dos sonhos mais inteligentes que um homem pode ter.

Você sabe tão bem quanto eu que uma das principais causas do tédio é a estreiteza de nosso destino.
Todas as manhãs despertamos iguais ao que éramos na véspera.
Ser eternamente o mesmo é insuportável para os espíritos refinados pela reflexão.
Sair do próprio eu é um dos sonhos mais inteligentes que um homem pode ter.

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Julien Green (1900 - 1998)

Fonte: http://tvcultura.cmais.com.br/provocacoes/poemas-e-textos/pgm-459-voce-sabe-tao-bem-quanto-eu-16-04-2010

Que felicidade é essa que pareces ter—a tua ou a minha?

Pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas —
Que felicidade é essa que pareces ter—a tua ou a minha?
A paz que sinto quando te vejo, pertence-me, ou pertence-te?
Não, nem a ti nem a mim, pastor.
Pertence só à felicidade e à paz.
Nem tu a tens, porque não sabes que a tens.
Nem eu a tenho, porque sei que a tenho.
Ela é ela só, e cai sobre nós como o sol,
Que te bate nas costas e te aquece, e tu pensas noutra coisa indiferentemente,
E me bate na cara e me ofusca, e eu só penso no sol.
12-4-1919
“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
  - 81.
1ª publ. in “Poemas Inconjuntos”. In Athena, nº 5. Lisboa: Fev. 1925.

http://multipessoa.net/labirinto/alberto-caeiro/24

Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!

Ontem o pregador de verdades dele
Falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer,
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.
Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!
Que estúpido se não sabe que a infelicidade dos outros é deles.
E não se cura de fora,
Porque sofrer não é ter falta de tinta
Ou o caixote não ter aros de ferro!
Haver injustiça é como haver morte.
Eu nunca daria um passo para alterar
Aquilo a que chamam a injustiça do mundo.
Mil passos que desse para isso
Eram só mil passos.
Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda,
E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.
Cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar iguais.
Para qual fui injusto — eu, que as vou comer a ambas?

“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
  - 79.
1ª publ. in “Poemas Inconjuntos”. In Athena, nº 5. Lisboa: Fev. 1925.

http://multipessoa.net/labirinto/alberto-caeiro/22

sábado, 30 de agosto de 2014

É preciso ser de vez em quando infeliz para se poder ser natural...

Eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...
7-3-1914
“O Guardador de Rebanhos”. Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luís de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946.
  - 45.

http://multipessoa.net/labirinto/alberto-caeiro/20

Mas quem me mandou a mim querer perceber?

Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem o quê...

Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?

http://multipessoa.net/labirinto/alberto-caeiro/5

O essencial é saber ver.

XXIV

O que nós vemos das coisas são as coisas.
Porque veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.
13-3-1914
“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
  - 50.
“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.

Fonte: http://multipessoa.net/labirinto/alberto-caeiro/3

Tenho medo daquela que nunca mentiu...

Tenho medo daquela que nunca mentiu.
Ela pode ser indiferente, sendo fiel.
O amor é quase sempre atraiçoado demais pela virtude.
E a mulher que mente é sempre mais bela.
Sobre o autor:
Maurice Magre (1877 - 1941) foi um escritor, poeta e ensaísta francês. Era ocultista e seus principais temas envolviam o amor, o esoterismo, a magia, a morte e a vida após a morte.

Quando pronuncio a palavra Nada, crio algo que não cabe no que ainda não existe.



"Quando pronuncio a palavra Futuro,

a primeira sílaba já pertence ao passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,

destruo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,

crio algo que não cabe no que ainda não existe."

Sobre o autor: Wislawa Szymborska é uma escritora polonesa que nasceu em 1923. Wislawa reside na cidade de Cracóvia desde 1931, onde estudou literatura polonesa e sociologia. Sua atividade literária inicia-se durante a Segunda Guerra Mundial, nos anos de resistência à ocupação nazista. 

Mulata Exportação de Elisa Lucinda


Mulata Exportação 


de Elisa Lucinda

“Mas que nega linda
E de olho verde ainda
Olho de veneno e açúcar!
Vem nega, vem ser minha desculpa
Vem que aqui dentro ainda te cabe
Vem ser meu álibi, minha bela conduta
Vem, nega exportação, vem meu pão de açúcar!
(Monto casa procê mas ninguém pode saber, entendeu meu dendê?)
Minha tonteira minha história contundida
Minha memória confundida, meu futebol, entendeu meu gelol?
Rebola bem meu bem-querer, sou seu improviso, seu karaoquê;
Vem nega, sem eu ter que fazer nada. Vem sem ter que me mexer
Em mim tu esqueces tarefas, favelas, senzalas, nada mais vai doer.
Sinto cheiro docê, meu maculelê, vem nega, me ama, me colore
Vem ser meu folclore, vem ser minha tese sobre nego malê.
Vem, nega, vem me arrasar, depois te levo pra gente sambar.”
Imaginem: Ouvi tudo isso sem calma e sem dor.

Já preso esse ex-feitor, eu disse: “Seu delegado...”

E o delegado piscou.
Falei com o juiz, o juiz se insinuou e decretou pequena pena
com cela especial por ser esse branco intelectual...
Eu disse: “Seu Juiz, não adianta! Opressão, Barbaridade, Genocídio
nada disso se cura trepando com uma escura!”
Ó minha máxima lei, deixai de asneira
Não vai ser um branco mal resolvido
que vai libertar uma negra:
Esse branco ardido está fadado
porque não é com lábia de pseudo-oprimido
que vai aliviar seu passado.
Olha aqui meu senhor:
Eu me lembro da senzala
e tu te lembras da Casa-Grande
e vamos juntos escrever sinceramente outra história
Digo, repito e não minto:
Vamos passar essa verdade a limpo
porque não é dançando samba
que eu te redimo ou te acredito:
Vê se te afasta, não invista, não insista!
Meu nojo!
Meu engodo cultural!
Minha lavagem de lata!
Porque deixar de ser racista, meu amor,
não é comer uma mulata!

domingo, 17 de agosto de 2014

Casa Grande e Senzala - Gilberto Freyre

Logo Casa Grande
" Todo brasileiro traz na alma e no corpo a sombra do indígena ou do negro."

Mestre Gilberto Freyre... Escritor pernambucano, morador de Apipucos, no Recife. Era descendente de senhores de engenho. Conhecia bem os casarões...


Em 1933, após exaustiva pesquisa em arquivos nacionais e estrangeiros, Gilberto Freyre publica Casa-Grande & Senzala, um livro que revoluciona os estudos no Brasil, tanto pela novidade dos conceitos quanto pela qualidade literária.
Gilberto Freyre foi buscar nos diários dos senhores de engenho e na vida pessoal de seus próprios antepassados a história do homem brasileiro. As plantações de cana em Pernambuco eram o cenário das relações íntimas e do cruzamento das três raças: índios, africanos e portugueses.
Em Casa-Grande & Senzala, o escritor exprime claramente o seu pensamento. Ele diz: "o que houve no Brasil foi a degradação das raças atrasadas pelo domínio da adiantada" . Os índios foram submetidos ao cativeiro e à prostituição. A relação entre brancos e mulheres de cor foi a de vencedores e vencidos.
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"Casa-Grande & Senzala foi a resposta à seguinte indagação que eu fazia a mim próprio: o que é ser brasileiro? E a minha principal fonte de informação fui eu próprio, o que eu era como brasileiro, como eu respondia a certos estímulos."

Havia tempos Gilberto Freyre procurava escrever sobre o ser brasileiro. Pressões políticas e familiares o levaram, entre 1930 e 1932, a viver o que chamou de "a aventura do exílio". Partiu para a Bahia e pesquisou as coleções do Museu Afro-Brasileiro Nina Rodrigues e a arte das negras quituteiras na decoração de bolos e tabuleiros. Observou que a culinária baiana era neta da velha cozinha das casas-grandes.
Depois da Bahia partiu para a África e Portugal. Iniciou em Lisboa as pesquisas e estudos que sedimentariam o livro Casa-Grande & Senzala. De Portugal foi, como professor visitante, para a Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, onde viajou pelo Sul e pôde constatar a existência, durante a colonização americana, do mesmo tipo de regime patriarcal encontrado no nordeste brasileiro.
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"Eu venho procurando redescobrir o Brasil. Eu sou rival de Pedro Álvares Cabral. Pedro Álvares Cabral, a caminho das Índias, desviou-se dessa rota, parece já baseado em estudos portugueses, e identificou uma terra que ficou sendo conhecida como Brasil. Mas essa terra não foi imediatamente auto-conhecida. Vinham sendo acumulados estudos sobre ela... mas faltava um estudo convergente, que além de ser histórico, geográfico, geológico, fosse... um estudo social, psicológico, uma interpretação. Creio que a primeira grande tentativa nesse sentido representou um serviço de minha parte ao Brasil."

Durante o período de estudos na universidade americana, o escritor elaborou uma linha de pensamento que diferenciava raça e cultura, separava herança cultural de herança étnica; trabalhou o conceito antropológico de cultura como o conjunto dos costumes, hábitos e crenças do povo brasileiro.
"Gilberto Freyre diz que Franz Boas foi a figura de mestre que nele ficou maior impressão, porque foi com Franz Boas que ele aprendeu a distinguir raça de cultura, e nessa distinção ele se baseou para escrever Casa-Grande & Senzala. Agora, o conceito de antropologia de Freyre era muito mais amplo, ele partiu para uma interpretação global do povo brasileiro. É uma história ao mesmo tempo econômica, religiosa, folclórica, sociológica."
Édson Nery da Fonseca, historiador (Olinda, PE)
"Quando, em 1532, se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira, já foi depois de um século inteiro de contato dos portugueses com os trópicos; de demonstrada na Índia e na África sua aptidão para a vida tropical. Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio, e mais tarde de negro, na composição."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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Porto PortuguesPortugal, um país largamente marítimo, recebia sempre povos de todos os lugares do mundo. Seus portos eram rota de comércio e de migrações. O contato com estrangeiros estimulava, no povo português, tendências cosmopolitas, imperialistas e comerciais. Na Península Ibérica as raças se misturavam havia milênios. O encontro das culturas árabes e romana impregnava a moral, a arte, a economia e a vida do português. Os árabes - excelentes técnicos navais - e os judeus - financistas e com altos cargos de administração, no conselho real -, emprestavam conhecimento e dinheiro para o empreendimento das navegações e dos descobrimentos. A burguesia comercial ganhava mais poder que a aristocracia territorial portuguesa e buscava no além-mar terras e riquezas nunca exploradas. 

Além da mobilidade, o português tinha a capacidade de se misturar facilmente com outras raças. Os homens vinham sem família, sozinhos. Chegavam carentes de contato humano e começavam a se reproduzir primeiro com as índias e depois com as negras escravas. Era preciso povoar o território. No momento em que embarcou na aventura ultramarina, Portugal tinha três milhões de habitantes. O Brasil era imenso; então, como povoar esse território?
"Durante quase todo o século XVI a colônia esteve escancarada a estrangeiros, só importando às autoridades que fossem de fé católica. Temia-se no adventício acatólico o inimigo político capaz de quebrar aquela solidariedade que em Portugal se desenvolvera junto com a religião católica. Essa solidariedade manteve-se entre nós esplendidamente através de toda a nossa formação colonial."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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Vista de OlindaFoi aqui que chegou...dia 02 de março de 1535...um português chamado Duarte Coelho Pereira, viu essa bela vista e deu uma exclamação:Oh! linda situação para se construir uma vila. Por isso que a cidade se chama Olinda. Antigamente chamava Marino Caetês, habitada pelos índios. Em Pernambuco e no Recôncavo baiano, a colonização se desenvolvia à sombra das grandes plantações de cana-de-açúcar e das casas-grandes de taipa ou de pedra e cal, longe das cabanas de aventureiros e do extrativismo predatório.
casa grande do engenho"A casa-grande do engenho que o colonizador começou, ainda no século XVI, a levantar no Brasil - grossas paredes de taipa ou de pedra e cal, telhados caídos num máximo de proteção contra o sol forte e as chuvas tropicais - não foi nenhuma reprodução das casas portuguesas, mas expressão nova do imperialismo português. A casa-grande é brasileirinha da silva."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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Num processo de equilíbrio de antagonismos, o branco e o negro se misturavam no interior da casa-grande e alteravam as relações sociais e culturais, criando um novo modo de vida no século XVI. As relações de poder, a vida doméstica e sexual, os negócios e a religiosidade forjavam, no dia-a-dia, a base da sociedade brasileira.
A casa-grande abrigava uma rotina comandada pelo senhor de engenho, cuja estabilidade patriarcal estava apoiada no açúcar e no escravo. O suor do negro ajudava a dar aos alicerces da casa-grande sua consistência quase de fortaleza. Ela servia de cofre e de cemitério. Sob seu teto viviam os filhos, o capelão e as mulheres, que fundamentariam a colonização portuguesa no Brasil. Embora diretamente associada ao engenho de cana e ao patriarcalismo nortista, a casa-grande não era exclusiva dos senhores de engenho. Podia ser encontrada na paisagem do sul do país, nas plantações de café, como uma característica da cultura escravocrata e latifundiária do Brasil.
O clima tropical e as formas agressivas de vida vegetal e animal impossibilitavam a implantação de uma cultura agrícola, nos moldes do costume europeu. O português teve então de mudar seus hábitos alimentares. A mandioca substituía o trigo; no lugar das verduras, o milho; e as frutas davam um colorido novo à mesa do colonizador. Mas sua dieta ficava empobrecida, devido à ausência de leite, ovos e carne, que só apareciam em datas especiais, festas e comemorações. A terra foi usada para o cultivo da cana em detrimento da pecuária e da cultura de alimentos, o que provocou a apatia, a falta de robustez e a incapacidade para o trabalho. Males geralmente atribuídos à mestiçagem. Os portugueses não traziam para o Brasil nem separatismos político, nem divergências religiosas, e não se preocupavam com a pureza da raça. Assim o país se formava. E a unidade dessa grande extensão territorial com profundas diferenças regionais, garantida muitas vezes com o uso da força, aconteceu devido à uniformidade da língua e da religião.
ritual indigenaA Igreja desenvolvia planos ambiciosos de evangelização da América Latina, toda ocupada por países de tradição católica. Nessa quase cruzada no Novo Mundo, os padres jesuítas desempenhavam um papel importante na tentativa de implantar uma sociedade estruturada com base na fé católica. Para catequizar os índios, os jesuítas decidiram vesti-los e tirá-los de seu hábitat. Já o senhor de engenho tentava escravizá-los. Nos dois casos, o resultado era o extermínio e a fuga dos primitivos habitantes da terra para o interior.

"Os portugueses, além de menos ardentes na ortodoxia que os espanhóis e menos estritos que os ingleses nos preconceitos de cor e de moral cristã, vieram defrontar-se na América com uma das populações mais rasteiras do continente... Uma cultura verde e incipiente, sem o desenvolvimento nem a resistência das grandes semicivilizações americanas, como os Incas e os Astecas."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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"O ambiente em que começou a vida brasileira foi de grande intoxicação sexual. O europeu saltava em terra escorregando em índia nua. Os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, se não atolavam o pé em carne."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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A sociedade brasileira, entre todas da América, era a que se formava com maior troca de valores culturais. Havia um aproveitamento de experiências dos indígenas pelos colonizadores. Mesmo quando inimigo, o índio não provocava no branco uma reação que levasse a uma política deliberada de extermínio, como a que ocorria no México e Peru. A reação dos índios ao domínio do colonizador era quase contemplativa. O português usava o homem para o trabalho e a guerra, principalmente na conquista de novos territórios, e a mulher para a geração e formação da família. Esse contato provocava o desequilíbrio das relações do índio com o seu meio ambiente. 
indio pataxó"Eu sou índio da tribo pataxó. Eu aprendi com meus pais a fazer artesanato. A gente faz cocares..., a gente vive só disso, de artesanato, a não ser no inverno, quando a gente tem que pescar mucussu. Mucussu é peixe. A gente planta mandioca para fazer cuiúna, feijão e arroz. A gente fala em pataxó: jocana baixu significa mulher bonita e jocana baixa é mulher feia."
Paturi, índio pataxó (Coroa Vermelha, BA) 

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"A grande presença índia no Brasil não foi a do macho, foi a da fêmea. Esta foi uma presença decisiva, a mulher índia tomou-se de amores pelo português, talvez até por motivos fisiológicos, porque, segundo pude apurar quando escrevi Casa Grande & Senzala, as sociedades ameríndias ou índias, inclusive a brasileira, eram sociedades que precisavam de festivais como que orgiásticos para provocar nos homens, nos machos, desejos sexuais. O que há de acentuar é o grande papel da índia fêmea na formação brasileira, essa índia fêmea não só através do relacionamento mencionado sexual, mas através do papel social que ela começou a desempenhar magnificamente, tornou-se uma figura capital na formação brasileira."

"Da cunhã é que nos veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoal. A higiene do corpo. O milho. O caju. O mingau. O brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de pente no bolso, o cabelo brilhante de loção ou de óleo de coco, reflete a influência de tão remotas avós. Ela nos deu, ainda, a rede em que se embalaria o sono ou a volúpia do brasileiro."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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A união do português com a índia havia gerado os mamelucos que atuavam como bandeirantes e, junto com os índios, formavam a muralha movediça da fronteira colonial. O mameluco e o índio, que excediam o português em mobilidade, atrevimento e ardor guerreiro; que defendiam o patrimônio do senhor de engenho contra o ataque de piratas estrangeiros, nunca firmaram as mãos na enxada. Os pés de nômades não se fixavam na plantação da cana-de-açúcar.
"Essa arte é descendência dos índios, né! Aí nós somos seguidores já dos índios. A gente ficou fazendo as panelas de barro, que eu aprendi com meu pai. Meu pai já trabalhava, aí eu fiquei trabalhando. Agora meus filhos também trabalham na mesma arte."
Zé Galego, artesão (Caruaru, PE).
Dos costumes dos primitivos habitantes da terra eram as relações sexuais e de família, a magia e a mítica que marcavam a vida do colonizador. A poligamia e a sexualidade da índia iam ao encontro da voracidade do português, ainda que a vida sexual dos indígenas não se processasse tão à solta quanto o relatado pelos viajantes que aqui estiveram. Para as tribos mais primitivas, a união do macho com a fêmea tinha época; o costume de oferecer mulheres aos hóspedes era prática de hospitalidade, quase um ritual. A mulher nativa resgatava o sonho da ninfa, que se banhava no rio e penteava os longos cabelos negros. Uma imagem deixada pela invasão moura na Península Ibérica e adormecida no inconsciente do português.
"Figura vaga, falta-lhe o contorno ou a cor que a individualize entre os imperialistas modernos. Assemelha-se nuns à do inglês; noutros, à do espanhol. Um espanhol sem a flama guerreira nem a ortodoxia dramática do conquistador do México e do Peru; um inglês sem as duras linhas puritanas. O tipo do contemporizador. Nem idéias absolutas, nem preconceitos inflexíveis. ...Um rio que vai correndo muito calmo e de repente se precipita em quedas de água..."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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Engenho PernambucanoOs portugueses davam uma contribuição criativa ao novo mundo através da produção de açúcar. E implantavam um sistema econômico que aprenderam com os mouros durante a ocupação da Península Ibérica. Os mouros, de grande tradição agrícola, introduziram a laranjeira, o limoeiro e a tangerina e implantaram a tecnologia do fabrico do açúcar em Portugal. O engenho mouro é avô do engenho pernambucano.
Essa contribuição criativa é que diferenciava o português do holandês e do francês, que para cá traziam apenas aperfeiçoamentos tecnocráticos. O choque das duas culturas, a européia e a ameríndia, no Brasil colônia, se dava mais lentamente, não por meio da guerra, mas nas relações entre homem e mulher, mestre e discípulo. A Igreja ganhava no Brasil capelas simples dentro do complexo arquitetônico da casa-grande. Lá morava o capelão, que dela tirava seu sustento. E essa mesma Igreja, através dos jesuítas, partia maciça e indiscriminadamente para a catequização dos índios.
O animalismo e a magia impregnavam a vida dos índios: desde o berço, quando a mãe entoava cantigas de ninar e, já meninos, nas brincadeiras de imitar animais. Entre os jogos infantis dos curumins, o jogo de cabeçada com a bola de borracha ficava como contribuição da cultura indígena. Apesar de crescerem livres de castigos corporais e de disciplina paterna, os meninos estavam sempre em contato com rituais da vida primitiva. Na puberdade eram levados para o baíto, a casa secreta dos homens, onde passavam por provas de iniciação à fase adulta. Para os padres da Companhia de Jesus, os índios acreditavam em tudo e aprendiam e desaprendiam os ensinamentos rapidamente. Havia uma enorme quantidade de aldeias espalhadas pela floresta, que falavam diferentes línguas. Era preciso unificar as tribos para poder pregar a doutrina católica. O menino indígena servia de intérprete aos jesuítas, que aprendiam com ele as primeiras palavras em tupi. Os padres puderam então escrever uma gramática, unificando a língua dos Brasis. Estava criando o tupi-guarani.
Tanto a Igreja quanto o senhor de engenho fracassavam nos esforços de enquadrar o índio no sistema de colonização que iria criar a economia brasileira. Fora de seu hábitat natural, o índio não se adaptava como escravo: morria de infecções, fome e tristeza. Para suprir a deficiência da mão-de-obra escrava, os senhores de engenho de Pernambuco e do Recôncavo baiano começavam a importar negros caçados na África. Agora, as escravas negras substituíam as cunhãs tanto na cozinha como na cama do senhor. Na agricultura, a presença do negro elevava a produção de açúcar e o preço do produto no mercado internacional. O Brasil, esquecido por quase duzentos anos, despertava finalmente o interesse do Reino de Portugal.
negro muçulmanoEntre os africanos que vinham para o Brasil, eram os negros muçulmanos, de cultura superior não só à dos índios como também à da maioria de colonos brancos, que aqui chegavam e viviam quase sem nenhuma instrução, que para escrever uma carta necessitava da ajuda do padre-mestre. O movimento malê da Bahia, em 1835, foi considerado um desabafo da cultura adiantada, que era oprimida por outra menos nobre. Contava-se que os revoltosos sabiam ler e escrever em alfabeto desconhecido. Eram negros que liam e escreviam em árabe.
"Pode-se juntar à superioridade técnica e de cultura dos negros sua predisposição como que biológica e psíquica para a vida nos trópicos. Sua maior fertilidade nas regiões quentes. Seu gosto pelo sol. Sua energia sempre fresca e nova quando em contato com a floresta tropical."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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O Brasil importava da África não somente o animal de tração que fecundou os canaviais, mas também técnicos para as minas, donas de casa para os colonos, criadores de gado e comerciantes de panos e colheita de cafésabão.Os negros vindos das áreas de cultura africana mais adiantada eram um elemento ativo, criador e pode-se dizer nobre na colonização do Brasil, degradados apenas pela condição de escravos. O negro escravo e a cana-de-açúcar fundamentavam a colonização aristocrática e a estrutura básica do mundo dos coronéis se repetiria nos ciclos do ouro e do café, em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, com o mesmo fundamento: a ocupação da terra.
 
Na sociedade escravocrata e latifundiária que se formava, os valores culturais e sociais se misturavam à revelia de brancos e negros. Sua convivência diária favorecia o intercâmbio de culturas e gerava sadismos e vícios, que influenciavam a formação do caráter do brasileiro. A escravatura degradava senhores e escravos.
"Na verdade, senhores, se a moralidade e a justiça de qualquer povo se fundam, parte nas sua instituições religiosas e políticas, e parte na filosofia, por assim dizer doméstica de cada família, que quadro pode apresentar o Brasil quando o consideramos debaixo desses dois pontos de vista?"
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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O senhor de engenho, um homem extremamente rico e poderoso, passava a maior parte do tempocanavialdeitado na rede, cochilando e copulando. Quando saía, a passeio ou em viagem, o negro era seus pés e mãos. O sinhô não precisava levantar-se da rede para dar ordens aos negros, bastava gritar. Os negros veteranos, os ladinos, iniciavam os recém-chegados na moral e nos costumes dos brancos. Ensinavam a língua e orientavam nos cultos religiosos sincretizados. Eram ainda os ladinos que ensinavam aos boçais a técnica e a rotina na plantação da cana e no fabrico do açúcar. 
A escravidão desenraizava o negro de seu meio social e desfazia seus laços familiares. Além dos trabalhos forçados, ele era usado como reprodutor de escravos: era preciso aumentar o rebanho humano do senhor de engenho. As crias nascidas eram logo batizadas e ainda assim consideradas gente sem alma. A Igreja, esteio dos poderosos, agia da mesma forma no tratamento dado ao negro. A mulher escrava fazia a ponte entre a senzala e o interior da casa-grande e representava o ventre gerador. As negras mais bonitas eram escolhidas pelo sinhô para serem concubinas e domésticas. Objeto dos desejos sádicos dos homens, do senhor de engenho ao menino adolescente, a negra sofria por parte da mulher branca os castigos mais variados. Se a beleza dos seus dentes incomodava a desdentada sinhá, esta mandava arrancá-los. A escrava adoçava a boca do senhor e recebia chicotadas à mando da senhora, mas cumpria as tarefas que normalmente estariam destinadas à mãe de família. As damas da sociedade se casavam entre os doze e os quinze anos com homens muito mais velhos. O conhecimento que tinham da vida de casada, os acontecimentos de fora do engenho e outras histórias - nem sempre românticas - elas ouviam da boca das mucamas. As sinhazinhas sentadas à mourisca, tecendo renda ou deitadas na rede e as escravas a lhes catar piolho ou fazendo cafuné. Cedo se casavam e cedo morriam por causa de sucessivos partos ou se tornavam matronas aos dezoito anos. O ócio e a vida reclusa faziam das sinhás mulheres amarguradas. E ignorantes: era raro encontrar uma que soubesse ler e escrever. A presença da negra na vida do menino vinha desde o berço, quando ela o amamentava e acalentava o seu sono. A ama de leite ensinava as primeiras palavras num português errado, o primeiro "pai nosso", o primeiro "oxente", e amaciava com a própria boca a comida do menino de engenho. Os sofrimentos da primeira infância - castigos por mijar na cama e purgante uma vez por mês os meninos descontariam tornando-se pequenos diabos. O moleque, o pequeno escravo, companheiro do sinhozinho em brincadeiras e aventuras, servia também de saco de pancadas. Tornava-se objeto do prazer mórbido de tratar mal os inferiores e os animais, prazer de todo menino brasileiro filho do sistema escravocrata. Criança mimada e educada para ser o herdeiro todo-poderoso, o menino desde o início da adolescência era entregue aos cuidados eróticos da fulô
"Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas. O Brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado. A contaminação da sífilis em massa ocorreria nas senzalas, mas não que o negro já viesse contaminado. Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram as negras das senzalas. Por muito tempo dominou no Brasil a crença de que para um sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha virgem."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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Os senhores de engenho casavam-se sucessivas vezes, sempre preferindo as jovens sobrinhas; exagerava-se, então, o sentimento da propriedade privada. As heranças eram disputadas por filhos legítimos e parentes próximos. Aos filhos bastardos, gerados nas casa-grande e paridos na senzala, restava a tolerância do senhor, que ao morrer os libertava. Nomes e sobrenomes se confundiam: os escravos mais próximos, que ganhavam a simpatia do senhor, conseguiam adotar o sobrenome dos brancos. Na tentativa de ascensão social, os negros imitavam dos senhores as formas exteriores de superioridade. Mas muitos nomes ilustres de senhores brancos vinham dos apelidos indígenas e africanos das propriedades rurais - a terra recriava os nomes dos proprietários à sua imagem e semelhança.dança

A música, o canto e a dança dos escravos tornavam a casa-grande mais alegre. A risada do negro quebrava a melancolia e o silêncio infinito do senhor de engenho. As mães negras e as mucamas, aliadas aos meninos, às moças das casas-grandes e aos moleques, corrompiam o português arcaico ensinado pelos jesuítas aos filhos do senhor. A nova fala brasileira não se conservava fechada nas salas de aula das casas-grandes, nem se entregava de todo à maior espontaneidade de expressão da senzala. Mas o modo carinhoso do brasileiro colocar os pronomes: me diga, me espere... vem do africano. Também do seu modo de falar ficaram as formas diminutivas: benzinho, nézinho, inhozinho.

Era um novo jeito de falar, um novo jeito de andar, um novo jeito de comer... A culinária da senzala aproveitava as sobras de carnes da casa-grande, usava o aipim indígena e as verduras, misturava aos temperos africanos, principalmente o dendê e a pimenta malagueta. Surgiam a feijoada, a farofa, o quibebe, o vatapá. Alimentos que combinavam com a dureza do trabalho no cativeiro. As crenças e magias trazidas pelos portugueses eram transformadas em feitiçaria nas mãos dos africanos. Aos negros feiticeiros recorriam os senhores brancos idosos a procura de afrodisíacos; as jovens sinhás, que não conseguiam engravidar; e as belas mucamas, que aprendiam a receita do café mandingueiro, um filtro amoroso feito com café bem forte, muito açúcar e sangue de mulata.
santo antonioNa religião conviviam a cultura do senhor e a do negro. O catolicismo praticado aqui era uma religião doce, doméstica, de intimidade com os santos. Os padres se vangloriavam de conceder aos negros certas vantagens, como o direito de manifestar suas tradições nas festas do terreiro. Nasciam então as religiões afro-brasileiras: São Jorge é o orixá Ogum e Nossa Senhora é Iemanjá. 


"Esse terreiro tem 110 anos. A minha avó era descendente de escravos. Tinha uma aldeia que se chamava Catongo. Nessa aldeia ela também cultivava os orixás, quando chegavam assim os escravos chicoteados de outros lugares, fazendas, engenhos, essas coisas. Aí ela curava com aquelas difusões de ervas, né, aqueles remédios das folhas, e curava esses escravos, que ficavam gratos e acabavam ficando com ela. Quer dizer, ela era assim uma espécie de protetora desses escravos. E a minha mãe falava que era uma senzala, onde ela abrigava esses escravos." 

Ilza R.P. Santos, mãe-de-santo (Ilhéus, BA) (??)

"Não foi só de alegria a vida dos negros escravos dos ioiôs e das iaiás brancas. Houve os que se suicidaram comendo terra, enforcando-se, envenenando-se com ervas e potagens dos mandingueiros. O banzo deu cabo de muitos. O banzo - a saudade da África. Houve os que de tão banzeiros ficaram lesos, idiotas. Não morreram, mas ficaram penando."
Trecho de Casa-Grande & Senzala.
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Os negros, muitos agora, libertos pela alforria, pela revolta ou pelas fugas, unidos nos quilombos, lutavam pelo fim da escravidão. Aliavam-se aos ideais libertários os filhos de poderosos senhores de engenho que se tornavam abolicionistas por motivos econômicos, humanitários ou, simplesmente, pelo apego que tinham às suas mães de leite.

" Os brancos diziam que em nenhum país do mundo essa nefanda instituição foi tão doce como no Brasil. Agora não me passa pela cabeça - não deve passar pela cabeça de ninguém - que essa nefanda instituição, como os próprios brancos chamavam a escravidão, que ela pudesse ser doce em algum lugar. Ela só pode ser doce da perspectiva de quem estivesse na casa-grande e não na perspectiva de quem estivesse na senzala." 
Florestan Fernandes, cientista social.

Em 1984, numa de suas últimas entrevistas, o escritor Gilberto Freyre resumia o seu pensamento sobre a situação presente do negro, lembrando o abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco:

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"O problema é que a abolição da escravatura, embora tenha sido fato notável na história da formação brasileira, foi muito incompleta."

  Com a abolição, os problemas do negro estariam apenas começando. Mas quem se interessou por isso? Ninguém se interessou. O negro livre deixou as fazendas e os engenhos e foi inchar as periferias das cidades. Abandonado, constituiu-se num sub-brasileiro.

Maria Madalena
"Todo mundo... não quer se encontrar com os pretos,
não quer, só quer se ligar aos brancos. Mas isso naquela época a Princesa Isabel libertou! Cabou-se, né! esse negócio de não querer se encontrar com o negro.
Porque tristes dos brancos se não fosse o sangue do negro."

Maria Madalena Correia, cantora (Ilha de Itamaracá, PE).

Ficha Técnica:
Casa Grande & Senzala, baseado na obra de Gilberto Freyre
Realização: TV Cultura - 1995
Direção e Roteiro: Marya Inês Landgraf
Produção: Thaís Carrapatoso
Pesquisa Iconográfica: Nerci Ferrari
Imagens: Elizeu Ferreira
Áudio: Alcides Almeida
Auxiliar de Câmera: Sidney Andrade
Edição: Manoel Viúdes
Pós-Produção: Dario de Oliveira
Arte: Aida Cassiano, Paulo César Dias, Aimberê Santos e Wesllen da Silva Silvério
Cenografia: Luciene Grecco
Trilha Sonora: David Tygel
Narração: Irineu Toledo
Direção de Fotografia/Estúdio: Maurício Valim
Participação Especial: Antônio Nóbrega
Departamento de Documentários: Teresa Otondo

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Ensinar e Aprender

1. Com base no desenho da capa do livro "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, fazer uma maquete da casa grande e da senzala. Discutir suas características (cômodos, hierarquia etc.).
2. Pesquisar doenças trazidas pelos portugueses (sífilis, por exemplo) durante a colonização brasileira. Discutir e redigir uma conclusão em grupo.
3. Propor uma pesquisa sobre o vestuário, religião, culinária etc. dos povos que participaram no processo de formação cultural brasileira (portugueses, africanos e indígenas).
4. Após o estudo do livro "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, ouvir a música instrumental "Suíte Nordestina", que Lourenço Barbosa (Capiba) compôs tendo como tema esse livro. Fazer um desenho e expô-lo em classe.
5. Elaborar um painel (com recortes de jornais, revistas) que ilustrem a forma de vida das pessoas no Brasil, na época da colônia.
6. Analisar o texto relativo aos escravos negros: "As crias nascidas eram logo batizadas e ainda assim consideradas gente sem alma. A igreja, esteio dos poderosos, agia da mesma forma no tratamento dado ao negro". Em grupos discutir o texto e expor as conclusões para os colegas.
7. Propor um estudo sobre a educação jesuítica no Brasil, no período colonial. Discutir suas características e suas influências na educação brasileira.
Visitas para complementar estudos:
Museu de Arte SacraAv. Tiradentes, 676 - Luz São Paulo - SP - Brasil
Agendar visitas: 3ª/dom., das 13h às 18h. (visitas monitoradas)

Museu Paulista
Av. Nazaré s/n - Prq. da Independência - Ipiranga São Paulo - SP - Brasil
Agendar visitas: 3ª/dom., das 9h às 16h45min.

Museu do Folclore

Prq. Ibirapuera - Pavilhão Lucas Nogueira Garcez São Paulo - SP - Brasil
Agendar visitas: 3ª/6ª, das 14h às 17h dom/feriado, das 10h às17h. 

Museu do Sertanista 
(INDÍGENA) Pça. Dr. Enio Barbato - Caxingui São Paulo - SP - Brasil
Agendar visitas: 3ª/dom., das 10h30min às 17h.

Museu do Folclore Edison Carneiro
R. do Catete,181 - Catete Rio de Janeiro - RJ - Brasil CEP 22220-000
Agendar visitas: 3ª/6ª, das 11h às 18h sáb/dom e feriado, das 15h às 18h.

Casa do Pontal

Estrada do Pontal, 3295 - Recreio dos Bandeirantes Rio de Janeiro - RJ - Brasil CEP 22785-560
Agendar visitas: sáb/dom., das 14h às 18h.

Museu do Índio

R. das Palmeiras, 55 - Botafogo Rio de Janeiro - RJ - Brasil CEP 22270-070
Agendar visitas: 2ª/6ª, das 10h às 17h. 

Museu do Índio

Av. Dq. de Caxias Av. Sete de Setembro - Patronato Sta. Terezinha Manaus- AM - Brasil
Agendar visitas: 2ª/6ª, das 8h às 11h e das 14h às 16h30min. 

Mina de Ouro do Chico-Rei 

R. D.Silvério, 108 - Antônio Dias Ouro Preto - MG - Brasil
Agendar visitas: 2ª/dom., das 8h às 17h. 

Museu Dom Bosco

R. Mário Pinto Peixoto, 52 Campo Grande - MS - Brasil CEP 79000-217 
Agendar visitas: 2ª/dom., das 7h às 11h e das 13h às 17h. 

Museu de Arte e Cultura Populares

Av. Sen. Pompeu, 350 - Centro Fortaleza - CE - Brasil
Agendar visitas: 2ª/6ª, das 8h às 18h sáb., das 8h às 14h. 

Museu do Homem do Nordeste
Av. 17 de Agosto, 2187 - Casa Forte Recife - PE - Brasil
Agendar visitas: 3ª/4ª e 6ª, das 11h às 17h 5ª, das 8h às 17h sáb/dom.e feriados, das 13h às 17h.

Engenho São João
Estrada do Igarassu 7km - Várzea Itamaracá - PE - Brasil
Agendar visitas: 2ª/5ª, das 8h às 17h 6ª, das 8h às 16h. 

Fundação Gilberto Freyre

R. Dois Irmãos, 320 - Apipucos - Solar de Sto. Antônio Recife - PE - Brasil CEP 52071-440

Museu do Estado de Pernanbuco
 Av. Rui Barbosa, 960 - Graças Recife - PE - Brasil
Agendar visitas: 3ª/6ª, das 9h às 17h sáb/dom e feriados, das 14h às 17h.
Bibliografia
ARINOS, Afonso. Lendas e tradições brasileiras. São Paulo:

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Europa Americana, 1988.

BELO, Júlio.
Memórias de um senhor de engenho. Rio de Janeiro:

COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à colônia. São Paulo: Difel, 1980.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Cultrix, 1985.

DAVIDOFF, Carlos Henrique. Bandeirantismo: verso e reverso. São Paulo: Brasiliense, 1984.
(Tudo É História)
FREYRE, Gilberto. Org. Livro do nordeste. Pernambuco: s.e, s.d .(LIVRO do Nordeste, comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco: 1825-1925. Recife: Off. do diário de Pernambuco, 1925.)

HOLANDA, Sérgio Buarque de & SOUZA, Octávio Tarquínio de. História do Brasil. Rio de Janeiro:

IONE, Maria Artigas de Sierra. coord. Contos, mitos e lendas para crianças na América Latina. São Paulo: Ática, 1997.

MACEDO, Gilberto de. Casa-Grande & Senzala, obra didática? Rio de Janeiro: Cátedra/INL-MEC, 1979.

PEREIRA, Arthur Ramos de Araujo. O Folclore negro no Brasil. Rio de Janeiro: Global, 1985.

PINSKY, Jaime. A Escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 1988 (Repensando A História).

REGO, José Lins. O Menino de engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978

RIBEIRO, Darcy. O Povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia Das Letras, 1996.

SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz E Terra, 1989.
Filmografia
Casa-Grande & Senzala. (doc., Brasil, )
Direção: Geraldo Sarno. 

O Povo Brasileiro.
 (60', doc., Brasil, )
TV Cultura

O Sociólogo de Apipucos. (doc., Brasil,)
Direção: Joaquim Pedro de Andrade. 

Quilombo
 (119', doc., Brasil, 1984)
Direção: Carlos Diegues.
Elenco: Antônio Pompeu, Zezé Motta, Toni Tornado. FDE nº 90 

Região, Tradição e Modernidade.
 (doc., BRA)
Direção: Luís Miranda Correa.

Xica da Silva. (117', Brasil, 1976)
Direção: Carlos Diegues.
Elenco: ZeZé Motta, Walmor Chagas, José Wilker.
Discografia
SUÍTE NORDESTINA 4º MOVIMENTO CASA-GRANDE & SENZALA
Compositor: Lourenço Barbosa. (Capiba)