Chega de discutir questões menores sobre os cérebros dos homens e das mulheres
Suzana Herculano-Houzel é neurocientista da UFRJ, autora de ‘O Cérebro Nosso de Cada Dia’ (Ed. Vieira & Lent, 2002). Artigo publicado em ‘O Estado de SP’:
Está certo que o assunto é intrigante, polêmico e até divertido.
Mas já se passaram mais de dois meses desde que Lawrence Summers, reitor da Universidade Harvard, fez seu comentário sobre como diferenças de aptidão entre homens e mulheres poderiam explicar a pequena presença destas nas ciências exatas, e a mídia continua roendo o osso.
A persistência em si não é ruim. Ao contrário, a neurociência deve agradecer a Summers por ter colocado o assunto sob os holofotes de maneira tão (literalmente) espetacular.
O problema é que raramente a mídia apresenta os argumentos completos por trás da questão. Existem diferenças entre o cérebro de homens e de mulheres?
Sim, elas existem – e não deveria ser de outro modo, já que todo o resto do corpo é tão evidentemente diferente entre uns e outras. Existem diferenças entre as habilidades cognitivas deles e delas? Até que sim, também.
Mas, como visões maniqueístas do cérebro humano e suas capacidades vendem revistas como água – ‘homens são assim, mulheres são assado, entenda por quê!’ –, tentativas de qualificar essas diferenças ganham apenas poucas linhas nas matérias.
A explicação completa, de fato, é bem menos glamourosa. Diferenças existem, sim – mas apenas na média, e várias vezes são apenas marginalmente significativas, ou seja, passam raspando em testes estatísticos.
Pegue em suas mãos um cérebro humano, e suas chances de acertar o sexo do dono não são muito maiores do que 50%.
Em média, o cérebro masculino é, sim, 10% mais pesado do que o feminino – e possui cerca de 4 bilhões de neurônios a mais no córtex além dos 19 bilhões das mulheres, segundo uma estimativa dinamarquesa.
Mas as curvas de distribuição de peso e número de neurônios de cérebros individuais se confundem entre os dois sexos, e a maioria da população tem cérebro de tamanho parecido.
Muitas mulheres, aliás, possuem cérebro maior do que o de seus vizinhos. O próprio Einstein, ícone de inteligência para muitos, tinha um cérebro do tamanho médio feminino.
Diferenças maiores estão nas extremidades da distribuição, e foi aqui que Summers pegou a deixa.
Ao contrário dos leitores atraídos por capas sobre ‘homens são assim e mulheres são assado’, Summers conhece estatística bem demais para se deixar enganar por médias.
Seu argumento foi baseado nos poucos homens e mulheres que se afastam do padrão normal de distribuição de suas habilidades cognitivas.
Mesmo que em média a diferença seja pequena, mais homens do que mulheres teriam um desempenho excepcionalmente bom (e também excepcionalmente ruim!) em testes de habilidade matemática, por exemplo.
Até aqui, tudo bem.
Os problemas começam quando Summers supõe que esses que se destacam na distribuição de habilidades cognitivas seriam justamente os muitos homens e poucas mulheres que povoam as melhores faculdades de ciências exatas do planeta – e por razões biológicas.
A lista de problemas é extensa.
Primeiro, vários homens e mulheres com habilidades matemáticas extraordinárias não estão lecionando nem aprendendo ciências exatas em Harvard, mas ficaram em casa ou preferiram seguir carreira nas artes, na história ou na medicina por uma série de razões – assim como muitos dos que estão de fato em Harvard não possuem as tais habilidades matemáticas, dois ou três ou mais desvios-padrão acima da média, mas estão lá por outras razões –, de pistolões a outras menos cínicas e mais louváveis, como esforço e dedicação.
Segundo, é preciso determinar se as pequenas diferenças cerebrais marginalmente significativas entre os sexos – um córtex parietal inferior 6% maior nos homens, por exemplo – são de fato associadas a habilidades cognitivas marginalmente melhoradas neles ou nelas. Isso se mostra particularmente difícil.
Por exemplo, por mais que procure, Elizabeth Spelke, psicóloga de Harvard estudiosa do assunto, não encontra evidências de bases biológicas para as tais diferenças em habilidades matemáticas entre os sexos.
Mas digamos até que mais homens do que mulheres tenham de fato uma maior facilidade para habilidades matemáticas associada a regiões corticais específicas ligeiramente maiores.
E daí? Para começar, isso não informa se essas diferenças são pura decorrência da biologia dos sexos.
Mesmo que talentos inatos existam na forma de facilidades de origem genética, sexuais ou não – um receptor de glutamato mais ativo, mais síntese de dopamina –, até onde se sabe são apenas isso: facilidades.
A genética certamente pode ajudar ou atrapalhar o ponto de partida, e até o meio de campo, mas habilidades excepcionais são desenvolvidas à medida que o cérebro muda conforme a experiência.
Aprenda a tocar um instrumento de corda, e a representação cerebral do seu dedo mindinho esquerdo, do qual você agora exige destreza, aumentará.
Decore todas as ruas de Londres para poder ser taxista daquela cidade, e seu hipocampo direito, que guarda seus mapas de navegação, crescerá.
Passe dois meses aprendendo malabarismo para manter três bolinhas no ar, e o córtex envolvido na atenção espacial ficará mais gordinho.
Dedique várias horas do dia a fazer contas de cabeça, e suas habilidades matemáticas ficarão vários desvios-padrão acima da média.
Homem ou mulher, genética e sexualmente propenso ou não, ninguém se torna engenheiro, físico, médico ou pianista se não for à escola e não tiver a paciência e o suporte necessários para perseverar e praticar horas a fio.
Por tudo isso, não serão diferenças biológicas marginalmente significativas entre os sexos que determinarão quantas mulheres entram em Harvard, na USP ou na UFRJ.
Uns poucos pontos porcentuais de diferença no tamanho de regiões do cérebro ou em testes cognitivos não são suficientes para acabar com as aspirações de ninguém.
O mais curioso disso tudo é que a mais importante, mais significativa e mais extrema diferença cerebral e comportamental entre homens e mulheres se perde na discussão:
a diferença que faz com que cerca de 90% dos homens prefiram as mulheres e 90% das mulheres prefiram os homens como parceiros.
Esta, sim, é uma diferença cerebral de origem genética, totalmente biológica (não, a educação não faz a menor diferença, por mais que políticos, religiosos e grupos antiadoção esperneiem), e influenciável pelo ambiente hormonal somente durante o início da gestação.
Esta, sim, tem conseqüências fundamentais para o destino de cada um, a começar porque determina sobre qual metade da população você voltará os seus interesses.
E ainda bem que ela é recíproca, pois desse modo os 90% de cada lado encontram 90% do sexo oposto que retribuem seu interesse.
E ainda assim há 10% de diversidade no interesse sexual humano.
No sexo, como no resto, a própria genética é fonte de diferenças, sim – mas, para o resto, apenas uma delas, ao lado de cultura, família e a experiência acumulada pelo cérebro, de modo que o ser humano existe em todas as combinações possíveis.
Ainda bem: seria um mundo chato onde todos os homens, e apenas homens, fossem físicos e engenheiros, e todas as mulheres, e apenas elas, com suas áreas cerebrais da linguagem ligeiramente maiores do que as deles, fossem grandes escritoras ou palestrantes.
A literatura não seria a mesma sem homens como Gabriel García Márquez. E a neurociência não teria tantas páginas nos jornais sem os comentários de Larry Summers... (O Estado de SP, 27/3)